A CIDADE CONTRA A ILHA: ASPECTOS DA URBANIZAÇÃO ...
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Resumo<br />
A <strong>CI<strong>DA</strong>DE</strong> <strong>CONTRA</strong> A <strong>ILHA</strong>: <strong>ASPECTOS</strong> <strong>DA</strong> <strong>URBANIZAÇÃO</strong><br />
CONTEMPORÂNEA EM FLORIANÓPOLIS<br />
Renata Rogowski Pozzo<br />
Universidade Federal de Santa Catarina<br />
sul.renate@gmail.com<br />
Leandro Moraes Vidal<br />
Universidade Federal de Santa Catarina<br />
leh2@gmx.net<br />
O propósito deste ensaio crítico é demonstrar como as atuais “vias” colocadas por diferentes<br />
atores (sejam estes os capitalistas imobiliários, ou a população no intuito de defender os<br />
ambientes naturais de seus bairros) para o planejamento urbano de Florianópolis convergem em<br />
um mesmo ponto: a restrição da oferta da terra. Explicitam-se neste trabalho as origens<br />
históricas e os efeitos que esta opção política tem custado para todo o conjunto da região<br />
metropolitana de Florianópolis e questionam-se, à luz do materialismo histórico e dialético, as<br />
ideologias e os discursos que propagam a elitização social deste espaço mediante a afirmação da<br />
“ilha” e a negação da “cidade”.<br />
Palavras-chave: Florianópolis; Planejamento Urbano Contemporâneo; Urbanização Brasileira<br />
Contemporânea; Pensamento Marxista e a Cidade; Modernidade.<br />
Apresentação<br />
A cidade de Florianópolis experimentou, desde a década de 1960, uma<br />
importante aceleração em sua urbanização, que se acentua ainda mais entre as décadas<br />
de 1990 e 2000, marcadas por um verdadeiro boom imobiliário. Neste período uma<br />
campanha midiática maciça da cidade encabeçada pela Prefeitura, pelo Governo<br />
Estadual e por grandes empresas do ramo turístico-imobiliário vem proclamando<br />
Florianópolis como a “melhor cidade para se viver”, a “capital com melhor qualidade<br />
de vida do país”, projetando-a nacionalmente mediante uma imagem paradisíaca. Todo<br />
esse marketing urbano aqueceu o mercado imobiliário de empreendimentos de alto<br />
padrão.<br />
Estima-se que desde a década de 1990 a população de “classes altas” da cidade<br />
tenha crescido em 10% (Henrique, 2005, p.4). Também no quadro divulgado<br />
recentemente pela Fundação Getúlio Vargas relativo à pesquisa “Os Emergentes dos<br />
Emergentes”, Florianópolis aparece como a segunda cidade brasileira com maior
número de habitantes de “classe A” (27,7%), atrás apenas de Niterói 1 . Contudo, os<br />
efeitos desta mudança de perfil sócio-econômico são democraticamente compartilhados<br />
por toda a população, sem distinção de classe: os preços dos imóveis dispararam, e<br />
também os aluguéis e o custo de vida.<br />
Apesar da grande repercussão que o fenômeno deste tipo de migração tem tido<br />
nos meios de comunicação, deve-se lembrar que ele é apenas um aspecto da acelerada<br />
expansão urbana que ocorre em toda a região metropolitana de Florianópolis. E se é<br />
verdade que o crescimento dos municípios vizinhos à capital (Palhoça, Biguaçú e São<br />
José) deve-se em grande medida ao apelo da marca “Floripa”, ele também resulta da<br />
consolidação de uma dinâmica própria, especialmente em São José, cuja posição no<br />
acesso rodoviário à Ilha de Santa Catarina contribuiu para transformar a cidade, a partir<br />
da década de 1970, em um importante centro regional de indústrias, serviços e logística.<br />
Além disso, o crescimento de bairros populares é também vertiginoso, como na região<br />
do eixo norte da Ilha, que mesmo sendo famosa por seus empreendimentos elitistas<br />
(Jurerê Internacional e Costão do Santinho, por exemplo) é composta também por<br />
bairros como Rio Vermelho e Ingleses, cujo franco crescimento deve-se a migração<br />
recente de famílias vindas do interior dos estados da região Sul, e principalmente do<br />
Planalto e extremo Oeste catarinense. Não por acaso, esta população encontra em<br />
Florianópolis uma grande oferta de trabalho na construção civil e em serviços como<br />
hotelaria e restaurantes, além de se inserirem como trabalhadores no tradicional e<br />
dinâmico setor comercial da região central de Florianópolis.<br />
É preciso destacar, todavia, que independente de sua relevância social, o<br />
crescimento dessa população mais pobre não dinamiza tão significativamente o mercado<br />
imobiliário formal, e que as taxas de lucro dos empreendimentos de alto padrão e a área<br />
requerida por estes é que os tornam os grandes responsáveis pelo boom no mercado de<br />
imóveis.<br />
E é como parte necessária no processo de atração deste segundo tipo de<br />
investimentos para a cidade que um consenso da vocação turística de Florianópolis foi<br />
construído no imaginário social, como se esse fosse um caminho inevitável a ser<br />
seguido. Neste sentido a análise concreta, seguindo o método do materialismo histórico<br />
dialético que encara a realidade como uma “totalidade de determinações numerosas”<br />
(Marx, 2003) nos ajuda a desvendar o mito, a retomar um sentido perdido da cidade<br />
para romper com as fantasmagorias do presente e revelar a dialética da essência e da<br />
1 Fonte: “Brasil é o país que mais reduz desigualdades entre Brics, aponta estudo”. www.estadao.com.br<br />
de 27/06/2011. Acesso em junho de 2011.
