Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
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das baixezas e perversões humanas é um mo<strong>do</strong> de aplacar e sublimar os instintos;<br />
que, ao escarnecer <strong>do</strong>s contra-exemplos, a razão se obriga naturalmente a apoiar-<br />
se nos casos mais exemplares; que toda forma deliberada de tornar alguma coisa<br />
mais estranha ou anormal <strong>do</strong> que ela realmente é acaba fazen<strong>do</strong> com que os<br />
indivíduos valorizem os padrões e reforcem seus critérios de normalidade. Por isso,<br />
certas técnicas de exageração, redução, degradação, simplificação e aniquilamento<br />
são decisivas quan<strong>do</strong> o propósito é moralizar com a corneta azucrinante <strong>do</strong> riso.<br />
Vejamos o caso da redução. O satirista se apropria dessa técnica para<br />
despir e rebaixar os homens, para despojá-los de suas vestimentas, de sua classe e<br />
status, de suas aspirações metafísicas e, inclusive, <strong>do</strong> controle de seu próprio ego,<br />
reduzin<strong>do</strong>-os, a to<strong>do</strong>s, a uma mesma e única condição de existência: o nível físico,<br />
material e corporal. “El objetivo del satírico es dejar en cueros a los hombres, y,<br />
aparte de las diferencias físicas, un hombre desnu<strong>do</strong> es lo que más se parece a otro<br />
hombre.” 39<br />
Como veremos no capítulo sobre as metáforas, Harol<strong>do</strong> Maranhão utiliza<br />
diferentes estratégias para evidenciar o corpo, para reduzi-lo a um punha<strong>do</strong> de<br />
coisas, para transformar sentimentos e noções humanas em carne, para materializar<br />
o mun<strong>do</strong> anímico <strong>do</strong>s homens, enfim, para arrastar seus personagens ao nível<br />
animalesco, corpóreo, anatômico. O escritor satírico tradicional disseca a natureza<br />
<strong>do</strong>s mortais com a mesma impassibilidade de um anatomista, a mesma excitação<br />
sádica de um psicopata ou a ternura perversa de um voyeur.<br />
Harol<strong>do</strong> Maranhão poderia ser considera<strong>do</strong> um satirista exemplar, não fosse<br />
um único pormenor. O pormenor é aquele que assoma discreta e insistentemente na<br />
voz narrativa de O tetraneto del-rei. Observe-se, por exemplo, o mo<strong>do</strong> como o<br />
narra<strong>do</strong>r sintetiza a essência mesma <strong>do</strong> Torto, quan<strong>do</strong> este, recém-abati<strong>do</strong>, lesa<strong>do</strong> e<br />
captura<strong>do</strong> pelos índios, queixa-se da inexplicável desumanidade <strong>do</strong>s tabajaras:<br />
“Mais que as <strong>do</strong>res em o rosto, <strong>do</strong>ía-lhe a <strong>do</strong>r da incompreendida atacadura [...] não<br />
mostrava armas de guerra. Era o só corpo muni<strong>do</strong> de roupa; e o rosto bom.” 40<br />
A primeira parte <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> em destaque é de veia satírica, toda a<br />
complexidade humana se reduz ao peso de um simples corpo com vestes. Mas o<br />
aden<strong>do</strong> (a nota dissonante, o rosto bom) revela que, às escondidas, atua na<br />
39 HODGART, Matthew. Op. cit., p. 28.<br />
40 MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. O tetraneto del-rei: o Torto, suas idas e venidas. Lisboa: Livros <strong>do</strong> Brasil,<br />
1988. p. 137-138. (grifo meu)<br />
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