14.04.2013 Views

mistérios do apóstolo paulo - Núcleo de Estudos da Antiguidade ...

mistérios do apóstolo paulo - Núcleo de Estudos da Antiguidade ...

mistérios do apóstolo paulo - Núcleo de Estudos da Antiguidade ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

MISTÉRIOS DO APÓSTOLO PAULO 14<br />

O Antigo Paradigma<br />

Filipe Azeve<strong>do</strong><br />

Bacharel e licencia<strong>do</strong> em História pela UERJ<br />

Orienta<strong>do</strong> pelo Prof. Dr. Edgard Leite<br />

Depois <strong>de</strong> Jesus Cristo, talvez seja Paulo a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã que mais suscita<br />

<strong>de</strong>bates, tanto <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s círculos cristãos quanto fora, nos meios laicos. Há quem diga<br />

que o <strong>apóstolo</strong> <strong>de</strong>va ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>do</strong> cristianismo, questão a<br />

qual o professor <strong>do</strong> Instituto Católico <strong>de</strong> Paris, Michel Quesnel, <strong>de</strong>dica um capítulo no seu<br />

livro “Paulo e as Origens <strong>do</strong> Cristianismo”. Trechos <strong>de</strong> suas epístolas são normalmente<br />

utiliza<strong>do</strong>s como poesia e até mesmo em canções, como é o caso <strong>da</strong> música “Monte<br />

Castelo” <strong>do</strong> grupo Legião Urbana.<br />

Mas nem sempre Paulo gozou <strong>de</strong> tanta populari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os Padres <strong>da</strong> Igreja <strong>do</strong> século<br />

II EC, por exemplo, sempre evitaram utilizar as idéias <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> até o advento <strong>de</strong> Ireneu<br />

<strong>de</strong> Lyon. Durante muito tempo, acreditou-se que isto era <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a grupos “heréticos” <strong>do</strong>s<br />

primeiros séculos como os valentinianos e marcionitas utilizarem em larga medi<strong>da</strong> os<br />

conceitos teológicos <strong>do</strong> homem <strong>de</strong> Tarso.<br />

Mas esta opinião é em larga medi<strong>da</strong> influencia<strong>da</strong> pelo conceito clássico <strong>de</strong><br />

paulinismo, lança<strong>do</strong> em um artigo <strong>de</strong> F.C. Baur escrito em 1831, que acreditava que o<br />

<strong>apóstolo</strong> possuía um sistema teológico <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Este antigo paradigma, no entanto, não<br />

resiste a uma análise mais profun<strong>da</strong> <strong>da</strong>s epístolas paulinas, pois o que vemos nas mesmas<br />

é um Paulo multifaceta<strong>do</strong>, cujas idéias mu<strong>da</strong>m com o tempo, e cujas epístolas não<br />

14 Este artigo é uma a<strong>da</strong>ptação <strong>do</strong> último capítulo <strong>da</strong> minha monografia “Este ilustre<br />

<strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> – Paulo e a Gnose” apresenta<strong>da</strong> na UERJ no segun<strong>do</strong> semestre <strong>de</strong> 2006 para<br />

a obtenção <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> bacharel em História.<br />

15


<strong>de</strong>notam uma preocupação com a construção <strong>de</strong> um sistema teológico, mas antes buscam<br />

respon<strong>de</strong>r a situações concretas que são a própria causa <strong>da</strong> existência <strong>da</strong>s mesmas. Sem<br />

contar que a aparente falta <strong>de</strong> sistematização no pensamento <strong>de</strong> Paulo po<strong>de</strong> ser um<br />

reflexo <strong>de</strong> uma tática <strong>da</strong> sua própria pregação.<br />

Esta última característica <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> po<strong>de</strong> ser comprova<strong>da</strong> por uma conheci<strong>da</strong><br />

passagem <strong>de</strong> 1 Cor 9 19-23:<br />

“Ain<strong>da</strong> que livre em relação a to<strong>do</strong>s, fiz-me o servo <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s, a fim <strong>de</strong> ganhar o maior número possível. Para os<br />

ju<strong>de</strong>us, fiz-me como ju<strong>de</strong>u, a fim <strong>de</strong> ganhar os ju<strong>de</strong>us. Para os<br />

que estão sujeitos à Lei, fiz-me como se estivesse sujeito à Lei<br />

– se bem que não esteja sujeito à Lei – , para ganhar aqueles<br />

que estão sujeitos à Lei. Para aqueles que vivem sem a Lei,<br />

fiz-me como se vivesse sem a Lei – ain<strong>da</strong> que não viva sem a<br />

Lei <strong>de</strong> Deus, pois estou sob a Lei <strong>de</strong> Cristo – , para ganhar<br />

aqueles que vivem sem a Lei. Para os fracos, fiz-me fraco, a<br />

fim <strong>de</strong> ganhar os fracos. Tornei-me tu<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s, a fim <strong>de</strong><br />

salvar alguns a to<strong>do</strong> custo. E isto tu<strong>do</strong> eu faço por causa <strong>do</strong><br />

evangelho, para <strong>de</strong>le me tornar participante.”<br />

Embora tivesse si<strong>do</strong> comprova<strong>da</strong> a insuficiência <strong>do</strong> paulinismo, o conceito<br />

continuou a ser utiliza<strong>do</strong> para <strong>de</strong>signar <strong>de</strong>senvolvimentos <strong>do</strong>utrinais <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />

aspectos <strong>da</strong> teologia <strong>de</strong> Paulo realiza<strong>do</strong>s por autores tardios – o que incluía os autores<br />