aparência 2 relativa a este quadro, já que o pano de fundo (a essência) da urbanização<br />
contemporânea de Florianópolis e as contradições nascentes nesta fase histórica<br />
permanecem ocultos, descartados e esquecidos “justamente por ser de tão pouca<br />
utilidade para aqueles no poder” (Buck-Morss, 2002, p.20).<br />
Modernidade contemporânea e a urbanização corporativa de Florianópolis<br />
Na década de 1990 forma-se o espaço da modernização contemporânea na<br />
cidade de Florianópolis, em terrenos que vêm sendo preparados desde os anos 1960.<br />
Entende-se que a transição para a modernidade capitalista em Florianópolis ocorre em<br />
três períodos: se inicia no final do século XIX a partir da acumulação de capital<br />
proveniente, por um lado, da drenagem da renda da pequena produção açoriana, e, por<br />
outro, do grande comércio import-export; tem seu ponto culminante nos anos<br />
1950/1960 e entra em sua fase contemporânea nos anos 1990, quando os capitais extra-<br />
locais (e notadamente internacionais), em forma de investimentos imobiliários<br />
associados às bandeiras do turismo e da tecnologia, apropriam-se definitivamente do<br />
espaço urbano. Neste processo, estão marcadas duas grandes viradas históricas para<br />
Florianópolis, de acordo com o novo pacto de poder (político e econômico)<br />
estabelecido: 1850 e 1950. Estes períodos não são simples divisões da história, são<br />
processos que transformam radicalmente a paisagem e o modo de vida da cidade 3 . A<br />
última grande transição, a transição para o mundo moderno, promoveu a definitiva<br />
apropriação capitalista do lugar e a dinâmica do capital antes atuante no Centro da<br />
cidade (região que hoje identificamos como o “Centro tradicional”), desloca-se<br />
inicialmente seguindo o eixo-norte (desde a própria Avenida Beira-Mar e adjacências –<br />
“Centro novo” – passando pelo “Centro expandido” nos bairros de Trindade e Itacorubi<br />
até chegar aos balneários – “novas centralidades”) e, a partir das décadas de 1990-2000,<br />
fragmenta-se por toda a cidade.<br />
Esta modernização, em que o “circuito moderno da economia citadina é<br />
incorporado ao mercado mundial e recorre também ao capital estrangeiro” (Santos,<br />
1981, p. 42), formou as novas condições materiais e as novas relações sociais que<br />
permitiram a “urbanização corporativa” no processo de expansão da cidade de<br />
2 A dialética nos ajuda a reconhecer que a aparência não nega totalmente a realidade, já que faz parte dela.<br />
Ou seja, não estamos lidando com dois mundos, o da essência e o da aparência, a realidade e o simulacro,<br />
mas sim com uma unidade em conflito, onde existe uma negação, ou uma contradição dialética, que é<br />
sempre parcial (Fausto, 1997).<br />
3 Para composição destes grandes períodos históricos, não ignoramos os acontecimentos da escala microhistórica,<br />
apenas mentalizamos a reflexão de Lukács de que “as diferenças distintivas são mais profundas<br />
entre determinadas épocas históricas do que entre diversas individualidades de uma mesma época”<br />
(Lukács, 1981, p. 173).
Florianópolis. Ou seja, o capital turístico-imobiliário, que foi “eleito” como a principal<br />
atividade componente deste circuito moderno da economia, (definição por vezes<br />
enganadora, como buscaremos demonstrar adiante), é a grande força que orienta a<br />
urbanização nesta última fase. Neste contexto é que o “planejamento estratégico”<br />
adentrou a cidade de Florianópolis como ideologia e a “urbanização corporativa” como<br />
prática da administração pública a partir do governo Ângela Amin (1997-2004), quando<br />
se passou a propagar a imagem de Florianópolis como “cidade-paraíso” em nível<br />
nacional, a se especular e gradativamente vender espaços urbanos aos capitalistas extra-<br />
locais mediante um grande investimento em marketing urbano objetivando a criação de<br />
um consenso em relação ao planejamento praticado. Neste sentido, o espaço construído<br />
em Florianópolis nas duas últimas décadas pode ser encarado como a concretização de<br />
uma ideologia comandada pelo capital turístico-imobiliário. Como nos aponta Santos<br />
(1993), na cidade corporativa a urbanização obedece à racionalidade capitalista das<br />
empresas hegemônicas e está muito mais preocupada com a eliminação das<br />
“deseconomias urbanas” do que com a produção de serviços sociais e com o bem-estar<br />
coletivo.<br />
Segundo a lógica da urbanização corporativa, é necessária a criação de uma<br />
imagem hegemônica da cidade, convincente tanto para a população quanto para os<br />
investidores externos. Para tanto, os urbanistas-capitalistas incorporam o pensamento, o<br />
conhecimento e a própria ciência urbanística e travestem estas idéias segundo seus<br />
interesses. Seja o Planejamento Estratégico, o Novo Urbanismo, ou simplesmente o<br />
Urbanismo Modernista... na boca dos capitalistas de Florianópolis todos estes discursos<br />
sobre o urbanismo “são mentiras tão evidentes quanto o espaço organizado pelo<br />
urbanismo é o próprio espaço da mentira social” (Internacional Situacionista, 2003).<br />
Desta forma, discursos modernos e inovadores em relação à cidade escondem uma<br />
noção primitiva de urbanismo, que é exercido como a simples prática da organização de<br />
prédios e espaços de acordo com princípios estéticos e utilitários. Noção que precisa ser<br />
superada pela visão do habitat como um espaço para a vida integral e espontânea, de<br />
criação verdadeiramente coletiva.<br />
Em Florianópolis, o discurso do capital imobiliário tem adotado como<br />
argumento-chave, ultimamente, a exaltação à uma natureza cuja única função parece ser<br />
estética, na composição de paisagens de beleza cênica que possam ser apreciadas da<br />
sacada dos edifícios (para não falar na moda dos “condomínios-verdes” que reutilizam<br />
água da chuva e não contribuem com gases de efeito-estufa para o aquecimento global).<br />
Essa apropriação de valores e conceitos românticos e utópicos no discurso do capital
imobiliário não surpreende; pelo contrário, é perfeitamente coerente com uma prática de<br />
urbanismo em que tudo acaba se convertendo em pura aparência. Lamentavelmente,<br />
porém, o próprio discurso ambientalista crítico, protagonista de importantes lutas<br />
sociais na história recente da cidade, representando uma espécie de “segunda via” para o<br />
desenvolvimento urbano de Florianópolis, parece estar capitulando diante da mesma<br />
fórmula exclusivista e elitista de urbanização, afastando-se cada vez mais da construção<br />
de um projeto popular para a cidade. Aqui, o apelo à “comunidade” (fortemente<br />
influenciado pelo ideal de auto-gestão, tão caro ao pensamento utópico) aparece cada<br />
vez mais fortemente sobreposto à idéia de cidade, para não falar em qualquer<br />
preocupação com a região metropolitana. Resistindo a vivenciar as contradições e<br />
conflitos sociais inerentes à totalidade da polis, o movimento ambientalista encontra-se<br />
fortemente engajado em movimentos pela manutenção da “qualidade de vida” em seus<br />
bairros, o que freqüentemente se traduz, em termos práticos, na manutenção de um<br />
estilo de vida de “classe média” e na valorização do preço da terra. Essa postura,<br />
reforçada pelo conceito de “leitura comunitária” presente na metodologia dos planos<br />
diretores participativos, não apenas promove uma visão fragmentada dos problemas<br />
urbanos, como também termina por favorecer, contraditoriamente (e quiçá,<br />
inadvertidamente), os interesses do capital imobiliário, ao defender um padrão de<br />
ocupação excludente, indiscutivelmente horizontal, e inflacionar fortemente o preço da<br />
terra.<br />
Caso exemplar destas contradições é o do Plano Diretor Comunitário da<br />
Planície do Campeche 4 . Seus indiscutíveis méritos derivam do fato de este plano ter<br />
sido fruto da luta contra o projeto ainda mais extravagante e agressivo do IPUF<br />
(Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis) para o desenvolvimento da região,<br />
luta que converteu o bairro em um dos principais focos de resistência contra a agenda<br />
urbanística neoliberal e corporativa da Prefeitura durante o governo de Angela Amin<br />
(1997-2003). Demonstrando notável capacidade de auto-organização, os moradores<br />
conseguiram apresentar no ano de 2000 seu próprio Plano Diretor como projeto<br />
substitutivo de lei na Câmara dos Vereadores, documento que se apóia em farto material<br />
técnico-científico, e baseado em uma metodologia participativa avançada. Não obstante,<br />
o Plano em questão oferece uma visão urbanística absolutamente fragmentária da<br />
cidade: uma utopia de um bairro-jardim ideal a ser atingida através da limitação de um<br />
4 Disponível em http://www.campeche.org.br/MCQV/index.php?option=com_wrapper&Itemid=34 –<br />
Acesso em agosto de 2011.
