Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
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de paródias e ironias para enfrentar os temas arquetípicos <strong>do</strong> humor negro:<br />
canibalismos, profanações, assassinatos, torturas e suicídios.<br />
O episódio de O tetraneto del-rei em que o Torto assiste impassivelmente à<br />
morte de um solda<strong>do</strong> sem prestar-lhe nenhuma ajuda, servin<strong>do</strong>-se da angustiante<br />
situação para humilhar, escarnecer e ridicularizar o moribun<strong>do</strong>, ilustra algumas<br />
arestas funcionais da ironia, bem como certas estratégias de sinalização usadas<br />
para enquadrar o evento num contexto irônico.<br />
A cena se abre com uma referência explicitamente intertextual, advertin<strong>do</strong><br />
de imediato o leitor para a presença de jogos paródicos virtuais: “Um dia inteiro<br />
esteve a passear por veredas <strong>do</strong> grande sertão.” 107 Na seqüência, manipulam-se<br />
metáforas sinestésicas que fortalecem a sensação de ironia espirituosa e infundem<br />
traços lúdicos à narrativa: “Quan<strong>do</strong> se avizinhavam cheiros de carniça; para outro<br />
sítio voltava-se, a perseguir aromas verdes, que aromas têm cor, aromas verdes,<br />
aromas azuis, aromas lilases, brancos, e aromas negros, cheiros negros, <strong>do</strong>s quais<br />
ora fugia.” 108 Ao irromper o macabro, o escritor opta pelo discurso indireto livre. Este<br />
mo<strong>do</strong> de narrar, que propicia mais agilidade e ambigüidade ao relato, acaba geran<strong>do</strong><br />
tensões entre o pensamento para<strong>do</strong>xal <strong>do</strong> Torto, os comentários maliciosos <strong>do</strong><br />
narra<strong>do</strong>r e as reações fisionômicas <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong>. A rápida alternância entre<br />
diferentes pontos de vista, juntamente com a sensação de economia discursiva e de<br />
atropelo emocional sinalizam o tom debocha<strong>do</strong> e sarcástico <strong>do</strong> incidente:<br />
Tropeçava em corpos, algũs que se mexiam; estavam quase to<strong>do</strong>s a finar,<br />
em uns perceben<strong>do</strong>-se frouxo alento; que poderia fazer? Curar feridas?, ou<br />
de uma vez acabar a tiros de misericórdia? [...] Agachou-se diante <strong>do</strong><br />
moribun<strong>do</strong>. Moribun<strong>do</strong>? [...] Olhou o gemente, não reconhecen<strong>do</strong> quem<br />
seria. [...] Que socorro prestar-lhe? [...] Carregar o feri<strong>do</strong>? Era a idéia última<br />
que a um fraco de braços acudiria. Ele, o Torto, mal e mal a si mesmo<br />
carregava! Se dependesse de carregar o malferi<strong>do</strong>, por ali mesmo<br />
estrebuchava. Pensou: um tiro. Um tiro ao peito, ao centro mesmo <strong>do</strong><br />
coração e iam-se as <strong>do</strong>res e ia-se ele a bom ir. Chegou a sacar <strong>do</strong> coldre o<br />
mosquete, a boa Melgaça, mas o outro inflamou o olhar de desmarca<strong>do</strong><br />
pavor, que estava a ver-se que o solda<strong>do</strong> leso repelia similhante remédio. 109<br />
De repente, o realismo da cena é substituí<strong>do</strong> por um longo sermão <strong>do</strong> Torto,<br />
um tipo de solilóquio que parodia as admoestações religiosas. Nesta falsa prédica,<br />
abundam os vocativos, a função fática da linguagem e o exagero adjetival, retornam<br />
107<br />
MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. Op. cit., 1988. p. 122.<br />
108<br />
Idem.<br />
109<br />
Idem. (grifo <strong>do</strong> autor)<br />
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