14.04.2013 Views

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

168<br />

criança é muito ruim, estraga brinque<strong>do</strong>, estripa boneca, pisa em formiga,<br />

puxa em rabo de gato, cospe no prato da cozinheira, dá pontapé na canela<br />

da avó e às vezes quebra a canela da avó, quan<strong>do</strong> beija baba de propósito,<br />

pendura lata no rabo <strong>do</strong>s cachorros, bota cola na caixa <strong>do</strong> correio, esvazia<br />

pneu de carro, rasga <strong>do</strong>cumento <strong>do</strong> pai, rasga revista, rasga jornal antes de<br />

ser li<strong>do</strong>, entorna água na mesa, entorna sopa no chão, toca a campainha <strong>do</strong><br />

vizinho e sai corren<strong>do</strong>, derruba perfume da mãe no tapete da sala, criança<br />

tem mau-caráter [...] criança é solerte, é cínica, é cavilosa, criança é o maior<br />

flagelo da terra, é uma peste, é peste bubônica, é câncer generaliza<strong>do</strong>, é<br />

sífilis, é tuberculose galopante, é conflagração mundial [...] 32<br />

Atormenta<strong>do</strong> por semelhanças, coincidências e simulacros, o autor implícito<br />

de Harol<strong>do</strong> Maranhão elabora uma irreverente teoria da duplicação humana,<br />

segun<strong>do</strong> a qual, em qualquer época ou lugar, é possível que nos deparemos com a<br />

matriz, os protótipos e os duplos de uma pessoa. O protótipo é uma espécie de<br />

duplicata absolutamente perfeita da matriz; embora um não se aperceba da<br />

existência <strong>do</strong> outro, estão liga<strong>do</strong>s “por invisível fio moral que estabelece o equilíbrio<br />

de ambos” 33 . Ironicamente, apenas os olhos bem treina<strong>do</strong>s <strong>do</strong> autor são capazes de<br />

distingui-los: “Atribuo essa sensibilidade minha a exercícios quase diários, a catar<br />

protótipos a meu re<strong>do</strong>r.” 34 No entanto, ser um protótipo é como carregar uma<br />

maldição, pois, quan<strong>do</strong> morre a matriz, esteja o protótipo onde estiver, ele se<br />

transforma de imediato em duplo, numa inexplicável relação de causa e efeito, e os<br />

duplos, por sua vez, são figuras que transitam velozmente pelas ruas como se<br />

fossem uma ilusão fugaz, “isso é importante: sempre de rosto severo. Os duplos não<br />

riem. Nunca assisti a um duplo ao menos sorrir. Esperar por isso seria perda de<br />

tempo: fleugmáticos passam. Mu<strong>do</strong>s. Austeros.” 35<br />

Com a mesma naturalidade que caracteriza o realismo mágico e no mesmo<br />

tom prosaico <strong>do</strong>s pesadelos kafkianos, o autor suspeita que esses duplos<br />

impassíveis que circulam pelas calçadas comprovam, enfim, a existência de uma<br />

outra dinâmica entre a vida e a morte, entre o céu e a terra: “as pessoas não morrem<br />

como se pensa; um instante calam-se, paralisam, enrijecem, apenas para iludir.<br />

Depois, tornam a erguer-se, desembaraçam-se da prisão mortuária, quan<strong>do</strong><br />

ninguém espia.” 36 É por isso que vivemos rodea<strong>do</strong>s de uma multidão de “peles<br />

frias” 37 e o autor é aquele que se empenha em revelá-las.<br />

32<br />

Ibid., p. 90.<br />

33<br />

MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. A morte de Harol<strong>do</strong> Maranhão. São Paulo: GPM, 1981. p. 31.<br />

34<br />

Ibid., p. 26<br />

35<br />

Ibid., p. 18.<br />

36<br />

Ibid., p. 17.<br />

37<br />

MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. As peles frias. Rio de Janeiro: F. Alves; Brasília: INL, 1983.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!