“teto” ao crescimento populacional 5 e de uma curiosa primazia na captação de<br />
investimentos públicos 6 .<br />
A construção da cidade ideal: natureza, turismo e tecnologia<br />
Ao visualizar as atuais propagandas publicitárias de empreendimentos<br />
imobiliários da grande Florianópolis (que são massivas em qualquer meio de<br />
comunicação) percebemos uma idéia de cidade semelhante a dos pensadores do século<br />
XIX que pregavam o abandono dos centros urbanos, assustados com o avanço da<br />
industrialização.<br />
A idéia de viver em um condomínio fechado, isolado, supostamente seguro e<br />
rodeado de amenidades naturais, como muitos em Florianópolis, nos lembra as idéias da<br />
cidade-jardim ou de outros arcaístas que acreditavam ser impossível ter uma boa vida na<br />
cidade tradicional. Obviamente, tratando-se de épocas históricas e sociedades distintas,<br />
as motivações para este processo não são necessariamente as mesmas. Na cidade<br />
contemporânea, a noção de “perigo” causada pela violência urbana (conflitos<br />
intrínsecos a sociedade de classes) desempenha um papel importante na escolha dos<br />
lugares para moradia. Entretanto, independente do discurso (seja o de proximidade com<br />
a natureza ou o de afastamento dos perigos da cidade), os condomínios fechados<br />
acabam promovendo auto-exclusão social, ou seja, a separação de classes na cidade.<br />
Percebemos que na Florianópolis contemporânea, dois mitos, duas imagens<br />
hegemônicas estão colocadas: a cidade-turística e a cidade-tecnológica. Então<br />
questionamos: e a cidade-cidade, onde fica?<br />
Ao longo das últimas três décadas, além de territorializar as áreas dos antigos<br />
bairros de veraneio das famílias que residiam no Centro da cidade, a atividade turística<br />
vem se sobrepondo violentamente aos antigos espaços da pequena produção mercantil<br />
açoriana, como esclarece Ouriques (2007, p. 75):<br />
5 100.000 habitantes, determina o Plano, através de um critério curioso: a disponibilidade local de<br />
recursos hídricos. Segundo a lógica deste mesmo raciocínio, a Bacia Amazônica deveria ser a região mais<br />
populosa do planeta... Também não fica clara qual a estratégia a ser utilizada para impedir a<br />
eventualidade do estabelecimento de um indesejado habitante n° 100.001 na região.<br />
6 Afinal o Plano não especifica as razões pelas quais esta região é tão prioritária em uma cidade repleta de<br />
carências, apesar de prever a instalação de um grande Centro de Lazer, Entretenimento e Serviços<br />
Públicos (com museu, biblioteca, quadras, campos de aeromodelismo); um Centro de Oceanografia e<br />
Astronomia (mais uma biblioteca, aquários etc.); um Jardim Botânico e Centro Cultural (mais museus,<br />
uma escola de pesca e navegação); uma Belvedere Para Visualização Panorâmica de Beleza Cênica; um<br />
Parque Orla; uma Escola Técnica Profissionalizante de Segundo Grau; um Parque Tecnológico e um<br />
Centro Hospitalar. Se poderia pensar que o Campeche está sendo preparado para receber os Jogos<br />
Olímpicos... (cf. http://www.campeche.org.br/MCQV/index.php?option=com_wrapper&Itemid=34).
