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Ano 3, n. 3, 2011<br />

ISSN 2176.3356<br />

A Palo Seco<br />

Escritos de Filosofia e Literatura<br />

“Fronteiras”<br />

Textos do II Colóquio<br />

Filosofia e Literatura/<strong>GeFeLit</strong><br />

Homenag<strong>em</strong> a Benedito Nunes


A PALO SECO – ESCRITOS DE FILOSOFIA E LITERATURA<br />

Ano 3, Número 3, 2011<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Celso Donizete Cruz<br />

Cicero Cunha Bezerra<br />

Dominique M. P. G. Boxus<br />

Eduardo Gomes de Siqueira<br />

Fabian Jorge Piñeyro<br />

Jacqueline Ramos<br />

Luciene Lages Silva<br />

Maria Cristina Blink<br />

Maria Roseneide Santana dos Santos<br />

Oliver Tolle<br />

Romero Junior Venancio Silva<br />

Sílvia Faustino de Assis Saes<br />

FICHA CATALOGRÁFICA<br />

A Palo Seco: Escritos de Filosofia e Literatura / Grupo de Estudos <strong>em</strong> Filosofia<br />

e Literatura, Universidade Federal de Sergipe. Vol.1, n.3 (2011) - . Aracaju:<br />

UFS, CECH, 2009 -<br />

Anual<br />

ISSN 2176-3356<br />

Editoria e editoração<br />

Celso Cruz<br />

Jacqueline Ramos<br />

1. Filosofia - Periódicos. 2. Literatura - Periódicos. I. Grupo de Estudos <strong>em</strong> Filosofia e<br />

Literatura.<br />

CDU - 1:82.09


66<br />

40<br />

36<br />

28<br />

Sumário<br />

Apresentação<br />

Celso Donizete Cruz<br />

Poesia e filosofia: uma transa<br />

Benedito Nunes<br />

Benedito Nunes, filósofo da literatura<br />

Victor Sales Pinheiro<br />

O perfil da linguag<strong>em</strong> crítica de Benedito Nunes<br />

Jucimara Tarricone<br />

Neoplatonismo, mística e poesia: do dizível ao indizível<br />

Cicero Cunha Bezerra<br />

A escritura da m<strong>em</strong>ória enquanto fundamento identitário do eu<br />

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz<br />

51<br />

18<br />

O boné do bufão: comicidade e conhecimento<br />

Jacqueline Ramos<br />

Dissensos da pós-modernidade<br />

Maria Aparecida Antunes de Macedo<br />

Discurso e interdiscurso: a tradução da filosofia na literatura e nas artes<br />

Dominique M. P. G. Boxus<br />

77<br />

8<br />

57<br />

70<br />

Peirce e o método dos detetives<br />

Sergio Hugo Menna<br />

Realidade e ficção e ensaio e conto <strong>em</strong> Borges<br />

Fabian Pineyro<br />

4


4<br />

Apresentação<br />

Celso Donizete Cruz<br />

Departamento de Letras de Itabaiana/UFS<br />

A filosofia não deixa de ser filosofia tornando-se poética, n<strong>em</strong> a poesia deixa de ser poesia<br />

tornando-se filosófica. Uma polariza a outra s<strong>em</strong> assimilação transformadora.<br />

Benedito Nunes<br />

Este terceiro número de A Palo Seco reúne textos apresentados no II Colóquio Filosofia e Literatura, que<br />

sob o t<strong>em</strong>a “Fronteiras” foi organizado por nosso grupo de pesquisa, o <strong>GeFeLit</strong>, e ocorreu <strong>em</strong> outubro de<br />

2010, na Universidade Federal de Sergipe. A intenção, como outros eventos de mesma natureza, foi reunir<br />

pesquisadores afins, os quais são os próprios m<strong>em</strong>bros do <strong>GeFeLit</strong>, mais interessados e convidados, para<br />

a conversa, a discussão, a tertúlia, o congraçamento, oportunidades de afinar os ponteiros, principalmente<br />

para os que já são do grupo, e de mostrar o que se faz, o que se fez e o que pode ser feito a partir do<br />

encontro fecundo de duas grandes disciplinas. Essas metas na certa foram cumpridas, e este número da<br />

revista é ainda outro dos desdobramentos do evento.<br />

Além das atividades, por assim dizer, mais rotineiras, caso das palestras e comunicações, que proporcionam<br />

as tais oportunidades de contato entre os pesquisadores, quis<strong>em</strong>os também que o encontro fosse<br />

uma homenag<strong>em</strong> a Benedito Nunes, notoriamente reconhecido pela promoção sist<strong>em</strong>ática da aproximação<br />

de literatura e filosofia, plano de fundo de nossas pesquisas. De modo que, inicialmente, previmos que<br />

a conferência de abertura fosse proferida por ele, e o convidamos, e tiv<strong>em</strong>os a honra de ter nosso convite<br />

aceito. Infelizmente, porém, por ocasião de confirmação das passagens, sua visita a Sergipe teve de ser<br />

postergada, por probl<strong>em</strong>as de saúde. Houve t<strong>em</strong>po para rearranjos, e mantiv<strong>em</strong>os a homenag<strong>em</strong>, dedicando<br />

uma das noites à leitura de um texto expressamente enviado por ele para a ocasião, e a um debate <strong>em</strong><br />

torno de sua obra. Só não imaginávamos que dali a poucos meses, enquanto organizávamos a publicação<br />

dos textos do Colóquio, teríamos a notícia de seu pesaroso falecimento.<br />

A obra de Nunes é e s<strong>em</strong>pre foi uma fonte de inspiração para os trabalhos do grupo. Assim se justifica<br />

esta homenag<strong>em</strong>. Que se fez <strong>em</strong> vida, no Colóquio, e se faz póstuma agora, no periódico, com a reprodução<br />

dos textos dessa noite especial. Medra, entre o acontecimento e sua documentação, o interstício de


A PALO SECO<br />

5<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

uma passag<strong>em</strong> fatal. É esse também um tipo de fronteira, aquela que – qu<strong>em</strong> sabe? – não se ultrapassará<br />

mais de uma vez...<br />

Mas as fronteiras que delimitam filosofia e literatura não possuirão aduana tão implacável. Serão talvez<br />

rigorosas, ou ríspidas, ou mais ligeiras, maleáveis, a depender do enfoque. O próprio Benedito Nunes<br />

reconhece, não a transformação de uma disciplina <strong>em</strong> outra, e sim a polarização de uma pela outra (de<br />

uma com a outra, idealmente), como se observa na epígrafe desta apresentação. Quer dizer, as fronteiras<br />

são franqueadas, porém mantidas. Ocorrerão pe<strong>net</strong>rações, s<strong>em</strong> dúvida. Relações de hierarquia e submissão,<br />

provavelmente. É tal e qual uma relação entre corpos, e daí a boa sacada do texto enviado por Nunes, que<br />

abre este número de nossa revista: “Poesia e filosofia: uma transa”.<br />

Uma transa! Repleta de oferecimentos e negaças, com certeza. E de longa data, desde os pré-socráticos,<br />

ou seja, desde s<strong>em</strong>pre – essa tensão (esse tesão) entre poetas e filósofos, entre artistas e pensadores.<br />

É essa relação que Benedito Nunes acompanha pari passu, atravessando a história das ideias e das<br />

letras, com especial menção aos momentos de contato mais íntimo, de aventuras extradisciplinares. O<br />

panorama firmado como que descortina a tradição desse contato. Dá um sentido histórico e ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po um incentivo à frequentação de uma disciplina pela outra. (Pode-se dizer que respond<strong>em</strong>os positivamente<br />

a esse estímulo “transacional”, retomando a relação entre as partes, e a consciência dessa relação,<br />

de forma a manter acesa a chama que Nunes alimentou ao longo de toda sua rica trajetória intelectual<br />

– que afinal confunde-se com sua própria vida, que é sua vida, e que seguirá existindo, não t<strong>em</strong>os dúvida,<br />

por sobre a inelutável finitude do hom<strong>em</strong>).<br />

Tal como ocorreu na noite do evento, segue-se na revista o texto “Benedito Nunes, filósofo da literatura”,<br />

de Victor Sales Pinheiro, que já há algum t<strong>em</strong>po v<strong>em</strong> se dedicando à organização e edição da obra do<br />

<strong>em</strong>érito professor paraense. Victor nos apresenta o itinerário crítico de Benedito Nunes, desde a infância,<br />

com sua paixão pelos livros, e depois o contato com os intelectuais da região, com a literatura feita no<br />

Pará, os primeiros artigos publicados, os primeiros ensaios, e assim por diante. Também comenta as várias<br />

facetas de sua produção ensaística, que transita na fronteira entre a crítica literária e a filosofia. Como<br />

ex<strong>em</strong>plo dessa crítica particular de Nunes, somos r<strong>em</strong>etido ao caso (leia-se transa) com a obra de Guimarães<br />

Rosa, quando t<strong>em</strong>os, ao lado de um texto poético prenhe de filosofia, um texto de crítica filosófica<br />

que tende ao poético. Sales Pinheiro nos traz os detalhes dessa ex<strong>em</strong>plar e fértil relação.<br />

A Jucimara Tarricone coube o papel de fomentar o debate, na noite de homenag<strong>em</strong> a Nunes. Jucimara<br />

é autora da tese (no prelo) Hermenêutica e crítica: o pensamento e a obra de Benedito Nunes, defendida<br />

no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, e seu texto, “O<br />

perfil da linguag<strong>em</strong> crítica de Benedito Nunes”, foi pensado como contraponto à exposição anterior, de<br />

Sales Pinheiro. Seus comentários vão explorar dois aspectos que são compl<strong>em</strong>entares na busca por uma<br />

possível determinação da “dinâmica da leitura hermenêutica de Benedito Nunes”: interessa a Tarricone o<br />

modo como Nunes analisa o “fenômeno literário”, b<strong>em</strong> como o modo como “constrói seu discurso crítico”.<br />

São esses os dois eixos principais a orientar a discussão a respeito da crítica filosófica de Nunes.<br />

Com esses três primeiros textos, fecha-se a homenag<strong>em</strong> formal, mas o ex<strong>em</strong>plo do mestre paraense<br />

segue sendo inspirador nas d<strong>em</strong>ais contribuições, que resultam das outras sessões de nosso II Colóquio.<br />

Correspond<strong>em</strong> às palestras de pesquisadores do <strong>GeFeLit</strong> e convidados. O espírito de fronteira permanece,<br />

com todos de algum modo transitando entre dois mundos, e é dessa circulação que t<strong>em</strong>os os relatos.<br />

Cicero Cunha Bezerra, leitor dos neoplatônicos, investiga <strong>em</strong> “Neoplatonismo, mística e poesia: do<br />

dizível ao indizível” as relações entre mística e poesia. Seu ponto de partida é a crença de que “a filosofia<br />

e a literatura compartilham de uma mesma tarefa, a saber: revelar, mediante as metáforas e os simbolismos,<br />

a existência de uma ord<strong>em</strong> do mundo que não se deixa abarcar, precisamente, por nenhuma inteligibilidade”.<br />

O neoplatonismo é um contexto perfeito para a verificação dessa concepção, se não for mesmo<br />

o berço de tal pensamento. Como nos ensina Cicero, com o neoplatonismo a poesia é reabilitada, e ganha<br />

“estatuto de representação daquilo que supera toda representação”. Também a mística, nesse sentido,<br />

v<strong>em</strong> a ser tomada como forma de conhecimento, e mais: o conhecimento que se obtém, nas operações


A PALO SECO<br />

6<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

tanto da mística quanto da poesia, é o que se faz a contrapelo do logos, é como que o negativo da razão.<br />

Por isso a busca do indizível, do que está além da fronteira do logos, pode vir a ser o imperativo nessas<br />

duas formas de desuso da razão.<br />

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz investiga a m<strong>em</strong>ória, seu principal t<strong>em</strong>a de pesquisa e assunto<br />

central do texto que propôs ao Colóquio, “A escritura da m<strong>em</strong>ória enquanto fundamento identitário do eu”.<br />

As reflexões de Japiassú possu<strong>em</strong> como base uma “assertiva axiomática”: a afirmação de que a m<strong>em</strong>ória<br />

é “o princípio da unidade e continuidade do ser, base da personalidade individual”. É o passado, afinal, que<br />

dá “sentido à subjetividade”. Em torno desse mote, t<strong>em</strong>os o desenrolar de uma tradição de pensamento<br />

sobre a m<strong>em</strong>ória, ou seja, de uma filosofia da m<strong>em</strong>ória, com destaque para as ideias de Bergson. Uma vez<br />

assentados os marcos de uma tal filosofia, não se parte para a análise, porém para a criação de um texto<br />

m<strong>em</strong>orialístico – assim comparec<strong>em</strong>, lado a lado, uma filosofia e uma literatura da m<strong>em</strong>ória. Até que<br />

ponto elas se contaminam, é tarefa ainda a deslindar.<br />

Qu<strong>em</strong> também se vale da filosofia na determinação de seu objeto de estudo é Jacqueline Ramos,<br />

pesquisadora das artes do cômico. Em “O boné do bufão: comicidade e conhecimento”, o mesmo Bergson<br />

é forte referência teórica, ao lado de Freud e outros pensadores que já toparam encarar o riso a sério. Para<br />

além da teoria, t<strong>em</strong>os a identificação de uma modalidade peculiar, qual seja, “o cômico como procedimento”,<br />

detectada de modo ex<strong>em</strong>plar <strong>em</strong> Tutaméia, de Guimarães Rosa. Conforme Rosa d<strong>em</strong>onstra <strong>em</strong> um dos<br />

prefácios dessa obra, desprovido de seus el<strong>em</strong>entos risíveis, restará do cômico um modelo de estrutura<br />

que pode dar acesso a “mágicos novos sist<strong>em</strong>as de pensamento”. Dessa perspectiva, essa notável obra da<br />

literatura brasileira explorará as potencialidades de uma espécie de forma às avessas (o nada que é tudo),<br />

para a descoberta, tanto de novos enredos e modos de narrar, quanto de novos métodos de pensar. De<br />

fato, uma solução criativa como forma de exploração das relações possíveis entre literatura e filosofia.<br />

“Dissensos da pós-modernidade”, de Maria Aparecida Antunes de Macedo, alude ao debate que se<br />

instala no mundo acadêmico toda vez que esse mo(vi)mento(?) histórico(?) v<strong>em</strong> à baila. Antunes não<br />

pretende esgotar a polêmica, pelo contrário, l<strong>em</strong>bra que a pós-modernidade se caracteriza justamente por<br />

“sua natureza ‘dissensual’”. Nada mais adequado, portanto, do que confrontar duas visões diferentes sobre<br />

o fenômeno. E é este o objetivo desse texto: “ilustrar posições distintas [sobre a pós-modernidade] de<br />

dois pensadores que são Jürgen Habermas e Jean-François Lyotard”. Esses dois pensadores polarizam a<br />

discussão acadêmica <strong>em</strong> torno do t<strong>em</strong>a, por isso acompanhar os pontos divergentes de suas concepções<br />

é se situar de pronto no coração da polêmica. E assim t<strong>em</strong>os delineados com clareza os marcos principais<br />

da discussão, preparando o terreno para novas intervenções.<br />

Também prepara o terreno Dominique M. P. G. Boxus, <strong>em</strong> “Discurso e interdiscurso: a tradução da<br />

filosofia na literatura e nas artes”, que nos apresenta sua proposta – o “espírito” e o “projeto” – de disciplina<br />

para um aguardado curso de especialização <strong>em</strong> filosofia e literatura. São mencionados seus principais<br />

interesses de pesquisa, estabelecidos a partir de sua experiência profissional e seus compromissos<br />

de vida. O fato de ser belga, francófono, e morar no Brasil faz com que nunca se sinta totalmente <strong>em</strong> casa<br />

com a língua que utiliza. É o t<strong>em</strong>po todo tomado por uma necessidade de tradução como forma de superação<br />

de fronteiras. Por isso, certamente, “a probl<strong>em</strong>ática das fronteiras – e das identidades que elas visam<br />

a definir – ocupa todo o espaço” das ocupações acadêmicas de Boxus. Há ao mesmo t<strong>em</strong>po a vontade de<br />

expansão do conceito de tradução, donde a noção de “interdiscurso”, que será acionada, ao lado de outras,<br />

como “transcriação” e “transformação”. Aquilo que está para além (“trans”), b<strong>em</strong> como o que está no<br />

meio (“inter”), antes que as identidades se definam – diríamos que é esse “entrelugar” (esse “intermundo”)<br />

que Dominique propõe frequentar (e traduzir), no diálogo que como literato entabula com a filosofia.<br />

Já no texto a seguir, “Peirce e o método dos detetives”, Sergio Hugo Menna, especialista <strong>em</strong> questões<br />

de lógica e teoria do conhecimento, irá d<strong>em</strong>onstrar um modo de relacionamento possível da filosofia com<br />

a literatura. De um lado t<strong>em</strong>os os estudos de Peirce, mais especificamente a proposição de seu “método<br />

abdutivo”, método de construção de hipóteses plausíveis para a solução de probl<strong>em</strong>as ou enigmas. De<br />

outro lado, estão os detetives policiais, não só os dos livros, os do cin<strong>em</strong>a também, s<strong>em</strong> esquecer os novos


A PALO SECO<br />

7<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

heróis das séries de TV. Menna repara que esses investigadores nada mais faz<strong>em</strong> do que aplicar a abdução<br />

(que chamam de dedução) para resolver seus mistérios. El<strong>em</strong>entar. Como ex<strong>em</strong>plo, realiza-se a análise de<br />

um episódio de Sherlock Holmes. Conclui-se que o método desenvolvido por Peirce permite avaliar com<br />

maior consistência a performance dos detetives da ficção.<br />

Por fim, fechando a revista, t<strong>em</strong>os a contribuição de Fabian Pineyro, “Realidade e ficção e ensaio e<br />

conto <strong>em</strong> Borges”. Fabian, formado <strong>em</strong> letras e com mestrado <strong>em</strong> sociologia, é um desses leitores irrecuperáveis<br />

de Borges. Ao comentar dois famosos relatos do inigualável escritor argentino, chama a atenção<br />

para a inversão dos gêneros textuais operada nesses textos. Onde se espera o ensaio, ou seja, o texto<br />

sério, científico, voltado para a realidade, encontra-se o conto, a pura invenção literária. E vice-versa.<br />

Embaralhar as fronteiras é uma estratégia da ficção borgiana, mas não só. A dissolução da tradicional<br />

tipologia dos textos teria também o condão de sugerir a verdadeira ficção que existe como sustentáculo de<br />

nossa noção de realidade.<br />

Aí se encerra este novo número de A Palo Seco, súmula e radiografia do que houve <strong>em</strong> nosso II Colóquio.<br />

Fica a expectativa de que o contato entre as fronteiras continue aquecido, aguçando os sentidos de uma<br />

transa s<strong>em</strong> igual.


Poesia e filosofia: uma transa*<br />

8<br />

Benedito Nunes<br />

Cantar e pensar são os dois troncos vizinhos do ato poético<br />

Heidegger<br />

Neste estudo <strong>em</strong>pregamos o termo “poesia” principalmente no sentido estrito de composição verbal,<br />

vazada <strong>em</strong> gênero poético, tal como isso se entende desde o século XVIII, mas designando, também, no<br />

sentido lato, o el<strong>em</strong>ento espiritual da arte. Por sua vez, “filosofia” designa, seja o pensamento de cunho<br />

racional, seja a elaboração reflexiva das concepções do real e de seu conhecimento respectivo. Fica estabelecido<br />

que o primeiro sentido de poesia não fica restringido ao verso; acompanha o poético do romance,<br />

do conto e da ficção <strong>em</strong> geral. Também o significado do vocábulo “filosofia” se estende do sist<strong>em</strong>a e da<br />

elaboração reflexiva à denominação dos escritos, textos ou obras filosóficas que os formulam.<br />

Mas parece-nos impossível determinar, antecipadamente, com precisão, os significados dessas duas<br />

palavras. Entend<strong>em</strong>os que o exame das relações entre os dois campos <strong>em</strong> confronto trará outros aspectos<br />

de tais significados, numa s<strong>em</strong>ântica mais específica do que a anteriormente assentada. O que se explica<br />

pelo caráter histórico do confronto, graças ao qual o decurso do exame <strong>em</strong>preendido neste trabalho corresponde<br />

a um certo curso de sua matéria, que ex<strong>em</strong>plificamos nos tópicos adiante abordados.<br />

O primeiro diz respeito à tradição das belas letras, relativa aos gêneros a que nos referíamos, r<strong>em</strong>oldada,<br />

mal terminava o século XVIII, pelo conceito de “literatura universal”, <strong>em</strong>ergente num dos escritos de<br />

Goethe (1827-1828) sobre o futuro do gênero humano: “estou persuadido que uma literatura universal<br />

está se formando”. Pod<strong>em</strong>os ver nesse prognóstico goethiano um dos sinais do aparecimento da “literatura<br />

como tal”, de que nos fala Michel Foucault <strong>em</strong> Les mots et les choses, enquanto compensação que o<br />

campo do saber da época, o “campo epist<strong>em</strong>ológico” – redimensionado pela linguística, biologia e economia<br />

enquadrando o incipiente trabalho das ciências humanas –, ofereceria ao nivelamento objetificante<br />

da linguag<strong>em</strong>. De qualquer maneira, essa “literatura como tal”, forma específica, separada, de linguag<strong>em</strong>,<br />

* Também publicado na antologia Ensaios filosóficos, organizada por Victor Sales Pinheiro (São Paulo: Martins Fontes, 2010).


A PALO SECO<br />

9<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

já tinha <strong>em</strong> face de si uma filosofia metafisicamente alquebrada, depois das três Críticas kantianas, às<br />

vésperas, portanto, da gestação quase simultânea do romantismo, da estética do idealismo germânico.<br />

Antes, muito antes, na Idade Média, falava-se não <strong>em</strong> estética ou poética, mas <strong>em</strong> retórica e gramática.<br />

Havia então uma poesia sagrada, escrita <strong>em</strong> latim pelos clérigos, e outra profana dos leigos, como os<br />

trovadores, escrita <strong>em</strong> língua vulgar, ambas aproveitando o rico filão neoplatônico da poesia e da prosa,<br />

oriundo da filosofia cont<strong>em</strong>plativa de Plotino, que se estenderia do classicismo renascentista até o século<br />

barroco, e que, como a anterior obra de Dante comprova, não d<strong>em</strong>orariam <strong>em</strong> confrontar-se com a racionalidade<br />

abelardiana das disputatio, serva no século XIII da teologia cristã. A escolástica de Tomás de Aquino<br />

vedava à filosofia contradizer as verdades teológicas, a cuja sustentação deveria fornecer apoio lógico,<br />

mediada pela poética da expressão figural.<br />

No século XVIII, o alquebramento da metafísica significava a impossibilidade da teologia racional ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po que a possibilidade de traspasse do poético no teológico, já por conta da liberdade de<br />

imaginação do poeta romântico. Mesmo <strong>em</strong> Goethe, para qu<strong>em</strong> a Crítica do juízo, de Kant, fora uma tábua<br />

de salvação intelectual, a poesia apelava para a autenticidade dos sentimentos individuais. O poeta, para<br />

ser bom e verdadeiro, deveria ser fiel às suas vivências (Erlebnisse), palavra esta que o criador do Fausto<br />

terá sido um dos primeiros a <strong>em</strong>pregar no plano artístico ou estético.<br />

Essa concepção goetheana está mais afinada como nosso ponto de vista acerca da poesia quase que<br />

inteiramente reduzida ao genérico na época moderna. Na filosofia – seja este o último tópico – a metafísica,<br />

<strong>em</strong> contínuo alquebramento como ciência que era, está hoje <strong>em</strong> recesso ou <strong>em</strong> metamorfose na base<br />

do reconhecimento, que Kant lhe deu, de permanente disposição do espírito humano.<br />

Pod<strong>em</strong>os distinguir três tipos de relações entre filosofia e poesia, mantendo as acepções preliminares<br />

que <strong>em</strong>prestamos a essas duas palavras: disciplinar, supradisciplinar e transacional.<br />

O primeiro tipo, que sintetiza a concepção corrente sobre o assunto, une a tradição clássica à heg<strong>em</strong>onia<br />

da estética na época moderna, que culminou na estética de Hegel. Cumprindo tarefa preliminar da<br />

estética, a filosofia se <strong>em</strong>penha <strong>em</strong> conceituar a poesia, <strong>em</strong> determinar-lhe a essência, para ela um objeto<br />

de investigação, que recai, como qualquer outro, <strong>em</strong> seu âmbito reflexivo e rico. Unilaterais, as relações<br />

de caráter disciplinar são também unívocas: Poesia e filosofia se apresentam, de ant<strong>em</strong>ão, como cidades<br />

separadas – aquela pertencente ao domínio da criação verbal, da fantasia, do imaginário, esta ao do<br />

entendimento, da razão e conhecimento do real. Formariam, portanto, diferentes universos de discurso, a<br />

filosofia movida por um interesse cognoscitivo, que tende a elevá-la, mediante a elaboração de conceitos,<br />

acima da poesia, dessa forma sob o risco de ser depreciada como ficção e, assim, excluída do rol das<br />

modalidades de pensamento. A poesia é considerada inferior ao saber conceptual da filosofia, como pensamento<br />

que a supera explicando-a ou compreendendo-a. Tal superação ocorreria duplamente no plano<br />

cognoscitivo, pela explicação ou compreensão que a poesia recebe da filosofia e pela superioridade do<br />

conhecimento conceptual in genere que a essa última compete levar a cabo.<br />

Nestas últimas formulações, <strong>em</strong>bora de maneira muito precária e esqu<strong>em</strong>ática, reconstituímos o raciocínio<br />

de Hegel <strong>em</strong> suas Lições de estética, repetido por quantos limitam as relações que estamos apreciando<br />

a esse primeiro tipo, o disciplinar, súmula da tradição clássica, iniciada <strong>em</strong> Platão, e que consagra a<br />

superioridade hierárquica do filosófico sobre o poético.<br />

Basta consultarmos A república. Lá está afiançado, naquela passag<strong>em</strong> do Livro X a respeito dos três<br />

leitos, um fabricado por Deus, o segundo pelo carpinteiro e o terceiro pelo pintor, o caráter ilusório, de<br />

simulacro, das representações artísticas ou poéticas:<br />

Logo, pintor, carpinteiro, Deus: aí t<strong>em</strong>os os três mestres das três espécies de leito.<br />

– Sim, três.<br />

[...]<br />

– Aceitas que o design<strong>em</strong>os (Deus) pelo nome de criador ou coisa parecida?<br />

– Fora justo, observou, por haver originalmente criado isso como tudo o mais.


A PALO SECO<br />

– E o carpinteiro? Dar-lhe-<strong>em</strong>os nome de fabricante do leito?<br />

– S<strong>em</strong> dúvida.<br />

– B<strong>em</strong>; e o pintor, será também obreiro e fabricante desse mesmo objeto?<br />

– De forma alguma.<br />

– Então, como designarás tua relação com o leito?<br />

10<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

– Quer parecer-me, disse, que a designação mais acertada seria a de imitador daquilo que os outros são obreiros.<br />

– Que seja, lhe disse. Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastado da natureza.<br />

– Perfeitamente, respondeu.<br />

– Ora, exatamente como ele encontra-se o poeta trágico, por estar, como imitador, três graus abaixo do rei e da verdade,<br />

o que, aliás, se dá com todos os imitadores.<br />

[...]<br />

– Logo, a arte de imitar está muito longe da verdade, sendo que por isso mesmo dá a impressão de poder fazer tudo, por<br />

só atingir parte mínima de cada coisa, simples simulacro… (597b, 598c).<br />

Há, na verdade, nesse trecho do último livro da República, que justifica o tão decantado episódio, no<br />

Livro III, da expulsão dos poetas da nova Pólis que Platão fundava nesse Diálogo, sob a égide da ideia de<br />

justiça, toda uma tática ardilosa do raciocínio platônico para identificar os responsáveis por tal afastamento<br />

da verdade. Primeiramente se responsabiliza o pintor; depois a responsabilidade passa ao poeta<br />

trágico que, imitando os sentimentos e paixões intensos, se afasta da verdade tanto quanto o outro. E<br />

<strong>em</strong>bora o poeta trágico não imite como o pintor a obra dos outros, ambos são colocados na mesma categoria<br />

do mimetés, que imitaria tanto a obra do rei, que é a ideia, o eîdos ou a essência, da qual está três<br />

graus distanciado, quanto as coisas do mundo sensível e os objetos fabricados, dos quais apenas produz o<br />

simulacro, ou seja, uma duplicada ou triplicada imag<strong>em</strong> que é um correspondente ilusório da modelar<br />

verdade suprassensível ou da verdade supr<strong>em</strong>a, atinente, segundo Aristóteles, à filosofia primeira ou<br />

metafísica. Mas note-se: de pintor não se falara no Livro III e agora o inquérito ontológico – pois que se<br />

trata de uma inquisição <strong>em</strong> nome do real verdadeiro – junta o pintor ao poeta que é senão o poeta trágico.<br />

O ex-poeta Platão condena os trágicos, autores de “discursos mentirosos”, filhos todos da retórica, estimada<br />

como requintada culinária verbal preparada pelos sofistas – da qual procedia o Elogio de Helena, de<br />

Gorgias de Letonium –, mas poupa seus colegas de outra veia, aqueles a que se reporta no Íon, os vates<br />

inspirados, porta-vozes dos deuses, impulsionados pela mania que os torna possessos, entusiásticos,<br />

plenos da divindade e por ela arrebatados do mundo das aparências à superior região essencial da verdade.<br />

Mas o ardil do raciocínio platônico vai muito mais longe <strong>em</strong> suas consequências filosóficas.<br />

É que Platão, na passag<strong>em</strong> comentada, pretende sepultar, jogando uma pá de cal <strong>em</strong> cima, a “velha<br />

querela ente poesia e filosofia” – também querela entre filosofia e retórica – da qual está tratando. Mas<br />

ele omite ou quer omitir o fato de que a velha é a poesia, tão velha quanto a retórica, e que a querela a que<br />

se refere é nova como a filosofia. Platão resolve-a por um golpe de força ontológico: o rei, que manda e<br />

comanda, chefia um mundo hierarquizado; o pensamento verdadeiro reside no ponto mais alto desse<br />

mundo, até onde pode subir o filósofo por meio da escada da dialética ascensional; no primeiro degrau<br />

ficam a arte e a poesia trágica, s<strong>em</strong> capacidade de ascensão e por isso subordinadas hierárquicas do<br />

primeiro.<br />

Arthur Danto resume do seguinte modo a tática ou o ataque platônico:<br />

Há dois estágios do ataque platônico. O primeiro […] consiste <strong>em</strong> estabelecer uma ontologia na qual a realidade está<br />

imunizada contra a arte. O segundo estágio consiste o tanto quanto possível <strong>em</strong> racionalizar a arte, de tal modo que a<br />

razão possa colonizar o domínio dos sentimentos, o diálogo socrático sendo uma força dramática de composição, cuja<br />

substância é a razão exibida como abrandando a realidade, pela sua absorção nos conceitos.


