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Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná

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protagonista: a crença numa sociedade de castas e na hegemonia <strong>do</strong>s indivíduos de<br />

sangue azul. Ao ver esses juízos to<strong>do</strong>s reproduzi<strong>do</strong>s na voz narrativa, o intérprete<br />

estabelece com essa voz uma relação de desconfiança e, ao mesmo tempo, se vê<br />

força<strong>do</strong> pelo narra<strong>do</strong>r a estabelecer uma delicada relação de empatia com o<br />

protagonista e seus valores. Como pôde ele suportar tanta imundície? Como pode o<br />

narra<strong>do</strong>r aderir, ou fingir adesão, às idéias <strong>do</strong>gmáticas e aos preconceitos raciais de<br />

Jerónimo? Como posso eu aderir a valores tão conflitantes? A ironia <strong>do</strong> episódio,<br />

assinalada pela multiplicação <strong>do</strong> adjetivo imun<strong>do</strong> e pelo uso <strong>do</strong> discurso indireto<br />

livre, faz com que se choquem, no mínimo, três elementos: a verdade indiscutível <strong>do</strong><br />

Torto, a verdade discutível <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e a descrença <strong>do</strong> intérprete nas verdades em<br />

questão. É bem provável que essa hesitação entre o certo e o erra<strong>do</strong>, gerada por um<br />

vaivém de valores em desarmonia, seja a responsável pelo surgimento <strong>do</strong> humor.<br />

Na segunda metade <strong>do</strong> mesmo trecho, vemos a voz narrativa empenhada<br />

em defender a seguinte tese: há momentos em que o homem comete desatinos por<br />

colocar a cobiça acima <strong>do</strong> bom senso. É importante perceber que, com apenas uma<br />

frase, talhada e rimada nos moldes proverbiais, opera-se a transição de um narra<strong>do</strong>r<br />

não-confiável para um narra<strong>do</strong>r mais digno de confiança. Isso porque, agora, sua<br />

tese vai de encontro às crenças <strong>do</strong> senso comum, reforçan<strong>do</strong> opiniões já<br />

compartilhadas pelo auditório, como a idéia de que o verdadeiro móvel da conquista<br />

portuguesa repousa no instinto de pilhagem, na sede de depredação e no desejo de<br />

enriquecimento fácil. Note-se também como a força analógica das sugestões<br />

metafóricas contribuem sutilmente para essa interpretação: o português voraz fareja<br />

e saboreia o cheiro de fortunas (trazi<strong>do</strong> pelo vento) e essas, como presas fáceis,<br />

espreitam a chegada <strong>do</strong> preda<strong>do</strong>r.<br />

Ao animalizar os lusitanos, evidenciar suas excentricidades, exagerar suas<br />

imperfeições, embrutecê-los, ridicularizá-los, acovardá-los, dividi-los em bem-<br />

nasci<strong>do</strong>s e miseráveis, loucos e sãos, tolos e ladinos, o autor acaba rompen<strong>do</strong> com<br />

o mito <strong>do</strong> heroísmo português, pon<strong>do</strong> em xeque a crença na superioridade da raça<br />

branca e abrin<strong>do</strong> caminhos para a valorização <strong>do</strong>s índios. Estes, ao longo de to<strong>do</strong> o<br />

romance, são retrata<strong>do</strong>s de forma ora condescendente, ora sarcástica, tanto pelo<br />

narra<strong>do</strong>r quanto pelo Torto.<br />

Posto que essas duas vozes narrativas nem sempre inspiram confiança, foi<br />

preciso criar uma espécie de personagem-testemunha (um espingardeiro<br />

suficientemente lúci<strong>do</strong> e experimenta<strong>do</strong> nos horrores da guerra) para que, através<br />

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