Sinteticamente, a incidência da elevação do preço da terra ocorre<br />
quase que simultaneamente à decadência das atividades econômicas<br />
tradicionais, implicando, via de regra, a transferência da posse da terra<br />
e a expulsão das áreas de marinha de muitas famílias de agricultores e<br />
pescadores, em benefício das classes mais abastadas de Florianópolis<br />
e outros lugares.<br />
Além disso, muitas pesquisas já comprovaram que o turismo, que desde os<br />
anos 1980 foi encampado como a tábua da salvação da economia de Florianópolis,<br />
nunca foi uma atividade que trouxesse tamanho dinamismo econômico para a cidade. É<br />
claro que esta indústria acaba movimentando o capital imobiliário, poderosíssimo, mas<br />
a mais-valia gerada não fica na cidade, pois grande parte dos investidores são<br />
capitalistas extra-locais, e a que fica concentra-se cada vez mais.<br />
Uma destas pesquisas é a de Lins (2006), que apresenta algo de que pouco se<br />
ouve falar, o “pólo confeccionista da Grande Florianópolis”. Se observarmos o Centro<br />
da cidade, não são poucas as lojas de marca única cujas fábricas se localizam na Grande<br />
Florianópolis. Há, inclusive, na Rua Deodoro o Shopping das Fábricas, com mais de 20<br />
lojas que comercializam estas mercadorias juntamente com produtos do litoral-norte<br />
catarinense. Lins (2006), com base em Dados do IPUF (Instituto de Planejamento<br />
Urbano de Florianópolis), cita que, no final da década de 1980, 510 novas empresas<br />
deste tipo se instalaram na região, gerando 7.260 novos empregos (em 1986 foi,<br />
inclusive, criada a ASSINVEST, Associação das Indústrias do Vestuário da Grande<br />
Florianópolis).<br />
Outra pesquisa, esta encomendada ao Instituto CERTI sobre o quadro da<br />
indústria eletrônica e microeletrônica em Florianópolis, comprova que as atividades<br />
ligadas à condição de capital administrativa ainda são as principais movimentadoras da<br />
economia urbana: distribuição de energia elétrica, serviços de telefonia fixa comutada,<br />
telefonia móvel celular, captação e distribuição de água, serviços de telecomunicações,<br />
transportes e outros 7 .<br />
Ao turismo, esta atividade tão avassaladora urbanisticamente, foi atribuído um<br />
poder e uma importância muito maiores do que lhe cabe. O principal argumento em sua<br />
defesa acaba sempre caindo no discurso da geração de emprego e renda e da<br />
necessidade de uma atividade econômica forte, como fora o comércio na virada do<br />
século XIX para o XX, já que em Florianópolis a atividade industrial não prosperou.<br />
7 Fonte: Fundação CERTI / Governo do Estado de Santa Catarina. Um estudo para o fortalecimento e<br />
consolidação da indústria de eletroeletrônica na região da SDR – Grande Florianópolis: Planejamento<br />
Básico de um Arranjo Produtivo Local voltado para Indústria Eletroeletrônica e Desenvolvimento da<br />
Indústria Microeletrônica. Florianópolis, Julho de 2005. Disponível em: http://soo.sdr.sc.gov.br - Acesso<br />
em abril de 2010.
Como nos aponta Ouriques (2007), apresenta-se o turismo como a vocação natural de<br />
uma cidade eminentemente administrativa, para que a população em geral tenha mais<br />
chances de obter um posto de trabalho.<br />
Se observarmos os números da Tabela 1, veremos que 29% dos postos de<br />
trabalho ocupados em Florianópolis correspondem à administração do Estado, 13% a<br />
serviços prestados pelo Estado e cerca de 8% ao comércio, enquanto apenas 5% a hotéis<br />
e restaurantes, que são atividades normalmente ligadas ao turismo – e, ainda assim, não<br />
somente a este.<br />
Tabela 1 - Pessoal ocupado e salário médio por atividade econômica em Florianópolis no ano de<br />
2004.<br />
Atividade (2004) Pessoal % Salário médio<br />
Construção de edifícios e obras 2.992 1,52 R$ 940,12<br />
Comércio varejista não especializado 5.773 2,94 R$ 710,28<br />
Comércio varejista de outros produtos 8.754 4,45 R$ 804,82<br />
Estabelecimentos hoteleiros e similares 2.489 1,27 R$ 596,93<br />
Restaurantes e similares 7.840 3,99 R$ 490,54<br />
Intermediação monetária 3.297 1,68 R$ 3.281,92<br />
Condomínios prediais 4.910 2,5 R$ 704,17<br />
Investigação, vigilância e segurança 3.374 1,72 R$ 754,33<br />
Imunização, higienização e limpeza 3.693 1,88 R$ 398,74<br />
Administração do Estado 56.875 28,93 R$ 2.075,34<br />
Serviços coletivos prestados pela Adm. Pública 26.988 13,73 R$ 3.289,20<br />
Atividade de atenção à saúde 4.054 2,06 R$ 962,76<br />
Limpeza urbana e esgoto 1.331 0,68 R$ 1.325,97<br />
Fonte: Adaptado de Ouriques (2007, p. 75). O autor baseou-se nas informações do RAIS – Relação<br />
Anual de Informações do Ministério do Trabalho e Emprego. Foram selecionadas as atividades que<br />
ocupavam mais de 1.000 trabalhadores.<br />
Mesmo considerando que esta porcentagem é na realidade muito maior, sendo<br />
a informalidade uma característica estrutural da atividade turística 8 , a mesma tabela<br />
demonstra que os empregos relacionados ao turismo são os que pagam os salários mais<br />
baixos do mercado, além de serem sazonais e não garantirem qualquer direito<br />
trabalhista ao empregado. Por este motivo, Ouriques (2007, p. 81) defende que:<br />
o turismo consolida-se como a uma prática econômica e uma<br />
ideologia social poderosíssima, a ponto de ser vista socialmente como<br />
vendedora daquilo que não pode entregar: desenvolvimento<br />
econômico e sustentabilidade ambiental, pois na sua curta história nas<br />
periferias do capitalismo, em geral, e em Florianópolis, em particular,<br />
evidenciam que se trata de uma atividade que contribui para a<br />
exclusão social e para a degradação dos elementos de sustentação<br />
natural.<br />
8 Dado difícil de quantificar, por exemplo, são os rendimentos com alugueis de casas para veraneio,<br />
atividade comum inclusive entre os pescadores da ilha que, por não conseguirem mais sobreviver somente<br />
da pesca, acabam investindo nesta atividade.