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

Estabelecimento de uma ontologia e racionalização da arte correriam paralelas. Não será, portanto,<br />

exagerado concluir, como Arthur Danto, que a filosofia teria conquistado sua identidade própria resolvendo<br />

sua velha-nova querela com a poesia, <strong>em</strong> detrimento desta.<br />

Vinte e três séculos depois, Hegel, no fastígio de sua Estética, mesmo depois de ter colocado a arte na<br />

região do espírito absoluto, junto com a religião e a filosofia, homologaria a decisão platônica. Agora é a<br />

dialética da compl<strong>em</strong>entação dos opostos que coloca a poesia na etapa romântica do desenvolvimento<br />

artístico, mas no cume do sist<strong>em</strong>a das artes, feita arte geral, que a todas sumariza, capaz de tudo representar,<br />

conectada à música pela sonoridade e pelo ritmo da palavra. Mas sintetizando todas as artes, ela,<br />

poesia, ingressa, pela forma e pelo conteúdo, pela proximidade da palavra ao conceito, no el<strong>em</strong>ento genérico<br />

do pensamento, <strong>em</strong> obediência a um processo de desenvolvimento encetado na arquitetura, e que<br />

nela alcança o seu mais alto ponto ascensional. Mas, nesse ponto elevado, a poesia já foi superada pelo<br />

pensamento dialético que moveu todo o processo e que a pôs no seio da filosofia hegeliana, onde a<br />

realidade não é apenas objeto de apresentação (Darstellung) mas de conhecimento, como totalidade concebida,<br />

pensada pelo espírito.<br />

A estética hegeliana celebra, portanto, a final vitória da filosofia sobre a poesia. A poesia cai derrotada<br />

nos braços da filosofia, que passará a gerir o seu sentido. Isso não quer dizer, entretanto, que todo cuidado<br />

filosófico pela poesia seja nocivo a esta, como no-lo prova o uso, pela crítica literária, de certos conceitos<br />

procedentes da filosofia, a ex<strong>em</strong>plo dos utilizados por Northrop Frye <strong>em</strong> seu Anatomy of criticism e por<br />

Ken<strong>net</strong>h Burke <strong>em</strong> sua Philosophy of litterary form.<br />

Enquanto este último desvincula o alcance do significado poético da alternativa lógica binária entre o<br />

verdadeiro e o falso, aquele, reexaminando o princípio da poliss<strong>em</strong>ia na Divina comédia, que Dante invoca<br />

na apresentação-dedicatória de sua obra ao Can grande de Scala, e que considera como “um fato estabelecido”,<br />

afirma, por um lado, a dependência desse significado aos d<strong>em</strong>ais no qual aparece, como a sua<br />

dianoia e o seu ethos, ou, no caso particular de um texto narrativo, o seu mythos. Essa caracterização é,<br />

s<strong>em</strong> dúvida, neo-aristotélica, no sentido de ser uma inteligente retomada de el<strong>em</strong>entos constitutivos da<br />

poética do Estagirita. Porém, quando se volta para o nexo do significado poético com o real ou com o<br />

verdadeiro, Northrop Frye lhe defere, recorrendo à lógica s<strong>em</strong>ântica, o status de hipotético, tanto quanto,<br />

<strong>em</strong> tal especificação, hipotético coincide com imaginário.<br />

Será preciso, portanto, separar da relação disciplinar, que é s<strong>em</strong>pre de subordinação hierárquica, a<br />

simples aplicação avulsa de conceitos filosóficos instrumentais, que pode ser esclarecedora para a poesia<br />

n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre absorvendo-a no domínio conceptual de uma doutrina ou de um sist<strong>em</strong>a. Em nenhum dos dois<br />

autores t<strong>em</strong>os uma filosofia da poesia, isto é, uma filosofia que incorporasse a poesia conceptualmente.<br />

Os primeiros românticos al<strong>em</strong>ães, focalizando os quais poder<strong>em</strong>os entrever o segundo tipo de relação, a<br />

extra ou supradisciplinar, defenderam a incorporação mútua das duas disciplinas, de tal modo que uma<br />

fecundasse a outra.<br />

Se hesitamos entre duas expressões, extra ou supradisciplinar, para nomear esse segundo tipo, dev<strong>em</strong>os<br />

a hesitação à circunstância de que entre os românticos al<strong>em</strong>ães, por volta de 1795, quando Friedrich<br />

Schlegel escreveu aforismos para o Athenaeum e Novalis projetou a sua Enciclopédia, as disciplinas todas,<br />

inclusive e principalmente filosofia e poesia, para não falarmos da religião, da ciência e da política,<br />

foram desvinculadas de seus tradicionais moldes clássicos, e reexaminadas num espírito de suspensão,<br />

de epokhé, inspirada <strong>em</strong> provisório mas arrojado ceticismo. Por esse lado, caberia qualificar o nexo que<br />

perseguimos como extradisciplinar. Mas, considerando-se que esses mesmos românticos, autorreconhecidos<br />

devedores da Crítica do juízo, de Kant (1790), da Teoria da ciência, de Fichte (179?), e do Bildungsroman,<br />

de Goethe, Wilhelm Meister, participaram, como românticos, da elaboração do idealismo germânico,<br />

que os levava nas asas da liberdade do ideal, acima do real, na direção do suprassensível, talvez conviesse<br />

mais adotarmos o trans <strong>em</strong> lugar do extradisciplinar. Foi como românticos, defendendo uma poesia universal,<br />

síntese dos gêneros, mas também como partidários de Fichte <strong>em</strong> filosofia, apelando para o eu como<br />

ponto originário do saber e, contra o princípio kantiano de que a intuição é somente sensível, para a


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

intuição intelectual, que esses poetas pensadores, igualmente receptivos ao ponto de vista da Crítica do<br />

juízo de que as belas artes são as artes do gênio enquanto imaginação produtiva, dilaceraram a disciplina<br />

normativa do classicismo nas letras.<br />

Quebrada essa subordinação hierárquica, a noção de gênio, para Kant só dominante na arte, excluindose,<br />

portanto, da ciência, vai, não obstante, tutelar tanto a produção poética quanto a filosófica. Graças à<br />

potência do gênio, a poesia, de diversificada unidade, une, onde quer que se manifeste, na Divina comédia,<br />

no teatro de Shakespeare e no de Calderón, postos <strong>em</strong> destaque pelos românticos naquela “literatura<br />

universal” acabada de fundar por Goethe, o interior espiritual e o exterior da natureza numa só aspiração<br />

ao infinito, fundada na reflexividade do eu. A filosofia será concebida sob esse mesmo padrão fichteano<br />

da extr<strong>em</strong>a reflexividade do sujeito, que se autoproduz produzindo o real, na medida <strong>em</strong> que intui intelectualmente,<br />

e que Schlegel e Novalis aplicaram à poesia romântica, expressamente definida pelo primeiro<br />

como universal e progressiva. De acordo com o aforismo schlegeliano, essa poesia do gênio, universal e<br />

progressiva, deveria ligar-se à filosofia, com a qual, porém, já estava conectada no âmago da mesma<br />

atividade do espírito garantida pelo eu, aspirante do infinito, e pela intuição intelectual, que forma os<br />

objetos no ato de concebê-los. “Toda a história da moderna poesia é um comentário progressivo ao curto<br />

texto da filosofia. Toda arte deve tornar-se ciência (Wissenschaft) e toda ciência tornar-se arte; filosofia e<br />

poesia dev<strong>em</strong> unir-se” (115). A intuição intelectual, uma impossibilidade do ponto de vista das três críticas<br />

kantianas, é a base <strong>em</strong> que assenta esse dever de união.<br />

Para os românticos al<strong>em</strong>ães da primeira hora, o nexo entre poesia e filosofia justificava um gênero<br />

misto de criação verbal, que nos daria obras de mão dupla, poéticas sob um aspecto e filosóficas por outro,<br />

a ex<strong>em</strong>plo daquela de Dante, do De rerum natura, de Lucrécio, e do Fausto de Goethe. Era um intercruzamento<br />

do filosófico e do poético <strong>em</strong> correspondência com a interligação do romantismo com o idealismo.<br />

Enquanto Schelling, no Sist<strong>em</strong>a do idealismo transcendental, direciona a filosofia poeticamente, Schlegel<br />

e Novalis direcionam a poesia filosoficamente. Em comum, visavam ao entrosamento de ambas, tentando<br />

legitimar produtos híbridos: filosofia poética e poesia filosófica, poetas-filósofos e filósofos-poetas. Mais<br />

tarde, a ironia de Válery recairia sobre esses compostos. Ele anotou num de seus Cahiers (Tel quel, II):<br />

“Confusion (Vigny, etc. …) C’est confondre un peintre de marines avec un capitaine de vaisseau (Lucrèce est<br />

une exception r<strong>em</strong>arquable)”. Hölderlin, um inconformista, à marg<strong>em</strong> da onda romântica, escreveu Hyperion,<br />

de certo modo, um romance filosófico, que apela para a intuição intelectual, nutriz do pacto entre a arte e<br />

a filosofia para o idealismo germânico. Nesse híbrido, a filosofia estará <strong>em</strong>bebida num t<strong>em</strong>a poético – o da<br />

viag<strong>em</strong> como retorno ao país nativo, ao lugar da morada, ao lar, que de outro modo serviu a Novalis para<br />

defini-la: “A filosofia é propriamente uma nostalgia do lar, um impulso para regressar ao lar <strong>em</strong> toda parte”.<br />

Mas os el<strong>em</strong>entos desses híbridos não se aliavam s<strong>em</strong> tensão: os resultados do hibridismo não eram de<br />

conciliação, mas de oposição e de antagonismo. No entanto, a poesia, separadamente, convertia-se, por<br />

ser a “representação do fundo da alma” ou “a arte de pôr <strong>em</strong> movimento o fundo da alma” (1367, 1370),<br />

num meio de conhecimento superior à ciência, como propugnava Novalis, de acordo com mais de uma<br />

passag<strong>em</strong> de sua Enciclopédia.<br />

Estudando Kant e os idealistas, o romântico inglês Coleridge, para qu<strong>em</strong> Shakespeare era o poetafilosófico<br />

e Platão o filósofo-poeta, não se <strong>em</strong>baraçaria com as abstrações e com as contradições que<br />

torturam os filósofos puros: a prestimosa poesia logo haveria de corrigi-las com a sua sensível concretude<br />

devida à imaginação, que nela supria a intuição intelectual, provedora maior da construção filosófica do<br />

idealismo, e a qual Coleridge se esmerou <strong>em</strong> caracterizar <strong>em</strong> sua Biographia literária, depois de aproximar-se<br />

de Kant e Schelling, seus mestres <strong>em</strong> filosofia, qualificando-a de criadora (imagination) e distinguindo-a<br />

da simples fantasia. “What shocks the virtuous philosopher, delights the camaleon poet”, afirmava<br />

outro romântico britânico, Keats. O filósofo é virtuoso porque aplica o seu entendimento num só ponto<br />

para alcançar resultado coerente, fundado <strong>em</strong> razões que o habilitam à pretensão de verdade. Camaleão é<br />

o poeta: muda como sua obra enquanto nela se transmuda, porque a imaginação o conduz (finge ou mente<br />

quanto enuncia ou diz). E a imaginação é cambiante; aplica-se a vários pontos do real; mas a concepção do


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

romantismo pretenderia que alcançasse uma verdade superior à da ciência e à da filosofia. Eis que a<br />

relação extra ou supradisciplinar inverte a posição dos termos: a poesia é superior a essas duas. “Quanto<br />

mais poético, mais verdadeiro”, dizia Novalis. Nas alturas <strong>em</strong> que poetaram e filosofaram, os românticos<br />

uniram tão estreitamente as parceiras de que estamos tratando, que viam s<strong>em</strong>pre o filosófico imanente ao<br />

poético e vice-versa. Seria o mesmo que dizer que um corre para o outro, como rios confluentes. Na verdade,<br />

porém, essa confluência não é a regra. Há poetas sensibilizados pela filosofia, como, entre outros, o foi<br />

declaradamente um Fernando Pessoa, e outros não. Como filósofos há indiferentes à poesia como não o<br />

foram Wittgenstein ou Heidegger. O que importa, a nosso ver, é destacar essa polarização quando ela<br />

existe, e principalmente, tentar compreender como e por que isso se dá.<br />

É certo, contudo, que, pelo substrato greco-latino de nossa cultura intelectual, a filosofia stricto sensu<br />

pressupõe a poesia historicamente, pois que esta, mais velha, nasceu antes da outra (Platão estudou os<br />

po<strong>em</strong>as de Homero), e formalmente, pois no sentido mais geral a poesia mergulha no el<strong>em</strong>ento originário<br />

da poiesis, seja que a tom<strong>em</strong>os como potência geradora do mito, seja que a tom<strong>em</strong>os como potência verbal<br />

formadora dos enunciados, verdadeiros e/ou falsos, que o discurso filosófico articula. Assim, nesse sentido<br />

preliminar restrito e só nele, toda filosofia é poética.<br />

O que reforça essa tese é a nascente mítica da filosofia. A antecedência antes referida da poesia recua,<br />

de fato, aos mitos cosmogônicos e trágicos dos gregos antigos, com os quais ela aparece associada desde<br />

o começo, e dos quais a filosofia se separa por um movimento de ruptura que lhe conferiu identidade. A<br />

velha querela a que se referiu Platão é também a contenda com o mito, que, pode-se dizer, partejou a<br />

filosofia (aí está o trabalho de Cornford, From religion to philosophy) e cuja força de persuasão ele sopesou<br />

e quis utilizar.<br />

Um pensador anticartesiano do século XVIII, Vico, antevira esse parto, quando, antecipando-se ao conhecido<br />

From religion to philosophy, de Cornford, postulou a prioridade da linguag<strong>em</strong> poética, reguladora<br />

entre os povos da primeira forma de saber, <strong>em</strong> que também englobou o mito, fonte de uma “metafísica<br />

sentida e imaginada”, regida pela lógica dos tropos, na qual se destaca a metáfora, que v<strong>em</strong> a ser “uma<br />

pequena fábula”, ainda viva nos primeiros poetas-filósofos, que foram os pré-socráticos.<br />

Filósofos, os pré-socráticos pensaram o ser e o vir a ser como poetas que escreviam <strong>em</strong> versos, a<br />

ex<strong>em</strong>plo de Parmênides, ou <strong>em</strong> aforismo sibilinos, como Heráclito. A partir deles, nenhuma filosofia viveria<br />

mais s<strong>em</strong> metáfora. E as metáforas dos pré-socráticos eram mitos revividos: vejam-se o rio e o fogo de<br />

Heráclito. A caverna de Platão pode ser interpretada como alegoria da realidade dualista, mas é antes de<br />

tudo um antro cavernoso, como a morada de Circe: um lugar crônico, s<strong>em</strong>elhante à infernal morada de<br />

D<strong>em</strong>eter eleusina. Além disso, a escrita pré-socrática, conforme mostra Averincev (Nas fontes da terminologia<br />

filosófica europeia), está repassada por uma corrente paronomástica tão forte quanto a da poesia<br />

moderna. Toda verdade pronunciada, conforme martelou Nietzsche, deixa atrás de si “uma multidão movente<br />

de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, <strong>em</strong> suma, uma soma de relações humanas<br />

poética e retoricamente realçadas, transpostas, ornadas…”.<br />

Assim, <strong>em</strong> atenção a essa prioridade, não é descabido afirmar que toda filosofia é poética. Mas a<br />

proposição conversa – toda poética é filosófica – não vale, a menos que vis<strong>em</strong>os, por ex<strong>em</strong>plo, a Divina<br />

comédia, a que uma intenção especulativa, regida pela escolástica, alenta. Para Jean de Meung, na Idade<br />

Média, poetar é “travailler en philosophe”. O trabalho como filósofo era então feito num espírito de concordância<br />

do poeta com as verdades teológicas a expor, segundo o prévio contato admitido “entre o hom<strong>em</strong><br />

e o divino” que possa ser objeto de comunicação humana, conforme diz Eugenio Garin.<br />

Fora desse prévio e tácito acordo, a intenção especulativa pode ser, e <strong>em</strong> muitos casos é, tão prejudicial<br />

à poesia quanto a intenção de poetar t<strong>em</strong> sido desastrosa para a filosofia, quando o filósofo não é poeta<br />

e quando o poeta não é filósofo. Nos momentos <strong>em</strong> que Victor Hugo especula, evola-se o filósofo antes do<br />

poeta, de qu<strong>em</strong> fica alguma coisa nos versos que sabe fazer. A poesia metafísica, tentada no século XVII<br />

<strong>em</strong> língua inglesa, pode-ser boa, mas a científica, tentada no século XIX, mostra-se tão rebarbativa quanto<br />

a filosófica, salvo as honrosas exceções.


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Parece que estamos voltando, sob novo ângulo, ao assunto do poeta-filósofo, tantas vezes vexatório.<br />

Repetir<strong>em</strong>os Valéry? O poeta-filósofo ou é um híbrido, mas como um duplo do artista, ou é a expressão<br />

indicativa para um terceiro tipo de relação entre a poesia e a filosofia que chamar<strong>em</strong>os de transacional.<br />

É dessa relação transacional que vamos nos ocupar agora, com o cuidado de não tomar o poeta-filósofo<br />

como uma entidade pessoal, posta no mostruário dos profissionais da inteligência, caso <strong>em</strong> que a inteligência<br />

combinaria o intuitivo com o conceptual de forma imprevisível. Mas tom<strong>em</strong>o-lo, sim, como um<br />

centro de transação, de passag<strong>em</strong>, de uma para outra das nossas ilustres comparsas <strong>em</strong> confronto.<br />

Acho que ninguém melhor do que Juan Mairena, professor espanhol de retórica na década de 20, um<br />

heterônimo do poeta Antônio Machado e como tal autor de interessantíssimas notas de aula, figurou, <strong>em</strong><br />

nome de um seu antigo mestre, o tipo de relação transacional: “Hay hombres, decia mi maestro, que van<br />

de la poética a la filosofia; outros que van de la filosofia a la poética. Lo inevitable es ir de lo uno a lo outro,<br />

en esto como en todo” (Juan de Mairena – sentencias, apuntes y recuerdos de un professor apócrifo).<br />

É o movimento de ir de uma a outra, portanto separadas, cada qual na sua própria identidade, s<strong>em</strong> que<br />

cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira, numa posição de superioridade ou inferioridade do<br />

ponto de vista do conhecimento alcançado ou da verdade divisada, que constitui aqui o essencial. Se<br />

vamos de uma para outra, quer isso dizer que elas não são contíguas, mas que, guardando distância,<br />

pod<strong>em</strong> aproximar-se entre si. A relação transacional é uma relação de proximidade na distância. A filosofia<br />

não deixa de ser filosofia tornando-se poética, n<strong>em</strong> a poesia deixa de ser poesia tornando-se filosófica.<br />

Uma polariza a outra s<strong>em</strong> assimilação transformadora.<br />

B<strong>em</strong> outra é a situação do poeta-filósofo como duplo do artista, para qu<strong>em</strong> o mundo só pode ser captado<br />

poeticamente. Nessa concepção, o ceticismo exerce relevante papel, quando, a ex<strong>em</strong>plo do que ocorre<br />

<strong>em</strong> Santayana, o conhecimento do real, invalidado, cede lugar à criação poética, que o mesmo filósofo<br />

distingue da ficção literária, arbitrária e fantasiosa, <strong>em</strong> sua crítica ao idealismo da época, para ele uma<br />

simples psicologia literária. “Toda filosofia britânica e al<strong>em</strong>ã é apenas literatura. O universo é um mundo<br />

cujo herói é o eu, e o curso da ficção (quando o eu é douto e animado) não contradiz sua essência poética”.<br />

Mas, se ao conhecimento do mundo se t<strong>em</strong> acesso poeticamente, a filosofia, <strong>em</strong> sua pretensão metafísica,<br />

só pode ser arte do pensamento ou, simplesmente, arte ou poesia – dirão, <strong>em</strong> uníssono, vozes tão<br />

discordantes como, de um lado, as de Nietzsche e Fernando Pessoa, e de outro, as dos neopositivistas e de<br />

certos filósofos analíticos.<br />

Em síntese, abandonando-se determinados traços diferenciais para garantia da brevidade, s<strong>em</strong> sacrificar<br />

o essencial, dir<strong>em</strong>os que os últimos, <strong>em</strong> conjunto, estimam que os enunciados verdadeiros possíveis<br />

decorr<strong>em</strong> do uso cognoscitivo da linguag<strong>em</strong>, que combina, na proposição, as funções de verdade com os<br />

estados de fato. Como essa combinação, concretizada nas afirmações científicas, falha nas teses metafísicas,<br />

é nulo o uso cognoscitivo destas; não é que careçam de sentido, mas desfalcadas estão da referência,<br />

para Frege o que assegura o valor veritativo do que enunciamos. Se, por isso, a filosofia perde o status<br />

de ciência, poderá ganhar o status de arte ou de poesia. Só que a maioria dos neopositivistas e analíticos<br />

atribui, no mínimo, à poesia uma função <strong>em</strong>ocional. Nada de conhecimento se encontra do lado artístico.<br />

Para Nietzsche, ao contrário, o artístico é o lado essencial do conhecimento. Por certo que ele rejeitou<br />

a metafísica, <strong>em</strong>bora tivesse começado por uma “metafísica artística”, que foi como se referiu ao seu A<br />

orig<strong>em</strong> da tragédia. O metafísico era, para ele, o avatar do padre, do asceta, e de qu<strong>em</strong> não ficaria longe<br />

o cientista. Mesmo os enunciados deste ainda são alentados pelo que há de artístico no pensamento; o que<br />

decide “não é o puro instinto de conhecimento, mas o instinto estético…” (Ph. Buch, 61). Em vez de prejudicar<br />

a filosofia, esse instinto, que move o poeta, a ela se associa e vivifica. Como poética, a filosofia não é<br />

menos verdadeira do que a ciência. O que é a verdade senão “uma multidão movente de metáforas…”?<br />

Mas a verdade, assim ondulante e arrebatada, não é menos um conduto do erro, da mentira. Os poetas<br />

ment<strong>em</strong> muito, também afirmava Nietzsche. Ment<strong>em</strong> e se comportam como loucos. O instinto estético,<br />

que é vital, os <strong>em</strong>purra contra a verdade objetiva e o normal da virtude satisfeita. Necessita-se da loucura<br />

e da mentira para viver. Mas a metafísica e a religião ment<strong>em</strong> como detentoras de uma verdade que não


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possu<strong>em</strong>. A mentira leal e, portanto, verdadeira é a mentira da arte, como afirmação trágica. Fernando<br />

Pessoa, que frequentou Nietzsche, e para qu<strong>em</strong> a filosofia constituía uma espécie de literatura, com a<br />

particularidade de poder “figurar mundos impossíveis” e mundos possíveis, todos igualmente verdadeiros<br />

e reais, não poderia senão concordar com esse entrançado e movente jogo de linguag<strong>em</strong>. Pois que, para<br />

Fernando Pessoa, mirando-se no seu espelho nietzscheano, o verdadeiro recalca poderosa vontade de<br />

fingir. Fingir é conhecer-se, dizia ele. No que também ecoa o que enunciou um seu cont<strong>em</strong>porâneo, Paul<br />

Valéry, a respeito da filosofia, como art de feindre. Como o poeta, o filósofo exerce a arte de “fingir a<br />

dúvida, fingir o universo, fingir uma ord<strong>em</strong> de pensamento, fingir Deus, fingir pensar aquele que pensa.<br />

São possíveis análogos aos do poeta e do pintor”.<br />

Mas voltando à linguag<strong>em</strong>: é ela, <strong>em</strong> que cab<strong>em</strong> a verdade, a mentira e o fingimento, o meio transacional<br />

do relacionamento entre o filosófico e o poético. Mas como?<br />

Trata-se, apenas, de reconhecer o truísmo de que pela linguag<strong>em</strong>, e pela linguag<strong>em</strong> escrita, <strong>em</strong> que o<br />

poético e o filosófico se elaboram para ser<strong>em</strong> lidos, transitamos de um a outro? Ou o meio transacional, de<br />

passag<strong>em</strong>, é o que possibilita a permeabilidade não entrevista entre ambos, como um parentesco admitido<br />

na Antiguidade e até o século XVIII, depois escondido com a separação disciplinar, e que de novo v<strong>em</strong><br />

à tona, com a ascensão da linguag<strong>em</strong> no horizonte do saber atual, como esse a priori material que condiciona<br />

o pensamento a fazer-se obra, ora literatura ora filosofia? Não basta, certamente, assinalarmos,<br />

com Habermas, a “guinada linguística”, historicamente detectável, <strong>em</strong> nossa cultura, se não lhe acrescentamos<br />

a ciência, que se fez consciência, de que o pensamento recebe a forma da língua, e que é essa<br />

forma, conforme sugere Benveniste, que possibilita todo enunciado e toda expressão possíveis.<br />

O meio transacional, de passag<strong>em</strong>, significa que a transa da linguag<strong>em</strong>, a mesma imperante no desencadeamento<br />

das palavras e de suas figuras no fenômeno da verdade, para Nietzsche, é o que aproxima, na<br />

distância, filosofia e poesia. Mas por que pode fazê-lo?<br />

A consciência da linguag<strong>em</strong> é uma consciência histórica; e a aproximação de sua transa é o que permite<br />

retirar do insulamento aquelas nossas duas protagonistas, que as mudanças do pensamento, nesta época,<br />

já tinham aproximado. Quanto ao par traumático de fenômenos, no horizonte da época, que ambas atingiu<br />

– o declínio da metafísica e a morte de Deus –, ocorre um paralelismo entre tais mudanças, mas não a sua<br />

concomitância.<br />

Em sua linguag<strong>em</strong> mista, sublime e vulgar, alta e baixa, a poesia moderna, com traços de religiosidade<br />

e antirreligiosidade, à busca, antes de qualquer outra das artes, de uma unio mística secularizada, interiorizou,<br />

desde os po<strong>em</strong>as de Baudelaire, a “morte de Deus”, depois do abalo produzido pela Crítica da<br />

razão pura, início da crise, na metafísica, da noção de substância (os paralogismos) e, consequent<strong>em</strong>ente,<br />

da alma, da unidade do sujeito e de sua imortalidade.<br />

No terreno filosófico, a culminância dessa crise, desligando o alto do baixo, o sensível do suprassensível,<br />

possibilitou a descoberta da vida e, logo a seguir, a descoberta da importância ontológica da parte<br />

baixa, subterrânea, pré-teórica, da experiência, <strong>em</strong> que a teoria se funda e acima da qual se eleva. Ocorre,<br />

então, a t<strong>em</strong>atização dessa parte irreflexiva, distinta do sujeito humano como consciência de si: a facticidade<br />

e a compreensão do existente enquanto Dasein, o que nos daria o grande bloco hermenêutico do<br />

pensamento cont<strong>em</strong>porâneo, construído por Heidegger e enriquecido por Gadamer. Compreendendo o<br />

mundo e a si mesmo como poder-ser, o Dasein não conhece antes de interpretar-se; o conhecimento<br />

funda-se no ser interpretado como “tal ou qual”, porque previamente compreendido na fila, no discurso<br />

que nos constitui como ente, e que possibilita os enunciados proposicionais. Mas a verdade pré-teórica,<br />

originária, não reside nesses enunciados e sim no desvelamento da compreensão, que é t<strong>em</strong>poral e histórica.<br />

A noção de verdade, assim deslocada de seu eixo proposicional para o âmbito do discurso, da linguag<strong>em</strong><br />

objetificável, como o solo comum de nossa experiência, enfeixando as possibilidades do conhecimento<br />

científico, do poético e do filosófico, é, igualmente, onde poesia e filosofia já se avizinham. Tal vizinhança<br />

sustenta a aproximação histórica atual das duas protagonistas.


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Conceituado como Dasein, e assim como poder-ser, fático nos sentimentos fundamentais da angústia,<br />

da alegria, do medo e do tédio, compreendendo-se no imediato de sua situação e nas possibilidades que<br />

o tornam t<strong>em</strong>poral e, portanto, ente do longínquo, jamais coincidente consigo mesmo, o hom<strong>em</strong> é, pela<br />

compreensão que o projeta no mundo, ser de imaginação e não apenas de razão. Será dispensável, agora,<br />

a apologia da imaginação feita por Coleridge. Salto no conceito e acima dele, a imaginação seria comum<br />

de dois, à poesia e à filosofia.<br />

Sob esse foco da linguag<strong>em</strong>-discurso também se poderá distinguir, além dos contrafortes poéticos<br />

(metáforas, etc.), os contrafortes retóricos dos escritos filosóficos – seus mecanismos de persuasão, tais<br />

como os circunlóquios de Descartes (estratégias, dir-se-á hoje), a ord<strong>em</strong> geométrica de Espinoza, as retificações<br />

kantianas (como nas Introduções à crítica do juízo), o pensamento “romanceado” de Hegel, principalmente<br />

na Fenomenologia do espírito (o herói e o mesmo Geist, conforme observaria Santayana), a<br />

belle écriture bergsoniana, o estilo journal intime de Kierkegard (compare-se com Amiel), os trocadilhos e<br />

paronomásias heideggerianas, seus gêneros (o tratado, o ensaio, o diálogo, frequente no Renascimento e<br />

nos séculos XVII e XVIII, <strong>em</strong> recesso no século XIX, e raro e ralo hoje), sua individualização num estilo, sua<br />

conformação verbal no todo de uma obra de linguag<strong>em</strong>. Disso tratou, com inexcedível acuidade, nos anos<br />

50, <strong>em</strong> sua Metaphilosophie, o injustamente esquecido Henri Lefebvre. Tenha-se <strong>em</strong> mente a retórica<br />

sartreana de longo hausto literário: começa num romance, La nausée, que precedeu o tratado L’être e le<br />

néant, o qual estabelece, com gasto s<strong>em</strong> usura de frases negativas sobre o ser e o não-ser (parodiadas por<br />

Raymond Quenau), uma ontologia dramática, com desdobramentos nas peças teatrais do filósofo.<br />

Heidegger, depois de Sein und Zeit, deu à filosofia a missão de “dialogar” com a poesia – que pensaria<br />

cantando, <strong>em</strong> ritmo. Para os filósofos, de um modo geral, esse diálogo é um diálogo limite, na fímbria da<br />

própria filosofia, e já para fora da lógica. Para os poetas, o diálogo com a filosofia é um diálogo de limiar,<br />

do batente das ideias para o trabalho de elaboração do po<strong>em</strong>a – Camões e os barrocos – absorvendo os<br />

neoplatônicos, Rimbaud, os gnósticos, Fernando Pessoa, Nietzsche, e tantos outros pensadores que ressurg<strong>em</strong><br />

filtrados na criação, depois de incorporados à experiência pessoal, histórica e cultural do poeta, ou<br />

seja, à sua interpretação compreensiva de si mesmo como ser no mundo.<br />

Assim, o movimento de vai e v<strong>em</strong> da filosofia à poesia e da poesia à filosofia r<strong>em</strong>onta à compreensão<br />

preliminar, linguageira do ser no meio do qual nos encontramos. E é por isso que “Na medida <strong>em</strong> que a<br />

filosofia se torna mais consciente da maneira pela qual o pensamento requer a linguag<strong>em</strong>, mais ela se<br />

aproxima da poesia…” (Waren Shibbles, Wittgenstein, linguag<strong>em</strong> e filosofia). Mas agora já sab<strong>em</strong>os por que<br />

o pensamento requer a linguag<strong>em</strong> interligada à fala, ao discurso, e que requerendo a linguag<strong>em</strong> já se<br />

interpretou nela. Inversamente, a poesia moderna, consciente de sua fatura verbal, como no-lo mostra a<br />

ocorrência nesta da t<strong>em</strong>atização predominante do ato poético, é a que mais se aproxima da filosofia. Não<br />

obstante, se poderá dizer, de um modo geral, tal o requerimento da linguag<strong>em</strong> sobre a nossa experiência de<br />

interpretantes, que para nós, leitores, a literatura pensa, não apenas no sentido da b<strong>em</strong> lograda tentativa<br />

de Macherey de extrair a filosofia implícita de certas obras literárias, como romances franceses dos séculos<br />

XVIII e XIX, mas, também, no sentido do efeito analógico, conversor, que o ato de sua leitura propicia,<br />

s<strong>em</strong>elhante à da súbita “iluminação”, ou, como diria Gerard Manley Hopkins, de um inscape, que nos leva<br />

para além de nós mesmos, do entendimento banal do cotidiano e para fora da couraça das ideologias.<br />

No entanto, Nietzsche e Fernando Pessoa têm razão: não há dúvida que os poetas ment<strong>em</strong> e fing<strong>em</strong><br />

muitas vezes, e muitas vezes, como já sabiam as musas que inspiraram a Hesíodo sua Tegonia, falam a<br />

verdade. E falam a verdade porque sab<strong>em</strong> que ment<strong>em</strong> e fing<strong>em</strong>. De qualquer modo, como observa Rasmussen,<br />

quando ocorr<strong>em</strong> nas palavras de um po<strong>em</strong>a, as verdades medidas pelo teor factual das proposições<br />

lógicas, que resist<strong>em</strong> no teste da verificação, são apenas acidentais.<br />

Mas de que verdade essencial pod<strong>em</strong> falar as obras da literatura, particularmente as poéticas, tanto no<br />

sentido estrito quanto no amplo, para o filósofo?<br />

Além das respostas, de Heidegger e de Paul Ricoeur, que têm caráter hermenêutico, merece consideração<br />

a do positivista heterodoxo, marginal, Wittgenstein, obtida pelo seu método de excludência lógica.


