Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Sosseguei. Aí eu não devia pensar tantas idéias. A guerra tem destas<br />
coisas, contar é que não é plausível. Mas, mente pouco, quem a verdade<br />
toda diz. Nós estávamos em fun<strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s. Os quantos homens, de<br />
estranhoso aspecto. Mas muita era minha decisão. Para ódio e amor que<br />
dói, amanhã não é consolo. Aquilo não era só mata, era até florestas.<br />
Sertão: é dentro da gente. 95<br />
Com versos rouba<strong>do</strong>s de Camões, como vimos acima, o Torto ama. Com<br />
fragmentos poéticos toma<strong>do</strong>s de Fernan<strong>do</strong> Pessoa, o Torto pondera e sente:<br />
Vejo passar os barcos pelo mar, as velas, como asas <strong>do</strong> que vejo trazemme<br />
um vago e íntimo desejo de ser quem fui, sem eu saber quem foi. Por<br />
isso tu<strong>do</strong> lembra o meu lar, e, porque o lembra, quanto sou me dói. De<br />
quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço? Há<br />
saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há<br />
grandes raivas feitas de cansaços. Há quanto tempo, Portugal, há quanto<br />
tempo vivemos separa<strong>do</strong>s! Horror! Não nos vemos mais! 96<br />
Desta forma, o teci<strong>do</strong> intertextual vai sen<strong>do</strong> trama<strong>do</strong>. E a ele, outros<br />
elementos vão se soman<strong>do</strong>: a eloqüência das cartas coloniais, principalmente nas<br />
formas afetadas de saudação e despedida; a desconformidade entre o<br />
rebuscamento lingüístico e o desejo de manter o tom <strong>do</strong>méstico das missivas; a<br />
divulgação de assuntos pessoais como se fossem questões públicas de máxima<br />
importância; a tentativa de transformar os atos mais fesceninos, reles e vis em feitos<br />
de exagera<strong>do</strong> heroísmo; a discrepância entre os episódios realmente vivi<strong>do</strong>s pelo<br />
Torto e o relato satiricamente heroiciza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mesmos acontecimentos; as divertidas<br />
e contraditórias revelações <strong>do</strong> personagem, bem como suas posições para<strong>do</strong>xais a<br />
respeito de Muira-Ubi. Se por um la<strong>do</strong> o Torto se refere a ela amorosamente como:<br />
“A minina. A minina é flor, brisa, antemanhã.” 97 Por outro, nas cartas, não hesita em<br />
denegri-la: “A bugia é fea, bronca e glabra, a mais um homem se semelha, a um<br />
anão [...] Não se sabe o que lhe passa à cabeça, que nada diz, ruge como bicho [...]<br />
Caso-me com uma parva” 98 . Ao sustentar duas idéias incompatíveis sobre um<br />
mesmo tema (uma tese desmentin<strong>do</strong> a outra), desponta o humor irônico, que<br />
sanciona a cegueira, a hipocrisia e o comportamento ridículo <strong>do</strong> protagonista.<br />
Harol<strong>do</strong> Maranhão constrói seu discurso ficcional como um decalque de<br />
outros discursos, parodian<strong>do</strong> a literatura e os mecanismos convencionais da<br />
historiografia para arquitetar um projeto romanesco que, de muito longe, recorda um<br />
95 MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. Op. cit., 1988. p. 120.<br />
96 Ibid., p. 55.<br />
97 Ibid., p. 240.<br />
98 Ibid., p. 222.<br />
62