<strong>de</strong>uteropaulinos15 e os próprios valentinianos – com a exclusão <strong>do</strong>s Padres <strong>da</strong> Igreja <strong>do</strong><br />

século II.<br />

15 Autores que assinavam seus escritos sob o nome <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> Paulo, muitas vezes<br />

<strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> temas e passagens conti<strong>do</strong>s nas epístolas paulinas.<br />

16


Com o tempo, to<strong>da</strong>via, também este aspecto <strong>do</strong> paulinismo foi questiona<strong>do</strong>, por<br />

pesquisa<strong>do</strong>res como Lin<strong>de</strong>mann, por e<strong>de</strong>mann, por exemplo,linos e os pro realiza<strong>do</strong>s por<br />

autores tardiostava li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> apenas com o aspecto teol que acreditava que o silêncio <strong>de</strong><br />

autores proto-orto<strong>do</strong>xos anteriores a Ireneu <strong>de</strong> Lyon em relação a Paulo, não era tão<br />

absoluto quanto se acreditava, ou então, não era <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à teologia <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> ter si<strong>do</strong><br />

utiliza<strong>da</strong> por grupos “heréticos”, mas a outros fatores como gênero literário e os<br />

<strong>de</strong>stinatários <strong>da</strong>s epístolas.<br />

Não obstante sua crítica, Lin<strong>de</strong>mann continuou preso ao velho paradigma na<br />

medi<strong>da</strong> em que estava li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> apenas com o aspecto teológico <strong>de</strong> Paulo. Não foi senão na<br />

déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80 que esta visão tradicional começou a ser questiona<strong>da</strong> em larga escala pelos<br />

historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> cristianismo.<br />

A “Len<strong>da</strong>” <strong>de</strong> Paulo e a prática <strong>da</strong> pseu<strong>do</strong>-epigrafia<br />

A questão <strong>da</strong> figura legendária <strong>de</strong> Paulo já fora entrevista por Lin<strong>de</strong>mann, ao<br />

analisar a Primeira Carta <strong>de</strong> Clemente aos Coríntios, quan<strong>do</strong> percebeu que embora não<br />

estivesse sen<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong> o aspecto teológico <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Paulo, o seu nome ain<strong>da</strong><br />

carregava um gran<strong>de</strong> peso nos <strong>de</strong>bates eclesiológicos <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século I E.C, sen<strong>do</strong> o<br />

homem <strong>de</strong> Tarso reconheci<strong>do</strong> tanto como prega<strong>do</strong>r quanto como <strong>apóstolo</strong>.<br />

Esta idéia foi <strong>da</strong> mesma forma anuncia<strong>da</strong> por Hans-Martin Schenke em 1974, em<br />

um artigo entitula<strong>do</strong> “Das Weiterwirken <strong>de</strong>s Paulus und die Pflege seines Erbes durch die<br />

Paulus-Schule”, no qual reparou que a imagem <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> em Atos estava dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escritor <strong>de</strong> epístolas. Isto não se <strong>de</strong>via a uma precaução <strong>de</strong>libera<strong>da</strong> por<br />

parte <strong>de</strong> Lucas, por causa <strong>do</strong> uso que grupos “heréticos” faziam <strong>da</strong>s mesmas, mas antes<br />

porque, segun<strong>do</strong> Schenke, os “Atos <strong>do</strong>s Apóstolos” antece<strong>de</strong>m a época em que as<br />

epístolas <strong>de</strong> Paulo foram reuni<strong>da</strong>s e consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como escritos canônicos. O que<br />

aconteceu, portanto, foi que a imagem que Lucas possuía <strong>de</strong> Paulo era a <strong>de</strong> um<br />

missionário heróico, não a <strong>de</strong> um autor <strong>de</strong> epístolas.<br />

17


Portanto, os rumores que circulavam em torne <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> antece<strong>de</strong>riam<br />

até mesmo a reunião final <strong>de</strong> suas epístolas. Noção esta que foi finalmente reconheci<strong>da</strong><br />

em Março <strong>de</strong> 1987 numa conferência que teve lugar na Southern Methodist University,<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e cujos trabalhos foram reuni<strong>do</strong>s no volume Paul and Legacies of<br />

Paul, <strong>de</strong> 1990.<br />

Recentemente, Michael Kaler, que é <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> <strong>da</strong> Faculté <strong>de</strong> Théologie et <strong>de</strong><br />

Sciences Religieuses, <strong>da</strong> Université Laval <strong>de</strong> Québec, escreveu um artigo no qual tentou<br />

aplicar estas novas perspectivas a respeito <strong>do</strong> paulinismo ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Nag<br />

Hammadi que li<strong>da</strong>m com a figura <strong>de</strong> Paulo. Como exemplo <strong>de</strong>sta aplicação, citou o texto<br />

gnóstico conheci<strong>do</strong> como “Apocalipse <strong>de</strong> Paulo”, que aproveita o relato <strong>de</strong> 2 Cor 12 2-4<br />

para recontá-lo <strong>de</strong> forma expandi<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> gênero literário <strong>da</strong> apocalíptica. Além <strong>do</strong><br />

texto <strong>de</strong> coríntios, também é feita uma alusão a Ef 4,8, com a notória diferença que a<br />

figura <strong>de</strong> Jesus é substituí<strong>da</strong> pela <strong>de</strong> Paulo.<br />