Percebendo a fragilidade desta atividade econômica, a partir do ano 2000, o<br />
Governo do Estado e a Prefeitura Municipal passaram a apostar todas suas fichas na<br />
marca “Florianópolis: Capital da Inovação”, lançada no dia 18 de março de 2010:<br />
A marca deve representar uma estratégia conjunta de todos os<br />
interessados em desenvolver Florianópolis como a Capital da<br />
Inovação, numa gestão cooperada. Não só no segmento de tecnologia,<br />
mas também em áreas como gastronomia, na recepção ao turista, entre<br />
outros segmentos", afirma Carlos Roberto De Rolt, secretário<br />
municipal de Ciência e Tecnologia.<br />
Fonte: http://portal.pmf.sc.gov.br – Acesso em maio de 2010.<br />
Esta nova estratégia associada à “tecnologia” (palavra, aliás, de grande<br />
ressonância simbólica) é mais uma tentativa de romper com a imagem que Florianópolis<br />
teve por muitos anos de ser uma cidade provinciana, uma pequena capital entre duas<br />
metrópoles (Porto Alegre e Curitiba). E este discurso não parte somente do governo do<br />
Estado: a esfera privada está aliada à construção desta ideia, como podemos notar, por<br />
exemplo, nas declarações contidas no flyer virtual publicitário do empreendimento<br />
Floripa Shopping:<br />
Investir em Florianópolis hoje é investir na cidade mais desejada do<br />
momento. A capital brasileira com os melhores índices de qualidade<br />
de vida e uma das maiores rendas per capita do Brasil. A segunda<br />
melhor cidade do País para se viver e uma das cinco melhores para se<br />
realizar negócios. Não é à toa que gente de todas as partes do Brasil e<br />
do mundo está vindo morar aqui.<br />
• 65% da população economicamente ativa pertence às classes A e B.<br />
• Taxa de alfabetização de adultos: 96,44%.<br />
• Excelente infra-estrutura urbana.<br />
• Boom imobiliário: nos últimos anos, a Região Norte da Ilha tem<br />
recebido grandes empreendimentos como o Sapiens Parque, além de<br />
shoppings de decoração, condomínios empresariais e residenciais.<br />
Inaugurado em novembro de 2006, o Floripa Shopping nasceu para<br />
ser um empreendimento à imagem e semelhança de Florianópolis,<br />
uma cidade moderna e despojada.<br />
Fonte: www.floripashopping.com.br – Acesso em julho de 2009.<br />
Existe na verdade uma aliança sólida entre os interesses do Estado e do capital<br />
imobiliário, como comprovou, em 2007, o escândalo que ficou conhecido como<br />
“Moeda Verde”. Tratou-se então da divulgação de um esquema de compra e liberação<br />
de licenças ambientais para a construção de grandes empreendimentos imobiliários em<br />
Florianópolis que acabou resultando na prisão de empresários e funcionários públicos.<br />
Nesta ocasião, o Governador do Estado, Luiz Henrique da Silveira, fez uma ressalva,<br />
afirmando publicamente que “as ações da polícia e da justiça iriam afastar os<br />
investimentos em turismo em Santa Cataria e relegar Florianópolis ao atraso”<br />
(Ouriques, 2007, p. 81).
Constatamos a partir deste quadro o quanto a inserção das ideologias do<br />
planejamento estratégico nas práticas de planejamento da cidade entra em contradição<br />
com o novo discurso nacional em termos de urbanismo, o Plano Diretor Participativo.<br />
Afinal, de quem é a função de planejar a cidade? Para quem a cidade é planejada?<br />
Sendo o planejamento urbano uma competência do Estado, em uma cidade como<br />
Florianópolis, onde o poder público demonstra a cada dia mais estar a serviço do<br />
capital, um planejamento democrático, igualitário e participativo torna-se improvável.<br />
Por uma idéia de cidade contra a cidade ideal<br />
Já comentamos que o apelo à natureza é atualmente a principal artimanha<br />
publicitária dos empreendedores imobiliários da cidade, que utilizam sistematicamente<br />
discursos científicos e ambientalistas para convencer os compradores. Nota-se que todo<br />
um pensamento de crítica social, como o dos socialistas utópicos que propunham a<br />
construção dos falanstérios, e ambientalista de preservação da natureza foi incorporado<br />
por este discurso capitalista no sentido de negação da condição da cidade atual.<br />
Vejamos, a título de exemplo, a auto-descrição de um dos mais emblemáticos<br />
empreendimentos imobiliários do norte de Florianópolis, o Costão Golf, da Costão do<br />
Santinho Empreendimentos Imobiliários:<br />
Costão Golf - Um condomínio diferente de tudo o que você já viveu<br />
O COSTÃO GOLF inaugura um novo conceito de condomínio em<br />
Florianópolis.<br />
Este belíssimo empreendimento representa um novo conceito de<br />
morar, um novo estilo de viver. A capital dos catarinenses agora se<br />
une ao seleto grupo de cidades ao redor do mundo que possuem um<br />
condomínio de casas de alto padrão integrado a um campo de golfe e<br />
com infra-estrutura de resort.<br />
Situado em uma área de 453.000m², o COSTÃO GOLF é um<br />
condomínio único.<br />
Aqui 80% são áreas verdes. Venha sentir o prazer de morar em um<br />
ambiente com muita segurança, muito verde e belas paisagens.<br />
As mais de 5.000 árvores, os bosques, as ruas arborizadas e os lagos<br />
formam um reduto de tranqüilidade e harmonia total com a natureza.<br />
A melhor infraestrutura de lazer e serviços está aqui – Golf Club e<br />
Beach Club.<br />
O Golf Club oferece toda a comodidade para os praticantes do golfe e<br />
para quem quer apenas desfrutar de excelentes momentos com<br />
amigos, em amplos espaços destinados ao lazer e entretenimento.<br />
O Beach Club é um capítulo à parte. Conveniado ao melhor resort de<br />
praia do Brasil – COSTÃO DO SANTINHO RESORT – o clube<br />
integra o golfe com a praia. Através de um teleférico de última<br />
geração em apenas 6 minutos você estará literalmente com a praia aos<br />
seus pés.<br />
Fonte: www.costaogolf.com.br – Acesso em julho de 2009.
