Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Tese Delson Biondo.pdf - Universidade Federal do Paraná
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
metade de certa forma define o caráter mesmo <strong>do</strong> Torto, um homem imperfeito em<br />
busca de uma completude, de uma síntese ou de um renascer.<br />
Luís Vaz de Camões, reinventa<strong>do</strong> e degrada<strong>do</strong>, é uma espécie de cópia de<br />
Jerónimo d’Albuquerque, sua sombra, seu reflexo no espelho. Estimular o leitor a<br />
encontrar semelhanças e diferenças entre duas figuras tão díspares, e ao mesmo<br />
tempo tão coincidentes, parece ser uma técnica eficaz para se criar o ridículo.<br />
Compará-los, aproximan<strong>do</strong>-os e afastan<strong>do</strong>-os, equivale a realizar um admirável<br />
exercício de analogia humorística. Ambos são caolhos (Camões <strong>do</strong> direito, Jerónimo<br />
<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>), ambos são lusitanos errantes <strong>do</strong> século XVI, abati<strong>do</strong>s por infortúnios,<br />
aficiona<strong>do</strong>s à literatura. No entanto, a fama, a genialidade e as obras <strong>do</strong> primeiro<br />
contrastam ironicamente com a obscuridade, a inépcia e o suposto instinto plagia<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> segun<strong>do</strong>. Em vida, qual deles teria si<strong>do</strong> o mais miserável, qual o mais fecun<strong>do</strong>? O<br />
Torto de Harol<strong>do</strong> Maranhão – fidalgo galante, assea<strong>do</strong>, de raros <strong>do</strong>tes, simpático e<br />
sedutor, um verdadeiro Adão Pernambucano – ou o Camões concebi<strong>do</strong> pelo<br />
tetraneto – um faze<strong>do</strong>r de versos de semblante disforme e severo, um indivíduo<br />
sujo, pobre, obsessivo e supostamente misógino? Neste duelo de vícios e<br />
predica<strong>do</strong>s, quem é o real vence<strong>do</strong>r, quem o venci<strong>do</strong>?<br />
O uso de oximoros, sinestesias e antíteses definitivamente criam efeitos que<br />
auxiliam o leitor a elaborar as características dessa personalidade dividida. O Torto<br />
sempre pensa e age de forma dicotômica e mesmo diante das maiores desventuras<br />
é capaz de compensar sua falta de heroísmo com senso de humor e atitudes<br />
oportunistas. Ele não hesita, por exemplo, em tirar parti<strong>do</strong> de sua trágica mutilação<br />
visual para apregoar valores machistas. Ao saber-se cativo e vara<strong>do</strong> com flecha ao<br />
olho, e não ao ânus, como lhe vaticinavam os pesadelos, conforta-se por não ter<br />
sofri<strong>do</strong> nenhum tipo de so<strong>do</strong>mia que pudesse conspurcar sua imagem irretocável de<br />
macho cabal, numa satírica e irônica exibição de apego a idéias machistas:<br />
152<br />
enfim, o Torto suspirou, consolação maior era o haver aquele olho rompi<strong>do</strong>.<br />
Que arromba<strong>do</strong> fora o de cima e não o de baixo. [...] No sonho visavam-lhe<br />
os índios justo o rabo; e traspassou-lhe o Aracy olho oposto, que cego e<br />
bem cego o outro fora-o sempre. E sempre havia si<strong>do</strong> de enxergar o agora<br />
rompi<strong>do</strong>. Dois, um. Um, <strong>do</strong>is. Dois enxergavam, um havia-o por cego. Dois<br />
cegos agora o são e por um só chega-se-lhe a luz. 1<br />
1 MARANHÃO, Harol<strong>do</strong>. O tetraneto del-rei: o Torto, suas idas e venidas. Lisboa: Livros <strong>do</strong> Brasil,<br />
1988. p. 146.