O que Kaler, termina por concluir é que o autor <strong>do</strong> “Apocalipse <strong>de</strong> Paulo” utiliza<br />

material paulino, neste caso as passagens <strong>de</strong> Coríntios e Efésios, para construir uma<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> imagem <strong>de</strong> Paulo, que é a <strong>de</strong> um herói apocalíptico. No entanto, estão<br />

excluí<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ste texto, qualquer reflexão teológica a respeito <strong>da</strong> passagem <strong>de</strong> Efésios ou<br />

mesmo um <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> mesma.<br />

O próprio fenômeno <strong>da</strong> pseu<strong>do</strong>-epigrafia, a meu ver, po<strong>de</strong> ser encara<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>sta nova ótica <strong>do</strong> paulinismo, que privilegia as diferentes maneiras em que foi recebi<strong>da</strong><br />

a figura <strong>de</strong> Paulo. Sen<strong>do</strong> assim, já no século I E.C., no qual são escritas as epístolas<br />

<strong>de</strong>uteropaulinas, teríamos já um exemplo <strong>de</strong>stas diferentes recepções <strong>da</strong> imagem <strong>do</strong><br />

<strong>apóstolo</strong>. Aliás, isto fica claro quan<strong>do</strong> reconhecemos que existe um Paulo <strong>da</strong>s pastorais e<br />

um Paulo <strong>de</strong> Efésios. O primeiro, opositor <strong>de</strong> heresias e “falsos <strong>do</strong>utores”, o segun<strong>do</strong>,<br />

professor <strong>da</strong> revelação pneumática.<br />

18


Obviamente, se alguém escrevia sob o nome <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> era já um indício <strong>da</strong><br />

importância que a sua figura começava a adquirir entre os círculos cristãos. Mas isto<br />

ocorria já em plena ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong>, como po<strong>de</strong>mos comprovar em 2 Cor 10,10:<br />

“pois as cartas, dizem, são severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente, é um homem<br />

fraco e a sua linguagem é <strong>de</strong>sprezível”. E também por esta passagem <strong>de</strong> Gal 1,23-24:<br />

“Apenas ouviam dizer: quem outrora nos perseguia agora evangeliza a fé que antes<br />

<strong>de</strong>vastava, e por minha causa glorificavam a Deus”.<br />

Ambas as epístolas não levam dúvi<strong>da</strong> quanto à autoria e testemunham duas formas<br />

diferentes nas quais Paulo era encara<strong>do</strong> por seus contemporâneos: o missionário e o<br />

escritor <strong>de</strong> epístolas.<br />

Colocan<strong>do</strong> os pingos nos “is”<br />

É chega<strong>do</strong> o momento <strong>de</strong> reunir os resulta<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s nos capítulos<br />

anteriores e tentarmos respon<strong>de</strong>r a gran<strong>de</strong> questão <strong>de</strong>sta monografia: Como foi possível<br />

Paulo <strong>de</strong> Tarso ter si<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> ao mesmo tempo como o “gnóstico” e o<br />

“antignóstico” ?<br />

Como vimos, nem to<strong>do</strong>s os escritos atribuí<strong>do</strong>s ao <strong>apóstolo</strong> são paulinos. De um total<br />

<strong>de</strong> 14 epístolas, 7 ain<strong>da</strong> são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s duvi<strong>do</strong>sas. E to<strong>da</strong>s estas, que nomea<strong>da</strong>mente<br />

são as pastorais, a Epístola aos Efésios, aos Colossenses e aos Hebreus, fizeram parte <strong>do</strong><br />

arsenal tanto <strong>do</strong>s valentinianos quanto <strong>da</strong> proto-orto<strong>do</strong>xia.<br />

Levan<strong>do</strong> isto em consi<strong>de</strong>ração e comprova<strong>da</strong> a inautentici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s epístolas<br />

menciona<strong>da</strong>s, fica sem efeito a questão <strong>de</strong> o próprio <strong>apóstolo</strong> Paulo ter si<strong>do</strong> ou não<br />

gnóstico, pois os escritos que mais se aproximam <strong>de</strong>sta “heresia” são <strong>de</strong>uteropaulinos. Da<br />

mesma maneira, afirmar que Paulo era um antignóstico não faz senti<strong>do</strong> pois está fora <strong>de</strong><br />

dúvi<strong>da</strong> que as pastorais são criações tardias, realiza<strong>da</strong>s após a morte <strong>do</strong> tarsense.<br />

19


Talvez seja por isso que se prezou tanto a discussão em torno <strong>da</strong> correspondência<br />

<strong>de</strong> Corinto como <strong>de</strong>cisiva na resposta a esta questão. Pois se estava diante <strong>de</strong> material<br />

efetivamente paulino, mas que apresentava diversas passagens “embaraçosas” para uma<br />

mente orto<strong>do</strong>xa, como o intervalo <strong>de</strong> 1 Cor 2,6 - 3,3.<br />

Por este motivo, historia<strong>do</strong>res como Ru<strong>do</strong>lf Bultmann procuraram explicar tal fato<br />

dizen<strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> Paulo fazia isto era com o propósito <strong>de</strong> conquistar a audiência para<br />

refutá-la, conservan<strong>do</strong> os termos embora esvazian<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong> original, como<br />

também já havia proposto Walter Schmitals. Esta tese possui a seu favor uma conheci<strong>da</strong><br />

passagem <strong>da</strong> Primeira Epístola aos Coríntios, cita<strong>da</strong> anteriormente mas que se<br />

reproduzi<strong>da</strong> agora adquirirá um novo senti<strong>do</strong> ( 1 Cor 9 19-23 ):<br />

“Ain<strong>da</strong> que livre em relação a to<strong>do</strong>s, fiz-me o servo <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s, a fim <strong>de</strong> ganhar o maior número possível. Para os<br />

ju<strong>de</strong>us, fiz-me como ju<strong>de</strong>u, a fim <strong>de</strong> ganhar os ju<strong>de</strong>us. Para os<br />

que estão sujeitos à Lei, fiz-me como se estivesse sujeito à Lei<br />

– se bem que não esteja sujeito à Lei – , para ganhar aqueles<br />

que estão sujeitos à Lei. Para aqueles que vivem sem a Lei,<br />

fiz-me como se vivesse sem a Lei – ain<strong>da</strong> que não viva sem a<br />