Segundo Almada (2006) o ideal de isolamento e segurança em projetos de<br />
cidades aparece fora do âmbito militar pela primeira vez justamente com o falanstério<br />
de Fourier no século XIX. Este foi pensado como um grande e único edifício para<br />
abrigar todas as atividades de uma colônia que deveria estar localizado numa rica região<br />
agrícola. Entretanto, Lynch (1999, p. 61) destaca que tal proposta prestava pouca<br />
atenção no ambiente espacial, voltando-se quase exclusivamente para as relações<br />
sociais: “Tal como na maioria das propostas utópicas à época de Fourier, o ambiente<br />
representava acima de tudo um cenário – um pano de fundo agradável ou uma<br />
expressão simbólica da perfeição da nova sociedade”.<br />
Portanto, não é por acaso que Engels, em sua obra A Questão da Habitação<br />
(1872) compara os modelos socialistas ao pensamento dos capitalistas que exploram o<br />
proletariado. Certamente, deve-se notar uma diferença marcante entre esta situação e o<br />
pensamento socialista utópico, que independente da ingenuidade de suas proposições,<br />
não propunha a separação de classes 9 .<br />
Esta crítica provém, segundo Choay (1976), do fato de Engels negar os<br />
modelos por não acreditar em construções a priori, e principalmente não concordar com<br />
a separação da questão da habitação de seu contexto econômico e político 10 . De fato, foi<br />
em sua obra Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), em que pela<br />
primeira vez a solução para a questão social deixou de ser a realização de obras utópicas<br />
e idealistas, dependendo historicamente da supressão do padrão social embasado na<br />
propriedade privada. Essa interpretação decorre de uma nova forma de ver a classe<br />
operária, antes uma classe sofredora e pacífica e, a partir da crítica de Marx e Engels,<br />
uma classe revolucionária e dinâmica.<br />
Apesar de perceberem todos os problemas da cidade, do trabalho industrial e<br />
da vida urbana, Marx e Engels em seus escritos não sinalizavam seu abandono, mas um<br />
esforço no sentido da mudança desta condição, uma reforma ou uma revolução. Aliás,<br />
para Marx e Engels, o proletário reunido nas grandes cidades é o próprio gérmen da<br />
9 Por sinal, cumpre não fazer um julgamento demasiado severo quanto a estes primeiros socialistas: o<br />
próprio Engels, em outra de suas obras, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, ressalta a<br />
importância do socialismo utópico no desenvolvimento das idéias socialistas, e lembra que muitas de suas<br />
contradições devem ser atribuídas a uma etapa histórica (sobretudo anterior à revolução de 1848) em que<br />
o problema histórico da luta entre burguesia e proletariado não se encontrava claramente definido.<br />
10 Quanto ao pensamento marxista sobre a cidade, é preciso destacar os escritos de Pierre George,<br />
referência para a geografia urbana. Data de 1952 o livro La Ville, le fait urbain à travers le monde e de<br />
1961 o Précis de géographie urbaine, lançado no Brasil em 1983 como Geografia Urbana. Pierre<br />
George, a exemplo de Engels, ao resgatar a história da formação das cidades, percebia a não-coincidência<br />
entre desenvolvimento urbano e desenvolvimento social, resultado dos processos de expropriação e<br />
apropriação do trabalho (Damiani, 2009; George, 1983).
evolução. Além disso, seguindo o materialismo histórico e dialético, rejeitavam esta<br />
condição urbana do ponto de vista ético, mas, a “aceitavam” do ponto de vista histórico.<br />
Segundo Choay (1976, p. 237), “el horizonte de la ciudad es el telón de fondo sobre el<br />
cual se dibuja el conjunto del pensamiento histórico y político de Marx”. Choay (1976)<br />
também chama a atenção para o fato desta vertente do pensamento urbano formada por<br />
Marx e Engels representar um “urbanismo sem modelo”, ao contrário de outras que<br />
trabalhavam na base de criações representáveis a priori. Marx e Engels (e Choay<br />
acrescenta o geógrafo Pyotr Kropotikin), não apenas não criam nenhum modelo como<br />
não acreditam e se mostram contrários a este tipo de plano.<br />
Outras “utopias” do século XIX que pregavam o abandono das cidades<br />
industriais foram o News from Nowhere de William Morris e as famosas Garden Cities<br />
of Tomorrow de Ebenezer Howard. Como argumenta Lynch (1999, p. 61) estas duas<br />
propostas descrevem um mundo voltado para o passado, “centrado numa comunidade<br />
pequena, equilibrada e ordenada, cujos membros se encontram em relação direta com o<br />
ambiente natural e uns com os outros”. As primeiras cidades construídas seguindo os<br />
preceitos da cidade-jardim de Howard foram Letchworth (1904) e Welwyn (1920), na<br />
Inglaterra, que imediatamente se converteram em modelo a ser seguido em toda Europa<br />
e nos Estados Unidos (Figura 1).<br />
Figura 1 - Welwyn Garden City (1920)<br />
Inspired on Howard´s Central City-garden Diagram (1898)<br />
Fonte: www.myoops.org – Acesso em outubro de 2009.
Entretanto, é preciso destacar que uma grande diferença entre o modelo cidade-<br />
jardim e sua expressão contemporânea é que o primeiro pensava na escala de cidades e<br />
sistemas de cidades 11 . Howard, o criador das cidades-jardim, era inclusive militante do<br />
movimento socialista inglês, e tinha como um dos objetivos do modelo “elevar el nível<br />
de salud e bienestar de todos los verdaderos trabajadores, qualquiera que sea su<br />
posición” (Howard apud Choay, 1976, p. 343). Muito distante disso, os atuais projetos<br />
de fuga da aglomeração urbana pensam na escala de apenas um bairro (quando muito),<br />
auto-suficiente e socialmente homogêneo (Figura 2).<br />
Figura 2 – Capa da Revista de Divulgação do Condomínio Fechado Pedra Branca, Grande<br />
Florianópolis (2008).<br />
Aqui aparece o principal argumento do empreendimento: morar, trabalhar, estudar e se divertir<br />
sem sair do seu bairro. A multi-funcionalidade incorporada à ideologia urbanística da separação.<br />
Fonte: Ribeiro, 2009, p. 189<br />
A relação com a natureza também é muito distinta do impulso romântico de<br />
outros tempos. Esse novo urbanismo promove uma apropriação desigual (Figura 3) da<br />
natureza (muitas vezes uma natureza criada artificialmente) e constrói espaços de lazer e<br />
comércio que fazem com que seus moradores não precisem se deslocar destas células<br />
para viver seu tempo livre.<br />
11 Neste ponto devemos lembrar a crítica de Jane Jacobs à monofuncionalidade urbana, que inclusive a<br />
aproxima a de Engels quanto à questão da habitação. Jacobs faz uma crítica direta aos conjuntos<br />
habitacionais americanos que, segundo ela, excluem o homem da vida pública ao desintegrarem o circuito<br />
de comércio e lazer da cidade. Para ela está claro que esta idéia esta embasada nos modelos de gardencity<br />
cidade-jardim e assim por diante, que em versão renovada tornam-se a idéia mais “funesta e<br />
destrutiva” do urbanismo praticado atualmente (Jacobs, 2009; Choay, 1976).