A PALO SECO<br />

17<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Heidegger exclui a poesia, que mobiliza as palavras, da literatura. Poesia e arte (e arte no que t<strong>em</strong> de<br />

poética) põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> obra, revelam a verdade do ser, escamoteada pela metafísica. Pondo-a <strong>em</strong> obra, a arte<br />

mostra a verdade do ser, torna-a visível ou audível, quebrando a banalidade do cotidiano. Também o faz a<br />

poesia por um dizer retrátil, que tanto fala quanto silencia; guardando a potência mítica do verbo, esse<br />

dizer extraordinário, não lógico, infenso à racionalidade técnica, é um pensamento poético e pós-metafísico,<br />

destinado a espraiar-se na vida, prover a dialogação futura entre os homens, à busca de um novo Deus<br />

num mundo poeticamente habitável. Aí o filósofo faz-se poeta, e o poeta profetiza. Não fosse poeta um<br />

homônimo de profeta.<br />

Em poucas palavras, a resposta de Ricoeur, cuja complexidade reflete a sua orig<strong>em</strong> polêmica (crítica do<br />

estruturalismo, na filosofia analítica, etc.) e que ressalta a autonomia do texto literário, organizado segundo<br />

gêneros, o discurso como obra, destinado a um leitor que o executa, é uma resposta s<strong>em</strong>ântico-hermenêutica.<br />

O lado s<strong>em</strong>ântico concerne ao plano da escrita, para onde passa o discurso como obra: subtraindo<br />

a escrita à relação dos interlocutores no discurso, e com ela suspendendo os referenciais correntes dos<br />

enunciados descritivos, afetos à verdade proposicional, o texto literário devolve ao leitor, com um novo<br />

referencial, o mundo de sua experiência pré-teórica, o mundo do texto. Autônomo é ainda o texto literário<br />

por desprender-se das intenções do autor, por isso podendo vingar o mundo do texto como texto do mundo.<br />

Por esse lado hermenêutico, a obra de discurso é capaz de dar-nos variações imaginativas sobre o real,<br />

como que (l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>o-nos de Northrop Frye) enunciados hipotéticos da ação humana, reveladoras do ethos.<br />

S<strong>em</strong> a literatura de ficção jamais teríamos conhecimento dos conflitos éticos e do <strong>em</strong>penho moral do<br />

hom<strong>em</strong>. Aqui o filósofo não é poeta, mas um hermeneuta da ficção.<br />

Concordando com Frege acerca do valor veritativo da referência, Wittgenstein negou o conhecimento<br />

ético, mas não a importância fundamental do <strong>em</strong>penho moral do hom<strong>em</strong>. Para ele, paradoxalmente, o<br />

Tractactus logico-philosophicus era uma introdução à ética. Introdução negativa: os enunciados sobre o<br />

b<strong>em</strong> ou a felicidade, que tend<strong>em</strong> a absolutizar-se, são insustentáveis e s<strong>em</strong> sentido. Não é possível escrever<br />

uma ética – disse-o Wittgenstein, numa conferência. Por quê? Porque não correspondendo a estados<br />

de fato, os juízos da ética seriam intraduzíveis, inexpressáveis, à falta de proposições que os asseverass<strong>em</strong>.<br />

“Sobre o que não pod<strong>em</strong>os dizer é melhor silenciar”. O ético, o religioso e o metafísico pertenceriam<br />

à categoria do indizível, isto é, daquilo que não pode ser articulado proposicionalmente. O indizível é o<br />

místico. “Das Mistische zeigt sich.” O indizível é o que só pode ser mostrado. Wittgenstein, leitor e adepto<br />

de Tólstoi, admirador de Trakl e Rilke, poria à conta da literatura, por excludência lógica, o que pode ser<br />

mostrado (dito numa forma de linguag<strong>em</strong> não proposicional): a verdade essencial relativa à ação humana,<br />

a verdade do ethos, de que a filosofia não pode falar. Mas pode a filosofia, ironicamente, s<strong>em</strong> omitir-se,<br />

falar dessa sua impossibilidade e, por meio dela, transar com a poesia.


Benedito Nunes, filósofo da literatura<br />

I<br />

Formação e amizades literárias<br />

18<br />

Victor Sales Pinheiro<br />

Doutorando <strong>em</strong> Filosofia pela UERJ<br />

O interesse intelectual de Benedito Nunes pelos livros começou muito cedo, desde a infância. Na adolescência,<br />

a paixão literária foi fecundada pela interação com amigos como Mário Faustino, Haroldo Maranhão<br />

e Max Martins, decisivos na descoberta de seu talento crítico e no desenvolvimento de sua<br />

personalidade intelectual. O intercâmbio de livros, acompanhado por discussões que os vivificam, valorizando-lhes<br />

a dimensão reflexiva que encerram, prenunciam o futuro filosófico de Benedito Nunes. A atividade<br />

literária do crítico começa, de fato, com as longas cartas que r<strong>em</strong>etia a Haroldo Maranhão, a respeito<br />

dos livros que trocavam. Aos poucos, o impressionismo se converterá <strong>em</strong> arrojado instrumental crítico,<br />

baseado numa compreensão filosófica da literatura como poesia, trabalho interior das palavras que desvela<br />

ao hom<strong>em</strong> seu modo de ser no mundo.<br />

Foi a convite de Haroldo Maranhão, que coordenava o Supl<strong>em</strong>ento Literário do jornal Folha do Norte,<br />

que Benedito Nunes começou a escrever regularmente artigos de crítica literária, s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong>perados de<br />

reflexão filosófica. Essa primeira experiência, que durou de 1946 a 1951, culminou com o ensaio “Cotidiano<br />

e morte de Ivan Ilitch”, <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ático <strong>em</strong> dois aspectos fundamentais da maneira com que Benedito<br />

Nunes procederá na sua trajetória crítica: o pendor filosófico de sua crítica literária e o estilo ensaístico<br />

que lhe permite mover-se dinamicamente entre a literatura e a filosofia, <strong>em</strong> intercâmbio.<br />

A famosa novela de Tolstói é introduzida de maneira oblíqua – o que se tornará uma característica<br />

marcante de sua forma expositiva –, articulada, desde o princípio, a uma questão de ord<strong>em</strong> filosófica, o<br />

probl<strong>em</strong>a da morte. Ainda s<strong>em</strong> mencionar a novela que lhe motiva o ensaio, Benedito Nunes caracteriza,<br />

filosoficamente, os indivíduos que viv<strong>em</strong> no estado irrefletido do senso comum, familiarizados e alienados


A PALO SECO<br />

19<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

na normalidade do cotidiano, o que os impede de aceder à dimensão metafísica da realidade. O núcleo do<br />

ensaio advém de uma preocupação religiosa cristã, alimentada pela leitura de Chestov e Landsberg, de<br />

redimensionamento da vida humana pela transcendência do indivíduo personalizado e conciliado com a<br />

morte pela busca de perfeição moral, que lhe plenifica a vida. Segundo Benedito Nunes, Ivan Ilitch, que<br />

antes vivia naquele “estado de ignorância [...] que oculta o sentido trágico da situação do hom<strong>em</strong> no<br />

mundo”, ilustra o movimento de ruptura com a banalidade cotidiana que lhe franqueia vivenciar o mistério<br />

da morte, através da “agonia” que “realiza o movimento de Fé e Esperança” e para o qual a morte seria um<br />

“sair da vida na direção de Deus” (Nunes, 1950).<br />

“Cotidiano e morte de Ivan Ilitch” aponta também para a forma dialógica e criativa da futura crítica de<br />

Benedito Nunes, que não permanece à sombra das obras que estuda, mas as toma como ponto inicial de<br />

uma reflexão que ganha força própria. Um questionamento de denso valor metafísico e até escatológico<br />

revela a voltag<strong>em</strong> especulativa do filósofo <strong>em</strong> florescimento:<br />

O sentimento de existir é um estado que se intercala entre dois mistérios: o do nascimento e da morte. É no intervalo<br />

entre dois mistérios que t<strong>em</strong> o seu lugar a realidade do existir. E essa realidade não é menos misteriosa pelo fato de se<br />

produzir num instante que é uma espécie de trégua, <strong>em</strong> que o mistério do nascimento nos entrega à vida e a morte se retrai<br />

para deixar-nos viver (Nunes, 1950).<br />

É sob o influxo de outro grande amigo, o poeta e crítico Mário Faustino, que Benedito Nunes prossegue<br />

na crítica literária de jornal, passando a contribuir com estudos filosóficos para o Supl<strong>em</strong>ento Dominical do<br />

Jornal do Brasil. Neste mesmo supl<strong>em</strong>ento, Benedito Nunes publicará um longo estudo sobre a única obra<br />

publicada <strong>em</strong> vida de Mário Faustino, O hom<strong>em</strong> e sua hora, de 1956, articulando o fundamento teórico, de<br />

Pound e Eliot, da poesia de seu amigo. A partir da década de 1960, com a morte pr<strong>em</strong>atura de Faustino, <strong>em</strong><br />

1963, Benedito Nunes será um dos responsáveis pela produção, organização, divulgação e estudo da sua<br />

obra poética e crítica. Com efeito, não só à biografia de Benedito Nunes pertenc<strong>em</strong> Haroldo Maranhão,<br />

Max Martins e Mário Faustino, mas também à sua bibliografia, já que o interesse que lhes dispensa desde<br />

jov<strong>em</strong> não se esgota na dimensão pessoal da amizade, mas a transcende para o plano intelectual da<br />

análise de suas obras, de que é um leitor privilegiado e um crítico atento. Benedito Nunes não só lhes<br />

acompanhou o desenvolvimento da obra, da sua concepção à sua finalização, como os estudou e divulgou,<br />

organizando, prefaciando, resenhando os seus livros, <strong>em</strong> muitos dos quais interveio partejando as ideias<br />

que os originam. Desde jov<strong>em</strong>, Benedito Nunes pôde interagir intelectualmente com escritores, realizando<br />

uma fértil relação entre crítico e escritores.<br />

A partir de então, consolida-se a militância cultural de Benedito Nunes, que passa a contribuir regularmente,<br />

com ensaios de filosofia e crítica literária, para A Província do Pará (entre 1956 e 1957), Jornal do<br />

Brasil (entre 1956 e 1961), O Estado de São Paulo (entre 1959 e 1982), Estado de Minas Gerais (entre 1963<br />

e 1974) e Folha de São Paulo (entre 1971 e 2006), s<strong>em</strong> prejuízo de inúmeras revistas acadêmicas, principalmente<br />

para a portuguesa Colóquio Letras (entre 1971 e 2000). Seus dois livros didáticos, Introdução à<br />

filosofia da arte, de 1966, e Filosofia cont<strong>em</strong>porânea, de 1967, foram escritos para a coleção Buriti, coordenada<br />

por Antonio Candido. Eles resultam da exposição metódica dos t<strong>em</strong>as filosóficos discorridos avulsamente<br />

nas páginas do Jornal do Brasil. Seu primeiro livro, O mundo de Clarice Lispector, de 1966, enfeixa<br />

ensaios publicados <strong>em</strong> O Estado de São Paulo, como o faz O dorso do tigre, de 1969, o primeiro a unir no<br />

flanco movediço da linguag<strong>em</strong> os seus dois grandes interesses, a filosofia e a literatura.<br />

II<br />

Universalismo e regionalismo


A PALO SECO<br />

20<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Os estudos de Benedito Nunes sobre autores paraenses patenteiam um traço universalista da sua obra.<br />

Reiteradas vezes, ele l<strong>em</strong>bra que “nenhum poeta anda sozinho, que poeta é ser de companhia, [pois] a<br />

poesia brota da poesia, o princípio de um poeta está <strong>em</strong> outros poetas”; por isso, na compreensão dos<br />

literatos paraenses, interessa-lhe relacioná-los às fontes da tradição local, nacional e ocidental que os<br />

animam, ligando, por ex<strong>em</strong>plo, Dalcídio Jurandir a Érico Veríssimo e Proust, Haroldo Maranhão a Mario de<br />

Andrade e Rabelais, Benedicto Monteiro a Inglês de Souza, Bruno de Menezes a Jorge de Lima e Mallarmé,<br />

Paulo Plínio Abreu a Augusto Frederico Schmidt e Rilke, Ruy Barata a Baudelaire e Homero, Mário Faustino<br />

a Cecília Meireles e Ezra Pound, Max Martins a Drummond e Dylan Thomas, Paes Loureiro a Bruno de<br />

Menezes e Maiakovski, Vicente Cecim a Nietzsche, Age de Carvalho a Max Martins e Rimbaud, Antonio<br />

Moura a João Cabral e Laforgue, Paulo Vieira a Mário Faustino. Leitor de Eliot, Benedito Nunes sabe do<br />

grande crítico e poeta inglês que:<br />

No poet, no artist of any art, has his complete meaning alone. His significance, his appreciation is the appreciation of<br />

his relation to the dead poets and artists. You cannot value him alone; you must set him, for contrast and comparison,<br />

among the dead (Eliot, 1999, p. 15).<br />

Desse modo, não se pode julgar um poeta isoladamente, mas deve-se incluí-lo no seio da tradição que<br />

alimenta a sua experiência literária individual. De fato, a obra de Benedito Nunes ratifica o juízo de Eliot:<br />

“Honest criticism and sensitive appreciation is directed not upon the poet but upon the poetry” (1999, p.<br />

17).<br />

Ao costurar a cadeia de influxos da tradição literária paraense, incluindo-a no contexto maior da literatura<br />

brasileira, esta já dimensionada na experiência literária ocidental, o universalismo de Benedito Nunes<br />

sobressai como o traço distintivo de sua obra, que abarca, portanto, a teoria e a história literárias, s<strong>em</strong><br />

prejuízo da já referida elaboração filosófica de um pensamento poético que torne hermeneuticamente<br />

fecundo o diálogo entre literatura e filosofia (cf. Nunes, 1998a, 1999). Deste modo, o crítico assume “a<br />

relevância histórico-cultural” que lhe cabe, porque<br />

julgar uma obra individual é, antes de mais nada, assinalar-lhe a posição no conjunto de que participa. [...] E o que a<br />

crítica julga, <strong>em</strong> cada caso, no ciclo de civilização a que pertence a experiência literária, representada, refletida ou<br />

modificada pela obra, é, afinal, toda a literatura (Nunes, 2009a, p. 100).<br />

III<br />

Ensaio como forma<br />

Essa dimensão universalista revela a dimensão formativa de sua obra, surgida nos escritos publicados<br />

no jornal. Neles, percebe-se a preocupação de Benedito Nunes <strong>em</strong> formar leitores, cuidando não afugentar<br />

da filosofia os que não puderam cultivá-la. Esse senso de formação, ele herdou da profícua tradição do<br />

ensaísmo jornalístico brasileiro, de que absorveu a “compreensão totalizante da cultura” – como mostrou<br />

Alexandre Eulalio (1992, p. 19) no seu prestigiado estudo O ensaio literário no Brasil –, e para a qual<br />

contribui pelo aprofundamento da filosofia, com ênfase no pensamento estético.<br />

A forma literária do ensaio contribui para compreender a força literária de seu texto, regido na clave<br />

dupla de conceitos e imagens, que se desdobra <strong>em</strong> várias texturas, atravessando a fronteira que aproxima<br />

a literatura da filosofia. Essa movimentação é típica da escrita ensaística, que infunde entusiasmo pela<br />

energia intelectual que poreja, gozando da “liberdade de espírito”. Como b<strong>em</strong> assinalou Adorno (2003, p.<br />

16 e19), “não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito”, renunciando a qualquer “delimitação<br />

de objeto”.


A PALO SECO<br />

21<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Pensador repleto de hipóteses e erudição para testá-las, experimentá-las e revolvê-las, Benedito “escreve<br />

ensaisticamente”, pois faz da composição ensaística uma experiência do pensamento, visualizando<br />

o objeto estudado a partir das múltiplas perspectivas geradas pelo próprio ato da escrita, que se renova<br />

pelo exercício constante do pensamento. Se Platão soube plasmar a vivacidade do pensamento filosófico<br />

escrevendo diálogos, compostos por diferentes interlocutores, Benedito Nunes preserva o veio dialético<br />

da filosofia através da abertura de seus escritos ensaísticos, que retomam os mesmos t<strong>em</strong>as a fim de<br />

enfrentá-los s<strong>em</strong>pre de uma nova maneira, iluminando-os sob outros ângulos, dispondo-se a novas tentativas,<br />

novas aproximações.<br />

Mas a obra ensaística de Benedito Nunes, por ser composta dessas reflexões esparsas e abertas que<br />

são os ensaios, não configura uma espécie de rapsódia filosófica, adventícia e aleatória. Pensado <strong>em</strong><br />

fragmentos, o olhar que Benedito Nunes lança sobre a realidade não é fragmentário e parcial, disciplinar.<br />

Ao contrário, como filósofo, a visão de conjunto da realidade, o alcance da visada sinóptica com que Platão<br />

qualificou os dialéticos na República (VII, 537c), é um dos traços distintivos de sua ensaística, que abrange<br />

os mais diversos aspectos da realidade, s<strong>em</strong>, contudo, compô-los confortavelmente num orgânico mosaico<br />

metafísico, cuja arquitetura, sist<strong>em</strong>ática e completa, ajustaria as partes ao todo. Uma análise na diversidade<br />

e na abrangência de sua obra, voltada para a compreensão da história da literatura e da filosofia<br />

como um todo, atesta a reflexão filosófica integral perseguida pela obra de Benedito Nunes. Com arrojo<br />

hermenêutico para interpretá-los, interessa-lhe escavar os fundamentos da cultura, considerada historicamente<br />

e no conjunto de suas múltiplas manifestações. Sobre a forma utilizada, Benedito Nunes encontra<br />

uma formulação muito apropriada, que serve para elucidar a forma de sua obra:<br />

Daí ser o ensaio o lócus privilegiado da interpretação, aquele <strong>em</strong> que se tenta a proeza das sínteses ousadas, das<br />

formulações compreensivas de conjunto, s<strong>em</strong>pre falhas mas s<strong>em</strong>pre inevitáveis, visando o todo da história, da sociedade,<br />

da cultura, e que a ciência social rotineira olha com desconfiança. Combinando a liberdade de imaginação e a ord<strong>em</strong> dos<br />

conceitos, esse arrojo hermenêutico solicita a utilização convergente, interdisciplinar, das ciências sociais dispersas na<br />

forma individuada, estética, de um discurso favorável à hipótese fecunda e arriscada, à discussão de questões <strong>em</strong>ergen-<br />

tes, não confinadas a uma única disciplina e às soluções probl<strong>em</strong>áticas (2010, p. 299).<br />

IV<br />

Crítica e estética<br />

Benedito Nunes ocupa um lugar peculiar no pensamento ensaístico brasileiro, fronteiriço entre a<br />

crítica literária e a filosofia. Sua atividade crítica s<strong>em</strong>pre se deu na confluência do poético e do filosófico,<br />

e a sua riqueza consiste no modo fecundo como os aproxima <strong>em</strong> diálogo. Na entrevista concedida a<br />

Marcos Nobre e José Rego (2000, p. 79-80), Benedito Nunes afirma que a estética no Brasil s<strong>em</strong>pre foi<br />

praticada por intermédio da crítica. De fato, a obra de Benedito Nunes é caracterizada pela dupla valência<br />

da crítica e da estética, esta praticada não só no âmbito geral da especulação filosófica sobre a arte,<br />

quando trata, por ex<strong>em</strong>plo, de autores como Kant, Hegel e Heidegger, mas também desenvolvida quando<br />

o ensaísta considera, na crítica literária, obras singulares que o impulsionam à reflexão sobre a natureza<br />

da arte como tal, sobre a força ontológica da linguag<strong>em</strong> e as condições da experiência estética. Discurso<br />

hermenêutico e analítico voltado à compreensão de determinadas obras, a crítica baseia-se, necessariamente,<br />

<strong>em</strong> determinada angulação filosófica, a que subjaz<strong>em</strong> as categorias de compreensibilidade da<br />

literatura como tal. Esta articulação, presente ao longo de toda a obra de Benedito Nunes, e que a caracteriza<br />

no pensamento brasileiro, revela a compl<strong>em</strong>entaridade da crítica e da estética como âmbitos reflexivos<br />

sobre a arte, permeáveis, convergentes e mutuamente enriquecedores. Explica Benedito Nunes:<br />

“não há critica s<strong>em</strong> perspectiva filosófica; a compreensão literária, ato do sujeito, implica uma forma


A PALO SECO<br />

22<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

singular de conhecimento, logicamente escudado e constituído pelo método próprio de que se utiliza”<br />

(2009, p. 54).<br />

Desse modo, Benedito Nunes é crítico numa acepção mais ampla, que acompanha o uso da palavra<br />

crítica <strong>em</strong> Kant, por colocar o fenômeno artístico sob a visada reflexiva da filosofia, que desencadeia<br />

questões ontológicas e gnosiológicas fundamentais a partir da experiência estética. Interessa-lhe, como<br />

filósofo, estabelecer as condições preliminares da existência do texto literário, a fim de contrastá-lo com<br />

o texto filosófico, aproximando-os, s<strong>em</strong> confundi-los, pela pertença de ambos ao domínio da linguag<strong>em</strong>.<br />

Crítica e filosofia lhe são, portanto, inseparáveis, flancos do mesmo horizonte especulativo sobre o ser da<br />

linguag<strong>em</strong>. Este ensaio busca apontar subsídios para a compreensão do fundamento filosófico desta aproximação<br />

entre filosofia e literatura, a partir do pensamento de Gadamer, que considera a experiência<br />

hermenêutica um jogo dialógico entre texto e intérprete, como apontarei na próxima parte.<br />

De fato, desde a sua primeira coletânea de ensaios reunidos, O dorso do tigre, publicada <strong>em</strong> 1969, o<br />

esforço de aproximar, hermeneuticamente, literatura e filosofia é patente, e t<strong>em</strong> a sua fundamentação<br />

filosófica b<strong>em</strong> delineada: a fenomenologia hermenêutica de Heidegger. Absorvendo o importante escrito<br />

do filósofo al<strong>em</strong>ão, A orig<strong>em</strong> da obra de arte, Benedito Nunes reconhece que “o sentido da arte é inseparável<br />

do sentido do ser”, e que a redução fenomenológica, tal como a proposta pelo autor de Ser e t<strong>em</strong>po,<br />

neutralizaria a vigência da estética moderna, cujas categorias encobririam a metafísica que lhe é subjacente.<br />

Seguindo as sendas entreabertas por Heidegger, e depois percorridas por Gadamer, Benedito Nunes<br />

articula a sua crítica filosófica na direção da compreensão originária da arte, que é, propriamente, a de<br />

projeção (Entwurf), “fonte por onde a verdade jorra”: “A arte depende do movimento originário da verdade<br />

que se realiza, e que por intermédio dela se perfaz” (Nunes, 1969a, p. 55). Autônoma, independente de<br />

verdades que lhe são alheias, como as que lhe queria imputar a tradição metafísica da estética, a arte<br />

encarna o fundamento que possibilita a “abertura para o mundo”. A obra de arte t<strong>em</strong>, pois, a sua orig<strong>em</strong><br />

naquele acontecimento que por ela ocorre, que é o “acontecimento da verdade” (Heidegger, 2003, p. 25).<br />

Redimensionada ontologicamente, a arte passa a ser “um modo de projeção, uma forma requerida pelo<br />

advento t<strong>em</strong>poralizador da verdade” (Nunes, 1969a. p. 55).<br />

Como pensador heideggeriano, Benedito Nunes t<strong>em</strong> uma questão de ord<strong>em</strong> filosófica que lhe direciona<br />

a crítica literária, a do sentido ontológico da arte, fenomenologicamente incorporada à questão do ser.<br />

Manifestada já no seu primeiro livro de ensaios, esta questão será perseguida incansavelmente ao longo<br />

de sua profusa obra e pode ser tomada como fundamento de sua atividade crítica, a hermenêutica do<br />

sentido ontológico da arte.<br />

É na série de ensaios sobre Clarice Lispector, precursores da abordag<strong>em</strong> filosófica da ficcionista, que<br />

Benedito Nunes d<strong>em</strong>onstra, mais enfaticamente, o vínculo fenomenológico que une a linguag<strong>em</strong> (o pensamento)<br />

à existência, e que confere o caráter dramático da escrita de Lispector na busca pelo sentido do<br />

ser. No ensaio “Linguag<strong>em</strong> e silêncio”, Benedito Nunes revela, mais uma vez, a fonte filosófica de sua<br />

abordag<strong>em</strong> dialógica e reflexiva da literatura: a arte como jogo ontológico da linguag<strong>em</strong>, reveladora do<br />

ser. Diz Benedito Nunes no referido ensaio:<br />

É <strong>em</strong> A Paixão Segundo G.H. que Clarice Lispector leva ao extr<strong>em</strong>o o jogo da linguag<strong>em</strong> iniciado <strong>em</strong> Perto do Coração<br />

Selvag<strong>em</strong>, e já plenamente desenvolvido <strong>em</strong> A Maçã no Escuro. [...] É que o jogo estético, que suspende ou neutraliza, por<br />

meio da imaginação, a experiência imediata das coisas, dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que,<br />

jamais coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos o mundo <strong>em</strong> sua<br />

complexidade e profundeza. Quando consumado através da linguag<strong>em</strong>, como criação literária, o jogo estético pode<br />

tornar-se diálogo com o Ser. Nesse sentido é que Heidegger vê a poesia de Hölderlin como ação verbal reveladora do mundo<br />

(Nunes, 1969b, p. 130).<br />

Ora, se a arte literária revela o ser, pelo jogo da linguag<strong>em</strong> de que participa, ao intérprete-filósofo cabe<br />

escutá-la, colocando-a <strong>em</strong> interlocução, para que possa, junto com ela, compreender o “evento da verda-


A PALO SECO<br />

23<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

de” que a originou, tal como Gadamer descreverá a “experiência linguístico-hermenêutica da obra de<br />

arte”. Transacional, a crítica de Benedito Nunes, como hermenêutica, é o diálogo que aproxima filosofia e<br />

literatura s<strong>em</strong> hierarquizá-las ou confundi-las, preservando a identidade de cada interlocutora: “Filosofia<br />

não deixa de ser Filosofia tornando-se poética n<strong>em</strong> a Poesia deixa de ser Poesia tornando-se filosófica.<br />

Uma polariza a outra s<strong>em</strong> assimilação transformadora” (Nunes, 2010, p. 13).<br />

Se o platonismo da tradição ocidental as dicotomizou a partir das categorias metafísicas de verdadeiro<br />

e ilusório, razão e sensação, logos e mito, essência e aparência, e assim por diante, com a ascensão da<br />

linguag<strong>em</strong> ao primeiro plano da reflexão filosófica, efetuada por Nietzsche, descobriu-se o solo metafórico<br />

da filosofia, a sua matriz <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente poética, porque enraizada no el<strong>em</strong>ento linguístico que a vivifica<br />

(cf. Nunes, 1993, p. 196). Segundo Benedito Nunes, a revelação do caráter pré-reflexivo e fático do hom<strong>em</strong><br />

como ser-aí (Dasein), distante do sujeito humano como consciência reflexiva capaz de conhecimento teórico,<br />

acarretou “o grande bloco hermenêutico do pensamento cont<strong>em</strong>porâneo, construído por Heidegger e<br />

enriquecido por Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur” (Nunes, 2009, p. 39). No contexto da fenomenologia<br />

hermenêutica na qual se move o pensamento de Benedito Nunes, a interpretação ocupará o lugar central<br />

na filosofia, pois o Dasein não conhece teoricamente n<strong>em</strong> a natureza n<strong>em</strong> a si mesmo antes de interpretarse,<br />

a partir da compreensão aberta pelo horizonte da linguag<strong>em</strong>. Sendo a linguag<strong>em</strong> determinante na<br />

experiência hermenêutica do hom<strong>em</strong> como ser-no-mundo, a poesia revela a verdade do ser na e pela<br />

linguag<strong>em</strong>, digna, portanto, de ser escutada e interpretada. Fundamento da hermenêutica literária de<br />

Benedito Nunes, esta compreensão ontológica da linguag<strong>em</strong> é amplamente desenvolvida por Gadamer,<br />

para qu<strong>em</strong> o “diálogo hermenêutico” entre intérprete e texto, no ato da compreensão do mundo “aberto na<br />

linguag<strong>em</strong> da obra”, é marcado, <strong>em</strong> sua essência, por sua “linguisticidade” (Gadamer, 2000, p. 779).<br />

Deste modo, o diálogo que Benedito Nunes promove entre filosofia e literatura se dá no âmbito da<br />

hermenêutica filosófica, “no plano do conhecimento interpretativo das obras” (Nunes, 1993, p. 196), com<br />

base na fenomenologia que levou a filosofia para a dimensão da existência individual, para a experiência<br />

literária e artística, e para a reflexão ontológica sobre a linguag<strong>em</strong>. É possível, então, compreender aspectos<br />

da hermenêutica literária de Benedito Nunes a partir da compreensão da característica dialógica de<br />

toda interpretação, desenvolvida por um dos autores fundamentais da hermenêutica cont<strong>em</strong>porânea, Gadamer.<br />

Este propósito é motivado por referências diretas de Benedito Nunes ao autor de Verdade e método,<br />

como no ensaio “Trabalho da interpretação e a figura do intérprete na literatura”, no qual ele diz:<br />

Trava-se, portanto, entre o intérprete e o texto, uma espécie de diálogo, de dialética da questão e da resposta: interpe-<br />

lação mútua de um pelo outro, o intérprete questionando o texto e sendo por este questionado, com seu silêncio ou a sua<br />

resposta que faz<strong>em</strong> a interpretação avançar ou recuar (Nunes, 2009, p. 126).<br />

V<br />

Um ex<strong>em</strong>plo de crítica filosófica: Guimarães Rosa<br />

A interpretação de Benedito Nunes sobre Guimarães Rosa é <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>ática de sua crítica filosófica.<br />

Convém marcar certos aspectos que a caracterizam para concluir esta apresentação do “filósofo da literatura”.<br />

Quando um escritor encontra um crítico capaz de acompanhá-lo na densidade literária de sua obra<br />

ficcional, descortina-se uma nova camada de leitura, onde a linguag<strong>em</strong> e o pensamento se encontram na<br />

confluência poética das palavras. A riqueza da obra de Guimarães Rosa reside sobretudo no sofisticado<br />

trabalho com a linguag<strong>em</strong>, com que a refinou plasticamente, recriando-a <strong>em</strong> seu estado nascente, e renovando,<br />

assim, substancialmente a s<strong>em</strong>ântica e a sintática da língua portuguesa. Um autor dessa magnitude<br />

convoca uma leitura reflexiva igualmente poética, capaz de pe<strong>net</strong>rar na sua complexa estrutura, para


A PALO SECO<br />

24<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

poder compreender o projeto literário que o anima. Dotado de um apurado espírito filosófico, Benedito<br />

Nunes acompanhou de perto a obra de Rosa, sendo um dos seus primeiros e mais originais intérpretes.<br />