Lei <strong>de</strong> Deus, pois estou sob a Lei <strong>de</strong> Cristo – , para ganhar<br />

aqueles que vivem sem a Lei. Para os fracos, fiz-me fraco, a<br />

fim <strong>de</strong> ganhar os fracos. Tornei-me tu<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s, a fim <strong>de</strong><br />

salvar alguns a to<strong>do</strong> custo. E isto tu<strong>do</strong> eu faço por causa <strong>do</strong><br />

evangelho, para <strong>de</strong>le me tornar participante.”<br />

Porém, seria um anacronismo discutirmos o gnosticismo <strong>do</strong>s coríntios. Não apenas<br />

porque este termo só po<strong>de</strong> ser aplica<strong>do</strong> ao II E.C., mas igualmente por ter si<strong>do</strong> posto em<br />

cheque no livro <strong>de</strong> Michael Williams, Rethinking Gnosticism. To<strong>da</strong>via, po<strong>de</strong>mos sim<br />

20


falarmos <strong>de</strong> gnose em Paulo, se por isso enten<strong>de</strong>rmos a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> Congresso <strong>de</strong><br />

Messina, que é: conhecimento <strong>do</strong>s <strong>mistérios</strong> divinos reserva<strong>do</strong>s a uma elite.<br />

De fato, a existência <strong>de</strong> uma gnose orto<strong>do</strong>xa, ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, não é nega<strong>da</strong> nem pelo<br />

bispo heresiólogo Ireneu <strong>de</strong> Lyon, que nomeou sua obra magna <strong>de</strong> “Desmascaramento e<br />

Refutação <strong>da</strong> Falsa Gnose”.<br />

Mesmo no testemunho <strong>do</strong>s evangelhos, encontram-se indicações <strong>de</strong> ensinamentos<br />

secretos por parte <strong>de</strong> Jesus aos <strong>apóstolo</strong>s, como po<strong>de</strong>mos ver em Mc 4, 10-12; 33-34.<br />

Também há a ocorrência <strong>de</strong> menções a <strong>mistérios</strong> tanto em Paulo, quanto na tradição<br />

<strong>de</strong>uteropaulina. E cabe neste caso reproduzirmos duas passagens exemplares.<br />

A primeira encontra-se na 1 Cor 3,1-2:<br />

A segun<strong>da</strong> passagem é Ef 3, 3-5:<br />

“Quanto a mim, irmãos, não vos pu<strong>de</strong> falar como a<br />

homens espirituais, mas tão-somente como a homens<br />

carnais, como a crianças em Cristo. Dei-vos a beber leite, não<br />

alimento sóli<strong>do</strong>, pois não o podíeis suportar. Mas nem<br />

mesmo agora po<strong>de</strong>is (...)”<br />

“Por uma revelação me foi <strong>da</strong><strong>do</strong> a conhecer o mistério,<br />

como atrás vos expus sumariamente: len<strong>do</strong>-me, po<strong>de</strong>is<br />

compreen<strong>de</strong>r a percepção que tenho <strong>do</strong> mistério <strong>de</strong> Cristo. Às<br />

gerações e aos homens <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> ele não foi <strong>da</strong><strong>do</strong> a<br />

conhecer, como foi agora revela<strong>do</strong> aos seus santos <strong>apóstolo</strong>s<br />

e profetas, no Espírito (...)”<br />

Sen<strong>do</strong> assim, não é estranho que os valentinianos clamassem estar <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> uma<br />

tradição secreta transmiti<strong>da</strong> a eles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>apóstolo</strong> Paulo, que por sua vez a teria<br />

21


ecebi<strong>do</strong> <strong>de</strong> Jesus. Em reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a última passagem transcrita acima é um forte<br />

argumento para esta tese. Se bem que não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scartar a hipótese <strong>de</strong> Paulo estar<br />

simplesmente queren<strong>do</strong> conquistar sua audiência, como faz crer 1 Cor 9, 19-23.<br />

Além disso, a maneira pela qual se processou a conversão <strong>de</strong> Paulo, segun<strong>do</strong> o<br />

relato <strong>do</strong>s Atos <strong>do</strong>s Apóstolos, foi uma experiência carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> misticismo que po<strong>de</strong> ter<br />

aju<strong>da</strong><strong>do</strong> a conectar o <strong>apóstolo</strong> com o la<strong>do</strong> mais oculto <strong>do</strong> cristianismo. Sem falar que<br />

Paulo sempre procurou espiritualizar os eventos <strong>da</strong> história ju<strong>da</strong>ica, alegorizan<strong>do</strong>-os como<br />

po<strong>de</strong>mos comprovar em 1 Cor 10, 1-4:<br />

“Não quero que ignoreis, irmão, que os nossos pais<br />

estiveram to<strong>do</strong>s sob a nuvem, to<strong>do</strong>s atravessaram o mar e,<br />

na nuvem e no mar, to<strong>do</strong>s foram batiza<strong>do</strong>s em Moisés. To<strong>do</strong>s<br />

comeram o mesmo alimento espiritual, e to<strong>do</strong>s beberam a<br />

mesma bebi<strong>da</strong> espiritual, pois bebiam <strong>de</strong> uma rocha<br />

espiritual, que os acompanhava, e essa rocha era Cristo.”<br />

Werner Jaeger em seu livro Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega, assim como<br />

