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Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

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as referências escatológicas e aparecem também as primeiras paródias de epitáfios.<br />

Quase tu<strong>do</strong> deixa entrever a atitude cínica, desrespeitosa e politicamente incorreta<br />

<strong>do</strong> satirista. Sua inclinação para ironizar, bem como suas reservas de humor negro e<br />

crueldade mental são inexpugnáveis. A ironia, com suas arestas afiadas, começa a<br />

rasgar profundamente o coração <strong>do</strong>s intérpretes. Ao mesmo tempo, surge o riso<br />

mordaz, o riso de transgressão, o riso que dessacraliza:<br />

No que a ti, Cabreira, concerne, cada minuto morres mais, morreram-te as<br />

pernas, os braços, morreu-te a fala. Que falta mais morrer-te? [...] Já não te<br />

mexes e estou comigo a cismar se te faço a letra <strong>do</strong> epitáfio. [...] Vê-me lá<br />

este epitáfio mimoso:<br />

O NUNO CABREIRA QUE AQUI JAZ<br />

NENHUMAS ALEGRIAS DEU AO MUNDO,<br />

SENÃO QUANDO FOI EMBORA.<br />

Escolherás tu mesmo o que milhor te aprouver [...] Ajuda-me, ó quase<br />

defunto. Ficas aí qual malabruto, olhan<strong>do</strong>-me estupidamente! Olhar<br />

estagna<strong>do</strong>. Olhar de cretino. Olhar de mula ruça. Olhar de imbecil. De<br />

quadrúpede. Escuta lá, ó asno loução [...] 110<br />

A fingida prédica vai se transforman<strong>do</strong> em sacramento de penitência e, logo,<br />

em paródia da extrema-unção. Algumas historietas, a mo<strong>do</strong> de parábolas, são<br />

contadas pelo Torto para espicaçar ainda mais os brios <strong>do</strong> agonizante. Os<br />

provérbios adquirem um tom particularmente irônico, visto que não apenas são<br />

incompatíveis com o contexto, como também denunciam as falsas intenções e a<br />

ausência de solidariedade <strong>do</strong> pseu<strong>do</strong>prega<strong>do</strong>r, aplican<strong>do</strong>-se mais a este <strong>do</strong> que ao<br />

destinatário propriamente dito: “Pões-te de acor<strong>do</strong>, amigo velho? É. Nos trabalhos<br />

se vêem os amigos.” 111<br />

Por um momento, o monólogo <strong>do</strong> Torto toma aspecto de fluxo de<br />

consciência, sem parágrafos, com numerosas repetições, pontuação excessiva e<br />

pensamento labiríntico. De repente, é como se o agressor, no auge <strong>do</strong> desespero,<br />

tentasse agredir a si mesmo. Seu sadismo mórbi<strong>do</strong>, seus sentimentos<br />

desencontra<strong>do</strong>s e seu sarcasmo ferino transformam o corpo <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong> no bode<br />

expiatório de todas as culpas, próprias e alheias, legítimas ou infundadas. É<br />

importante observar como o emprego sistemático <strong>do</strong>s diminutivos carrega o peso<br />

emocional da intenção irônica, corroen<strong>do</strong> assim qualquer possibilidade de um<br />

discurso sério:<br />

110 Ibid., p. 125.<br />

111 Ibid., p. 126. (grifo meu)<br />

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