Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
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Ah, ah, mas não falas, nada dizes, que não passas de um minininho a<br />
gatinhas e com frio à cata de sombra, silêncio e tepidez. Sombra, silêncio e<br />
tepidez! Ah! Ah! [...] Mui tristezito estás, ó meu petiz? Chega-te cá e declina<br />
tua cabecita em o peito meu, que arfa e é morno como o leitinho das<br />
cabras. Queres leitinho de cabras montesas? Ou o leitinho de mamã? Fazeme<br />
o favor subidíssimo de ir às rápidas, per faz e nefas – à merda! 112<br />
Quan<strong>do</strong> o espetáculo da morte chega ao fim e Jerónimo completa sua<br />
tortura psicológica e catártica, fica-nos a impressão (irônica?) de que não se pode<br />
tripudiar impunemente sobre um corpo sem que este se volte contra quem o agrediu:<br />
“Ao mesmo tempo, afligia-o um pungir crescente ao peito. Como se mal acabasse<br />
de perder um amigo. Um amigo!” 113 Aquele corpo escarneci<strong>do</strong>, avilta<strong>do</strong> e<br />
vilipendia<strong>do</strong> se transforma em inevitável objeto de afeição. Junto dele, Jerónimo<br />
aban<strong>do</strong>nará as memórias de toda uma vida. O cadáver ali inerme representa um<br />
pedaço <strong>do</strong> próprio Torto, um pouco <strong>do</strong> homem que ele havia si<strong>do</strong>, os restos mortais<br />
de seu passa<strong>do</strong>, os despojos de uma identidade que, por ora, era preciso renegar.<br />
Só assim o protagonista encontrará forças para prosseguir, para adentrar nos matos<br />
brasileiros onde o aguarda a segunda parte de sua aventuresca história.<br />
A ironia se caracteriza por uma instabilidade permanente. Ela consegue<br />
desestabilizar significa<strong>do</strong>s, removen<strong>do</strong> “a certeza de que as palavras signifiquem<br />
apenas o que elas dizem” 114 , consegue desestabilizar intenções, perturban<strong>do</strong> a<br />
confiança que depositamos em nossas interpretações e até mesmo em nossas<br />
relações interpessoais. Apesar de alguns sinaliza<strong>do</strong>res, não há garantias cem por<br />
cento seguras de que a ironia será percebida e, muito menos, de que será<br />
interpretada da forma como o ironista intencionou. Aliás, a potencialidade irônica de<br />
uma elocução depende, em grande parte, das atitudes e intenções <strong>do</strong> próprio<br />
interpreta<strong>do</strong>r, sem as quais ela não pode acontecer.<br />
A ironia é uma atividade intercomunicativa, pois envolve não apenas<br />
relações entre significa<strong>do</strong>s, mas também relações entre indivíduos, relações entre<br />
as comunidades discursivas às quais os indivíduos pertencem, bem como relações<br />
entre contextos, que são possibilita<strong>do</strong>s e difundi<strong>do</strong>s justamente por intermédio<br />
dessas comunidades. Quanto mais comunidades em comum dividirmos com outros<br />
indivíduos, mais contextos deverão ser compartilha<strong>do</strong>s e vice-versa. Da mesma<br />
112 Ibid., p. 129.<br />
113 Ibid., p. 131.<br />
114 HUTCHEON, Linda. Op. cit., 2000. p. 32.<br />
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