Quando Rosa publicou Grande sertão: veredas, <strong>em</strong> 1956, Benedito Nunes já contribuía regularmente<br />

com ensaios de crítica literária e filosófica para o Supl<strong>em</strong>ento Dominical do Jornal do Brasil, publicando<br />

sobre uma gama muito variada de autores e t<strong>em</strong>as, preferencialmente sobre literatura moderna e estética,<br />

com destaque à fenomenologia de Husserl. Diferente do modo com que abordara a poesia de Baudelaire e<br />

Fernando Pessoa, a primeira resenha de Benedito Nunes sobre Grande sertão: veredas t<strong>em</strong> um tom algo<br />

dubitativo, e registra a forte impressão causada por aquele “livro tumultuoso e imenso”, “romance extraordinário,<br />

escrito <strong>em</strong> linhas tortas”, cuja linguag<strong>em</strong>, “que não é, a rigor, n<strong>em</strong> dialeto regional, n<strong>em</strong> criação<br />

arbitrária”, “confina com a poesia”. 1<br />

Além disso, o outro tópico fundamental dessa primeira aproximação a Grande sertão: veredas, relacionado<br />

à força plástica da linguag<strong>em</strong>, e que permanecerá como questão recorrente na análise filosófica de<br />

Benedito Nunes, é o reconhecimento de uma literatura regional, mas não regionalista, aberta aos grandes<br />

t<strong>em</strong>as universais do hom<strong>em</strong>, de sentido religioso, místico e metafísico, e direcionada a uma “interpretação<br />

espiritual da terra e do povo que nela vive”. Essa noção acolhia a perspectiva elaborada por Antonio<br />

Candido, <strong>em</strong> duas resenhas anteriores, sobre Sagarana, <strong>em</strong> 1946, e sobre Grande sertão: veredas, <strong>em</strong><br />

1956, nos quais o crítico enfatizava a “transcendência do regional (cuja riqueza peculiar se mantém todavia<br />

intacta) graças à incorporação <strong>em</strong> valores universais de humanidade e tensão criadora” (Candido,<br />

2002. p. 190).<br />

Nesse primeiro contato de Benedito Nunes com Grande sertão: veredas, que, de fato, se apresenta<br />

programático quando relacionado ao conjunto de ensaios posteriores, a linguag<strong>em</strong> de Rosa pareceu-lhe<br />

“eficiente”, não só pela “intensidade que garante a unidade e o poder expressivo da obra”, cuja forma<br />

atende à particularidade do narrador sertanejo, dos t<strong>em</strong>as e situações por ele vividos e r<strong>em</strong><strong>em</strong>orados, mas<br />

também pela afecção <strong>em</strong>ocional que ela provoca, pela qual “participamos da substância humana de outros<br />

indivíduos”. Um estudo tão persistente, como o de Benedito Nunes, ao longo de mais de cinco décadas,<br />

não poderia ocorrer s<strong>em</strong> uma leitura apaixonada, recorrente e reflexiva: “Absorvia-o na sua obra que<br />

me absorvia”, dirá o crítico dez anos depois, no ensaio “Guimarães Rosa <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro”, de 1967. Esse<br />

contato com a obra de Rosa valeu-lhe uma intimidade intelectual que pode ser pensada como “conhecimento<br />

por convivência”, com o qual Benedito Nunes caracterizou o modo de saber nutrido por Rosa <strong>em</strong><br />

relação a filósofos como Platão e Plotino, e a místicos como Ruysbroek, Böhme e Eckhart (“Guimarães<br />

Rosa quase de cor: r<strong>em</strong><strong>em</strong>orações filosóficas e literárias”).<br />

Por lhe infundir profunda <strong>em</strong>oção literária, o impacto da primeira leitura tornou-o um leitor frequente da<br />

obra de Rosa, e prenuncia a modalidade de experiência estética <strong>em</strong> que se baseia, fenomenologicamente,<br />

a sua leitura hermenêutica. Aderindo ao pathos purificatório da obra, Benedito Nunes reconhecerá, <strong>em</strong><br />

“De Sagarana a Grande sertão: veredas”, com Franklin de Oliveira, a função anagógica da literatura roseana,<br />

pensada como órgão de depuração do hom<strong>em</strong>, que o convida à cont<strong>em</strong>plação da beleza das coisas<br />

pela “plumag<strong>em</strong> das palavras”, religando-o à realidade superior, e perfazendo assim poeticamente a religião.<br />

Benedito Nunes nota, nesse sentido, que a dimensão mitomórfica da narrativa de Grande sertão:<br />

veredas, na qual o mito é plasmado na palavra poética, responde pelo “abalo estético do leitor”, levandoo<br />

para além de si mesmo pela ruptura da linguag<strong>em</strong> prosaica do entendimento cotidiano (“O mito <strong>em</strong><br />

Grande sertão: veredas”). Eis como Benedito Nunes descreve, <strong>em</strong> 1995, a sua experiência estética de<br />

leitura do episódio da morte de Diadorim:<br />

1 Os ensaios de Benedito Nunes sobre Guimarães Rosa, citados nesta parte do estudo, foram reunidos no livro A Rosa o que<br />

é de Rosa: literatura e filosofia (Editora Difel, organização Victor Sales Pinheiro), que está no prelo. Por esta razão, cita-se<br />

somente o nome do ensaio, s<strong>em</strong> a referência bibliográfica.


A PALO SECO<br />

25<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Até hoje, depois de tantos anos da primeira leitura de Grande Sertão: Veredas, não posso deixar de <strong>em</strong>ocionar-me nesta<br />

passag<strong>em</strong>. Compartilho o sofrimento do outro para qu<strong>em</strong> nenhuma consolação, humanamente falando, é possível. E<br />

compreendo a ação do romance, compreendendo-me (juízo) através dela, <strong>em</strong> minha condição de sujeito, fadado ao sofri-<br />

mento. O movimento completou-se fora do livro, a experiência (estética) do conflito prolongada na experiência da vida do<br />

leitor (katharsis) (Nunes, 1998b, p. 184).<br />

Como se vê, a obra de Rosa provoca-lhe, desde o início, uma forte afecção, motivando-o a uma aproximação<br />

poética da realidade. Pod<strong>em</strong>os compreendê-la a partir da descrição de Gadamer sobre a relação<br />

dialógica que se instaura entre intérprete e texto, 2 característica da leitura hermenêutica de Benedito<br />

Nunes. Com efeito, é o diálogo hermenêutico, que “interroga o texto à busca da questão que o mundo da<br />

obra propõe ao pensamento”, como explica o crítico-filósofo <strong>em</strong> A matéria vertente, o método crítico<br />

predominante dos ensaios aqui reunidos.<br />

Embl<strong>em</strong>ático sob muitos aspectos da hermenêutica dialógica de Benedito Nunes e verdadeiro clássico<br />

da bibliografia crítica roseana, o ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa”, que abre este livro, procede<br />

exatamente como interlocução, intercalando a escuta do texto com digressões filosóficas que lhe questionam<br />

o sentido, a fim de formular o que seria a “visão erótica da vida” expressa mito-poeticamente <strong>em</strong> rica<br />

simbologia amorosa, a partir de certo platonismo hermético-alquímico, pelo qual Eros seria fonte de beleza<br />

e desejo de imortalidade, que impulsiona a vida numa série de sublimações, do sensível ao inteligível,<br />

da carne ao espírito.<br />

Nesse contexto de compreensão filosófica da literatura, com que Benedito Nunes aguça a sua consciência<br />

crítica, e que dá aos seus ensaios uma dimensão propriamente especulativa, a obra de Guimarães<br />

Rosa sobressai com um papel fundamental, por trazer <strong>em</strong> seu interior a força <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente poética da<br />

palavra. Observa o crítico <strong>em</strong> “A viag<strong>em</strong>”:<br />

Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, o hom<strong>em</strong> que o atravessa. Além de viajante, o hom<strong>em</strong><br />

é a viag<strong>em</strong> – objeto e sujeito da travessia, <strong>em</strong> cujo processo o mundo se faz. Ele atravessa a realidade conhecendo-a, e<br />

conhece-a mediante a ação da poiesis originária, dessa atividade criadora, que nunca é tão profunda e soberana como no<br />

ato de nomeação das coisas, a partir do qual se opera a fundação do ser pela palavra, de que fala Heidegger.<br />

Importa notar que, no seu livro filosófico mais importante, Passag<strong>em</strong> para o poético: filosofia e poesia<br />

<strong>em</strong> Heidegger, uma passag<strong>em</strong> de Grande sertão: veredas epigrafa o último capítulo, “A residência poética”,<br />

conclusiva articulação do que seria o “pensamento poético”, o íntimo vínculo que une poesia e pensamento<br />

na seiva originária da linguag<strong>em</strong>.<br />

Mais diretamente do que qualquer outra arte, a poesia participa, pela palavra, que constitui a sua matéria, do<br />

trabalho preliminar e mais primitivo do pensamento, como obra da linguag<strong>em</strong>. A poesia é o limiar da experiência artística<br />

<strong>em</strong> geral por ser, antes de tudo, o limiar da experiência pensante: um poien, como um producere, ponto de irrupção do ser<br />

na linguag<strong>em</strong>, que acede à palavra, e, portanto, também de interseção da linguag<strong>em</strong> e do pensamento (Nunes, 1992, p.<br />

261).<br />

Poética, a palavra de Rosa é “linguag<strong>em</strong> [que] se transforma <strong>em</strong> meio de revelação, para dizer o que<br />

antes não podia ser dito”, dirá Benedito Nunes no ensaio sobre Tutaméia. Desse modo, cabe-lhe, como<br />

filósofo <strong>em</strong> interlocução com a poesia, escutar as palavras, e fazer do pensamento, como queria Heide-<br />

2 “A dialética da pergunta e resposta [...] permite que a relação da compreensão manifeste-se como uma relação recíproca,<br />

s<strong>em</strong>elhante à de uma conversação. É verdade que um texto não nos fala, como faria um tu. Somos nós, os que o compreend<strong>em</strong>os,<br />

os que t<strong>em</strong>os de trazê-lo à fala, a partir de nós” (Gadamer, 2000, p. 777).


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

gger, uma atenção à linguag<strong>em</strong>. Claro está, portanto, que a relação entre filosofia e poesia, entre Benedito<br />

Nunes e Guimarães Rosa, é um encontro poético, um diálogo hermenêutico e não uma tentativa de<br />

impor uma concepção filosófica alheia à obra literária. Em um ensaio como “Grande sertão: veredas: uma<br />

abordag<strong>em</strong> filosófica – a figura da narração ou as ciladas do t<strong>em</strong>po no romance de Guimarães Rosa”, o<br />

filósofo busca compreender a instância questionadora da própria da obra, a dimensão filosófica que ela<br />

revela através de sua forma específica: o probl<strong>em</strong>a do t<strong>em</strong>po, o processo de t<strong>em</strong>poralização narrativo que<br />

se apresenta de modo essencialmente reflexivo.<br />

É com base nessa concepção filosófica da autonomia estética da literatura que Benedito Nunes realiza,<br />

<strong>em</strong> A Rosa o que é de Rosa, uma fenomenologia da obra literária, capaz de perceber, com muita precisão,<br />

o nexo estrutural que funde forma e conteúdo no grande romance de Rosa. Refutando com elegância a<br />

perspectiva do crítico português João Gaspar Simões, autor de uma leitura linear de Grande sertão:veredas,<br />

limitada à tópica regional, Benedito Nunes compreende a multiplicidade de camadas superpostas na complexa<br />

estrutura do romance, que configura um organismo vivo, com planos significativos interligados de<br />

forma coerente a partir do eixo regional, que serve de referência basilar para o adensamento dos planos<br />

ético, da aventura humana transcorrida no sertão, e metafísico-religioso, do questionamento da existência<br />

de Deus e do D<strong>em</strong>ônio, da escolha entre o B<strong>em</strong> e o Mal.<br />

O sentido da narrativa do texto de Guimarães Rosa, que compreende os três sertões, como formas parciais dentro de<br />

uma só forma completa – a da estrutura do romance – está no movimento de um plano a outro plano, de um sertão a outro<br />

sertão – movimento ascendente do primeiro a completar-se nos dois últimos – e descendente dos dois últimos a enriquecer<br />

e a modificar o primeiro. Assim produz-se uma interação de t<strong>em</strong>as e situações correspondentes a cada plano, de modo que<br />

n<strong>em</strong> o ético, da aventura humana, que se apóia nos dados concretos da realidade regional é uma idealização pura, n<strong>em</strong><br />

essa realidade, onde se v<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>atizar o jogo das grandes forças metafísicas postas, é puramente regional ou rústica<br />

(A Rosa o que é de Rosa).<br />

Benedito Nunes articula ainda outro el<strong>em</strong>ento, inseparável dessa forma, dessa estrutura literária, que<br />

harmoniza os três planos mencionados, o regional, o ético e o metafísico-religioso: o processo evocativo<br />

da linguag<strong>em</strong>, que atua como “ação verbal de abertura do mundo, de gênese poética da realidade”, conjugando<br />

o “sertão-mundo” e o “sertão-linguag<strong>em</strong>”, a “ação verbal” e a “ação romanesca”, cujas veredas<br />

considera “caminhos da língua portuguesa”. Para o filósofo, a perspectiva roseana é a de um realismo<br />

poético, “<strong>em</strong> que a trama das coisas e dos seres nasce, a cada momento, da trama originária da linguag<strong>em</strong>”,<br />

tratando a língua portuguesa como sujeito, atuante na configuração verbal do mundo.<br />

Referências bibliográficas<br />

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Vinicius Dantas. São Paulo: Ed. 34, 2002.<br />

ELIOT, T. S. Tradition and the individual talent. In: Selected essays. Londres: Faber and Faber, 1999.<br />

EULÁLIO, Alexandre. O ensaio literário no Brasil. In: Escritos. Org. Berta Waldman e Luiz Dantas. São Paulo:<br />

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GADAMER, H.-G. Verità e metodo. Edição bilíngue. Tradução e introdução G. Vattimo. Milão: Bompiani,<br />

2000.<br />

HEIDEGGER, M. Der Ursprung des Kunstwerkes. In: Holzwege. 8. ed. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,<br />

2003.


A PALO SECO<br />

27<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

NUNES, Benedito. A Rosa o que é de Rosa: literatura e filosofia. Org. Victor Sales Pinheiro. Rio de Janeiro:<br />

Difel. (No prelo).<br />

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Fontes, 2010.<br />

______ . Meu caminho na crítica. In: A clave do poético. Organização e apresentação Victor Sales Pinheiro.<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 2009.<br />

______ . Crítica literária no Brasil, ont<strong>em</strong> e hoje. In: A clave do poético. Organização e apresentação Victor<br />

Sales Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.<br />

______ . Conceito de forma e estrutura literária. In: A clave do poético. Organização e apresentação Victor<br />

Sales Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.<br />

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______ . Literatura e filosofia. In: No t<strong>em</strong>po do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.<br />

______ . Poética do pensamento. In: Crivo de papel. São Paulo: Ática, 1998a.<br />

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______ . Passag<strong>em</strong> para o poético: filosofia e poesia <strong>em</strong> Heidegger. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.<br />

______ . A destruição da estética. In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969a.<br />

______ . Linguag<strong>em</strong> e silêncio. In: O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969b.<br />

______ . Cotidiano e morte de Ivan Ilitch. Supl<strong>em</strong>ento Literário da Folha do Norte n. 144. Belém, 22/01/<br />

1950.


O perfil da linguag<strong>em</strong> crítica de Benedito Nunes<br />

Jucimara Tarricone<br />

Doutora <strong>em</strong> Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP<br />

I. A crítica literária<br />

Inicio esta breve reflexão com um enunciado de Benedito Nunes que, por si só, resume sua clareza<br />

como crítico-leitor:<br />

Lingüística, Sociologia, História, Psicologia ou Psicanálise – qualquer desses campos metodológicos pode ser requeri-<br />

do para a compreensão da obra, e nenhum deles, por mais que necessário seja, é suficiente no cumprimento desse fim. A<br />

exigência filosófica de verdade impõe, dessa forma, como princípio do discurso do método, <strong>em</strong> caráter permanente, a<br />

cauta admissão das ciências humanas, <strong>em</strong> estado de simpósio: cada qual é capaz de iluminar a obra, e nenhuma, por si só,<br />

traz a completa chave de sua decifração. Filosoficamente, o objeto literário permanece inesgotável (1993, p. 198).<br />

Em outro momento, Nunes reafirma seu antigo postulado: “quando a Filosofia e as Ciências se calam, é<br />

s<strong>em</strong>pre a poesia que diz a última palavra” (2005, p. 305).<br />

Assim, de posse dessas duas citações, torna-se possível estruturar meus comentários que, basicamente,<br />

apontam para duas vertentes não paralelas, mas compl<strong>em</strong>entares, as quais submeto à discussão: a<br />

análise que Benedito Nunes faz do fenômeno literário e a forma como constrói seu discurso crítico.<br />

De saída, talvez seja importante ressaltar como se localiza a práxis de sua interpretação dentro da<br />

nossa historiografia crítico-literária. Embora o diálogo entre filosofia e literatura, como campo de sua<br />

instrumentação, seja um exercício único dentro do ensaísmo brasileiro, a sua noção de crítica encontra<br />

uma afinidade com as propostas de João Alexandre Barbosa, <strong>em</strong> especial, no texto “Forma e história na<br />

crítica brasileira – de 1870-1950”, constante no livro A leitura do intervalo (1990), mas originalmente<br />

apresentado, <strong>em</strong> 1986, na 2ª Bienal Nestlé de Literatura, com o título “Algumas reflexões sobre a crítica<br />

brasileira cont<strong>em</strong>porânea”.<br />

28


A PALO SECO<br />

29<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Todavia, é forçoso, aqui, abrir um parêntese. Essa aproximação dos dois críticos, que ora apresento de<br />

maneira incipiente e sucinta, t<strong>em</strong> orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> pelo menos um traço que os caracteriza: a alentada visão da<br />

crítica como aquela que fomenta questões. Dessa forma, mais do que respondê-las, o ensaísta deve tentar<br />

compreender o texto para, na experiência de sua leitura, compreender a si mesmo.<br />

João Alexandre Barbosa, falecido <strong>em</strong> 2006, deixou uma vasta obra, <strong>em</strong> que se sobressa<strong>em</strong> estudos<br />

acerca de José Veríssimo, João Cabral de Melo Neto e Paul Valéry. Foi professor de Teoria Literária, na USP,<br />

presidente da Edusp (a editora da Universidade de São Paulo), atuou como crítico <strong>em</strong> jornais e revistas<br />

especializadas e desenvolveu o conceito, entre outros, de leitura do intervalo, ao qual me referirei mais<br />

adiante.<br />

No texto “Forma e história na crítica brasileira – de 1870-1950”, Barbosa trata das relações de tensão<br />

entre análise formal e interpretação histórica, que, segundo defende, torna capaz de recuperar os momentos<br />

da evolução da crítica literária brasileira, s<strong>em</strong> deixar de l<strong>em</strong>brar os fundamentos históricos, e s<strong>em</strong><br />

deixar de assinalar a continuação de uma probl<strong>em</strong>ática qualquer que consegue atingir a cont<strong>em</strong>poraneidade.<br />

O roteiro que ele estabelece é composto por três etapas que se articulam: a herança, a ruptura e a<br />

releitura. A herança é referente às obras críticas que prepararam caminho para uma renovação dos estudos<br />

linguísticos, b<strong>em</strong> como repensaram a ideia de estilo e sua inclusão <strong>em</strong> um contexto histórico-social<br />

mais extenso e dinâmico.<br />

As fases da ruptura e da releitura são próximas à leitura que Benedito Nunes (1978, 1998, 2000) faz da<br />

década de 40 <strong>em</strong> diante. Para ambos, a literatura produzida a partir dos anos 40 – uma prosa como a de<br />

Clarice Lispector ou de Guimarães Rosa – d<strong>em</strong>andava uma linguag<strong>em</strong> crítica mais refinada, para que<br />

pudesse acompanhar as inovações do código literário. A ruptura, portanto, é correspondente à própria<br />

evolução constatada na criação de uma literatura. Já a crítica como releitura ocorre a partir dos anos 60 e<br />

é definida como a necessidade de se ler não só a literariedade presente nos textos, mas as tensões que<br />

integram a própria organização do texto literário como forma e história.<br />

Da constante interrogação de como se fazer crítica <strong>em</strong> meio a novas criações literárias, é possível<br />

identificar variadas tendências que se expandiram no Brasil. Nunes indica no entanto que, ora de modo<br />

direto, ora de modo indireto, essas posições encontrariam base nas diferentes correntes filosóficas <strong>em</strong><br />

vigência:<br />

Às vezes, a moda, a avidez da novidade aliciam o julgador literário. Mas queira-o ou não, o seu ponto de vista s<strong>em</strong>pre<br />

se move entre presente e passado, segundo expectativas razoáveis do futuro da produção poética. É um ponto de vista<br />

reticulado, nunca isento filosoficamente. Sabe-se que os formalistas russos se formaram na fenomenologia de Husserl. O<br />

estruturalismo francês cresceu <strong>em</strong> sintonia com a lingüística saussuriana (2000, p. 62).<br />

Desse modo, as investigações teóricas e críticas firmadas nesse momento recebiam contribuições não<br />

só do marxismo, como noção geral da vida social e histórica, ao lado das teorias sociológicas e historicizantes,<br />

mas também da filosofia francesa dos valores (Louis Lavelle), além do neopositivismo, coligado à<br />

propensão cientificista, da s<strong>em</strong>iótica, da fenomenologia e da hermenêutica.<br />

Como se sabe, dos anos 50 até por volta de 1970, o debate crítico t<strong>em</strong> seu auge no jornalismo literário,<br />

grande era o número de periódicos que o veiculava: Correio da Manhã, Diário de Notícias, A Manhã, O<br />

Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Supl<strong>em</strong>ento Literário de Minas Gerais, entre outros. Benedito Nunes se<br />

inscreve como um dos críticos dessa fase, ao lado de, por ex<strong>em</strong>plo, Afrânio Coutinho, Antonio Candido,<br />

Wilson Martins, Eduardo Portella, Aderaldo Castelo, Fausto Cunha, Fábio Lucas e Euryalo Cannabrava.<br />

A partir dos anos 60, a crítica brasileira também passou a ser produzida nas universidades e divulgada<br />

por meio de revistas especializadas e livros, especialmente fundamentada pela teoria da literatura, que<br />

“daria um novo acesso, menos preconcebido, às ciências humanas e à filosofia, à história e à hermenêutica”<br />

(Nunes, 1999a, p. 17).


A PALO SECO<br />

30<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Tanto para Benedito Nunes quanto para João Alexandre Barbosa (1986), a crítica é concebida como<br />

leitura <strong>em</strong> ação, tensão entre a escrita dos escritores e a leitura dos críticos, <strong>em</strong> um movimento perpétuo<br />

cujo interpretar é um exercício do avançar, do recuar, do desviar para recompor o curso do texto à história,<br />

s<strong>em</strong> perder a tensão que os articula.<br />

Pode-se, dessa forma, dizer que a linguag<strong>em</strong> crítica de Nunes apresenta s<strong>em</strong>elhante textura com a<br />

definição que João Alexandre Barbosa (1990) concebe da crítica como releitura: aquela <strong>em</strong> que o crítico<br />

não se pauta por tentar decifrar ou explicar o sentido do texto, mas, sim, por expor o objeto literário como<br />

uma perspectiva de um questionar do próprio hom<strong>em</strong> e do seu mundo simbólico. O trabalho do críticoleitor,<br />

então, ocorre por aproximações e possibilidades, pelo deixar-se provocar pelo que leu e pelo mergulho<br />

nas incertezas da literatura.<br />

Da mesma forma, Benedito Nunes compartilha também da metáfora crítica criada por Barbosa: a leitura<br />

como intervalo. Isto porque, no conceito de dimensão intervalar da literatura, ressalta-se que<br />

na literatura lê-se s<strong>em</strong>pre mais do que a literatura, <strong>em</strong>bora deva-se dizer b<strong>em</strong> depressa que só é mais do que literatura<br />

porque a intensidade com que se trabalham os valores da linguag<strong>em</strong>, isto é, o que é próprio da literatura, leva à probl<strong>em</strong>a-<br />

tização radical dos d<strong>em</strong>ais valores – filosóficos, psicológicos, sociais, históricos – veiculados pela literatura (1990, p.<br />

26).<br />

Cabe assinalar que intervalo não é um vazio, mas o momento mesmo <strong>em</strong> que a leitura ressalta os<br />

significantes textuais de tal modo que há uma integração com os significados. Em outras palavras: os<br />

aspectos filosóficos, psicológicos, sociais, históricos são vistos como integrantes literários e não como<br />

el<strong>em</strong>entos externos ao texto.<br />

Entretanto, para que isto ocorra é necessário que a prática analítica seja aportada <strong>em</strong> uma consciência<br />

da linguag<strong>em</strong> literária, s<strong>em</strong> a qual o crítico dificilmente discorre, reinventa e redescobre os textos.<br />

Sob este prisma, tanto o percurso crítico de Benedito Nunes quanto o de João Alexandre Barbosa se<br />

assentam na experiência de escrita ensaística. Isso porque, no ensaio, o texto se edifica como escrita de<br />

horizonte, de natureza transitória, s<strong>em</strong> uma construção dedutiva ou indutiva.<br />

Tal concepção, importante esclarecer, é próxima à sugerida por Adorno (2003). O ensaio é aberto,<br />

porque a apresentação se faz <strong>em</strong> tensão com o exposto, com a renúncia de pensar pronto, já que é próprio<br />

dessa forma a experimentação, o <strong>em</strong>bate com o objeto, a reflexão que não quer se esgotar.<br />

É pertinente l<strong>em</strong>brar que ensaio v<strong>em</strong> do latim exagìum ì,i, “ato de pesar, por extensão, ponderar, avaliar”.<br />

Dessa forma, este é mais próximo do discurso filosófico, conquanto Nascimento o defina como “forma<br />

discursiva limítrofe entre a literatura e a filosofia” (2004, p. 55), uma vez que a ação de pensar pode se<br />

desenvolver independent<strong>em</strong>ente da literatura e da filosofia.<br />

Literatura e filosofia são domínios que se entrecruzam no ensaio de Nunes como exercício reflexivo de<br />

uma escrita que revela uma linguag<strong>em</strong> de tentativa, tateante, uma linguag<strong>em</strong> de pressupostos.<br />

Ensaística plural, s<strong>em</strong> dúvida, cuja prática se fundamenta <strong>em</strong> expor a leitura hermenêutica <strong>em</strong> permanente<br />

dialogação, de forma fluente, mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, analítica e desafiadora.<br />

Para Nunes (2002), a investigação filosófica de uma obra literária compreendida como forma é examinada<br />

por meio de três aspectos: a) a linguag<strong>em</strong>; b) as conexões da obra com as tendências do pensamento<br />

histórico-filosófico; e c) as idéias que são probl<strong>em</strong>as do e para o pensamento.<br />

De fato, a dimensão do literário abre perspectivas para que a obra seja explorada no seu modus operandi,<br />

no seu como, para que se possa conhecê-la, questioná-la, investigá-la na sua própria existência de<br />

“verdade” como ficção e experiência do possível (cf. Nunes, 1993, p. 198-9).<br />

À filosofia, portanto, restaria deixar vir à tona as potencialidades hermenêuticas do literário e, destituída<br />

de atributos tradicionais, ressaltá-las, no acompanhar dos passos iniciados por Sartre, Merleau-Ponty,<br />

Nietzsche, Heidegger, Benjamin...


A PALO SECO<br />

31<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

É nesse sentido que Nunes aborda o confronto poesia e filosofia, que pode ser trazido à baila, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> textos como “Poesia e filosofia na obra de Fernando Pessoa” (1974) e “João Cabral: filosofia<br />

e poesia” (2000a). Segundo Nunes:<br />

Seria um erro procurar para a obra poética do grande escritor [Fernando Pessoa] uma doutrina filosófica, um sist<strong>em</strong>a<br />

de pensamento interna ou externamente elaborados, ou como súmula de idéias que ela secretasse por dentro, ou como<br />

armação intuitiva e conceptual que a fundamentasse por fora. Nela o encontro e o confronto do poético e do filosófico<br />

começam a produzir-se rompendo com os moldes tradicionais, descerrando-nos um aspecto daquela situação intelectual<br />

da filosofia como obra escrita, e portanto da filosofia como gênero literário, que Paul Valéry registrou nos seus cadernos<br />

(1974, p. 33).<br />

No poeta português, o professor paraense aponta o “fingimento” como o elo entre poesia e filosofia, já<br />

que este traz o probl<strong>em</strong>a do conhecimento, da verdade do ser, na essência da criação poética.<br />

Em Cabral, Benedito Nunes condensou o processo da poética cabralina <strong>em</strong> três pontos: o primeiro,<br />

desde Pedra do sono (1942), é o resultado de um “trabalho de arte”, de ascese que dispensa o psicologismo<br />

com a utilização de substantivos concretos e séries t<strong>em</strong>áticas, a partir de Duas águas (1956), que cria<br />

um léxico comparativo.<br />

O segundo, a transferência de qualitativos das coisas humanas para as naturais, e vice-versa, por um<br />

processo contínuo de vocábulos-imagens que se suced<strong>em</strong> nos versos descritivos. Por fim, notou que, na<br />

poesia de Cabral, a linguag<strong>em</strong> busca um real perceptível, longe de qualquer introspecção; por isso é<br />

didática.<br />

Se as relações entre poesia e filosofia são transversais, <strong>em</strong> Psicologia da composição (1947), por ex<strong>em</strong>plo<br />

– do po<strong>em</strong>a <strong>em</strong> forma de uma filosofia da composição, ou de uma fenomenologia do po<strong>em</strong>a –, “muito<br />

prosperam” essas relações.<br />

Em ambos, filosofia e poesia são reveladas, assim, no trabalho com a linguag<strong>em</strong>, na depuração crítica<br />

de uma poiesis constitutiva desses dois traços.<br />

II. A leitura hermenêutica<br />

Conquanto Haroldo de Campos, <strong>em</strong> entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, no ano de 2003, afirmasse<br />

que, dentro da crítica brasileira, somente Gerd Bornheim e Benedito Nunes pod<strong>em</strong> ser reconhecidos como<br />

“filósofos que faz<strong>em</strong> crítica”, a relação que Nunes estabelece com o pensamento hermenêutico carrega<br />

um acento único, singular na nossa ensaística.<br />

Claro está que o professor paraense mantém um diálogo com outros críticos de extração hermenêutica,<br />

<strong>em</strong> particular, a heideggeriana, <strong>em</strong> que se pode destacar o trabalho de Vicente Ferreira da Silva, Vilém<br />

Flusser, Emmanuel Carneiro Leão e Eduardo Portella.<br />

Há de se ressaltar, no entanto, pelo menos dois aspectos que indicam diferenças entre eles e as reflexões<br />

de Benedito Nunes.<br />

O primeiro aponta para a própria trajetória deste como intérprete: os discursos filosóficos e literários<br />

aparec<strong>em</strong> como duas instâncias presentes na sua formação de autodidata; portanto, ele não é um literato<br />

que se ocupa da filosofia, n<strong>em</strong> um filósofo que se ocupa da literatura. Por outro lado, seu campo de<br />

interesse abrange interrogações da cultura, da história, da natureza...<br />

O segundo aspecto é coextensivo ao primeiro: sua leitura hermenêutica, ao interrogar o texto à procura<br />

da questão que o mundo da obra sugere ao pensamento, é assentada sob o foco da interdisciplinaridade.<br />

O pensamento heideggeriano comparece, por vezes, na sua analítica, mas <strong>em</strong> diálogo com outros filósofos<br />

b<strong>em</strong> como com outras disciplinas que favoreçam a conexão.


