Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
e <strong>do</strong> fogo. Como que por encanto, o Albuquerque se transforma em índio e passa a<br />
lutar ferozmente contra os covardes portugueses, os invasores, usan<strong>do</strong> como arma<br />
seu poderoso membro viril:<br />
Estava nu [...] Lisos desciam meus cabelos e minha pele era copiada à cor<br />
<strong>do</strong> cobre. No lugar <strong>do</strong> chapéu, usava um cocar de azuis e encarnadas<br />
penas. Às mãos segurava a assinalada borduna [...] Eu a içava e brandia e<br />
provocava zuni<strong>do</strong> crespo nos ares [...] manobran<strong>do</strong> a chibata que acabou os<br />
fazen<strong>do</strong> a gritos evadir-se. À frente deles disparava como lebre o já dito<br />
marechal-de-campo Duarte Caolho. Duarte. Caolho. 122<br />
Note-se, primeiramente, como a repetição intervalada <strong>do</strong> nome próprio, a<br />
alusão aos parônimos Caolho/Coelho e a analogia com lebre sinalizam humor<br />
irônico. E como o uso <strong>do</strong> polissíndeto, da sinestesia, <strong>do</strong>s ecos e aliterações ajudam<br />
a reforçar o poder imagético da cena, fazen<strong>do</strong> com que as palavras sugiram ruí<strong>do</strong>s<br />
que presentificam os atos e os objetos evoca<strong>do</strong>s.<br />
Esses sonhos e alucinações, que às escondidas vão se infiltran<strong>do</strong> nos<br />
interstícios da narrativa, proporcionam ao Torto uma antevisão torturante de sua<br />
própria história. O humor acontece justamente ao observarmos a manipulação<br />
desses risíveis (e às vezes óbvios) prenúncios como forma de atormentar e<br />
desgastar ainda mais o já combali<strong>do</strong> e acovarda<strong>do</strong> herói. A ironia se realiza ao<br />
confrontarmos a sordidez da realidade com o fantástico <strong>do</strong>s sonhos, ao vermos o<br />
me<strong>do</strong> transforma<strong>do</strong> em bravura e o maravilhoso da epopéias reduzi<strong>do</strong> a pesadelos.<br />
Nos espaços oníricos, o narra<strong>do</strong>r também encontra uma possibilidade de<br />
inventar (reinventar e, ao mesmo tempo, desconstruir) a si mesmo, crian<strong>do</strong> uma<br />
espécie de auto-retrato ilusório. Observemos a seguinte passagem:<br />
Cresci<strong>do</strong> já ia o Sol, et coetera. Assi lia o Torto nuns papéis, aquela miúda<br />
mas legível letra, de cujo manuscrito se incumbira um licencia<strong>do</strong> e cronista<br />
fiel, o cronista de D. Jerónimo d’Albuquerque! Precisará dizer-se aos que<br />
distraidamente costumam lidar com as letras imprimidas, que lia o Torto um<br />
cronista nunca havi<strong>do</strong>, sobre fatos não aconteci<strong>do</strong>s e essas todas<br />
circunstâncias sucedidas no macio de chão, clara de luzes e no geral plena<br />
de silêncios, que assi é a atmosfera <strong>do</strong> sonho? 123<br />
Neste trecho, rechea<strong>do</strong> de sinaliza<strong>do</strong>res (repetições <strong>do</strong> parágrafo anterior,<br />
itálicos, exclamação, referências metaficcionais, perguntas retóricas), configura-se<br />
uma estrutura discursiva que, à distância, pode causar no leitor uma irônica e<br />
122 Ibid., p. 67.<br />
123 Ibid., p. 36. (grifo <strong>do</strong> autor)<br />
73