Figura 3 – Condomínio Fechado Essence, bairro Campeche em Florianópolis (2009).<br />
O típico apelo à natureza e sua apropriação publicitária pelos empreendimentos imobiliários de<br />
Florianópolis.<br />
Fonte: www.essencecampeche.com.br - Acesso em outubro de 2009.<br />
Como se vê, as concepções românticas sobre a natureza e a cidade, manifestas<br />
através do ideal de isolamento dos condomínios, são uma poderosa força a serviço da<br />
apropriação desigual do espaço. Da mesma forma, ainda quando manifestas em versão<br />
“anticapitalista” no caso do movimento ambientalista crítico, estas concepções não<br />
podem produzir senão uma impossibilidade de interpretar os problemas da cidade como<br />
totalidade contraditória e espaço por excelência do conflito de classes.<br />
A negação da cidade<br />
Além das transições históricas transformarem a paisagem da cidade, as<br />
relações sociais e a vida econômica do centro urbano, também as formas de<br />
consciência, a idéia ou o projeto de cidade que a sociedade idealiza e põe em prática se<br />
transformam. Desta forma, analisamos as propagandas publicitárias anteriores, que<br />
expressam esse novo projeto e os novos valores da sociedade, na perspectiva descrita<br />
por Henry Lefebvre (1991, p. 117), em que por um processo de substituição, a<br />
publicidade assume parte do papel de uma ideologia, encobrindo e transpondo o real, ou<br />
seja, as relações de produção:<br />
Desse modo, a publicidade torna-se a poesia da Modernidade, o<br />
motivo e o pretexto dos espetáculos mais bem sucedidos.[...] A<br />
publicidade ganha importância de uma ideologia. É a ideologia da<br />
mercadoria. Ela substitui o que foi filosofia, moral, religião, estética.<br />
[...] As mais sutis fórmulas publicitárias de hoje em dia ocultam uma<br />
concepção de mundo. Se você sabe escolher, escolha esta marca.[...]<br />
Aquela „essência‟ (com um vago jogo de palavras em torno desse<br />
termo) combina melhor com você.
Mantendo como pressuposto a idéia de que o Centro é fundamental para o<br />
conceito de cidade; para a existência disso que chamamos de cidade, podemos concluir<br />
que o abandono do Centro promovido durante as últimas décadas pelo planejamento<br />
urbano de Florianópolis, revela uma estratégia e uma visão antidemocrática sobre a vida<br />
urbana. A existência de um Centro forte é fundamental para a consciência dos<br />
habitantes de que participam de fato de uma coletividade (GEORGE, 1983), para que<br />
sintam sua vida na escala da cidade. Para Lefebvre (1991) as formas contemporâneas de<br />
vida urbana vêm negando esta idéia de cidade: a vida nos condomínios fechados, as<br />
novas centralidades, os novos centros comerciais localizados nas periferias, a nova<br />
configuração espacial da cidade moderna voltada para a circulação motorizada e o<br />
enfraquecimento do Centro fazem com que os citadinos não apreendam mais a cidade<br />
em seu conjunto. Pierre George (1983, p. 186) complementa:<br />
Perdido em um universo de concreto, labirinto de vias organizadas<br />
que se ligam a anéis rodoviários sobrecarregados de automóveis, ele<br />
não se sente mais um habitante, no sentido de que ele perdeu a idéia<br />
de que poderia participar da posse da cidade, ser, de uma maneira ou<br />
de outra, responsável pela sua administração e manutenção.<br />
Os novos condomínios fechados e shoppings construídos em Florianópolis a<br />
partir dos anos 1990 têm como premissa máxima: faça tudo no mesmo lugar. Conviva<br />
com seus iguais, more, trabalhe, consuma, passeie... sem precisar sair de seu bairro-<br />
condomínio, sem precisar ir até o Centro da cidade – e sequer passar por ele, após a<br />
construção dos aterros. Esta idéia é reforçada até mesmo no Anteprojeto de Lei para o<br />
Plano Diretor de Florianópolis de 2010 12 , que propõe em seu “Capítulo V”<br />
curiosamente intitulado de “Do Modelo de Cidade”, entre outras coisas, o ordenamento<br />
do território municipal baseado na idéia de “cidade polinucleada” e a descentralização<br />
da administração pública em secretarias que atendam as necessidades de cada região, ou<br />
seja, o fortalecimento das múltiplas centralidades em detrimento do Centro e da unidade<br />
da cidade.<br />
Desta forma, este ensaio objetiva colocar uma crítica a esta nova forma de<br />
viver a cidade que se baseia simplesmente em não vivê-la. O Centro é um lugar de<br />
encontros inevitáveis, convivência direta com o diferente, expressão maior do<br />
significado de “espaço público” e “cidade”.<br />
12 Disponível em: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/ipuf/?cms=etapa+conclusiva+pdp – Acesso em<br />
agosto de 2011.