A PALO SECO<br />

32<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Se é visível, aliás, a importância de Heidegger, com qu<strong>em</strong> diz ter mais afinidades (Nunes, 2005, p. 300),<br />

por outro lado, não se pode afirmar que o discurso teórico-crítico de Nunes seja <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente voltado<br />

para o do filósofo. Ele próprio confessou não estar sob o “efeito Heidegger”, expressão usada por Henri<br />

Meschonnic (cf. Nunes, 1993, p. 7).<br />

Embora a “prática meditante” do autor al<strong>em</strong>ão exerça-lhe certo fascínio, isto não significa que outros<br />

pensadores não tenham despertado seus interesses pela relação entre filosofia e literatura. Basta assinalar<br />

como Benedito Nunes corrobora a explicação dada por Paul Ricoeur a respeito do mundo do texto<br />

tornar-se texto do mundo.<br />

Tal questão é um dos pontos-chave do projeto hermenêutico de Ricoeur (1990), que t<strong>em</strong> a intenção de<br />

propor uma nova configuração à probl<strong>em</strong>ática hermenêutica, entendida como a teoria <strong>em</strong> que a compreensão<br />

se relaciona com a interpretação dos textos. Há, assim, uma efetivação do discurso como texto.<br />

A sua noção de texto, nessa conjuntura, esclarece a aporia hermenêutica da divisão diltheydiana entre<br />

explicar e compreender, porquanto postula uma compl<strong>em</strong>entaridade dessas duas posições, uma articulação<br />

dialética. Esta vinculação entre explicar e compreender aponta como Ricoeur ultrapassou a oposição<br />

entre verdade e ciência ou método da hermenêutica de Gadamer e efetua a mediação mútua de filosofia e<br />

ciências s<strong>em</strong> prejudicar a autonomia dos campos respectivos.<br />

Por compreensão, Ricoeur (1986, p. 37) entende a possibilidade que o leitor t<strong>em</strong> de chamar para si a<br />

responsabilidade de estruturar o texto. Já a explicação é uma ação de segundo grau inserida nesta compreensão.<br />

Nesse sentido, define a interpretação por esta mesma dialética da compreensão e da explicação no<br />

patamar do “sentido” imanente ao texto. Ao deslocar o eixo da interpretação da subjetividade para o<br />

mundo, subordina a intenção do autor ao referente do texto.<br />

A hermenêutica, assim, edifica-se na tarefa de reconstruir o sentido, que pertence à estruturação da obra,<br />

e restituir a referência, cuja caracterização permite a esta lançar-se fora de si mesma para gerar um mundo:<br />

O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo de oculto, mas algo de descoberto. O que<br />

importa compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência<br />

não ostensiva do texto. A compreensão t<strong>em</strong> menos do que nunca a ver com o autor e a sua situação. Procura apreender as<br />

posições de mundo descortinadas pela referência do texto. Compreender um texto é seguir o seu movimento do sentido<br />

para a referência: do que ele diz para aquilo de que fala (Ricoeur, 2000, p. 99).<br />

O texto, ou linguag<strong>em</strong> como discurso, apresenta uma independência que modifica e intensifica a natureza<br />

intersubjetiva do diálogo: a escrita absorve a significação dos atos de linguag<strong>em</strong>, o dito ou “no<strong>em</strong>a”<br />

do dizer. A intenção do autor só pode ser esclarecida por meio da interpretação, mas um texto possui sua<br />

própria autonomia <strong>em</strong> relação a ele. Com a compreensão de um texto projeta-se um mundo, ou novos<br />

aspectos do nosso ser-no-mundo. A subjetividade do leitor é igualmente, assim, operação de leitura.<br />

A questão principal, dessa forma, não é perceber, sob o texto, a intenção subjetiva do seu autor, mas<br />

assinalar, diante dele, o mundo que ele descortina. O texto literário, ao deixar pendente a referência de<br />

primeiro grau, característica do discurso corriqueiro, <strong>em</strong>ancipa uma referência de segundo grau, <strong>em</strong> que o<br />

mundo é manifestado como um panorama de nossa vida e do nosso projeto. Esta nova referência, para<br />

além da vida cotidiana, alcança o seu pleno desenvolvimento apenas nas obras de ficção e de poesia e<br />

constitui, segundo o filósofo francês, o probl<strong>em</strong>a hermenêutico fundamental.<br />

A reflexão teórica de Ricoeur parte, é importante assinalar, de uma revisão da hermenêutica romântica<br />

de Schleiermacher e Dilthey, da renúncia da subjetividade e do idealismo da fenomenologia de Husserl, ao<br />

aprofundamento de uma hermenêutica fenomenológica, a ex<strong>em</strong>plo do que Heidegger, <strong>em</strong> Sein und Zeit<br />

(1927), e Gadamer, <strong>em</strong> Wahrheit und Methode (1960), já haviam realizado.<br />

Seus primeiros trabalhos, aliás, são dedicados à obra de Husserl, mas, reconhece (1986), seguiu uma<br />

evolução de método: de uma fenomenologia eidética, desenvolvida <strong>em</strong> Le volontaire et l’involuntaire (1950);


A PALO SECO<br />

33<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

da hermenêutica do símbolo, <strong>em</strong> La symbolique du mal (1960) e De l’interprétation. Essai des interprétations.<br />

Essai d’herméneutique (1969); a uma hermenêutica sobre a linguag<strong>em</strong>, a partir de La métaphore vive<br />

(1975) e T<strong>em</strong>ps et récit (1983).<br />

O método adotado de aproximação entre a fenomenologia e a hermenêutica, para ele, obedece às duas<br />

teses: 1) fenomenologia e hermenêutica só se relacionam se o idealismo da fenomenologia husserliana se<br />

submeter à sua crítica pela hermenêutica; e 2) para além da simples oposição, a hermenêutica estabelece-se<br />

sobre uma base fenomenológica e a fenomenologia só alcança o seu projeto filosófico ao usar a<br />

interpretação da hermenêutica.<br />

Para Benedito Nunes, este <strong>em</strong>preendimento teórico de Ricoeur é compatível “com a redução que a<br />

fenomenologia hermenêutica s<strong>em</strong>pre pratica, dos conceitos e categorias às formas el<strong>em</strong>entares da experiência<br />

vivida, à trama do mundo-da-vida (Lebenswelt), solo comum da poesia e das construções científicas”<br />

(2004, p. 201).<br />

Com as ciências humanas, Ricoeur estabelece uma relação interdisciplinar, haja vista seu diálogo crítico<br />

com o estruturalismo, a psicanálise de Freud, a filosofia da linguag<strong>em</strong>, a s<strong>em</strong>iótica e a s<strong>em</strong>ântica,<br />

presentes nas suas obras.<br />

Não obstante, o salto fenomenológico hermenêutico de Ricoeur (1986, p. 8), segundo ele, a sua contribuição<br />

pessoal, é o t<strong>em</strong>a da distanciação, instância crítica com que realiza todas as operações de pensamento<br />

que destacam a interpretação.<br />

A distanciação é como um procedimento crítico, que sustenta a dialética da proximidade e da distância<br />

no interior da interpretação.<br />

À distanciação, que liberta o texto da relação com o autor e o subtrai às dissimulações da realidade<br />

cotidiana, responde o ato do sujeito chamado apropriação, pelo qual este objeta ao sentido e à referência<br />

propostos pelo texto. É a oferta de mundo exposta pelo texto que é apropriada, segundo a superação da<br />

subjetividade ou “desapropriação” de si mesmo. Ao apropriar-se do sentido e da referência do texto, o<br />

sujeito distancia-se criticamente das próprias convicções e r<strong>em</strong>onta às “variações imaginativas” propostas<br />

pela literatura de ficção e de poesia. Na concepção de Ricoeur, o mundo do texto não é, portanto, o da<br />

linguag<strong>em</strong> corriqueira; ele promove uma distanciação do real consigo mesmo. Nesse sentido, é por meio<br />

da distanciação que a ficção gera uma nova apreensão da realidade: pela ficção, pela poesia, ampliam-se<br />

inovadoras possibilidades de ser-no-mundo; ficção e poesia miram o ser, já não sob a feição do ser-dado,<br />

mas sob a feição do poder-ser.<br />

Ao pontuar a colaboração de Ricoeur a uma teoria filosófica da interpretação, é necessário l<strong>em</strong>brar que<br />

as suas investigações sobre a teoria do texto ligada à da ação geram novas contribuições ao campo do<br />

pensamento histórico e político-social. Sua preocupação passa, igualmente, pela abordag<strong>em</strong> da reciprocidade<br />

entre narratividade e t<strong>em</strong>poralidade. A característica t<strong>em</strong>poral da experiência, como referente comum<br />

da história e da ficção, constitui-se, para ele, <strong>em</strong> um probl<strong>em</strong>a único, que envolve a ficção, a história<br />

e o t<strong>em</strong>po.<br />

Na sua análise hermenêutica sobre a linguag<strong>em</strong>, o papel des<strong>em</strong>penhado pela metáfora também ganha<br />

uma nova releitura: já não interessa mais a forma da metáfora (como foi para a retórica), n<strong>em</strong> tampouco o<br />

seu sentido (como para a s<strong>em</strong>ântica), mas a sua referência. A metáfora incide, dessa forma, no domínio de<br />

redescrever a realidade, o que ocasiona, como imperativo, uma maior conscientização quanto aos vários<br />

modos de discurso e quanto à particularidade do discurso filosófico. A metáfora intenta dizer aquilo que é;<br />

por isso a tensão entre a verdade metafórica e a “literal”.<br />

III. A linguag<strong>em</strong> crítica


A PALO SECO<br />

34<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

A leitura hermenêutica <strong>em</strong>preendida por Benedito Nunes busca no mundo do texto o “ser como” metafórico,<br />

que é a abertura, a forma como que examina o modus operandi, o “como” de uma obra literária.<br />

A metáfora proporciona, assim, o início de seu processo interpretativo; o ponto de partida para pe<strong>net</strong>rar<br />

no mundo do texto, o despontar como resultante de um ato de leitura.<br />

No seu idioma crítico há, por certo, uma espécie de criação poética, um discurso <strong>em</strong> construção, mas a<br />

linguag<strong>em</strong> de Nunes, no trato interpretativo das obras, na crítica que efetua o diálogo literatura e filosofia,<br />

se equilibra no intervalo entre essas criações e o conceitual. Uma crítica <strong>em</strong> que a principal característica<br />

é a opacidade, a idéia de que há um fio, um espaço não-transparente, entre a crítica e o poético.<br />

Há talvez, porém, um questionar de fronteiras. Entretanto, há também, s<strong>em</strong> dúvida, uma crítica instigante,<br />

que permite um repensar dessas questões; ou melhor, da questão da metáfora, uma vez que nos<br />

limites entre áreas aparece o projeto usual de metáfora como ornamentalidade.<br />

A maneira como Nunes trabalha com a seleção lexical é um ex<strong>em</strong>plo disso. Percebe-se claramente que<br />

o vocabulário escolhido é alusivo ao texto-objeto analisado. Assim, <strong>em</strong> cada crítica t<strong>em</strong>os palavras do<br />

autor abordado, que são reintegradas, metaforicamente, ao seu modo de escrita. É claro que estamos<br />

diante de uma intertextualidade crítica, mas não perante aquela intertextualidade da crítica-escritura barthesiana.<br />

Isso porque, nesta crítica, o texto se constrói na mesma densidade sêmica, no mesmo sentido do<br />

texto poético (cf. Perrone-Moisés, 1978, p. 58-76).<br />

Desse modo, se há, no discurso de Nunes, um diálogo com o texto analisado, isto não significa que há<br />

quebra de divisas, que seu discurso assuma as mesmas relações sensoriais, pictóricas, ambíguas do poético.<br />

Percebe-se, s<strong>em</strong> dúvida, uma incorporação; no entanto, mesmo assim seu escrito conserva características<br />

da crítica ensaística, reveladora do poético, s<strong>em</strong> que se torne, ela própria, poética:<br />

Viver – não é? – muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Por que aprender a viver é que é o viver mesmo [...] Eu<br />

atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada<br />

(Rosa, 1986, p. 38).<br />

[...] a viag<strong>em</strong> redonda, a travessia das coisas, – que é vivência e descoberta do mundo e de nós mesmos, nessa<br />

aprendizag<strong>em</strong> da vida, <strong>em</strong> que o próprio viver consiste – a viag<strong>em</strong>-travessia que se transvive na l<strong>em</strong>brança, constitui o<br />

saldo imponderável das ações, que a m<strong>em</strong>ória e a imaginação juntas recriam (Nunes, 1976, p. 175).<br />

Esse ex<strong>em</strong>plo, de uma crítica ao texto Grande sertão: veredas (1986), de Guimarães Rosa, mostra que a<br />

incursão ao metafórico é a maneira como Nunes opera com os el<strong>em</strong>entos constitutivos da obra analisada<br />

– os tropos e as figuras, a seleção lexical e a s<strong>em</strong>ântica, os componentes fonológicos, os morfológicos e os<br />

sintáticos. Isto é, a sua capacidade de articular esses aspectos e as possibilidades de uma leitura atenta<br />

a percorrer os espaços, as entrelinhas que a palavra poética lança cheia de significações. Estas são retomadas,<br />

assim, no jogo de linguag<strong>em</strong> e na busca por um processo de realce do texto investigado.<br />

A leitura que nasce daí oferece desdobramentos singulares: ao comentar os significantes de uma obra,<br />

Nunes redescobre diferentes sentidos destes mesmos significantes, <strong>em</strong> uma pluralidade hermenêutica,<br />

projetiva. Uma leitura de horizonte, de um olhar salteante para além da linha da imag<strong>em</strong>, para o solo<br />

metafórico que é capaz de trazer a experiência de uma nova referência reveladora do mundo do texto.<br />

Para Benedito Nunes, não importa discutir o porquê do recurso metafórico; importa mostrá-lo como<br />

marca da escritura, de um fazer textual que é característico do discurso. Por isso, há metáforas espelhadas,<br />

reescritas como traços dominantes de uma investigação que se meneia entre o conceitual e a criação<br />

de imagens. Conceito e metáfora não se hierarquizam e n<strong>em</strong> se identificam, mas são probabilidades proposicionais.<br />

Enfim, meu objetivo foi o de apenas contribuir com observações mais pontuais, <strong>em</strong> que pese a força da<br />

exposição de Victor Sales Pinheiro, para prolongar a discussão acerca da obra e do pensamento de Benedito<br />

Nunes.


A PALO SECO<br />

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35<br />

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Neoplatonismo, mística e poesia: do dizível ao indizível<br />

36<br />

Cicero Cunha Bezerra<br />

Departamento de Filosofia/UFS<br />

Falar sobre mística não é tarefa fácil. Sobre poesia, menos ainda. Não porque não se possa falar sobre<br />

mística, ou poesia, mas exatamente porque se fala muito sobre ambas. De modo que esta minha intervenção<br />

já começa marcada por um desconforto, a saber, escapar do risco de cair no falatório vazio onde tudo<br />

cabe, ou seja, mística seria desde uma música de Reginaldo Rossi até um texto de Teresa De Ávila, n<strong>em</strong> no<br />

radicalismo filológico que inviabiliza determinadas formas comuns de “experiências” mediante a distinção<br />

terminológica ou conceitual <strong>em</strong>pregada por aqueles que as descrev<strong>em</strong>. Um caminho que me parece, portanto,<br />

viável diante destes dois riscos, é d<strong>em</strong>arcar nosso objeto de análise o que, para mim, significa<br />

manter-se <strong>em</strong> uma “tradição”, isto é, restringir-se a um modo específico de pensar, tanto na forma quanto<br />

no conteúdo, <strong>em</strong> uma vivência classificada como “experiencial”, <strong>em</strong> que a filosofia e a literatura compartilham<br />

de uma mesma tarefa, a saber: revelar, mediante as metáforas e os simbolismos, a existência de<br />

uma ord<strong>em</strong> do mundo que não se deixa abarcar, precisamente, por nenhuma inteligibilidade. Nesse sentido,<br />

teríamos que repensar inclusive a ideia mesma de “ord<strong>em</strong>”. Tarefa que, ao contrário de conduzir a uma<br />

distinção dicotômica entre os âmbitos da natureza (imanência) e da sua totalidade (transcendência), permite<br />

uma compreensão <strong>em</strong> que o místico, mais que mistério, é a constatação de que os fatos do mundo<br />

não são tudo.<br />

Na verdade, isto é uma característica marcante na tradição neoplatônica: a poesia ganhar estatuto de<br />

representação daquilo que supera toda representação. Contra a crítica platônica à mímesis e ao poeta,<br />

como imitador de “sombras”, Plotino, e depois Proclo, reabilitaram a literatura e o papel do poeta. Para<br />

ambos o poeta deveria ser compreendido como entheatikós (inspirado) (Beierwaltes, 1992, p. 259). O<br />

poeta não só ganha um novo valor, mas, para Proclo, o próprio Platão depende dele. Na ótica neoplatônica<br />

o texto literário, <strong>em</strong> sua forma e conteúdo, expõe a tarefa tanto do poeta, quanto do filósofo, qual seja:<br />

expressar a unidade que se faz diversa <strong>em</strong> suas múltiplas manifestações (1992, p. 260). As imagens, as<br />

cenas, as falas, os personagens, tudo faz parte de um só propósito: conduzir o hom<strong>em</strong> a uma experiência<br />

transcende-imanente “da” e “na” própria linguag<strong>em</strong>. O que isto que dizer? Quando digo que mística impli-


A PALO SECO<br />

37<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

ca <strong>em</strong> uma transcendência-imanente “da” linguag<strong>em</strong>, quero apontar para o fato de que, para a tradição<br />

neoplatônica, no seio do dizer reside uma negação que é constitutiva do ato de nomeação das coisas, no<br />

entanto, é precisamente na negação que a linguag<strong>em</strong> ganha sentido. Dito de outro modo, a linguag<strong>em</strong>,<br />

para os místicos, é uma ferramenta, um exercício do limite que implica, necessariamente, na sua transgressão.<br />

Werner Beierwaltes define como unidade dinâmica ou relacional a analogia existente entre o pensamento<br />

e a representação das dimensões do ser (1992, p. 261). Estaríamos, assim, diante de uma compreensão<br />

do texto literário como um “organismo”. O ex<strong>em</strong>plo talvez mais representativo deste aspecto<br />

“orgânico” é a interpretação que Proclo realiza do Parmênides de Platão. Não cabe aqui expor todos os<br />

passos, mas quero somente chamar a atenção para os papéis e para a plasticidade dos personagens que<br />

transitam como figuras partícipes de um encontro, mas também como imagens dos princípios originários<br />

da realidade. É neste sentido que Antifonte, só para citar um ex<strong>em</strong>plo, que é descrito no diálogo platônico<br />

como “guardador de cavalos”, representa, para Proclo, uma referência às razões primeiras que são absorvidas<br />

pela alma. Não nos esqueçamos de que a alma é descrita por Platão, no Fedro 246 a, como uma<br />

“parelha de cavalos” <strong>em</strong> que um tende para o belo e outro para o feio, restando ao seu cocheiro a difícil<br />

tarefa de domá-los. Assim, a analogia entre texto (particular) e o macrocosmo é definitiva para o estabelecimento<br />

da literatura como expressão de um logos que é vivo.<br />

Artista e d<strong>em</strong>iurgo divino se aproximam no neoplatonismo e fundam a tarefa criadora do poeta como<br />

produtor do macrocosmo como imag<strong>em</strong> visível (ágalma, Timeu 37 c 7) do ser vivente. Metáforas e símbolos<br />

converg<strong>em</strong> na unidade entre metafísica, poesia e theurgia que, <strong>em</strong> última instância, revelam a “verdade<br />

desconhecida” (mystiké alétheia) 1 a partir de uma mediação simbólica (Beierwaltes, 1992, p. 263).<br />

Tanto a poesia quanto a filosofia, para Proclo, possu<strong>em</strong> dois fins: éllampsis (iluminação) e ékstasis (êxtase).<br />

A poesia entheastica conduz à perfeição. Homero e Platão compartiriam de uma visão <strong>em</strong> que mania<br />

e enthousiasmós (Fedro 244 D, 246 E) conduziriam à iluminação. É importante ressaltar que, ao lado deste<br />

aspecto “místico” da poesia, Proclo atribui um “segundo nível” que corresponde ao reflexivo, a saber, o<br />

didáskein ou didático. No “terceiro nível” estaria a poesia mimética pura que não produz conhecimento<br />

preciso (gnosis akribés). É este modo de interpretar a poesia que criticará Platão na República.<br />

Assim, nosso itinerário t<strong>em</strong> como ponto de partida o caráter mistagógico (Mystagogía) atribuído, por<br />

Marino, biógrafo de Proclo, à filosofia de Platão. Diz ele: “Platão teria recebido de Orfeu e de Pitágoras as<br />

tradições secretas concernentes aos mistérios divinos”. A palavra mýstes, que evoca a idéia de “segredo”<br />

e “agogé”, de iniciação, apontaria para o aspecto, não somente especulativo, mas transformante da filosofia<br />

platônica (Trouillard, 1982, p. 11). É importante sublinhar o caráter imanente da experiência filosófica<br />

para Proclo e, nesse sentido, especificar melhor o que estamos chamando aqui de mística dentro da tradição<br />

neoplatônica.<br />

Embora a palavra “mística” não possua uma interpretação unívoca, é importante observar que não<br />

poderíamos falar aqui de uma tradição se não tivéss<strong>em</strong>os um “corpus” que preserva o que J. Derrida<br />

chama de “ar familiar” e que r<strong>em</strong>onta, inegavelmente, como já foi dito, à exegese neoplatônica do pensamento<br />

de Platão. Mas qual seria de fato o centro desta exegese capaz de convergir diversos discursos ao<br />

longo da história? Para responder a esta pergunta, me alinho inteiramente à opinião de J. Trouillard, que<br />

define a mística na tradição neoplatônica do seguinte modo: “n<strong>em</strong> a cont<strong>em</strong>plação, n<strong>em</strong> o inteligível são<br />

o B<strong>em</strong>, mas estes estão subordinados a uma presença superior à ord<strong>em</strong> nóetica e geradora desta ord<strong>em</strong>”<br />

(1982, p. 16). Nesta afirmação está presente, por um lado, a estrutura hipostática plotiniana que separa o<br />

uno do “ser” e do “pensar” e, por outro, a afirmação do aspecto negativo da experiência da linguag<strong>em</strong> no<br />

neoplatonismo. Quando digo negativo quero reforçar a idéia de limite e não simplesmente de “falência”<br />

ou “impotência”.<br />

1 Cf. Proclo, Comentário à República I, 182, 13.


A PALO SECO<br />

38<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Negação conduz a um duplo movimento de desvio e transbordamento, ou seja, na negação, o limite<br />

como linguag<strong>em</strong> é preservado, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a verdade se mostra pela linguag<strong>em</strong>, mas além<br />

dela. Essa característica é o que distingue o neoplatonismo e os rumos que o platonismo médio tomou<br />

(Trouillard, 1982, p. 16). É importante observar que transcendência não significa, <strong>em</strong> nenhum caso, além<br />

mundo, mas a própria realidade <strong>em</strong> sua totalidade que, enquanto tal, aproxima-se de uma “vivência” ou,<br />

como afirma Benedito Nunes ao tratar do misticismo <strong>em</strong> A paixão segundo G. H, de Clarice Lispector:<br />

“caminho individual de acesso, por meio de uma experiência prática de desprendimento da individualidade,<br />

ao todo, ao cerne do real ou à divindade” (Nunes, 2009, p. 225).<br />

Na Eneada V, 5, 6, Plotino afirma que o uno, estando mais além da essência, deve estar também além<br />

do pensamento, posto que aquilo que não se conhece, o uno não t<strong>em</strong> <strong>em</strong> si algo que aprender, não pode<br />

ser pensamento. Nessa mesma direção, Proclo dirá que todo deus é s<strong>em</strong> figura (amófroton). Sendo s<strong>em</strong><br />

forma ou figura, a relação com o divino é primordialmente uma experiência que t<strong>em</strong> na alma humana seu<br />

espaço. Unidade, intuição, discurso, imaginação e sentidos formam uma hierarquia através da qual o<br />

hom<strong>em</strong> ascende progressivamente mediante ao que Benedito Nunes chama de “efeito anagógico” (2009,<br />

p. 41), isto é, uma conversão pelo ato da leitura. Desse modo t<strong>em</strong>os um característica que se mantém<br />

como caminho de ascese <strong>em</strong> que a literatura, mais que sentimentalismo, é pathos, e, enquanto tal, atividade<br />

criadora que expressa a unidade fecunda da vida da alma (Troulliard, 1982, p. 48).<br />

O papel atribuído por Proclo aos mitos é algo ímpar na tradição antiga. Os mitos são superiores, inclusive,<br />

às mat<strong>em</strong>áticas (1982, p. 49). Os mitos possu<strong>em</strong> dois aspectos centrais: educação dos jovens e<br />

evocação hierática e simbólica do divino. Aos iniciantes, as imagens serv<strong>em</strong> de guia para o aprimoramento<br />

do caráter; aos responsáveis pela iniciação, os mitos são fórmulas secretas. O mito transitaria entre o<br />

inefável e a matéria, do santuário ao abismo (1982, p. 49).<br />

Philippe St-Germain <strong>em</strong> seu artigo “R<strong>em</strong>arques sur les symbolismes du Commentaire sur la République<br />

de Proclus” observa que o sýmbolon é antes de qualquer coisa um caminho que implica <strong>em</strong> uma literatura<br />

fundada <strong>em</strong> ensinamentos que teria como base “uma síntese do inefável mediante um vocabulário forjado<br />

pelo indizível” (2006, p. 114). A defesa de Homero conduz o neoplatonismo à elaboração de um discurso<br />

que é radicalmente “alegórico”. Sendo assim, é imprescindível compreender a relação elaborada pelo<br />

neoplatonismo procleano entre o plano platônico das formas inteligíveis e o símbolo que o envolve. Se<br />

para Platão o sensível imita o inteligível, o símbolo é, no neoplatonismo procleano, não simplesmente<br />

parte desse processo de cópia/original, mas aquilo que permite invocar o divino (2006, p. 116). Trata-se,<br />

portanto, de um simbolismo não imitativo. Uma idéia importante derivada do resgate dos mitos é, s<strong>em</strong><br />

dúvida, pensar o mundo a partir de uma sympátheia. Física e metafísica se ordenam mediante a unidade<br />

que une todas as coisas, naturais e inteligíveis (2006, p. 118), e os mitos são criados, por sua vez, por um<br />

impulso engendrado pela imaginação para dividir o indivisível. Segundo Proclo, baseando-se na theurgia,<br />

“a poesia conduz a uma experiência mística que se traduz <strong>em</strong> uma supra-consciência” (2006, p. 122).<br />

A própria dialética, centro da filosofia platônica, possuiria três níveis: racional, inteligível e místico<br />

(Trouillard, 1972, p. 23). L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os que os mitos e as alegorias, no Político, no Timeu, não são apenas<br />

citações casuais, mas um modo poético de expressar as regiões da alma que a razão não consegue pe<strong>net</strong>rar,<br />

mas que os poetas alcançam (1972, p. 23). Daí o caráter de possessão representado pela loucura que<br />

provém das musas; diz Platão no Fedro 245 a:<br />

Quando encontra uma alma delicada e pura, desperta-a e arrebata-a, levando-a a exprimir-se <strong>em</strong> odes e outras formas de<br />

poesia, <strong>em</strong>beleza as inúmeras <strong>em</strong>presas dos antigos e educa os vindouros. E qu<strong>em</strong> chega às portas da poesia s<strong>em</strong> a inspiração<br />

das Musas, convencido de que pela habilidade se tornará um poeta capaz, revela-se um poeta falhado.<br />

Se for correto dizer que poesia e dialética, <strong>em</strong> Platão, compart<strong>em</strong>, <strong>em</strong>bora distintas, uma mesma função,<br />

seria necessário superar a nietzscheana visão apolínea dos diálogos. A deificação implica uma exaltação<br />

dionisíaca. É pela “ordenação” que alma ascende ao divino, mas, paradoxalmente, tal tarefa culmina


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

no excesso, no transbordamento. A filosofia platônica, portanto, é um “entre-dois” e, por isso, pod<strong>em</strong>os<br />

pensá-la como fronteira. O inteligível não é um espaço dado, <strong>em</strong> que situamos a perfeição da idéias, como<br />

costumamos ouvir falar, mas, na ótica de Proclo, seguindo o texto platônico do Político e o mito do “mundo<br />

abandonado” (Proclo, Pol. 273d), se define (o inteligível) a partir do jogo entre o “limite” e o “ilimitado”, ou<br />

melhor, entre s<strong>em</strong>elhança e dess<strong>em</strong>elhança constitutivas, por sua vez, do todo como unidade-múltipla e<br />

multiplicidade-una. O múltiplo não é uma simples degradação do uno, mas é graças a ele que o uno pode<br />

ser unificante (Trouillard, 1972, p. 19). Dito de outro modo, não há unidade s<strong>em</strong> contradição.<br />

De modo que a poesia é, para Proclo, um caminho capaz de superar, como no Filebo, uma vida reduzida<br />

ao sensível e uma vida reduzida à razão. O indizível se mostra pelos símbolos que tornam o texto uma<br />

iniciação que é essencialmente interpretativa. Sendo assim, o simbolismo neoplatônico, graças ao caráter<br />

negativo do uno, rompe com a mímesis platônica e passa a pensar a poesia como evocação.<br />

A afirmação da natureza “negativa” do uno é o que possibilitará, posteriormente, o surgimento da<br />

compreensão cristã de Deus <strong>em</strong> sua expressão mais radical. Dionísio Pseudo Areopagita, Eriúgena, M.<br />

Eckhart, Nicolau de Cusa, Angelus Silesius, só para citar alguns, desenvolveram um tipo de reflexão que<br />

t<strong>em</strong> na ausência de toda fundamentação objetiva o centro de um saber que não é “saber”, mas ignorância<br />

e trevas. E onde entra a poesia? Como conclusão, volt<strong>em</strong>os ao ponto inicial. Não sendo, pois, objeto de<br />

conhecimento, como pode ser uma planta, uma rocha, um indivíduo, o real deve ser encarado sob uma<br />

nova ótica: a ótica do nada. Diz Dionísio Pseudo Areopagita: “não é nenhuma das coisas que não exist<strong>em</strong><br />

n<strong>em</strong> das que exist<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> os seres a conhec<strong>em</strong> tal como ela é, n<strong>em</strong> ela mesma conhece os seres assim<br />

como eles são” (Teologia mística, V, p. 25).<br />

Finalmente, entre o uno e os seres não há via de acesso que não passe pela negação e, <strong>em</strong> última<br />

instância, pela própria negação da negação. O uno está além do universo das coisas (epékeina ton holon)<br />

e, enquanto tal, a linguag<strong>em</strong> poética, ao contrário do dizer objetivista, funda uma experiência <strong>em</strong> que<br />

deixa ver o fundado a partir dele mesmo, isto é: do abismo s<strong>em</strong> fundo. Dito de outro modo, a poesia, como<br />

observa Heidegger, libera o simples, ou seja, é um caminho de abertura à presença (Anwesen) que se dá,<br />

precisamente, como subtração e retenção (Bezerra, 2006, p. 267).<br />

Benedito Nunes, no seu texto “Hölderlin e a essência da poesia”, expressa b<strong>em</strong> o jogo poético ao<br />

afirmar o poder da linguag<strong>em</strong> como negação e revelação. Segundo ele, o que distingue o poeta do pensador<br />

é o fato da nomeação do poeta alcançar o que excede a compreensão do ser. Sendo assim, o pensador<br />

“gravita” <strong>em</strong> torno do ser, o poeta manifesta o “indizível” que é estranho ao pensamento (2007, p. 125).<br />

Referências bibliográficas<br />

BEIERWALTES, W. Pensare l’uno: studi sulla filosofia neoplatonica e sulla storia dei suoi influssi. Trad. Maria<br />

L. Gatti. Milano: Vita e Pensiero, 1992.<br />

NUNES, B. A clave do poético. Org. Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.<br />

______ . Ensaios filosóficos. Org. Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010.<br />

______ . Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Org. Maria J. Campos. Belo Horizonte: UFMG,<br />

2007.<br />

TROUILLARD, J. L’un et l’âme selon Proclos. Paris: Les Belles Lettres, 1972.<br />

______ . La mystagogie de Proclos. Paris: Les Belles Lettres, 1982.<br />

ST-GERMAIN, P. R<strong>em</strong>arques sur les symbolismes du Commentaire sur la République de Proclus. Laval Théologique<br />

et Philosophique, vol. 62, n. 1, 2006, p. 111-123. Disponível <strong>em</strong>: http://www.erudit.org/revue/ltp/<br />

2006/v62/n1/013576ar.pdf.


