14.04.2013 Views

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Torto, também são índices de participação <strong>do</strong> autor implícito. Como a ane<strong>do</strong>ta<br />

seguinte, uma espécie de ilha de coerência, cinismo e lucidez, plantada dentro <strong>do</strong><br />

discurso, aparentemente desconexo, de Duarte Coelho:<br />

170<br />

De uma virtuosa mulher, casada e matrona, escreveu um poeta versos<br />

acerbos, assi: In somma questa dama / é gran putana. E quan<strong>do</strong> o<br />

reprocharam pela infâmia, que de infâmia se tratava, escusou-se que usara<br />

<strong>do</strong> agravo não per agravar a mulher, mas a harmonizar os versos, que<br />

putana bem o soa com fontana. [...] Não rides vós?, pois rio-me eu. 39<br />

A desculpa <strong>do</strong> poeta é falaz, mas engenhosa. Ela consiste em perturbar a<br />

lógica argumentativa, em transgredir a relação de causa e efeito, tornan<strong>do</strong>-a, por<br />

conseguinte, inaceitável e risível. Ao colocar a responsabilidade poética acima da<br />

responsabilidade ética, como se o desejo (menor e secundário) de rimar fosse<br />

superior e anterior à intenção (maior e primária) de ofender, o poeta confunde<br />

deliberadamente uma hierarquia de valores que julgávamos bem estabelecida.<br />

Enquanto o chiste funciona, no plano ficcional, como arma que o capitão-mor<br />

dispara na direção <strong>do</strong> Torto, calunian<strong>do</strong>-o, justifican<strong>do</strong> a calúnia e tentan<strong>do</strong><br />

desestabilizar a arrogância e a impertinência <strong>do</strong> cunha<strong>do</strong>, no plano da leitura, a<br />

piada parece servir como autodefesa irônica <strong>do</strong> próprio autor implícito. Ele sabe que<br />

suas atitudes são moralmente infames, sabe também que seus leitores podem e<br />

devem recriminá-lo, por isso, comunga com as conclusões da ane<strong>do</strong>ta e pede que<br />

façamos o mesmo, ou seja, parece sugerir que gosta de se relacionar com seu texto<br />

da mesma forma cínica como o aludi<strong>do</strong> poeta se relaciona com a poesia.<br />

Boa parte <strong>do</strong> humor intenciona<strong>do</strong> pelas sátiras depende diretamente <strong>do</strong>s<br />

mo<strong>do</strong>s como reagimos à personalidade desse autor implícito, que nos provoca, de<br />

todas as maneiras possíveis, com suas escolhas intelectuais e morais. Quer queira<br />

quer não, o satírico atua como uma espécie de censor <strong>do</strong>s comportamentos<br />

humanos, forçan<strong>do</strong>-nos a olhar, repetidas vezes, para determinadas ações que<br />

repudiamos ou para condutas que já considerávamos rotineiras, aceitas ou<br />

socialmente fora de questão. Ecce Homo!, brada o satirista com cinismo, como que<br />

a dizer: não sou responsável pelo homem, apenas rio-me dele.<br />

Contu<strong>do</strong>, para inverter o leque de nossas valorizações, apequenan<strong>do</strong> o que<br />

supúnhamos grande, desrespeitan<strong>do</strong> o que era digno de respeito, tornan<strong>do</strong> público o<br />

que se pretendia manter oculto e desinflan<strong>do</strong> o ego daqueles que foram socialmente<br />

39 MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. Op. cit., 1988, p. 91. (grifo <strong>do</strong> autor)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!