Entretanto, seria um equívoco afirmar, como muitos, que o deslocamento das<br />
residências das elites e dos novos empreendimentos imobiliários e empresariais para<br />
áreas cada vez mais distantes do Centro tradicional de Florianópolis tenha representado<br />
sua decadência. O comércio no Centro da cidade é borbulhante, suas ruas são<br />
movimentadas e vivas e, principalmente, seu papel político agora de representar um<br />
lugar contra-hegemônico diante do caminho que a urbanização da cidade vem tomando,<br />
está cada vez mais reforçado. Ou seja, a estrutura da “cidade popular” se mantém em<br />
meio a esta teia de territórios e discursos provenientes dos mais diversos atores que<br />
buscam totalizar a imagem de Florianópolis.<br />
É por isso que, se não podemos abrir mão das utopias, da vontade de<br />
transformação, estas devem, por outro lado, partir de sinais da realidade concreta. Como<br />
nos explica Benjamin (2006), da mesma realidade que brutaliza e aliena os homens,<br />
deverá partir a energia coletiva capaz de superá-la: e, toda realidade é repleta de<br />
possibilidades.<br />
Considerações Finais<br />
O discurso da manutenção da “qualidade de vida” e da “preservação” da<br />
cidade, ou melhor, da “Ilha” tem reunido, de forma contraditória, mas solidária, dois<br />
setores sociais muito diversos.<br />
Em primeiro lugar, o setor empreendedor capitalista mais atuante e<br />
hegemônico, que aposta na “exclusividade” de empreendimentos de alto padrão que<br />
implicam na manutenção de uma natureza meramente paisagística, onde importa e<br />
agrega valor o cenário: encostas verdes de morros, a manutenção de uma faixa de<br />
restinga à beira-mar... Isso porque já não interessa tão diretamente, ou não talvez não<br />
seja mais tão factível do ponto de vista político, reproduzir a agressividade visual de<br />
empreendimentos do passado, como o Costão do Santinho. Essa postura é conveniente<br />
para seus interesses, pois permite obter altas taxas de lucro, através da hiper-inflação do<br />
preço da terra, evitando-se de quebra a desvalorização a médio prazo em virtude da<br />
ocupação excessiva da orla, como ocorreu no caso da ocupação dos primeiros<br />
balneários como Ingleses e Canasvieiras, à partir dos anos 1980.<br />
Em segundo lugar, um setor ambientalista (economicamente marginal, mas<br />
politicamente influente) “crítico” do crescimento “desordenado”. Embora procure se<br />
posicionar contra os grandes empreendimentos de luxo, grande parte desse setor (que<br />
traduz uma espécie de senso comum entre os moradores locais não diretamente
envolvidos com atividades ligadas ao turismo ou ao mercado imobiliário; a figura do<br />
“cidadão comum” preocupado com a “perda da qualidade de vida”), direciona sua<br />
preocupação aos fenômenos da “verticalização” e do aumento populacional.<br />
Desnecessário dizer que as queixas relativas ao crescimento populacional, além de<br />
conterem um componente obviamente malthusiano, traduzem uma visão primária da<br />
realidade (é muito comum na cidade a referência à necessidade de “fechar as pontes” de<br />
acesso à Ilha) e/ou estão impregnadas de um componente classista bastante perverso.<br />
Quanto à objeção radical a todo tipo de “verticalização” (de fato, um dos aspectos que<br />
mais mobilizaram as comunidades, especialmente da Lagoa, do Campeche e de Santo<br />
Antônio, na crítica ao Plano Diretor da Prefeitura, foi a questão do número de<br />
pavimentos permitidos por edificação nestas zonas), deve-se observar que embora seja<br />
um elemento de contraposição a grandes interesses capitalistas, ela igualmente carece de<br />
qualquer idéia consistente de cidade. Aparentemente, esse setor encontra-se indiferente<br />
ao efeito especulativo e segregador que uma ocupação residencial horizontalizada gera<br />
sobre o preço da terra, empurrando populações inteiras para fora das planícies arenosas<br />
pleistocênicas da Ilha, que oferecem melhores condições ambientais para um<br />
adensamento da população, e produzindo justamente o efeito social e ambientalmente<br />
perverso de acelerar a ocupação de áreas de risco onde o preço da terra é mais barato e a<br />
ocupação frequentemente ilegal, notadamente encostas e planícies úmidas de formação<br />
geológica muito recente. Estes, os efeitos de uma opção claramente estética (e, no mal<br />
sentido, utópica) pelas amenidades de uma cidade-jardim de classe média.<br />
A política urbana que solidariza estes setores aparentemente contraditórios<br />
baseia-se em uma aposta na restrição da oferta de imóveis na Ilha, ao menos nas áreas<br />
mais “nobres” (e mais “preservadas” de um ponto de vista paisagístico ou panorâmico).<br />
Também é notável que o segundo setor citado, em grande parcela composto por figuras<br />
de origem e atuação política de esquerda, não sinta constrangimento em endossar o forte<br />
sentimento xenófobo existente na cidade, constantemente retro-alimentado pelos setores<br />
tradicionais e “autóctones” da burguesia e da pequena-burguesia, ressentidos sempre<br />
que excluídos das mudanças (quer dizer, da divisão do lucro das mudanças) que a<br />
cidade passa. Isso também possui reflexos importantes na vida cultural da cidade, em<br />
grande parte paralisada pela nostalgia e pela adoração de manifestações culturais<br />
“regionalistas” residuais e estereotipadas.<br />
Assim, em Florianópolis, ao drama da modernização destrutiva liderada pelo<br />
capital imobiliário com a consequente liquidação da biodiversidade e da sociabilidade<br />
urbana soma-se a incapacidade política de construir um projeto alternativo em bases
verdadeiramente populares. Isto porque, infelizmente, as únicas soluções propostas<br />
pelas forças progressistas encontram-se seriamente contaminadas pelas formas<br />
ideológicas dominantes que privilegiam a construção da imagem não de uma cidade,<br />
mas de uma Ilha, ideal: seja ela uma pseudo-Miami para os ricos, ou um mosaico<br />
fragmentado de bairros-jardins planejados através de leituras comunitárias. Fantasias,<br />
ambas, em que a cidade real é violentamente negada através da supressão (somente<br />
possível é claro, no âmbito do imaginário) dos conflitos e da pobreza.<br />
Daí também a negação da região central tradicional da cidade, lugar de<br />
encontro inevitável com os conflitos. Se não existe uma unidade no planejamento da<br />
cidade, uma expressão desta fragmentação é a ausência de propostas para o Centro no<br />
conteúdo do Plano Diretor 2010, o qual enfatiza a “polinucleação” da cidade e a<br />
descentralização da administração pública. Esta “ausência” nada tem de casual, e na<br />
verdade reflete o sentido em que se movem os investimentos, em busca das maiores<br />
taxas de lucro que se podem obter nas áreas de desenvolvimento capitalista mais<br />
recente. A administração pública em Florianópolis tem cumprido, neste sentido,<br />
fielmente seu papel de criar condições para a acumulação capitalista nas áreas mais<br />
dinâmicas, como se observa na transferência da sede do Executivo estadual do Centro<br />
para a rodovia de acesso ao norte da Ilha, cujas margens encontram-se em plena<br />
explosão imobiliária, com a construção recente de diversos centros empresariais,<br />
grandes lojas e um shopping center. A contrapartida política deste movimento de<br />
dispersão econômica do Centro em direção aos bairros (tendência que, aliás, esteve<br />
desenhada em todos os planos diretores desde a década de 1970) encontra-se no fato de<br />
o debate sobre a urbanização de Florianópolis e região metropolitana não estar<br />
ultrapassando a fase de discussão comunitária local. Esta ausência de uma visão de<br />
totalidade tem custado caro às classes populares, pois além de bloquear a construção de<br />
um projeto alternativo e inclusivo de desenvolvimento urbano, endossa na prática a<br />
fragmentação política e territorial que tanto serve aos interesses do capital imobiliário.<br />
Não deveria partir e irradiar do Centro um projeto político de cidade que considere a<br />
totalidade urbana, em relação dialética com os bairros e com a região metropolitana?<br />
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