Etienne Gilson e Philoteus Boehner, reconheceu o fato <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> uma gnose<br />

presente no pensamento <strong>do</strong>s alexandrinos Clemente e Orígenes. Porém, esta teria si<strong>do</strong><br />

construí<strong>da</strong> como uma alternativa orto<strong>do</strong>xa aos sistemas gnósticos clássicos, como os <strong>de</strong><br />

Valentino e Basíli<strong>de</strong>s:<br />

“A forte ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> à gnose em Clemente e Orígenes<br />

mostra que eles tiveram <strong>de</strong> prestar atenção a este novo<br />

po<strong>de</strong>r que ameaçava tornar-se um perigoso rival <strong>do</strong><br />

Cristianismo, a par <strong>do</strong> Maniqueísmo e <strong>do</strong> Mitraísmo. O que os<br />

Alexandrinos têm a oferecer sob a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> gnose é,<br />

evi<strong>de</strong>ntemente, muito diferente <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> um Basíli<strong>de</strong>s<br />

ou <strong>de</strong> um Valentino. Mas a gnose cristã <strong>de</strong> Clemente ou<br />

22


Orígenes explica-se inequivocamente como uma tentativa <strong>de</strong><br />

satisfazer os apetites gnósticos <strong>do</strong>s seus contemporâneos <strong>de</strong><br />

uma maneira legítima. À gnose oriental e ao seu simbolismo<br />

grosseiro opõem a sua própria gnose, que <strong>de</strong>riva em larga<br />

escala <strong>da</strong> filosofia grega (...)” 16<br />

To<strong>do</strong>s estes fatos liga<strong>do</strong>s ao esoterismo <strong>do</strong> cristianismo primitivo foram percebi<strong>do</strong>s<br />

por autores como Annie Besant, que produziu um livro entitula<strong>do</strong> “O Cristianismo<br />

Esotérico”, e Charles Guignebert que em El Cristianismo Antiguo, <strong>de</strong> 1921, afirmou que<br />

Paulo possuía uma gnose sincretista que teria aberto o caminho para os gran<strong>de</strong>s sistemas<br />

<strong>de</strong> Basíli<strong>de</strong>s e Valentino.<br />

Tu<strong>do</strong> isto, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> nova perspectiva <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre Paulo, po<strong>de</strong> ser visto como<br />

uma forma <strong>de</strong> recepção <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> entre os círculos cristãos que mais tar<strong>de</strong> originariam<br />

o valentinianismo. Tais círculos optaram por utilizar as epístolas, chegan<strong>do</strong> inclusive a<br />

<strong>de</strong>senvolver temas teológicos conti<strong>do</strong>s nas mesmas, originan<strong>do</strong> assim material<br />

<strong>de</strong>uteropaulino.<br />

No entanto, nem sempre o nome <strong>de</strong> Paulo quan<strong>do</strong> aparece em Nag Hammadi está<br />

associa<strong>do</strong> a algum <strong>de</strong>senvolvimento teológico, como foi nota<strong>do</strong> por Michael Kaler no caso<br />

<strong>do</strong> “Apocalipse <strong>de</strong> Paulo”. Portanto, qualquer generalização é impru<strong>de</strong>nte e perigosa, e<br />

sempre <strong>de</strong>vemos lembrar <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> que é a utilização <strong>do</strong> termo gnosticismo para<br />

classificar o material encontra<strong>do</strong> no Alto Egito.<br />

Sen<strong>do</strong> assim, o máximo que po<strong>de</strong>mos concluir <strong>do</strong> que foi exposto até aqui é que os<br />

segui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Valentino encontraram nas epístolas <strong>de</strong> Paulo, tanto paulinas quanto<br />

<strong>de</strong>uteropaulinas, farto material para a elaboração <strong>de</strong> sua teologia. Com a ressalva que, <strong>de</strong><br />

acor<strong>do</strong> com Elaine Pagels, a leitura “gnóstica” que eles faziam <strong>da</strong>s paulinas baseava-se no<br />

16 JAEGER, Werner. Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega. Lisboa: Edições 70, 1991. p.<br />

77.<br />

23


<strong>de</strong>senvolvimento posterior conti<strong>do</strong> nas <strong>de</strong>uteropaulinas, o que <strong>de</strong>scarta a alegação<br />

valentiniana <strong>de</strong> uma ligação direta entre eles e o <strong>apóstolo</strong> Paulo.<br />

O que parece ter <strong>de</strong> fato havi<strong>do</strong> com o valentinianismo, foi um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

agu<strong>do</strong> <strong>da</strong> gnose paulina por meio <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Éfeso – que também produziu o<br />

Evangelho <strong>de</strong> João, e o material joanino para os discípulos <strong>de</strong> Valentino possuía uma<br />

importância até maior que o paulino. Esta é a teoria <strong>de</strong> Simone Pétrement, em seu livro A<br />

Separate God, que propõe ter o gnosticismo si<strong>do</strong> um fenômeno interno ao cristianismo,<br />

não uma contaminação pagã.<br />

Esta autora, inclusive, aventa a hipótese <strong>de</strong> que o Mito <strong>de</strong> Sofia, tão característico<br />

<strong>do</strong> valentinianismo, foi cria<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> Ef 3,8-12:<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”:<br />

“A mim, o menor <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os santos, me foi <strong>da</strong><strong>da</strong> esta<br />

graça <strong>de</strong> anunciar aos gentios a insondável riqueza <strong>de</strong> Cristo<br />

e <strong>de</strong> pôr em luz a dispensação <strong>do</strong> mistério oculto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

séculos em Deus, cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas, para <strong>da</strong>r agora a<br />

conhecer aos Principa<strong>do</strong>s e às Autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas regiões<br />

celestes, por meio <strong>da</strong> Igreja, a multiforme sabe<strong>do</strong>ria <strong>de</strong> Deus,<br />

segun<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sígnio preestabeleci<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

realiza<strong>do</strong> em Cristo Jesus nosso Senhor, por quem ousamos<br />

chegar-nos a Deus confiantemente, pela fé.”<br />

A relação não é clara, mas parece que este trecho é menciona<strong>do</strong> pelo “Evangelho <strong>da</strong><br />