A escritura da m<strong>em</strong>ória enquanto<br />

fundamento identitário do eu<br />

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz<br />

Departamento de Letras Vernáculas/UFS<br />

Iniciar<strong>em</strong>os este trabalho com uma assertiva axiomática: se há algo que na existência do hom<strong>em</strong> pode<br />

ser cont<strong>em</strong>plado com a qualidade da permanência, esse algo é a faculdade da m<strong>em</strong>ória. Porém, uma<br />

permanência não do que é, e sim do que passa, do que fica e do que resta na passag<strong>em</strong> do t<strong>em</strong>po.<br />

Portanto, atribuiríamos à m<strong>em</strong>ória o princípio da unidade e continuidade do ser, base da personalidade<br />

individual (assim como a tradição pode ser considerada a base da personalidade coletiva), ou seja, o<br />

princípio integrador através do qual o indivíduo se esforçaria <strong>em</strong> perseverar <strong>em</strong> seu ser.<br />

A história passada e antepassada de cada um comportar-se-ia como lar-abrigo, refúgio do ser nos<br />

momentos <strong>em</strong> que o princípio inerent<strong>em</strong>ente oposto ao do in(divíduo), o da fragmentação do ser, aparece<br />

teimosamente com sua vocação dissociativa.<br />

Não consideramos excessivo frisar que não apontamos para uma subjetividade inteiriça e transparente,<br />

fincada num sujeito idêntico a si mesmo, pois, como aposta Merleau-Ponty, “a subjetividade arrasta seu<br />

corpo atrás de si” (1994, p. 472). Dessa maneira, pretend<strong>em</strong>os pensar a indivisibilidade do sujeito como<br />

princípio intrinsecamente identitário, mas s<strong>em</strong>pre desfeito e refeito no curso do t<strong>em</strong>po. Dito isto, observaríamos<br />

que a primeira e talvez mais importante expressão concernente à m<strong>em</strong>ória seja a sensação de<br />

proximidade que as l<strong>em</strong>branças passadas traz<strong>em</strong> ao ser. Quer<strong>em</strong>os nos referir ao vital estado íntimo provido<br />

pelo sentimento de pertença a uma história e de contiguidade a um território.<br />

Como mostra a antropologia, os grupos sociais têm como fundamento de sua personalidade coletiva a<br />

continuidade de uma tradição. No que concerne às sociedades ditas “primitivas”, esta seria mantida pela<br />

revisitação de seu mito fundador, consubstanciado numa narrativa primeva, ancestral, que imporá um<br />

sentido ético-organizacional à existência do grupo. Em relação a elas, poderíamos falar de uma m<strong>em</strong>ória<br />

coletiva perene e indefectível. Quando, por outro lado, pensamos nas sociedades modernas e no intenso<br />

grau de individualização alcançado pelo hom<strong>em</strong> cont<strong>em</strong>porâneo, vivendo numa linha divisória entre a<br />

tradição e a liberdade para o novo, atentamos para o constante estado de contradição entre a continuidade<br />

mantenedora das (não) escolhas costumeiras e a liberdade, digamos, catastrófica, da não-adoção delas.<br />

Neste caso, <strong>em</strong> se tratando dessa espécie de esfacelamento que acomete a modernidade, a revisitação<br />

40


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

m<strong>em</strong>orial, principalmente nas fases de uma ruptura, surgiria como ato espontâneo do espírito. Este, na<br />

impossibilidade de resolver o impulso contraditório – contra a tradição –, por algum motivo impregnado à<br />

personalidade, buscaria o passado como uma forma de dotar-se da “graça” de uma estabilidade. Tal percurso<br />

se consolidaria como o movimento no qual o espírito viria a si pelo despertar das imagens que<br />

compõ<strong>em</strong> a vida passada. Nesse sentido, conceder-se-ia uma identidade entre espírito e m<strong>em</strong>ória. Identidade<br />

que defenderíamos como forma mais plausível de se atribuir uma concreção de significado ao que<br />

v<strong>em</strong> a ser chamado de espírito. Como diz Henry Bergson <strong>em</strong> Matéria e m<strong>em</strong>ória, “se, portanto, o espírito<br />

é uma realidade, é aqui, no fenômeno da m<strong>em</strong>ória, que dev<strong>em</strong>os abordá-lo experimentalmente” (1999, p.<br />

78). É dessa espécie de reciprocidade significativa que nasceria o horizonte de uma consciência individual,<br />

como também, acrescentaríamos enfaticamente, a possibilidade de suplantar uma autoidentidade solidificada<br />

na identificação com as ordenações socioculturais. Visaríamos, assim, a uma consciência que, no<br />

incurso da m<strong>em</strong>ória, desenvolveria uma contundente sensação de domínio, como de pertencimento, a<br />

alteridade e/ou a diferença de sua história própria – pois o que há de per<strong>em</strong>ptório a distinguir as pessoas<br />

senão o senso unívoco de seus trajetos particulares? Desse modo, pretend<strong>em</strong>os nos referir a uma consciência<br />

“individualizante” que, ao descentrar a generalidade objetivada da espécie, perfará a medida e o<br />

alcance de sua subjetividade; para, então, (des)fechando o raciocínio, dizer que esta só se assumiria como<br />

tal levando a efeito a contribuição do fenômeno da m<strong>em</strong>ória.<br />

Nesse âmbito, a adoção da reflexão bergsoniana viria pela tentativa de unir ao probl<strong>em</strong>a da percepção<br />

uma teorização a respeito da m<strong>em</strong>ória. Dirá ele: “Na verdade, não há percepção que não esteja impregnada<br />

de l<strong>em</strong>branças” (Bergson, 1999, p. 30). O princípio básico sugerido por Bergson é que a percepção<br />

consistiria num conhecimento útil que o corpo engendra <strong>em</strong> sua interação com o meio, de modo a fazer<br />

uma seleção das imagens percebidas de acordo com a vantag<strong>em</strong> que o corpo busca na luta pelo prosseguir<br />

de sua consistência. Nesse processo, todos os dados da experiência passada viriam naturalmente <strong>em</strong><br />

ajuda à consecução dessa meta instintiva; ou seja, ao enfrentarmos um dil<strong>em</strong>a objetivo, recorrer<strong>em</strong>os,<br />

com maior ou menor consciência, à l<strong>em</strong>brança de ocorrências similares para a escolha de uma determinada<br />

resolução.<br />

Ver<strong>em</strong>os adiante que Bergson classifica tipos de l<strong>em</strong>branças conforme suas funções concernentes à<br />

percepção. Portanto, mesmo num modo de conhecimento mais especulativo, e até cont<strong>em</strong>plativo – um<br />

conhecimento antifuncional fundado numa imaginação à deriva –, ocorreria, no cerne da combinação das<br />

imagens providas à mente, um espontâneo chamamento à m<strong>em</strong>ória. Quer<strong>em</strong>os assinalar que o processo<br />

m<strong>em</strong>orial viria s<strong>em</strong>pre como uma ajuda, um ben<strong>em</strong>érito, <strong>em</strong>ergindo à consciência por uma necessidade do<br />

espírito <strong>em</strong> se manter como existente; desde a ativa intenção, mais ou menos reflexa, surgida no conflito<br />

com o outro humano ou natural – característica geral dos seres vivos –, até a qualidade supérflua, talvez só<br />

inerente ao hom<strong>em</strong>, de r<strong>em</strong><strong>em</strong>orar imagens à toa do passado. Se entre esses dois casos, como obsessivamente<br />

interessa a Bergson, houve uma mudança de natureza na imag<strong>em</strong> m<strong>em</strong>orial, ou apenas um aumento<br />

no seu grau de complexidade, aqui nos parece irrelevante. O importante a se relevar é que <strong>em</strong> tal<br />

necessidade se firmaria um movimento de reorganização do corpo <strong>em</strong> direção a um novo momento – lugar<br />

de equilíbrio do ser.<br />

Quando falamos de um efeito da imag<strong>em</strong> m<strong>em</strong>orial sobre o espírito, obrigatoriamente nos vêm à mente<br />

as obras de Gaston Bachelard nas quais este poeta-epist<strong>em</strong>ólogo ressalta o poder benfazejo que o devaneio<br />

poético de imagens de potências materiais teria na alma. No entanto, é-nos dificultoso responder ou<br />

tratar acerca das repercussões tristes, doloridas ou no mínimo incômodas que insistent<strong>em</strong>ente assombram<br />

a consciência – normalmente associadas a pequenos pormenores de l<strong>em</strong>branças contíguas ou afins.<br />

Será que o pesar trazido por elas não afetaria o espírito de maneira oposta às preconizadas acima? Será<br />

que o devaneio, primo-irmão da m<strong>em</strong>ória, também não teria sua carga obscura? Inegável é o peso da<br />

m<strong>em</strong>ória. E tão forte às vezes ele se faz sentir, que uma das estratégias para um b<strong>em</strong>-estar da alma<br />

consiste na seleção consciente das l<strong>em</strong>branças advindas, de modo a, na medida do possível, livrarmo-nos<br />

de seu constrangimento. Contudo, ao espírito também cabe o alimento dessas l<strong>em</strong>branças, digamos, ru-


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

ins. E é justamente da ruminação consciente da dor sentida pela l<strong>em</strong>brança delas, como da b<strong>em</strong>-t<strong>em</strong>perança<br />

provocada pelas de bom auspício, que o ser-identidade poderá a cada passo se tornar mais senhor<br />

de si.<br />

É neste momento que encontramos a postulação bergsoniana de que, se de alguma maneira é possível<br />

abordar experimentalmente o diáfano espiritual, isso se dá pelo fenômeno da m<strong>em</strong>ória. Fará ele uma<br />

estranha dissociação entre o que denominará de percepção pura, ou matéria, e l<strong>em</strong>brança pura, ou espírito.<br />

Para nós, essa divisão conceitual serviria para um melhor parâmetro de compreensão dos termos, visto<br />

que não existiria um exato limite d<strong>em</strong>arcatório das funções de cada um. Assim, a função atribuída por<br />

Bergson à percepção ao separá-la – nesse primeiro momento como ver<strong>em</strong>os – da m<strong>em</strong>ória, englobaria os<br />

mecanismos sensório-motores responsáveis pela ação-reação do corpo aos estímulos externos. Dessa<br />

maneira, ela atuaria s<strong>em</strong>pre numa dimensão presentificada do t<strong>em</strong>po correspondente à relação imediata<br />

entre os corpos-matéria. Porém, para que esse automatismo se torne cada vez mais eficiente no alcance<br />

de seus objetivos, faz-se necessário um mecanismo de seleção daquelas ações que no t<strong>em</strong>po se mostraram<br />

mais eficientes, retendo-se os acontecimentos ocorridos, permitindo-se assim uma projeção otimizada<br />

do caminho a ser seguido.<br />

É como se, no aceite da teoria evolutiva, as deficiências sensório-motoras da espécie humana foss<strong>em</strong><br />

supridas pela eficácia lógica de sua atuação, cujo passo fundamental teria vindo com o aprimoramento<br />

das tecnologias de exploração dos recursos da natureza. Quiçá, é nessa esfera evolutiva que se complexificou<br />

a função simbólico-metafórica humana, pois, para o resguardo e a posterior seleção das imagens<br />

percebidas, seria necessário o transporte destas do espaço limítrofe entre corpo e ambiente externo para<br />

uma zona “profunda” onde elas seriam representadas. É, portanto, neste não-lugar pertencente à dimensão<br />

do espírito, o qual denominamos de m<strong>em</strong>ória, que a infinitude do conjunto de imagens que nos compõ<strong>em</strong><br />

se posiciona de modo tal a permitir a mistura, a substituição e a combinação entre uma e outras.<br />

Disso se poderia explicar, por ex<strong>em</strong>plo, a promiscuidade imagética característica do onírico, como também<br />

o próprio fundo intuitivo que engendra as ideias. Sendo a partir da multiplicação combinatória das imagens<br />

que o indivíduo projetaria universos inexistentes, porém s<strong>em</strong>pre tendo como base o que já existiu, ou seja,<br />

a medida de sua experiência perceptiva. O futuro abrindo-se para nós como a invenção de caminhos<br />

insuspeitos a partir de caminhos antes trilhados.<br />

Desenvolvendo-se, então, as noções de percepção e m<strong>em</strong>ória puras, encontraríamos dois perfis psicológicos,<br />

ou duas diferentes disposições de espírito. A do hom<strong>em</strong> voltado para a ação presente, indisposto<br />

com o t<strong>em</strong>po, levado por uma atenção s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong>ente ao solucionar dos obstáculos insurgentes, s<strong>em</strong>pre<br />

a dispensar sua catexia presente na direção de uma certeza objetiva. Não pretendendo sentir a duração do<br />

t<strong>em</strong>po, sua elasticidade, só concebe o mundo como instrumento ou alavanca para a construção de um<br />

futuro. De sorte que para esse sujeito o melhor é se ver livre do passado, e o recurso às l<strong>em</strong>branças só<br />

acontecerá na exata medida de sua serventia. Já o outro tipo, o do sujeito entregue ou tragado pela<br />

m<strong>em</strong>ória, no qual o hábito do rel<strong>em</strong>brar-se acontece de maneira quase patológica, 1 conviveria com o<br />

passado no presente mesmo <strong>em</strong> que vive, devotando sua energia psíquica ao mundo quimérico das “imagens<br />

irreais”. Substitui, assim, o imediatismo de um presente inconsolado e desagradável por um universo<br />

abstrato no qual priva de seu maior b<strong>em</strong>: a intimidade. É o espírito voltado à substância incompreensível<br />

dos sonhos, 2 e que, mesmo no estado de vigília, se pega amiúde <strong>em</strong> devaneios considerados pela vida<br />

prática como vãos. Como b<strong>em</strong> diz Bergson, “para evocar o passado <strong>em</strong> forma de imag<strong>em</strong>, é preciso dar<br />

1 Em seu conto “Funes, o m<strong>em</strong>orioso“, Jorge Luis Borges descreve-nos o personag<strong>em</strong> Irineu Funes, um sujeito que, acidentalmente,<br />

adquiriu a faculdade de dilatar o espaço-t<strong>em</strong>po, discernindo, naquilo que não pode ser destacado ou isolado, uma<br />

total singularidade. Percebia, assim, nas infindáveis linhas da crina de um cavalo, nas diferentes faces de um morto num<br />

d<strong>em</strong>orado velório, a mesma nitidez linear que observamos no claro desenho de um círculo sobre o quadro-negro.<br />

2 Inspirados na clássica afirmação encontrada na T<strong>em</strong>pestade, de William Shakespeare, de que somos feitos da mesma<br />

matéria dos sonhos, indagaríamos então: de que substâncias são feitos os sonhos?


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valor ao inútil, é preciso querer sonhar”. E acrescenta: “Talvez apenas o hom<strong>em</strong> seja capaz de um esforço<br />

desse tipo” (1999, p. 90).<br />

Enfim, retomando a reflexão de Bergson acerca do significado das relações entre m<strong>em</strong>ória e percepção,<br />

concluímos ser do desequilíbrio entre a reciprocidade das duas funções o aparecimento dos vários níveis<br />

de “cegueira psíquica”. O obnubilar-se da consciência se dando no movimento pendular entre a alienação<br />

do sujeito quanto à sua subjetividade, por um lado, e a negação do mundo exterior, por outro; o que levaria<br />

à diminuição dissolutória da síntese identitária-existencial, efetivada tanto no poder consciente sobre as<br />

circunstâncias quanto <strong>em</strong> sua inerência nelas. Ora, tal “domínio consciente”, reforçamos aqui, nada mais<br />

significaria que a atenção, ou mesmo, o notar, da vida, pela iluminação dos acontecimentos passados.<br />

Uma vela irradiando-se sobre um horizonte cuja circunscrição denominaríamos de “Minha Vida”. E isso<br />

corresponde ao conjunto das l<strong>em</strong>branças-imagens que, <strong>em</strong> mim eclodindo, constitu<strong>em</strong> o “Meu Nome”. A<br />

essas l<strong>em</strong>branças-imagens Bergson associará a definição de “m<strong>em</strong>ória espontânea”, “que t<strong>em</strong> por objeto<br />

os acontecimentos e detalhes de nossa vida, cuja essência é ter uma data e, consequent<strong>em</strong>ente, não se<br />

reproduzir jamais” (1999, p. 90). Esta seria para ele a m<strong>em</strong>ória por excelência, e não aquela adquirida<br />

como resultado de um trabalho repetitivo da atenção, a qual terminará se fixando por uma condição de<br />

hábito. O caso extr<strong>em</strong>o deste modo de m<strong>em</strong>ória constata-se, por ex<strong>em</strong>plo, no didatismo antiquado que<br />

ainda impera nas pedagogias escolares, as quais associam a aprendizag<strong>em</strong> à assimilação repetitiva de um<br />

crescente acúmulo de informações. Todavia, essas l<strong>em</strong>branças-hábitos, operadas pelos mecanismos sensório-motores,<br />

comporiam a ferramenta imprescindível, guardadas as diferenças de grau, a todos os seres<br />

vivos <strong>em</strong> suas reações adaptativas ao meio ambiente. Estamos assim de volta ao terreno da utilidade, no<br />

qual o passado é registrado sob a forma de hábitos motores. Se, no entanto, acreditamos que ao menos no<br />

hom<strong>em</strong> existe uma capacidade natural de reter as imagens concernentes às situações passadas, dever<strong>em</strong>os<br />

acompanhar Bergson na indagação acerca da finalidade das l<strong>em</strong>branças-imagens: “Para que servirão<br />

essas imagens-l<strong>em</strong>branças? Ao se conservar<strong>em</strong> na m<strong>em</strong>ória, ao se reproduzir<strong>em</strong> na consciência, não irão<br />

elas desnaturar o caráter prático da vida, misturando o sonho à realidade?” (1999, p. 92). Ora se não seria<br />

esta a natureza da arte?! A de impregnar de sonho a realidade para torná-la um pouco mais suportável; ou,<br />

como se a realidade mesma, da única forma <strong>em</strong> que pelo humano pode ser apreendida, não passasse<br />

senão de um grande sonho coletivo. A questão é que o pensamento criador é da mesma estirpe do sonhar,<br />

com a magnânima capacidade de nutrir o sonho de uma substância “(real)izável”. Portanto, o desprovimento<br />

desta profundidade onírica sobre a qual flutua nosso existir pensado-percebido da vida resultará<br />

naquele sujeito automatizado pela repetição útil de seus hábitos, o qual “encenaria s<strong>em</strong> cessar sua existência<br />

<strong>em</strong> vez de representá-la” (Bergson, 1999, p. 182).<br />

Neste momento, o ato de reconhecimento das imagens-l<strong>em</strong>branças surgiria como a maneira pela qual<br />

passado e presente, m<strong>em</strong>ória e percepção, se uniriam numa mesma dimensão, a qual, na falta de uma<br />

terminologia, caberia a nós chamar de “t<strong>em</strong>po do viver”. Emergiria, assim, desta dimensão, a figura do<br />

“leitor do t<strong>em</strong>po”, o qual se caracterizaria pela intensa sensação advinda no momento do reconhecimento<br />

dos significados propostos pelas “palavras-imagens” percorridas por seus olhos. Nesse âmbito, Bergson<br />

traz à tona o chamado sentimento de déjà vu. Este se processaria pela similaridade-contiguidade das<br />

percepções presentes às percepções passadas consolidadas na m<strong>em</strong>ória. O fato é que, mesmo com toda<br />

a energia despendida nas tensões motoras com o enfrentamento do “t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong>pre a vir”, as l<strong>em</strong>brançasimagens<br />

de um “t<strong>em</strong>po ido” estão, a cada momento, sedimentando-se no espaço-t<strong>em</strong>po do espírito. E,<br />

para que elas não venham a usurpar o domínio da atenção sensório-motora, caso do sujeito inteiramente<br />

devotado aos sonhos, faz-se necessária uma constante seleção de seu “aparecer à consciência”, relegando-as<br />

a um ostracismo <strong>em</strong> relação à psique alerta. Haveria assim um filtro pelo qual a percepção presente<br />

só reconheceria as l<strong>em</strong>branças-imagens direcionadas à ação motora quando guiada por um movimento<br />

<strong>em</strong> direção ao “t<strong>em</strong>po útil do futuro”. O ponto fulcral a que chegamos é que por algum escuso motivo tal<br />

seleção não ocorre com a qualidade de uma “perfeição-máquina”; assim, por obra mesma do espírito<br />

humano, às impressões atuais se condensaria a m<strong>em</strong>ória espontânea do t<strong>em</strong>po supérfluo do passado.


A PALO SECO<br />

44<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Um t<strong>em</strong>po “inútil”, caracterizado pelo movimento não visível do sujeito, por uma exótica ocupação do<br />

espaço estabelecida por um silenciar das manifestações exteriores do corpo. Porém, é justamente esta<br />

disposição do t<strong>em</strong>po para o espírito, um t<strong>em</strong>po distendido, que levará à recondução ao objeto percebido,<br />

a uma detenção do corpo-espírito sobre ele. Como b<strong>em</strong> observa Bergson, “se no reconhecimento automático<br />

nossos movimentos prolongam nossa percepção para obter efeitos úteis, nos afastando assim do<br />

objeto percebido, aqui, ao contrário, eles nos reconduz<strong>em</strong> ao objeto para sublinhar seus contornos” (1999,<br />

p. 111). É como se a fé perceptiva com a qual nos agregamos ao “espaço real” fosse, nas palavras de<br />

Bergson, “fortalecida” e “enriquecida” pela m<strong>em</strong>ória. Esta, no parentesco das imagens percebidas com as<br />

l<strong>em</strong>bradas, agudizaria a percepção pelo valor resultante da coincidência entre sujeito percipiente e sujeito<br />

percebido. Coincidência que necessariamente ocorreria na detenção de um t<strong>em</strong>po sincronicamente recíproco,<br />

o qual se deixaria ser notado à medida que a contração da m<strong>em</strong>ória projetasse nele suas l<strong>em</strong>branças.<br />

Nesse sentido, o projetar-se da m<strong>em</strong>ória poderia se dar tanto pelo esforço da atenção concentrada<br />

como pela espontaneidade de uma atenção distraída; ou seja, uma m<strong>em</strong>ória que ora atenderia ao chamado<br />

das percepções, ora, por capricho, se escoaria sobre elas, recobrindo-as com o invólucro de nossa<br />

existência passada.<br />

Só essa coalescência entre o fundo lugar da m<strong>em</strong>ória e o espaço superfície da percepção, unidos como<br />

contínua ponte, poderia explicar o sujeito que se sente s<strong>em</strong>pre na fronteira da nostalgia do que passou e<br />

da curiosidade do que está a passar, perpassados ambos os lugares pelo amplo espectro de suas possibilidades<br />

interpretativas. Dev<strong>em</strong>os observar, no entanto, que se Bergson estabelece nesse encontro a passag<strong>em</strong><br />

de um estado de virtual consciência, ao qual corresponde à l<strong>em</strong>brança-imag<strong>em</strong>, para o de uma<br />

atuação sensório-motora que t<strong>em</strong> seu ímpeto na assimilação perceptiva daquela, nossa intenção diretriz<br />

se manteria no foco da percepção imaginativa. Permanecendo neste foco, teríamos que propor, <strong>em</strong> vez de<br />

uma transfiguração da l<strong>em</strong>brança-imag<strong>em</strong> <strong>em</strong> imag<strong>em</strong> percebida, <strong>em</strong> decorrência do que a l<strong>em</strong>brança se<br />

enfraqueceria <strong>em</strong> troca de um fortalecimento da percepção, a idéia de uma justaposição pela qual m<strong>em</strong>ória<br />

e percepção permaneceriam por um determinado segmento do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> suspensão consciente. Instante<br />

suficiente para uma intuição (clara-evidente) tanto do presente observado quanto do passado<br />

r<strong>em</strong><strong>em</strong>orado. Preponderando nos dois estados o trabalho imaginativo: no primeiro pod<strong>em</strong>os imaginar a<br />

existência decorrida, visto que já conhecida pela m<strong>em</strong>ória; no segundo imaginamos o t<strong>em</strong>po que decorre<br />

diante de nós, pois já conhecido por nossos sentidos perceptivos. Esse posicionamento irá conflitar-se<br />

com a afirmação de Bergson, de que “imaginar não é l<strong>em</strong>brar-se” (1999, p. 58). Por outro lado, ele nos<br />

permite essa visada, já que, ao longo da obra, não se interessa <strong>em</strong> discorrer acerca do ato imaginativo.<br />

Como também a postulação de que o presente seja essencialmente sensório-motor, e portanto extensivo<br />

e localizado, não possibilitará o voo do espírito sobre o horizonte cont<strong>em</strong>plado pela percepção. Pois, para<br />

nós, é nesse momento que v<strong>em</strong>os realizar-se o instante exato <strong>em</strong> que o ser se compreende no que percebe,<br />

pela consciência imaginativa predisposta ao e no percebido.<br />

Outrossim, acreditamos impor-se o probl<strong>em</strong>a da imaginação na pertinência lógica da interrogação do<br />

próprio filósofo: “Mas como o passado, que, por hipótese, cessou de ser, poderia por si mesmo conservarse?<br />

Não existe aí uma contradição verdadeira?” (Bergson, 1999, p. 175). Ora, mas não foi ele próprio que<br />

cunhou o termo composto “l<strong>em</strong>brança-imag<strong>em</strong>”? A subsistência do passado, portanto, dar-se-ia pela conservação<br />

das imagens do que ele foi. Porém, seguindo-se a dúvida, de inspiração shakespeareana, que<br />

indaga a respeito da substância dos sonhos, admitir<strong>em</strong>os a inextensão delas, ou seja, a qualidade de uma<br />

ausência de substância. Não localizáveis, n<strong>em</strong> como vácuo, a única circunscrição que pod<strong>em</strong>os ater às<br />

imagens é a que coincide com o alcance do nosso ser. E, deveras curioso, <strong>em</strong> sendo o que não é, elas têm<br />

o estranho poder da afetividade. Se, então, elas têm a vitalidade de nos afetar, o passado afetando o<br />

presente, <strong>em</strong> contrapartida, já que o conjunto de imagens passadas consiste num meu pertencimento ao<br />

outrora, tenho <strong>em</strong> mim o poder de agir sobre elas pela faculdade da imaginação, a saber, imaginando as<br />

l<strong>em</strong>branças-imagens a partir das relações afetivo-perceptivas com as quais atravesso o presente existir.<br />

Desse modo, a consciência possui a ferramenta – não material – que permite trabalhar as l<strong>em</strong>branças-


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

imagens composta da mesma incorpórea substância delas, dando-nos assim o direito de transfigurarmos<br />

o poder afetivo que atribuímos a essas l<strong>em</strong>branças-imagens, pois, ao r<strong>em</strong><strong>em</strong>orá-las imaginativamente,<br />

pod<strong>em</strong>os dispô-las através de um certo controle. Ou mantendo a disposição espaço-t<strong>em</strong>poral das representações,<br />

ou recombinando-as de acordo com algum impulso estético, estar<strong>em</strong>os ficcionalizando nossa<br />

vida passada, porém s<strong>em</strong>pre com a sensação de mantermos os pés no presente.<br />

Discordamos, pois, da afirmação de que “nós só perceb<strong>em</strong>os, praticamente, o passado, o presente puro<br />

sendo o inapreensível avançar do passado a roer o futuro” (Bergson, 1999, p. 176), visto que existiria um<br />

quase inapreensível instantâneo evento onde nossa atenção, ao distinguir sua figura-sobre-fundo, seu<br />

grau de diferenciação <strong>em</strong> relação aos d<strong>em</strong>ais eventos, conseguiria vislumbrar a individualidade de sua<br />

apresentação; ou seja, sua aparição única <strong>em</strong> sincronia com o sujeito vidente (1999, p. 188). Neste momento,<br />

Bergson nos permite uma interessante interlocução ao dizer que a “distinção nítida dos objetos<br />

individuais” requereria uma m<strong>em</strong>ória das imagens e que, para “uma concepção perfeita dos gêneros”<br />

enquanto esforço reflexivo, exigir-se-ia justamente o elidir das “particularidades de t<strong>em</strong>po e lugar” de<br />

uma dada representação. Esta consideração nos é importante na medida <strong>em</strong> que admite dois momentos<br />

de compreensão dos seres, o da individuação e o da generalização, os quais pod<strong>em</strong> distinguir-se respectivamente<br />

como percepção e conceito. Façamos então nossas as palavras do filósofo quando afirma que “a<br />

idéia geral terá sido sentida e experimentada antes de ser representada” (Bergson, 1999, p. 188). O significado<br />

dessa frase de certo modo encampa e norteia a segunda parte deste trabalho como “veia interpretativa”<br />

por nós escolhida e definida. O momento da tradução representacional, concretizado pelo ato da<br />

escritura, é concebido como ato segundo do espírito. A s<strong>em</strong>elhança da qual o espírito parte no processo de<br />

tomada de conhecimento é a s<strong>em</strong>elhança sentida e/ou vivida que nos dispõe ao aparecimento singular de<br />

um fenômeno. Só então se fará possível a idealização de cunho geral, como uma “s<strong>em</strong>elhança inteligent<strong>em</strong>ente<br />

percebida ou pensada”. E acrescentamos diante disso que o trabalho escritural das imagens tanto<br />

r<strong>em</strong><strong>em</strong>oradas quanto observadas transitará entre a descritividade do singular e a conceituação geral,<br />

porém s<strong>em</strong>pre a partir da m<strong>em</strong>ória do já experienciado, do reconhecimento da s<strong>em</strong>elhança.<br />

É neste contexto teórico, e, talvez, como um modo de ex<strong>em</strong>plificá-lo, que propomos, como parte intercompl<strong>em</strong>entar<br />

ao discorrido até agora, a experiência de uma escritura da m<strong>em</strong>ória. Esta assumiu o título<br />

de “Folias na fazenda”.<br />

Folias na fazenda<br />

A casa não era tão antiga. Tinha seus trinta anos. Seu especial interesse estava na extr<strong>em</strong>a simpatia<br />

com a qual nos acolhia quando solicitávamos sua presença: algumas t<strong>em</strong>poradas no ano, fora da normalidade<br />

circular da cidade grande.<br />

A estrada<br />

O trajeto até ela consumava-se num grande percorrer épico. Saíamos do apartamento muito cedo na<br />

manhã úmida, o dia anterior passado numa <strong>em</strong>briagante ansiedade pré-viag<strong>em</strong>. Percorreríamos enfadonhos<br />

quilômetros de asfalto, com suas inclinadas perspectivas e seus fios <strong>em</strong> movimento, antes de chegarmos<br />

às espetaculares 3 horas transitadas sobre a poeirenta estrada de barro. Este ponto era delimitado<br />

por uma parada na última cidade ligada pelo asfalto, o último baluarte urbano. Após um breve lanche na<br />

casa de parentes, onde encontrávamos nossos primos – não tão “urbanoides” como nós –, partíamos<br />

restabelecidos ao encontro do incomensurável. Atravessávamos quatro vilas perdidas no deserto de barro