“(...) <strong>da</strong>s entranhas <strong>do</strong> pai eles (a totali<strong>da</strong><strong>de</strong>) apren<strong>da</strong>m<br />

a conhecê-lo, e os éons não fiquem mais cansa<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

procurar pelo pai, possam repousar nele, e saber que ele é<br />

24


epouso, pois ele supriu a falta e aniquilou o reino <strong>da</strong>s<br />

aparências”.17<br />

O termo “séculos” que aparece em Efésios é o mesmo aquele que em grego (Éon) os<br />

valentinianos utilizavam para <strong>de</strong>nominar os habitantes <strong>do</strong> pleroma, ou totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, se bem<br />

que em Paulo apareçam com um senti<strong>do</strong> diferente. Os principa<strong>do</strong>s e autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

abun<strong>da</strong>m na literatura paulina, são os mesmos arcontes que figuram na literatura gnóstica<br />

clássica.<br />

Resta apenas vermos como o bispo Ireneu <strong>de</strong> Lyon cita Paulo em “Contra as<br />

Heresias”. Antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, é mais <strong>do</strong> que provável que o bispo tenha se inspira<strong>do</strong> em 1<br />

Tm 6, 20-21, para compor o título <strong>de</strong> sua obra: “Timóteo, guar<strong>da</strong> o <strong>de</strong>pósito, evita o<br />

palavrea<strong>do</strong> vão e ímpio, e as contradições <strong>de</strong> uma falsa ciência (gnose)”. Este trecho é<br />

explicitamente utiliza<strong>do</strong> por Ireneu <strong>de</strong> Lyon para atacar os “gnósticos” no segun<strong>do</strong> livro <strong>de</strong><br />

“Contra as Heresias”:<br />

“Estais, portanto, em contradição, chaman<strong>do</strong> gnose ao<br />

<strong>de</strong>sconhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e Paulo se expressa bem<br />

falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ‘novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> palavras’ e <strong>de</strong> ‘falsa sabe<strong>do</strong>ria’.<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente falsa, portanto, é a vossa gnose!”18<br />

A mesma epístola é utiliza<strong>da</strong> pelo bispo para justificar a sua missão <strong>de</strong> refutar os<br />

hereges (1 Tm 2,4):<br />

“Devemos fazer isso, porque nos foi confia<strong>da</strong> esta<br />

tarefa e porque queremos que to<strong>do</strong>s os homens cheguem ao<br />

conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e ain<strong>da</strong> porque você mesmo nos<br />

17<br />

LAYTON, Bentley. As Escrituras Gnósticas. trad. Margari<strong>da</strong> Oliva, Edições Loyola, São<br />

Paulo, Brasil, 2002.<br />

18<br />

IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. p. 165.<br />

25


pediu numerosas e possíveis provas para refutar estes<br />

heréticos”.19<br />

Não obstante, o bispo não cita apenas as pastorais, mas também apresenta as<br />

passagens paulinas utiliza<strong>da</strong>s pelos “gnósticos”, como a controverti<strong>da</strong> passagem <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> capítulo <strong>da</strong> Primeira Epístola aos Coríntios (1 Cor 2,10): “Devemo-nos admirar<br />

bastante <strong>de</strong> como os que afirmam ter <strong>de</strong>scoberto as profun<strong>de</strong>zas <strong>de</strong> Deus não tenham<br />

procura<strong>do</strong> nos evangelhos quantas vezes (...)”20<br />

Por último, a idéia <strong>de</strong> que Ireneu <strong>de</strong> Lyon apropriou-se <strong>do</strong> Paulo <strong>da</strong>s pastorais para<br />

transformá-lo em um opositor <strong>de</strong> “gnósticos” revela-se insuficiente, pois o bispo serviu-se<br />

também <strong>do</strong> oitavo (1 Cor 8,1) e <strong>do</strong> décimo terceiro capítulo <strong>da</strong> Primeira Epístola aos<br />

Coríntios (1 Cor 13, 9-12), on<strong>de</strong> são postos em comparação a cari<strong>da</strong><strong>de</strong> e o conhecimento<br />

(gnose):<br />

“E se alguém não chega a encontrar a explicação <strong>de</strong><br />

tu<strong>do</strong> o que procura, lembre-se <strong>de</strong> que é homem,<br />

infinitamente inferior a Deus, que recebeu a graça <strong>de</strong><br />

maneira limita<strong>da</strong>, que ain<strong>da</strong> não é semelhante nem igual a<br />

seu Autor e que não po<strong>de</strong> ter a experiência e o conhecimento<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as coisas como Deus.”21<br />

“É melhor e mais útil ser ignorante ou <strong>de</strong> pouca cultura<br />

e aproximar-se <strong>de</strong> Deus e aproximar-se <strong>de</strong> Deus pela cari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> que julgar-se sábio e experto e encontrar-se blasfema<strong>do</strong>r<br />

contra o Senhor por ter inventa<strong>do</strong> outro Deus e Pai. É por isso<br />

19 IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. p. 171.<br />

20 IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. p. 193.<br />

21 IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. pp. 206-<br />

207.<br />

26


que Paulo gritou: ‘A ciência infla, mas a cari<strong>da</strong><strong>de</strong> edifica!’ Ele<br />

não con<strong>de</strong>nava o conhecimento ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Deus, porque<br />

se o tivesse feito seria o primeiro a se acusar, mas porque<br />

sabia que alguns, infla<strong>do</strong>s <strong>de</strong> orgulho por causa <strong>da</strong> ciência<br />

(gnose) se afastariam <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> Deus, julgar-se-iam<br />

perfeitos e o Cria<strong>do</strong>r imperfeito. É para lhes cortar o orgulho<br />

por esta pretensa ciência (gnose) que Paulo diz: A ciência<br />

infla, mas a cari<strong>da</strong><strong>de</strong> edifica (...)”.22<br />

Estes são apenas alguns exemplos, mas ao longo <strong>de</strong> “Contra as Heresias”, Ireneu<br />

sempre procura citar a Primeira Epístola aos Coríntios para exemplificar os ensinamentos<br />

<strong>do</strong>s grupos “gnósticos”23, ao mesmo tempo que utiliza outros trechos <strong>da</strong> mesma para<br />

refutá-los. Mas <strong>de</strong> uma forma geral, o bispo faz uso também <strong>do</strong> Primeiro Testamento24<br />

para embasar suas teses, e também como uma forma <strong>de</strong> mostrar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />

Testamentos – uma obra <strong>do</strong> bispo <strong>de</strong> Lyon – , o que talvez tenha si<strong>do</strong> uma maneira <strong>de</strong><br />

contrapôr aos marcionitas e outros grupos “gnósticos” radicais que rejeitavam o Deus <strong>do</strong><br />

Primeiro Testamento.<br />

Ao que parece, o bispo <strong>de</strong> Lyon estava também inauguran<strong>do</strong> uma nova forma <strong>de</strong><br />

recepção <strong>da</strong> figura <strong>de</strong> Paulo. Desta vez a <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> que combateu os “gnósticos” em<br />

Corinto. Esta foi a leitura realiza<strong>da</strong> por historia<strong>do</strong>res como Bultmann e Schmitals, que <strong>de</strong><br />

formas diferentes acabaram reproduzin<strong>do</strong> este discurso, que era o mesmo <strong>da</strong> igreja proto-<br />

orto<strong>do</strong>xa <strong>do</strong>s primeiros séculos <strong>do</strong> cristianismo, e continua forte <strong>de</strong>ntro Igreja Católica até<br />

os dias <strong>de</strong> hoje.<br />

22 IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. p. 207-<br />

208.<br />

23 Provavelmente valentinianos.<br />

24 Antigo Testamento.<br />

27


O resulta<strong>do</strong> foi que, o que era para ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> uma disputa teológica <strong>do</strong> século<br />

II E.C., acabou se transforman<strong>do</strong> em uma batalha sobre a real i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>apóstolo</strong> <strong>do</strong>s<br />

gentios e, mais ain<strong>da</strong>, sobre o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro caráter <strong>do</strong> cristianismo. Livros como o <strong>de</strong> Annie<br />

Besant25 – “O Cristianismo Esotérico” – são o testemunho <strong>de</strong>sta batalha que a<strong>de</strong>ntrou o<br />

século XX.<br />

O discurso que vem sen<strong>do</strong> reproduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então não é apenas o <strong>da</strong> “orto<strong>do</strong>xia<br />

versus heresia”, mas também o <strong>da</strong> “Pureza versus Contaminação”, e até mesmo o <strong>do</strong><br />

“Oci<strong>de</strong>nte versus Oriente” – <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o estu<strong>do</strong> realzia<strong>do</strong> por Karen King em What is<br />

Gnosticism ? .<br />

Esta assertiva fica claramente comprova<strong>da</strong> se reproduzirmos aqui um trecho <strong>do</strong><br />

prefácio <strong>da</strong> tradução em português <strong>de</strong> “Contra as Heresias”:<br />

“Em boa hora este estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> santo Ireneu é edita<strong>do</strong><br />

também em português, pois dá oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> a nossos<br />

teólogos e historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> pensamento e <strong>da</strong>s religiões<br />

abrirem perspectivas científicas e teológicas para a análise <strong>de</strong><br />

culturas e idéias religiosas contemporâneas. Ao estímulo<br />

<strong>de</strong>ste Padre <strong>da</strong> Igreja – como também <strong>de</strong> outros autores<br />

(penso neste momento em santo Agostinho, com sua ‘Ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Deus’) – , é hora <strong>de</strong> aprofun<strong>da</strong>mento sério e cristão sobre<br />

as hodiernas e crescentes questões <strong>de</strong> misticismo e<br />

esoterismo que vem ocupan<strong>do</strong> inúmeros espaços vazios <strong>da</strong><br />

cultura oci<strong>de</strong>ntal e religiosa, também a cristã.<br />

Nos ambientes cristãos <strong>de</strong> hoje, muitos olhos estão<br />

<strong>de</strong>mais fixa<strong>do</strong>s em seu umbigo; a hegemonia cristã se<br />

25 Que não surpreen<strong>de</strong> ter sucedi<strong>do</strong> Helena Blavatsky no coman<strong>do</strong> <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Teosófica.<br />

28


Conclusão:<br />

preten<strong>de</strong> como resposta exaustiva e quer manter tal posição<br />

ante as novas formas <strong>de</strong> culturas gnósticas, mediúnicas e<br />

espiritualistas. Diante <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> seu tempo, Ireneu fez a<br />

apologia <strong>da</strong> fé cristã com os melhores objetivos. Os tempos<br />

mu<strong>da</strong>ram e hoje são os cristãos intelectuais e pastores<br />

convi<strong>da</strong><strong>do</strong>s a – com novos méto<strong>do</strong>s e novo ar<strong>do</strong>r – entrar em<br />

diálogo com as religiões e com o mun<strong>do</strong>, para conhecer seu<br />

cunho e fazer transluzir aí, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> claro e límpi<strong>do</strong>, coerente<br />

e simples, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, através <strong>de</strong> seu Cristo e <strong>de</strong> sua<br />