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

e pedra antes de chegarmos à última, distante duas léguas da propriedade do meu avô. O mais marcante<br />

nesta estrada, singrando um território quase fantasma, esquecido por Deus e pelos homens, era a paisag<strong>em</strong><br />

brilhant<strong>em</strong>ente nova entrevista no percorrer uniforme e saltitante do veículo. Imagens irreconhecíveis<br />

feriam-me os olhos concentrados. Formas inéditas eram encontradas sob o verde, o cinza e o amarelo<br />

predominante; criando, para mim, um glamour surpreendente de imagens, acostumado que estava ao<br />

tédio repetitivo da perfeita geometria urbana. Avenida de avelozes, com seu verde escuro tenebroso,<br />

desfilavam a nossa passag<strong>em</strong>; seguida da observação preocupante: – se pegar nos olhos, cega! Pequenos<br />

açudes, resplandecentes de uma água prateada, onde lavadeiras esfregavam as roupas no dorso das<br />

rochas, davam-nos gana de “flecheirarmos” <strong>em</strong> suas águas. 1 Óbvio que nossos desejos eram reprimidos<br />

pelo pragmatismo adulto de se chegar ao destino na hora prevista.<br />

As cidadezinhas eram-nos nomeadas à medida que as cruzávamos: São João do Cariri, Serra Branca,<br />

Santa Luzia dos Grudes – dos Grudes?! Risos, a dissipar a seriedade da viag<strong>em</strong>. Enfim, quando as energias<br />

infantis já se tornavam sôfregas, o aviso reconfortante: – chegamos a Sumé. Sumé era o nome da cidadezinha<br />

onde realizávamos uma parada antes de se pegar uma estrada menor, da qual, percorridos 12 quilômetros,<br />

chegaríamos à porteira principal da fazenda, local convenient<strong>em</strong>ente denominado de “o Doze”.<br />

Pequeno pouso para abastecimento no posto de Bolão, como para se fazer algumas compras na mercearia<br />

soturna e pouco movimentada de Pedro Odon, velho amigo da família. – Ah! Que notável diferença dos<br />

supermercados da capital, ao qual acompanhava minha mãe nas feiras de sábado.<br />

Refeitas as energias, na real constatação do início de nossas aventuras selvagens, retornamos à estrada,<br />

confundida agora com a rua principal da cidade; pois a antiga e originária, desaguando na igreja e na<br />

praça do coreto, com suas pequenas casas e cadeiras na calçada, havia perdido sua importância com a<br />

construção da estrada nova. Ao sair da cidade, tomávamos à esquerda uma estrada secundária que interliga<br />

os municípios de Sumé e do Congo. Adentrava-se, nesta, o território do bravio. Se antes a relação com<br />

a natureza dava-se principalmente intermediada pelo olhar, agora ela fazia-se mais física, num contato<br />

quase direto, tornando o último trecho do périplo um verdadeiro desafio para nossos pequenos corpos, os<br />

quais encaravam o mundo como um gigante, visto s<strong>em</strong>pre de baixo para cima. A vegetação adensava-se,<br />

invadindo o arr<strong>em</strong>edo de estrada, que, devido às chuvas – era julho –, era carcomida pelos buracos e<br />

catabis. Ah! Quase esqueci, nossa variant branca 73 havia sido, apesar de seu t<strong>em</strong>peramento arrojado,<br />

substituída por uma valorosa perua rural, único veículo que, pelo seu vigor físico, seria capaz de superar os<br />

fantásticos obstáculos impostos pelos deuses daquela região. E o maior deles, s<strong>em</strong> dúvida, eram os riachões,<br />

pequenos afluentes do lendário rio Paraíba, que, se completamente vazios durante a estação seca,<br />

só reconhecidos pelo seu areal branco e fino, assumiam proporções assustadoras à medida que desabavam<br />

as chuvas. O trecho seco transformava-se num riacho caudaloso, de força e velocidade invencíveis.<br />

Eram quatro os riachos a ser<strong>em</strong> superados; e o maior deles era conhecido como riacho dos Espinhões.<br />

Numa ocasião, quando tentávamos sobrepujá-lo sob uma t<strong>em</strong>pestade noturna, a perua rural rendeu-se às<br />

suas águas perversas e tiv<strong>em</strong>os que sair às pressas pela traseira do veículo, sendo carregados até a<br />

marg<strong>em</strong>. Nessa noite, nos albergamos numa pequena propriedade próxima, a fazenda Firmeza, onde fomos<br />

recebidos por um velho senhor de modos afetuosos e sorriso simpático, e, logo depois de secos e de<br />

ter comido pamonhas, dormimos à luz dos candeeiros. No dia seguinte, passada a t<strong>em</strong>pestade, os espinhões<br />

se apresentavam <strong>em</strong> seu esplendor tormentoso: águas barrentas, de um marrom-terra, cruzavam a<br />

estreita estrada com feroz velocidade. Nesse dia só pud<strong>em</strong>os atravessá-lo num Jeep Willys – tração quatro<br />

rodas, que fez várias viagens levando as pessoas de um lado a outro de seu leito.<br />

Chegando-se, enfim, à entrada da fazenda, o carro era retido pela porteira principal. Descíamos serelepes<br />

para compor nossa função de abridores de porteiras. Estas, normalmente, possuíam um sist<strong>em</strong>a de<br />

trancamento feito de madeira que após puxado com esforço destravava-se, bastando-se assim <strong>em</strong>purrá-la<br />

1 O verbo “flecheirar”, um neologismo criado na região, quer dizer mergulhar de cabeça na água.


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

para que pudéss<strong>em</strong>os, ao passo que se abria, pegarmos carona num de seus degraus. Então, o carro<br />

lentamente adentrava a fazenda e a porteira era encostada e devidamente trancada. Era realmente singular<br />

a alegria que este simples processo nos provocava. Até chegarmos à casa-sede da fazenda enfrentávamos<br />

mais quatro porteiras, que existiam para dividir áreas de pasto, e <strong>em</strong> todas elas conservávamos a<br />

mesma vitalidade no fazer manual de um ato inédito às nossas mesquinhas atividades rotineiras.<br />

Pe<strong>net</strong>ramos assim no nosso território tão ansiado. Logo ao lado da cerca de arame farpado d<strong>em</strong>arcadora<br />

das terras da fazenda, encontrava-se a primeira “casa de morador”. Não recordo seu nome, o do pai da<br />

família; crianças lambuzadas de barro vêm nos fazer festa: – gente estranha da cidade que chega. Algumas<br />

têm a barriga inchada “mó dos verme”. A fazenda é grande. Percorr<strong>em</strong>-se uns três quilômetros por um<br />

caminho esburacado até se chegar na casa-sede. A propriedade é grande, uns dois mil hectares. Como é<br />

julho, a caatinga está verde, de um verde florido. Aqui e ali v<strong>em</strong>os a vegetação rasteira salpicada de<br />

florzinhas silvestres. Contrariamente ao nome, a caatinga exala um perfume agradável, sutil, o ar invadindo<br />

nossos pulmões com seu odor benfazejo. Sente-se logo o cheiro de bosta de boi, por incrível que pareça<br />

um cheiro bom. O caatingueiro fechado marca todo o caminho, separado por pastos de capim-elefante. A<br />

jur<strong>em</strong>a, que dá nome à fazenda, com seus espinhos cortantes de fundos arranhões, é predominante; assim<br />

como o inofensivo mameleiro, de folhas grossas – de grande serventia quando se vai obrar no mato.<br />

Aproximamos-nos da casa de Zé Galo, uma espécie de sede da parte norte da fazenda. No passado, ele<br />

fora acusado, talvez com razão, de ter matado dois cabras por causa de uma rixa de terras. É estranho,<br />

pessoalmente Zé Galo era risonho e simpático conosco, e dado a brincadeiras.<br />

São fabulosas as nominações atribuídas aos lugares, assim como as alcunhas pelas quais as pessoas<br />

desta região são conhecidas: Pitôco, Lavanca, João Vermelho – porque era inteiramente vermelho –, Mané<br />

Borracha, Mané Azul – o Pescador –, Ná, Pena; nomes inusitados, de uma criatividade peculiar, imprimiamnos<br />

um encantamento sonoro que nos marcava mais que as próprias pessoas ou lugares aos quais se<br />

referiam. Alguns desses “filhos da terra” carregavam histórias que exacerbavam ainda mais suas impressionantes<br />

figuras. João Vermelho, por ex<strong>em</strong>plo, era inteiramente tomado pela diabete, de longe se podia<br />

sentir o odor de sua urina, atraindo pelo rastro deixado na terra uma legião de formigas saúvas. Tinha se<br />

casado <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos im<strong>em</strong>oriais com Minervina, uma negra forte a qual chamávamos zombeteiramente de<br />

Minerva. Já Pitôco era um ex-cabo da polícia; alcoólatra inveterado, fora trazido pelo meu avô para permanecer<br />

isolado na fazenda, antes que a cachaça, que já tinha levado sua alma, levasse de vez sua vida. Era<br />

proibido de ir à feira da cidade nas segundas-feiras. Quando, por fuga, isso ocorria, era encontrado jogado<br />

na rua, desgraçado de bêbado. Todavia, na fazenda aparentava uma passividade tranquila, sendo visto<br />

s<strong>em</strong>pre só, a realizar pequenas tarefas domésticas, plantando fruteiras, pescando, tentando esquecer-se.<br />

Havia também os vaqueiros, homens guerreiros, com seus gibões e calças de couro. Embrenhavam-se<br />

cedo no caatingueiro fechado, atrás de reses perdidas, retornando, muitas vezes, só no dia seguinte.<br />

Qu<strong>em</strong> conhece a caatinga sabe da dificuldade de se abrir caminho por entre os espinhos dilacerantes das<br />

jur<strong>em</strong>as e dos mandacarus. Imagine-se, por vez, montar a galope solto, s<strong>em</strong> caminho ou percurso certo,<br />

atrás de bois desgovernados. Viam-se nos rostos destes bravos sertanejos as cicatrizes fundas deixadas<br />

por seu ofício.<br />

Passada a casa de Zé Galo, após uma longa subida à direita, avista-se uma linda paisag<strong>em</strong>, uma longa<br />

superfície platinada expressando reflexos cristalinos de luminosidade do fim de tarde: são as águas do<br />

grande açude da Jur<strong>em</strong>a. Da beira da estradinha já pod<strong>em</strong>os ver os marrecos a nadar <strong>em</strong> suas margens.<br />

Passamos pelo balde 2 e pelo sangradouro de cimento. Quando o t<strong>em</strong>po é de muita chuva, o açude sangra<br />

por sobre um paredão de cimento – formando um véu de água, tal qual uma cachoeira –. Postando-se <strong>em</strong><br />

baixo, ao pé do sangradouro, podíamos tomar banho, recebendo uma pesada carga d’água. Depois, acompanhávamos<br />

o correr das águas por uma descida de pedras até dois poços situados na vazante do açude;<br />

2 O balde do açude é uma estrutura alta de areia e barro que serve para conter e limitar suas águas.


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

o primeiro e maior dos dois era circulado por um chão liso feito de rocha natural e sombreado por pés de<br />

algarobas. Era uma grande festa, pois além de se mergulhar no poço podia-se, sentado na sombra, pescar<br />

piabas vindas do açude grande. Aqueles que dominavam a difícil técnica arvoravam-se <strong>em</strong> jogar a tarrafa,<br />

chegando mesmo a pegar traíras grandes. Quando o sangramento parava, escalávamos as pedras de volta<br />

ao paredão donde, “flecheirando” na água doce, dávamos intensas nadadas até o meio do açude, para<br />

voltar rapidamente com medo dos peixes grandes ou de cobras d’água.<br />

Passado o açude entramos na longa reta final, que, findando na última porteira, dava acesso à querida<br />

casa da fazenda.<br />

A casa<br />

A casa era térrea e retangular. Devia medir uns trinta metros de frente por dez de fundo. Era toda<br />

avarandada por um terraço largo onde se penduravam inúmeras redes. E este era cercado por um tipo de<br />

flor violeta que lhe imprimia um típico perfume agreste. Largadas as malas e cumprimentada a velha Sá<br />

Rosa, nascida ainda nos t<strong>em</strong>pos da escravidão, mãe de 18 filhos e com toda uma descendência espalhada<br />

pela região, partíamos logo para as corridas e brincadeiras <strong>em</strong> volta do terraço. A casa fora construída de<br />

modo que seu lado maior e frontal como que abraçasse qu<strong>em</strong> chegava à porteira de entrada, a qual distava<br />

uns 50 metros da casa. Seu lado menor, à direita, limitava-se com uma outra construção onde estava<br />

instalada a cozinha, com seu forno de carvão, e uma espécie de sala de espera composta de bancos de<br />

madeira s<strong>em</strong> pregos. Contígua a esta se achava o que chamaríamos de sala de jantar, uma única e enorme<br />

mesa – com espaço para vinte pessoas, pois familiares e trabalhadores comiam juntos sentados <strong>em</strong> dois<br />

compridos bancos –, onde, na cabeceira, estabelecia-se o patriarca, o avô. Duas mulheres de moradores –<br />

<strong>em</strong>pregadas na casa – ficavam durante toda a refeição a espantar o enxame de moscas que tentava<br />

pousar na comida, além de deixar<strong>em</strong> uma bacia de espuma de sabão num canto como armadilha para as<br />

mesmas. O interior da casa era composto por três quartos de casais, para os pais; duas salas espaçosas,<br />

nas quais todos se reuniam à noite, depois da janta, para se assistir televisão – o probl<strong>em</strong>a é que a<br />

imag<strong>em</strong> <strong>em</strong> preto e branco era péssima e só aparecia a seu bel prazer, <strong>em</strong> intervalos nada regulares; era<br />

melhor desistir, acostumados que estávamos com a boa imag<strong>em</strong> da TV da cidade, entretanto, os moradores,<br />

<strong>em</strong> pé, encostados a uma janela grande que dava para o terraço, insistiam, extasiados, <strong>em</strong> ver os<br />

flashes da programação noturna concedidos pelo aparelho antigo. Um quarto grande e largo, composto<br />

por quatro beliches era onde dormiam as “crianças”. Existiam três janelas que se abriam para um terreno<br />

cercado por algarobeiras e mangueiras onde se improvisava um campo de futebol. Mais ali, um pouco para<br />

a esquerda, avistava-se o catavento, 3 para o qual nos dirigíamos nos fins de tarde a fim de tomar o terrível<br />

banho gelado, pois o único banheiro da casa, por conta da arraigada falta d’água, era de uso exclusivo dos<br />

adultos. Porém, antes do banho nos refestelávamos colhendo e comendo as inúmeras frutas existentes no<br />

sítio <strong>em</strong> volta do catavento: goiabas, laranjas-cravo, mangas, pinhas, corações-da-índia, azeitonas pretas,<br />

e a mais típica das frutas da região: o umbu. O umbuzeiro é uma árvore alta, galhenta, que dá um sombreado<br />

fechado, só se alcançando o fruto com o auxílio de uma vara, com a qual, cutucando-o, se o derruba no<br />

chão. É uma fruta verde, do tamanho de uma siriguela, com um gosto doce-azedo, mas delicioso <strong>em</strong> sua<br />

peculiaridade; se verde, solta um ácido que deixa os dentes, como se diz, “travados”; com uma bacia de<br />

umbus é possível se fazer a tradicional umbuzada: fervida no leite.<br />

3 O catavento, como o próprio nome indica, t<strong>em</strong> a função de captar a energia eólica e assim movimentar uma engrenag<strong>em</strong> de<br />

sucção da água vinda de um poço artesiano.


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

O teto da casa não tinha forro, assim não havia o isolamento sonoro encontrado nos prédios modernos.<br />

Os ruídos e as conversas podiam ser ouvidos <strong>em</strong> qualquer parte dela. As falas de alcova, portanto, tinham<br />

que ser sussurradas ao pé do ouvido. Se quisesse ser escutado por todos bastava-se elevar a voz. O boanoite<br />

era dado coletivamente. Dormíamos olhando para o interior do telhado devassado, vendo as traves<br />

de madeira, e acordávamos com as frestas de luz que passavam por entre as telhas quebradas. Estas eram<br />

nosso maior terror. Ali, morcegos escondiam-se de dia, para, à noite, voar livr<strong>em</strong>ente pela casa – l<strong>em</strong>brávamos<br />

das amedrontadoras histórias dos moradores acerca dos morcegos-vampiros, ou das cobras que<br />

caíam do telhado <strong>em</strong> cima das pobres criancinhas. Os móveis eram todos antigos, da época da construção<br />

da casa. Nas paredes, retratos de antepassados desejosos de vida, porém presos ao limite da moldura<br />

oval: rostos estranhos, desconhecidos, atentavam-me a curiosidade para conhecer suas histórias, que,<br />

afinal, era a minha própria.<br />

Nossos dias apresentavam uma rotina quase ritualística. Éramos acordados às cinco da matina, por<br />

uma sirene nos intimando a ir ao curral tomar leite de vaca tirado na hora; pegávamos um copo de alumínio,<br />

colocávamos três dedos de açúcar e íamos correndo para o curral, a uns duzentos metros da casa. Lá,<br />

nos compe<strong>net</strong>rávamos vendo o vaqueiro, sentado num tamborete – o bezerrinho amarrado e babando aos<br />

pés da mãe –, fazer jorrar com movimentos precisos da mão o leite original, do qual, variando de gosto de<br />

acordo com a vaca, s<strong>em</strong>pre bebíamos dois ou três copos grandes. Ouvíamos concentrados os comentários<br />

sobre as reses: o touro holandês que quebrava uma cerca, e entrava a brigar com o dócil touro zebu,<br />

apelidado de “violino”; a febre aftosa que havia atacado duas vacas; e observávamos largamente os<br />

movimentos instintivos do rebanho no rebuliço do curral. Um fato s<strong>em</strong>pre me provocava indignação: não<br />

se sabe o motivo, uma das vacas recusava a maternidade do bezerrinho, negando-lhe o leite. Este, coitado,<br />

atônito, insistia <strong>em</strong> suas tetas, mas era misteriosamente rejeitado. Uma anomalia da natureza? Vai saber.<br />

De volta à casa, por volta das sete, esperávamos o café reclinando-nos nas cadeiras de balanço, a cont<strong>em</strong>plar<br />

o sereno da manhã, sentindo os raios mornos do sol reconfortar-nos do derradeiro frio noturno – pois,<br />

como no deserto, se de dia o calor era forte, à noite a t<strong>em</strong>peratura despencava e tínhamos de dormir com<br />

cobertores. Mesmo de estômagos já cheios de leite, comíamos o indefectível cuscuz com leite acompanhado<br />

de algumas bolachas recheadas com manteiga de garrafa; raramente comia-se pão. Com o sol a<br />

subir, era hora de uma reunião de cúpula a fim de se decidir a programação matinal. A decisão, per<strong>em</strong>ptória,<br />

s<strong>em</strong>pre ficava a cargo dos adultos. A escolha felizmente corroborava nossas expectativas: vamos<br />

tomar banho de açude!, gritávamos <strong>em</strong> feliz algazarra. Restava saber <strong>em</strong> qual deles, pois eram quatro os<br />

açudes, e cada um reservava um projeto aventureiro específico, já que possuíam uma singularidade extraordinária,<br />

a começar pelos diferentes trajetos geográficos que percorríamos para alcançá-los. Assim, vejamos:<br />

tínhamos o mais tradicional, o já referido “açude velho da jur<strong>em</strong>a”; era também o mais próximo, após<br />

uma caminhada de meia hora chegávamos ao seu largo e acolhedor paredão. Só no trecho final encontrávamos<br />

dificuldades, tinha-se que se superar um riacho equilibrando-se num caminho de pedras que servia<br />

como ponte. O que não consistia num risco mortal, pois se nos desequilibrávamos o dano maior era ficarse<br />

sujo de lama até o joelho. O segundo açude não se definia como tal, era conhecido simplesmente como<br />

“a barrag<strong>em</strong>”. Sendo o mais recente, possuía um ar moderno, com requintes tecnológicos <strong>em</strong> sua engenharia.<br />

Também tinha um paredão, mas de enorme risco, visto que um de seus lados limitava um fatal precipício<br />

de vinte metros. Seu maior atrativo, no entanto, estava nesse fundo, pois foram construídas duas<br />

grandes torneiras que, abertas, provocavam uma pesada queda d’água. Existia uma escada de marinheiro<br />

por onde descíamos e, segurando-nos para não sermos levados pela força da água, recebíamos aquela<br />

pesada carga sobre nossos corpos. O terceiro era o que eu mais gostava, fora dotado de um nome f<strong>em</strong>inino<br />

composto por um diminutivo, “o açude da cachoeirinha”, o qual representava perfeitamente sua índole.<br />

Perpassava nele uma suave mansidão na passividade de suas águas paradas. Seu nome provinha do fato<br />

de que, quando sangrava, seguia por um declive de rochas formando uma pequena cachoeira. Esta desaguava<br />

num vale pr<strong>em</strong>iado por coqueiros, melancias e pés de cana-de-açúcar. Sugávamos o mel da cana e<br />

a água encarnada das melancias, enquanto um ágil morador subia nos coqueiros arr<strong>em</strong>essando-nos lá de


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

cima os cocos mais verdes. Concluíamos a nossa festa de líquidos sabores, entornando na boca a água dos<br />

cocos a nos sujar com seu mel nossa cara e nossos corpos. S<strong>em</strong> probl<strong>em</strong>a, logo depois “marcávamos<br />

carreira”, atirando-nos impetuosos na água gelada do açude. Por ser o mais longínquo, a ida à cachoeirinha<br />

tinha de ser planejada com antecedência. Aguardávamos ansiosos a confirmação do passeio. Uma vez<br />

lá, a fabulosa paisag<strong>em</strong> comungava com nossos espíritos, nutrindo-os com o jorro de sua sensorialidade<br />

brilhante e benéfica. O último, e o maior deles, era o famigerado “açude do capa”. Ainda hoje não encontro<br />

explicação para o nome. Só sei que ele nos infundia um certo t<strong>em</strong>or, e uma estranheza. Muito raramente<br />

íamos nele, pois de difícil acesso e não muito dado a receptividades infantis. Em sua grandeza, era um<br />

território para os maiores. Mané Azul, o pescador, todos os dias antes do amanhecer o navegava <strong>em</strong> seu<br />

pequeno bote, resgatando sua rede coalhada de curimatãs, pacus e traíras. Tinha tamanha capacidade de<br />

guardar a água que só chegou a sangrar uma vez, na histórica chuva de 67, quando seu paredão estourou<br />

causando um desastre nas diversas plantações que irrigava.<br />

Após as aventuras da manhã, ao meio-dia <strong>em</strong> ponto, estávamos todos preparados para o almoço. Era<br />

uma lauta refeição: iniciava-se com um prato servido unicamente de feijão, cobria-se este com farinha e<br />

amassava-se a mistura até se formar uma pasta grossa. O feijão era servido como uma introdução, uma<br />

entrada, após ele é que começava realmente o almoço. Não havia salada, as carnes predominavam: a<br />

tradicional carne de sol com macaxeira, carne de bode, de carneiro, guisado de galinha, peixes de açude;<br />

o arroz geralmente substituído por macarrão, e pouco t<strong>em</strong>pero. Não havia geladeira, os animais eram<br />

mortos pela manhã e destripados diante de todos, no terreiro grande <strong>em</strong> frente da cozinha. Durante o<br />

almoço, comentários sobre a fazenda, discussões políticas e alguns “causos” engraçados. Por fim, o cafezinho,<br />

um leve descanso na varanda para se tomar uma fresca, e a retirada geral para os quartos: era o<br />

momento da sesta. Até as quatro horas, quando o sol relaxava, não se saía de casa; aperreados com as<br />

moscas, partíamos para o lanche: um grosso pedaço de queijo de coalho com uma talagada de goiabada<br />

cascão; novas brincadeiras, ou um banho de açude com o sol a se pôr sobre o sertão majestoso. No jantar,<br />

logo após o t<strong>em</strong>po escurecer, um prato de coalhada com açúcar, o xerém amassado, e um pouco de arroz<br />

com paçoca. Às nove, depois de alguma conversa e um jogo de sueca no alpendre, os olhos quase a fechar<br />

espontaneamente, nos entregávamos ao sono dos deuses.<br />

B<strong>em</strong>, a história é d<strong>em</strong>asiada longa, e como não há um desfecho espetacular vamos ficando por aqui,<br />

não s<strong>em</strong> antes nos l<strong>em</strong>brarmos da resposta de Pitôco quando perguntado onde ficava aquela região: – É lá,<br />

no meio do mundo.<br />

Referências bibliográficas<br />

BERGSON, Henry. Matéria e m<strong>em</strong>ória. São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.


51<br />

O boné do bufão:<br />

comicidade e conhecimento<br />

Jacqueline Ramos<br />

Departamento de Letras de Itabaiana/UFS<br />

A comédia também conhece o que é justo<br />

Aristófanes<br />

A mat<strong>em</strong>ática não pôde progredir até que os hindus inventass<strong>em</strong> o zero<br />

Rosa<br />

Pródigo <strong>em</strong> rupturas, o século XX rompe também com a milenar tradição que contrapõe o cômico ao<br />

sério e que havia abafado aquelas vozes que defendiam o valor da comicidade. O largo uso dos procedimentos<br />

cômicos fez parte do experimentalismo linguístico a que se aventuraram a vanguarda europeia e<br />

nosso primeiro modernismo, que valorizaram e exploraram a comicidade por suas possibilidades de representação.<br />

Essa reviravolta na concepção do cômico já vinha sendo gestada no pensamento filosófico,<br />

começando por Schopenhauer, que definiu o cômico como um “excedente de pensamento” capaz de revelar<br />

o malogro da razão; passando por Kierkegaard, que o considera modo de experimentar valores; por<br />

Freud, que vê o inconsciente franqueado pelo chiste; e ainda com Georges Bataille, Foucault etc. Entre<br />

outros, merece destaque Nietzsche, que nos ensina que o universo não t<strong>em</strong> um sentido pré-estabelecido,<br />

e “Deus está morto”, o que torna toda história humana um engano! Descobrir o engano é perceber a piada.<br />

Rir nesse caso indica a revelação, é o que interessa a Zaratustra, o ridente: “E que seja tida por nós como<br />

falsa toda verdade que não acolheu nenhuma gargalhada” (Nietzsche apud Alberti, 2002, p. 15).<br />

A essa vertente do pensamento sobre o cômico, Verena Alberti alinha o filósofo Joachim Ritter, para<br />

qu<strong>em</strong> o riso “t<strong>em</strong> a faculdade de nos fazer reconhecer, ver e apreender a realidade que a razão séria não<br />

atinge”, além de “manter o nada na existência” (2002, p. 12). O cômico assumiria assim o estatuto de<br />

redentor do pensamento, daí a repetida e enfática afirmação de Ritter: o filósofo deve “colocar o boné do<br />

bufão para se instalar no único refúgio de onde ele ainda pode apreender a essência do mundo” (Alberti,<br />

2002, p. 12).<br />

Posição análoga assume Guimarães Rosa <strong>em</strong> seu último livro, Tutaméia, vestindo o boné do bufão ao<br />

apresentar-se como Radamante (o herói mítico grego que teria inventado a brincadeira) e lançando-se <strong>em</strong><br />

defesa do cômico por dar acesso a realidades inconcebíveis à razão, incluindo-se aí o nada. A ideia do<br />

nada, aliás, já aparece s<strong>em</strong>anticamente marcada no estranho título: “tutaméia”, esclarece o autor, significa<br />

“nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela,


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

nica, quase-nada” (1967, p. 166). Não só a presença do nada é inusitada, estranhamento e comicidade<br />

aparec<strong>em</strong> conjugados nessa obra rosiana, provocando a quebra de estereótipos e o prolongamento da<br />

percepção. A ex<strong>em</strong>plo de uma corrida de obstáculos, na feliz comparação de Rónai (1976), Tutaméia a<br />

cada passo da leitura causa um desconcerto, dado o acúmulo de estranhamentos. 1<br />

Um dos inúmeros aspectos inusitados de Tutaméia é a presença de quatro prefácios <strong>em</strong> um autor que<br />

não havia prefaciado nenhuma de suas obras e que s<strong>em</strong>pre se esquivou de entrevistas e declarações. Nos<br />

interessa aqui o primeiro prefácio, “Aletria e hermenêutica”, todo ele dedicado ao estudo e defesa do valor<br />

da comicidade. É intrigante essa relevância que Rosa atribui ao cômico, haja vista que n<strong>em</strong> o autor se<br />

destaca no gênero e n<strong>em</strong> tampouco as estórias de Tutaméia poderiam ser classificadas como cômicas,<br />

apesar de incorporar<strong>em</strong> procedimentos cômicos.<br />

Esse prefácio é composto de dois momentos b<strong>em</strong> marcados: inicialmente apresenta, por meio de uma<br />

revisão teórica sui generis, o recorte peculiar do cômico que interessa ao autor, para depois descrever<br />

procedimentos cômicos por meio de uma tipologia das anedotas de abstração. Vejamos, então, os dois<br />

parágrafos iniciais.<br />

A estória não quer ser história. A estória, <strong>em</strong> rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco<br />

parecida à anedota.<br />

Uma anedota é como um fósforo riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro <strong>em</strong>prego a já<br />

usada, qual mão de indução ou por ex<strong>em</strong>plo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. N<strong>em</strong> será s<strong>em</strong><br />

razão que a palavra “graça” guarde os sentidos de gracejo, de dom sobrenatural, e de atrativo. No terreno do humour,<br />

imenso <strong>em</strong> confins vários, pressent<strong>em</strong>-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humoris-<br />

mo atu<strong>em</strong> como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não prosaico, é verdade que se confere de modo<br />

grande. Risada e meia? Acerte-se nisso <strong>em</strong> Chaplin e <strong>em</strong> Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque<br />

escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sist<strong>em</strong>as de pensamento<br />

(1967, p. 3 – grifos nossos).<br />

O prefácio se abre com um acúmulo de argumentos a favor do cômico que, se à primeira vista pode<br />

parecer um tanto panfletário, a uma observação mais atenta vai revelar o humor com que Rosa dialoga<br />

com a tradição filosófica e literária, promovendo um amplo debate acerca da natureza, funções e procedimentos<br />

do cômico e especificando sua pertinência. Ao afirmar serventia ao fósforo riscado, já propõe com<br />

sua metáfora a quebra de um estereótipo teórico: de que as piadas só funcionam uma vez. O ineditismo,<br />

raiz etimológica da palavra anedota, considerado característica distintiva do cômico, é desconsiderado no<br />

cômico específico que Rosa intenta. A aproximação entre estória e anedota não se daria, então, <strong>em</strong> função<br />

do riso causado pela surpresa do inédito. A função reclamada para o cômico é outra, aparecendo enfaticamente<br />

como método ou meio (“mão de indução”, “instrumento de análise”, “hábeis pontos e caminhos”)<br />

para se atingir não o riso, mas “realidade superior e dimensões para mágicos novos sist<strong>em</strong>as de pensamento”.<br />

Separar o cômico do riso é outro desmonte teórico. Guimarães Rosa parece propor uma revisão nesse<br />

vínculo fulcral, inúmeras vezes retomado, <strong>em</strong> que o cômico aparece definido como o que causa o riso. Ora,<br />

ao destituir o cômico de sua função de causar o riso, Rosa parece alertar para o fato de o riso ser um efeito<br />

do cômico, que não o define e, portanto, não deve ser tomado enquanto sua essência ou sua natureza. Do<br />

1 Estranhamento naquele sentido atribuído por Chklovski, o de desfamiliarização, de quebra de clichês. O primeiro contato<br />

com a obra já se dá através do estranhamento do título e do subtítulo. Além disso, há dois índices, um na abertura da obra,<br />

outro ao final (repropondo a leitura <strong>em</strong> nova montag<strong>em</strong>), ambos encabeçados por epígrafes de Schopenhauer que discorr<strong>em</strong><br />

acerca da leitura; há quatro prefácios; a obra comporta, ainda, listas de frases, glossários, um inesperado jogo de<br />

epígrafes, notas etc. A disposição dos prefácios na obra também é transgressora: aparec<strong>em</strong> intercalados <strong>em</strong> meio às<br />

estórias, funcionando como as parábases da comédia clássica.