Sabe<strong>do</strong>ria, em que, garantin<strong>do</strong> a gran<strong>de</strong>za <strong>do</strong> homem, se<br />

possa evi<strong>de</strong>nciar o plano salva<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a beneficiar<br />

to<strong>do</strong>s os homens na gran<strong>de</strong>za maior que a Igreja <strong>de</strong> Jesus<br />

po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve apresentar.”26<br />

Se ao estu<strong>da</strong>rmos os movimentos “gnósticos” <strong>de</strong>sconhecermos to<strong>da</strong>s as implicações<br />

e discursos que subjazem à nossa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, estaremos sempre incorren<strong>do</strong> em uma<br />

discussão infrutífera, pois o que fica <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isto é a conclusão <strong>de</strong> que ao li<strong>da</strong>rmos com<br />

nomes como Paulo e Jesus – no caso <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre o Jesus Histórico – estaremos<br />

invariavelmente li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com a forma como os mesmos eram vistos. Mesmo que no caso<br />

<strong>de</strong> Paulo, ele tenha produzi<strong>do</strong> escritos <strong>de</strong> sua autoria, isto não exclui o fato <strong>de</strong> que alguém<br />

sempre escreve o que quer permitir que os outros saibam a respeito <strong>de</strong> si próprio.<br />

Mas o fato é que, para o bem ou para o mal, a len<strong>da</strong> <strong>de</strong> Paulo continua até hoje,<br />

chegan<strong>do</strong> até mesmo ao ponto <strong>de</strong>le ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cristianismo,<br />

e a existência <strong>de</strong> um Paulo “gnóstico” e <strong>de</strong> um “antignóstico”, no século II E.C. servem<br />

apenas para comprovar esta teoria. E não vejo nenhum problema em se aceitar a idéia <strong>de</strong><br />

26 IRINEU DE LYON. Contra as Heresias. trad. Lourenço Costa, Paulus, 1995. p. 26.<br />

29


um Paulo valentiniano – como seria mais a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. Pois afinal, aceita-se uma construção<br />

em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outra, quan<strong>do</strong> ambas são criações, não fatos.<br />

Para concluir, gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar registra<strong>do</strong> que o título <strong>de</strong>sta monografia resume<br />

em si a conclusão <strong>da</strong> mesma: Paulo sempre será um ilustre <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. E não<br />

<strong>de</strong>veríamos temer esta incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo. Incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, aliás, que po<strong>de</strong> ser<br />

estendi<strong>da</strong> a qualquer ato que envolva leitura, pois alguém já disse que “ler é interpretar”.<br />

E em linhas como as que Paulo <strong>de</strong> Tarso nos legou, é irresistível não nos <strong>de</strong>ixarmos levar<br />

pelo seu turbilhão <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s e pela história <strong>da</strong> sua dramática conversão – a caminho <strong>de</strong><br />

Damasco...<br />

30


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BESANT, Annie. O Cristianismo Esotérico. São Paulo: Editora Pensamento.<br />

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2004.<br />

DROBNER, Hubertus R. Manual <strong>de</strong> Patrologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.<br />

GUIGNEBERT, CH. El Cristianismo Antiguo. Mexico: Fon<strong>do</strong> <strong>de</strong> Cultura Economica, 1997.<br />

HOELLER, Stephen A. Gnosticismo: Uma Nova Interpretação <strong>da</strong> Tradição Oculta para os<br />

Tempos Mo<strong>de</strong>rnos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Era, 2005.<br />

IRENEU <strong>de</strong> Lião. Contra as Heresias. São Paulo: Paulus, 1995.<br />

JAEGER, Werner. Cristianismo Primitivo e Paidéia Grega. Lisboa: Edições 70, 1991.<br />

KALER, Michael. Artigo que propõe a aplicação <strong>da</strong> nova perspectiva <strong>do</strong> paulinismo,<br />

inaugara<strong>da</strong> por Hans-Martin Schenke, aos textos <strong>de</strong> Nag Hammadi. Envia<strong>do</strong> para o autor<br />

através <strong>de</strong> correio eletrônico em [2004?].<br />

KING, Karen L. What is Gnosticism ? Massachusetts: Belknap Press, 2003.<br />

LAYTON, Bentley. As Escrituras Gnósticas. São Paulo: Edições Loyola, 2002.<br />

PAGELS, Elaine. The Gnostic Paul. Harrisburg: Trinity Press International, 1992.<br />

PAINCHAUD, Louis. Os Textos <strong>de</strong> Nag Hammadi. Palestra proferi<strong>da</strong> na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Metodista <strong>de</strong> São Paulo, em 28 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 2003.<br />

PÉTREMENT, Simone. A Separate God: The Origins and Teachings of Gnosticism. New<br />

York: HarperCollins Publishers, 1990.<br />

QUESNEL, Michel. Paulo e as Origens <strong>do</strong> Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2004.<br />

WIKIPEDIA. Consulta ao verbete Annie Wood Besant. Disponível na Internet via<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/Annie_Wood_Besant. Arquivo consulta<strong>do</strong> em 8 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong><br />

2007.<br />

WILLIAMS, Michael A. Rethinking Gnosticism: An Argument for Dismantling a Dubious<br />

Category. New Jersey: Princenton University Press, 1996.<br />

31

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!