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

mesmo modo, não são as lágrimas (efeito fisiológico da dor) que defin<strong>em</strong> o trágico. Não interessa a Rosa<br />

esse efeito do riso, mas os procedimentos utilizados na arquitetura do cômico.<br />

Ainda, ao desvincular o cômico do riso, o autor mineiro estaria anulando juntamente o efeito da comicidade<br />

à qual Bergson (1987) atribui função social repressora. Para o filósofo, o riso é uma espécie de “gesto<br />

social. Pelo t<strong>em</strong>or que o riso inspira, reprime as excentricidades”. Ora, ninguém quer ser objeto de derrisão,<br />

porque aquilo de que se ri é o que a sociedade condena. O riso, enfatiza Bergson, “é verdadeiramente<br />

um trote social, s<strong>em</strong>pre um tanto humilhante para qu<strong>em</strong> é objeto dele”, obrigando-nos “a cuidar imediatamente<br />

de parecer o que deveríamos ser” (1987, p. 18 e 72).<br />

É no riso, portanto, que Bergson identifica o caráter repressor associado ao cômico. Ao depurar o cômico<br />

do riso, Rosa neutraliza esse efeito repressor, abrindo possibilidades para outro uso, outra função da<br />

comicidade. Assim, a estrutura da anedota, desvinculada de sua função de causar o riso e de exercer<br />

censura, é proposta como ingrediente para o descondicionamento do modo de ver e pensar a realidade,<br />

cujo efeito seria o da revelação. Reside aí o valor que Guimarães Rosa atribui ao cômico: o acesso ao<br />

inusitado, “ao leite que a vaca não prometeu” (1967, p. 3-4), <strong>em</strong> sua jocosa versão da lição de Schopenhauer.<br />

Nesse seu diálogo com a tradição, Rosa se alinha à vertente do pensamento que rompe com aquela<br />

visão negativa do cômico que o associava ao prosaico, ao imoral, ao obsceno, ao pecaminoso, à brincadeira,<br />

ao não sério, ao vulgar. Aliás, será essa tradição judaico-cristã que passará a contrapor o cômico ao<br />

sério (e não mais ao trágico). 2 Concepção enfaticamente rejeitada por Guimarães Rosa, para qu<strong>em</strong> o<br />

chiste não é “rasa coisa ordinária”. Em Tutaméia, então, o cômico é dirigido para um outro sentido: não<br />

reprime, mas cria “dimensões para mágicos novos sist<strong>em</strong>as de pensamento”. Nessa sua <strong>em</strong>preitada, Rosa<br />

parece conjugar a tradição clássica (percebida também na função de parábase exercida pelos prefácios, p.<br />

ex.) e o pensamento sobre o cômico no século XX.<br />

Nesses dois momentos históricos prevalece uma visão positiva do cômico, já que aparece associado ao<br />

divino ou ao conhecimento. Na Antiguidade Clássica, o cômico fazia parte da vida dos deuses. Decorre daí<br />

que o riso, marca distintiva do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação aos outros animais, era considerado algo da ord<strong>em</strong> do<br />

divino que se manifesta no hom<strong>em</strong>. A própria orig<strong>em</strong> da comédia se liga aos ritos <strong>em</strong> louvor a Dionísio.<br />

Ainda, caberia l<strong>em</strong>brar, na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia possu<strong>em</strong> o mesmo estatuto de arte<br />

mimética: representação de ações segundo a necessidade e verossimilhança que geram um saber universal.<br />

A arte, e a comédia como uma de suas manifestações, se liga ao saber.<br />

Na era cristã, como já colocado, o cômico será desqualificado. Visão negativa que perdura ainda <strong>em</strong><br />

Kant, para qu<strong>em</strong> o riso seria resposta corporal à impossibilidade do pensamento e que surgiria da “repentina<br />

transformação de uma expectativa <strong>em</strong> nada”. Esse processo que leva ao nada, e que marca a desconsideração<br />

do filósofo <strong>em</strong> relação ao cômico, é uma das funções mais valorizadas e perseguidas por Rosa<br />

no uso da comicidade. Dentre as várias anedotas estudadas no prefácio de abertura, destacam-se três<br />

procedimentos cômicos com vistas ao nada: “fórmula à Kafka”, “niilificação” e “definição por extração”.<br />

Vejamos, então, como são descritos esses procedimentos. A “fórmula à Kafka” é ex<strong>em</strong>plificada com a<br />

seguinte piada:<br />

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, <strong>em</strong>purrando sua carrocinha de pão, quando alguém<br />

lhe grita: “– Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!...” Larga o herói a carrocinha,<br />

corre, vôa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... E exclama: “– Que diabo! Eu não me chamo Manuel, não moro <strong>em</strong><br />

Niterói, não sou casado e não tenho casa...”.<br />

Agora, ponha-se <strong>em</strong> frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e t<strong>em</strong>-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto<br />

algébrico ou t<strong>em</strong>a nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito (1967, p. 3).<br />

2 Sobre o processo de marginalização que sofre o gênero cômico a partir da era cristã r<strong>em</strong>et<strong>em</strong>os aos estudos historiográficos<br />

de Minois (2003) e Alberti (2002).


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

Após a anedota, o comentário sugere o aproveitamento da estrutura destituída do efeito risível. Teríamos,<br />

então, o herói sendo enredado inocent<strong>em</strong>ente como vítima do estar-no-mundo.<br />

Rosa denomina de “niilificação” outro procedimento cômico com vistas à representação do nada, ex<strong>em</strong>plificando<br />

com uma frase de Rilke 3 para depois apresentar sua versão. Note-se que ambas as frases sustentam-se<br />

no paradoxo:<br />

“Oh, este é o animal que não existe...” (citando Rilke, 1967, p. 9);<br />

Isto é o-que-é que mais e d<strong>em</strong>ais há, do que n<strong>em</strong> não há... (1967, p. 9).<br />

Finalmente, a “definição por extração”, aquela que parte do que há para chegar ao que não há ou ao<br />

“nada residual”, na expressão de Rosa. Trata-se de um processo de sucessivas subtrações. Vejamos os<br />

ex<strong>em</strong>plos do autor:<br />

o nada é uma faca s<strong>em</strong> lâmina, da qual se tirou o cabo (1967, p. 5);<br />

“Comprei uns óculos novos,<br />

Óculos dos mais excelentes;<br />

Não têm aros, não têm asas,<br />

Não têm grau e não têm lentes...” (1967, p. 7).<br />

Note-se que nos três procedimentos elencados percebe-se aquele movimento descrito por Kant de<br />

quebra de expectativa que resulta <strong>em</strong> nada. O fato de o cômico levar a nada é motivo de desdém para o<br />

filósofo, mas para Guimarães Rosa de festejo: o nada, t<strong>em</strong>a recorrente <strong>em</strong> Tutaméia, surge como fonte<br />

inesgotável para o novo, para o desvelamento de possibilidades ainda não percebidas. Nesse sentido, os<br />

procedimentos cômicos descortinariam novas formas de ver e interpretar os fenômenos, abrindo a possibilidade<br />

de se chegar aos “silêncios bulhentos” do universo.<br />

Kant, a despeito do rebaixamento que promove, esclarece acerca do funcionamento de certos enunciados<br />

cômicos. Será com Schopenhauer e Jean Paul Richter, como já assinalamos, que o pensamento sobre o<br />

cômico conhecerá uma reviravolta, já que, opostamente a Kant, passam a considerar o risível um excedente<br />

de conhecimento, pois pode revelar o engano do entendimento, de nosso sentimento de verdade. Vejase<br />

<strong>em</strong> Rosa:<br />

– Em escavações, no meu país, encontraram-se fios de cobre: prova de que os primitivos habitantes conheciam já o<br />

telégrafo...<br />

– Pois, no meu, <strong>em</strong> escavações, não se encontrou fio nenhum. Prova de que lá, pré-historicamente, já se usava o<br />

telégrafo-s<strong>em</strong>-fio.<br />

A piada dá a ver a relatividade de nossos processos de construção de saber ou, no dizer de Schopenhauer,<br />

revela a incongruência entre o pensamento e a realidade. O cômico, assim, daria a ver o engano da<br />

razão. Ultrapassando o pensamento sério, a comicidade permite a “dissolução” necessária à produção de<br />

novas ideias. É essa também a posição de Jolles (1976), que <strong>em</strong> seu estudo sobre as “formas simples”<br />

apresenta o chiste como a forma que desata coisas, desfaz nós – seja da linguag<strong>em</strong>, da lógica, da ética ou<br />

das próprias formas –, apontando s<strong>em</strong>pre para os limites do conhecimento ou, na visada de Rosa, para a<br />

possibilidade de se representar o nada sobre o qual erigimos sentidos.<br />

3 Assinale-se aliás que esse prefácio é um mosaico de citações, explicitando a natureza intertextual de todo texto.


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

Essa visão positiva do cômico, que permitiria apreender a realidade que a razão séria não atinge, não<br />

enfoca mais determinados aspectos da vida, incide sobre o próprio conhecimento, sobre a própria vida e<br />

seu sentido ou ausência de sentido.<br />

As estórias de abstração<br />

É essa meia risada a mais a que interessa e experimenta Guimarães Rosa <strong>em</strong> Tutaméia, obra regida<br />

pela perspectiva cômica. Destituída de sua função de causar o riso, a comicidade pode ser percebida na<br />

composição das estórias, cumprindo funções diversas. Uma delas seria a de revelar o engano de raciocínios<br />

e valores viciados, já que amplia as possibilidades de representação ao incorporar “outras lógicas”. Em<br />

“Mechéu”, o narrador acompanha o ponto de vista do louco; <strong>em</strong> “Tresaventura”, o da criança; <strong>em</strong> “Quadrinho<br />

de história”, o do criminoso. Enfim, atentando-se para os heróis de Tutaméia, percebe-se que são<br />

todos seres de exceção: assassinos, ciganos, bêbados, palhaços, loucos, crianças, velhos. São personagens<br />

tipicamente cômicas, normalmente marginalizadas, que promov<strong>em</strong>, no entanto, uma inusitada compreensão<br />

da realidade. Vejamos algumas das 40 estórias que compõ<strong>em</strong> Tutaméia, <strong>em</strong> que se percebe o<br />

uso daqueles procedimentos cômicos para se atingir o nada.<br />

Cabe, inicialmente, assinalar que o engano, cujo correlato trágico é o erro, um dos principais caracteres<br />

da comicidade, é amplamente explorado <strong>em</strong> Tutaméia. O enredo de “Barra da Vaca”, por ex<strong>em</strong>plo, se<br />

desenvolve a partir de um duplo engano: Jer<strong>em</strong>oavo, o forasteiro que chega doente ao povoado de Barra<br />

da Vaca, é confundido com um perigoso jagunço. Percebe-se que o engano na estória é processado evocando<br />

a “fórmula à Kafka”: a comunidade constrói uma realidade fictícia acerca de Jer<strong>em</strong>oavo que a<br />

desconhece e se vê vítima da situação. O anedótico se mantém na coexistência desse duplo engano:<br />

Jer<strong>em</strong>oavo sente que a comunidade é alegre e cordial, quando na verdade ela é movida pelo medo e pelo<br />

equívoco de considerá-lo perigoso jagunço. T<strong>em</strong>os, no caso, o característico engano cômico, tomar “uma<br />

pessoa melhor por pior” e vice-versa. 4<br />

O engano é parte integrante também de outras narrativas, sendo explorado <strong>em</strong> suas inúmeras possibilidades.<br />

Em “João Porém, o criador de perus”, os moradores do local, para zombar do tímido e inocente<br />

João, inventam uma linda moça de uma vila vizinha apaixonada por ele. Ele passa a acreditar nessa estória,<br />

ou melhor, ele quer acreditar (como deixa entrever o narrador: “miúdo meditou” para entender que<br />

“precisava daquilo”), modo de instituir sua idealização amorosa: “precisava daquilo, para sua saudade<br />

s<strong>em</strong> saber de quê”. Ao perceber<strong>em</strong> a seriedade e importância que assumiu a moça inventada na vida de<br />

João Porém, os moradores tentam desfazer a brincadeira, mas todas as tentativas são <strong>em</strong> vão.<br />

O desenrolar da narrativa inverte o sentido do engano, João Porém na verdade usou a brincadeira<br />

chistosa, a mentira, a moça inventada, para instituir seu ideal de amor. É ele afinal qu<strong>em</strong> engana os outros<br />

(“Ele fora ali a mente mestra”, 1967, p. 76). O que inicialmente era uma brincadeira maldosa, João Porém<br />

reverte a seu favor, utilizando-a como forma de instituir socialmente e experimentar sua idealização amorosa.<br />

João Porém vive esse amor idealizado pela fictícia Lindalice, e a vila test<strong>em</strong>unha, confirma essa<br />

realidade vivenciada por ele. João Porém, desse modo, dá estatuto de existência ao inexistente. A arquitetura<br />

do enredo, assim, corresponde àquele processo de “niilificação” discutido no prefácio da obra.<br />

A “definição por extração”, operações subtrativas até se chegar ao “nada residual”, aquele terceiro<br />

procedimento cômico com vistas ao nada, parece ser o princípio estruturador de “Azo de almirante”. Hetério<br />

destaca-se como herói socorrendo o povoado durante uma enchente, mas sua condição de herói vai<br />

4 Típico engano cômico constant<strong>em</strong>ente citado pelos teóricos. Já aparecia no Tractatus (2003), participa das considerações de<br />

Freud (1977) e também de Bergson (1987), entre outros.


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

sendo gradativamente subtraída: perde inicialmente mulher e filhas, passa a trabalhar com transporte de<br />

carga e gente juntamente com os filhos e outros; construída uma ponte (subtraída a necessidade de seu<br />

trabalho), passa a mascatear e nesse ofício “um dos filhos o deixa, para namorar e casar” (grifo meu); ao<br />

ajudar o amigo Normão a raptar a noiva, perde seu último filho baleado, é também ferido e morre só e feliz<br />

(perdendo, gradualmente, sua condição de herói e acabando no anonimato). O percurso do herói se processa<br />

segundo a “definição por extração”, concepção que sugere o nada-residual como capaz de definir, de<br />

dar uma significação precisa, de especificar. Extraindo-se os caracteres paulatinamente, o que sobra é o<br />

que é. No caso de Hetério, chega-se ao nada residual. O que sobra, “o risonho morto”, é resíduo, cujo único<br />

sinal significativo se revela no sorriso. Retirando-se os caracteres sociais que constitu<strong>em</strong> a personag<strong>em</strong> e<br />

r<strong>em</strong>ovendo-se a vida, o que sobra é uma sugestão de felicidade.<br />

Há outras “presenças” do nada na obra. Em “Os três homens e o boi dos três homens que inventaram<br />

um boi”, título que já é <strong>em</strong> si uma síntese do enredo, os vaqueiros, num momento de descanso, por brincadeira,<br />

inventam um boi: “a informação do Boi tinha sobrevindo, de nada, na mais rasa conversa, de felicidade”<br />

(1967, p. 113). Processo criativo que já se inicia a três mãos, a estória do boi passa a circular de<br />

boca <strong>em</strong> boca, ganha existência e autonomia <strong>em</strong> relação a seus criadores. O que nasce de uma brincadeira<br />

gratuita – do que nada se espera – ganha autonomia e circula como b<strong>em</strong> cultural. A idéia do nada, nesta<br />

estória, não é fim ou morte, aparece associada à felicidade. Tal felicidade, concentrada num momento<br />

específico de distensão e comunhão dos vaqueiros, se expressa pela brincadeira gratuita: momento fecundo<br />

da criação.<br />

Em “Azo de almirante” o percurso de Hetério é do heroísmo ao anonimato, do que existe para o que não<br />

há (o nada residual do processo de extração); <strong>em</strong> “três homens e o boi”, inversamente, o percurso será do<br />

inexistente para a realidade (a niilificação). Em “Barra da Vaca”, tanto a comunidade quanto Jer<strong>em</strong>oavo<br />

viv<strong>em</strong> o engano da vida (a fórmula à Kafka). A via cômica descortina, nas inúmeras narrativas, a ridícula<br />

condição humana que acredita <strong>em</strong> interpretações verossímeis do real. Daí o valor da comicidade e do<br />

estranhamento, capazes de proporcionar uma visão não referencial, pois estão implicados na quebra de<br />

clichês, no transcender o referente, entendido como construção social. E não é apenas nessas três estórias<br />

que a comicidade nos coloca à beira do abismo do nada.<br />

Referências bibliográficas<br />

ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.<br />

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1990.<br />

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1987.<br />

CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: EIKHENBAUM et al. Teoria da literatura: formalistas russos.<br />

Porto Alegre: Globo, 1978.<br />

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1977.<br />

JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.<br />

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.<br />

RÓNAI, Paulo. Os prefácios de Tutaméia e As estórias de Tutaméia. Apêndice da 4ª edição de Tutaméia.<br />

Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976. [Esses artigos haviam sido publicados anteriormente no Supl<strong>em</strong>ento<br />

Literário de O Estado de São Paulo de 16/03/68 e 23/03/68, respectivamente.]<br />

ROSA, Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.<br />

TRACTATUS COISILIANUS. In HOMERO. Batraquiomaquia: a batalha dos ratos e das rãs. Estudo e traduções<br />

de Fabrício Possebon. São Paulo: Humanitas, 2003.


Dissensos da pós-modernidade<br />

Maria Aparecida Antunes de Macedo<br />

Departamento de Línguas Estrangeiras/UFS<br />

1. Introdução<br />

Devido ao debate da comunidade acadêmica e artística quanto à pertinência e ao <strong>em</strong>prego do termo<br />

pós-modernidade, acreditamos vir a propósito uma explanação sobre o dissenso aí instalado e que confirma<br />

seu traço mais característico, que é sua natureza “dissensual”. Isto porque, sejam aqueles que a defend<strong>em</strong>,<br />

ou então os que se posicionam contrários ao seu termo e mesmo à sua existência, esbarram na<br />

ausência de uma teoria unificadora, que consiga englobar, a partir de visões múltiplas e divergentes, sua<br />

pluralidade centrífuga de aspectos e manifestações – ausência, como já diss<strong>em</strong>os, inerente à pós-modernidade.<br />

Nossa intenção é, antes, abordar algumas de suas posições críticas sobre a pós-modernidade <strong>em</strong> seu<br />

aspecto relacional com a modernidade para, <strong>em</strong> seguida, ilustrar posições distintas de dois pensadores<br />

que são Jürgen Habermas e Jean-François Lyotard. Det<strong>em</strong>o-nos nestes críticos <strong>em</strong> razão tanto das constantes<br />

referências <strong>em</strong> torno deles, por grande parte dos estudiosos da pós-modernidade, como também<br />

pela representatividade de duas posturas antagônicas <strong>em</strong> relação ao próprio Iluminismo – movimento<br />

filosófico-literário iniciador da modernidade – e <strong>em</strong> seu prolongamento, ou final, no século XX.<br />

Primeiramente, faz-se necessário observar as derivações do conceito do pós-moderno, como a pósmodernidade<br />

e o pós-modernismo. Adotar<strong>em</strong>os a conceitualização de Sérgio Paulo Roua<strong>net</strong>, que, <strong>em</strong> As<br />

razões do Iluminismo (2000, p. 229-77), distingue, a partir da diferenciação realizada por Max Weber entre<br />

a modernidade social e a cultural, uma pós-modernidade social, que abrangeria a economia e o Estado e<br />

uma pós-modernidade cultural, estando no domínio do saber (ciência e filosofia), da moral e da arte.<br />

É a direção, tomada por essa modernidade cultural, centralizada na esfera do saber, modificando-se<br />

constant<strong>em</strong>ente, que t<strong>em</strong> como resultado o que denominamos a pós-modernidade – mesmo se Roua<strong>net</strong><br />

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A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

não se permita falar de algo para além da modernidade, já que, segundo ele, não há modificações significativas<br />

para se adotar uma nova denominação para o nosso atual estado do saber. No entanto, as questões<br />

sobre a esfera cultural, inaugurando algo diferente, agrupado sob a égide de uma pós-modernidade,<br />

prossegu<strong>em</strong>, e acreditamos oportuno expor <strong>em</strong> primeiro lugar quais seriam os questionamentos dela decorrentes.<br />

Seria a pós-modernidade um novo período histórico? Seria um estilo artístico? Um novo modo de<br />

cultura e organização social? Uma ruptura com o período moderno ou somente uma vontade de afastamento<br />

desse período? Seria uma modernidade levada ao seu extr<strong>em</strong>o, ou uma ramificação dessa mesma<br />

modernidade? Seria uma pura estilização efetuada pela cultura oriunda do capitalismo tardio? 1 Ou então,<br />

uma revisão crítica – revisão já com o distanciamento necessário – dos pressupostos sobre a modernidade?<br />

Observamos, nas perguntas levantadas, que a complexidade e divergência teóricas relativas à pósmodernidade<br />

têm uma relação direta com as diversas visões de mundo e posições face à própria modernidade.<br />

Essa relação estará norteando os estudiosos seja na defesa, na crítica ou então na simples constatação<br />

de sua existência como conceito de periodicidade.<br />

2. A pós-modernidade <strong>em</strong> sua volta crítica ao Iluminismo<br />

Existe uma crítica comum, observada nos estudiosos da pós-modernidade, e que t<strong>em</strong> como ponto de<br />

partida o Iluminismo – movimento l<strong>em</strong>brado pela maioria dos estudiosos da pós-modernidade e que, segundo<br />

estes, marca o início da modernidade. Esta crítica seria a crítica à razão.<br />

Quanto ao Iluminismo, pod<strong>em</strong>os dizer, para iniciar nosso debate, que ele foi uma corrente de ideias que<br />

combatia o mito e a religião, utilizando-se da razão. Por meio dela, obter-se-ia a <strong>em</strong>ancipação da sociedade<br />

que seria estendida a todos os homens. O princípio explicativo, de visão unitária, no período anterior ao<br />

Iluminismo, estava ligado ao transcendente, à ideia de causa última, que seria Deus. Os fenômenos mundanos,<br />

a partir do Iluminismo, passam a ter uma causa imanente e, o que é mais importante, a razão tornase<br />

o instrumento de explicação – fundamento – desses fenômenos.<br />

Em Emanuel Kant está centralizado o ideal do racionalismo iluminista, sendo alvo da crítica dos pósmodernos.<br />

Em seu conhecido artigo “Resposta à questão: O que são as Luzes”, o filósofo al<strong>em</strong>ão propõe<br />

uma razão – entendimento – posta <strong>em</strong> marcha por cada indivíduo, o que afastaria este da dependência de<br />

outr<strong>em</strong> para pensar o mundo e a si mesmo. Segundo ele, a razão seria o instrumento para a libertação do<br />

hom<strong>em</strong>, porém ele distingue dois <strong>em</strong>pregos para a razão – o uso público e o privado. O filósofo defende o<br />

uso da razão <strong>em</strong> nome do coletivo, do universal. Instala-se, a partir desse filósofo, uma modernidade<br />

<strong>em</strong>ancipatória, a razão como <strong>em</strong>ancipação do hom<strong>em</strong>, através de um pensamento livre da tutela de outr<strong>em</strong><br />

e uma modernidade opressora, que submete uma razão privada a outra, que é a universal.<br />

Outro ponto nevrálgico, que será alvo das críticas da pós-modernidade, decorre da necessidade de se<br />

construir um conceito de razão universal e metafísica, s<strong>em</strong> sofrer as interferências da história. Sobre esse<br />

desvio da história, na obra Kant et la finalité (1999), de Jean-Marie Vaysse, encontramos um artigo do<br />

filósofo al<strong>em</strong>ão intitulado “Finalité et unité systématique”, onde este aborda o seu conceito de razão pura.<br />

Segundo ele, a razão – “esta unidade incondicionada e originária” (1999, p. 4) – não pode sofrer a interferência<br />

dos objetos dados através da experiência, mas, ao contrário, ela deve absorvê-la e pairar acima do<br />

1 Entend<strong>em</strong>os o capitalismo tardio a partir de sua conceitualização efetuada por Fredric Jameson que, <strong>em</strong> sua obra Pósmodernismo:<br />

a lógica cultural do capitalismo tardio (2000), aponta a classificação de Ernest Mandel, do terceiro estágio do<br />

capitalismo, quando este último irá se estender até sua natureza multinacional ou de consumo, apagando-se, por fim, o<br />

seu país de orig<strong>em</strong>. Jameson estuda esse terceiro estágio sob a denominação “capitalismo tardio”.


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<strong>em</strong>pírico, permanecendo imutável <strong>em</strong> si mesma. Assim, o conhecimento <strong>em</strong>pírico estaria submetido à<br />

razão pura, ao fundamento último que seria esta razão.<br />

Sobre a modernidade opressora, oriunda da submissão de uma razão privada a uma razão universal,<br />

recorr<strong>em</strong>os a Weber, quando este elucida a modernidade como produto do processo de racionalização no<br />

Ocidente, acontecido desde o final do século XVIII e que implicou a modernização da sociedade e da<br />

cultura. A primeira modernização, a social, passa pela diferenciação da economia capitalista e o Estado<br />

moderno, centralizado e com uma administração burocrática racional. Quanto à segunda modernização,<br />

Weber a vê como o processo de racionalização das visões do mundo, principalmente as da religião.<br />

Nesse segundo processo de racionalização, acontecido na modernidade, vão se delineando as esferas<br />

axiológicas autônomas da ciência, da moral e da arte, que até então estavam fundidas na esfera religiosa.<br />

Na esfera da moral encontra-se o famoso postulado de Weber, segundo o qual à ética protestante segue<br />

uma relação causal com o progresso material. A moral esteve ligada aos princípios religiosos até a segunda<br />

metade do século XVIII. A partir daí, ela passa a ser derivada da razão – de princípios gerais e universalistas.<br />

2 A moral des<strong>em</strong>penha aí um papel importante no funcionamento da sociedade. Porém, com<br />

consequências na cisão do sujeito <strong>em</strong> hom<strong>em</strong> natural/hom<strong>em</strong> civil, com o primeiro <strong>em</strong> obediência estrita<br />

ao hom<strong>em</strong> civil. Esta obediência ilustra o papel preponderante da esfera da moral posta a serviço da<br />

sociedade – cara à modernidade – mas com um sujeito cindido (hom<strong>em</strong> natural/hom<strong>em</strong> civil), e <strong>em</strong> concordância<br />

com essa mesma sociedade. O sujeito vai se converter <strong>em</strong> sua própria vítima, na opressão do si<br />

mesmo, <strong>em</strong> favor da moral iluminista.<br />

Esta razão objetivante, instrumental e totalitária – universalista do ponto de vista do Iluminismo –<br />

encontrou sua expressão ao longo do século XIX e <strong>em</strong> seu prolongamento no século XX nos processos de<br />

racionalização da modernidade.<br />

A razão do Iluminismo é duramente criticada <strong>em</strong> seu legado instrumental, utilitário, por Theodor W.<br />

Adorno e Max Horkheimer <strong>em</strong> sua obra A dialética do esclarecimento (1985). Analisam a razão do Iluminismo<br />

(traduzido como um esclarecimento acontecido <strong>em</strong> uma determinada época histórica), que estenderá<br />

seu legado na razão instrumental, objetivante. As esferas axiológicas da ciência (pretensamente objetiva),<br />

da moral universal, e de uma arte independente, dirig<strong>em</strong>-se à sua autonomia cerrada. O objetivo do Iluminismo,<br />

que seria a <strong>em</strong>ancipação do hom<strong>em</strong> por meio do conhecimento, transforma-se <strong>em</strong> presa de uma<br />

razão instrumental que atinge as formas de existência humana.<br />

Cabe aqui destacarmos que o pretenso sujeito unificado da modernidade – analisado nas teorias da<br />

pós-modernidade – seria sobretudo sua representação configurada por meio de um discurso racional e<br />

universal. Em outras palavras, a representação a qual nos referimos seria a abstração – racional e discursiva<br />

– do hom<strong>em</strong>, produzida por ele próprio. Esta produção do discurso racional, <strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> encontra-se<br />

tanto como objeto representado como também sujeito atuante de sua própria representação, é<br />

analisada como um legado conflitante da razão do Iluminismo. A crítica à razão e a produção racional por<br />

meio da representação estará no centro dos debates da pós-modernidade.<br />

3. A discussão da pós-modernidade <strong>em</strong> suas principais polarizações:<br />

Jean-François Lyotard e Jürgen Habermas<br />

2 Poderíamos levantar a questão da moral no século XVIII estando baseada ou <strong>em</strong> comunicação com uma outra esfera<br />

axiológica, a da ciência. Afinal, como observa o estudioso brasileiro Sergio Paulo Roua<strong>net</strong>, <strong>em</strong> As razões do Iluminismo,<br />

citando o iluminista Diderot, por ex<strong>em</strong>plo, cujas posições críticas sobre a moral do seu t<strong>em</strong>po baseiam-se na ciência da<br />

época: “um <strong>em</strong>pirismo e um sensualismo que vê<strong>em</strong> o hom<strong>em</strong> como um animal organizado, com suas paixões, instintos e<br />

apetites [...] o hom<strong>em</strong> natural pode obedecer ao instinto, mas o hom<strong>em</strong> civil obedece à razão, incarnada na vontade geral”<br />

(2000, p. 203).


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

Após comentarmos rapidamente o conceito de razão do Iluminismo e a crítica que ele sofre com o seu<br />

legado da razão instrumental, concentramo-nos no movimento que realiza a crítica do Iluminismo, e que<br />

muitos denominam pós-modernidade. De maneira geral, os seus estudiosos, sejam aqueles que a defend<strong>em</strong><br />

ou então os que se posicionam contrários ao seu <strong>em</strong>prego, esbarram na falta de uma teoria unificadora,<br />

que consiga englobar <strong>em</strong> uma visão única sua pluralidade de aspectos e de manifestações.<br />

Inici<strong>em</strong>os por observar a natureza da pós-modernidade intencionalmente não-consensual. Nesta natureza<br />

já há uma recusa de um pressuposto caro à modernidade, que seria a universalidade e totalização das<br />

grandes teorias filosóficas e sociais. A natureza da pós-modernidade é de negar, ou mostrar outras razões<br />

que se esconderam na razão iluminista, como também de recusar a metafísica, que determina que para<br />

toda a existência t<strong>em</strong>-se um princípio primeiro, absoluto, totalizante. Para que esta negação e a recusa<br />

sejam postas <strong>em</strong> movimento, a pós-modernidade vai eleger o múltiplo s<strong>em</strong>pre no seu estado fragmentário,<br />

fugindo do que se apresenta na forma totalizante, universal.<br />

Observamos um aspecto probl<strong>em</strong>ático quando se entra no terreno da pós-modernidade e que diz respeito<br />

à periodização histórica. A tentativa de se operar a periodização nesse termo tão “dissensual” é<br />

inevitável, já que ele carrega, <strong>em</strong> sua própria denominação, a modernidade – um período historicamente<br />

datável, 3 com mudanças na concepção de mundo, de hom<strong>em</strong> e na maneira de sua organização. É interessante<br />

notar que a ideia de periodização é própria da modernidade. 4 Esta traz consigo um historicismo de<br />

progresso incessante, s<strong>em</strong>pre feito de rupturas consecutivas rumo à perfeição.<br />

Mais interessante ainda é a posição, baseada <strong>em</strong> critérios inerentes à modernidade, de muitos estudiosos<br />

da pós-modernidade, cuja medida para discernir um possível período ao qual já estaríamos mergulhados,<br />

ou então, que se avizinha de nós, é a própria noção de ruptura – ideia recorrente na modernidade,<br />

que se faz, contraditoriamente, como a tradição modernista da ruptura.<br />

Grande parte destes estudiosos, ao debruçar-se sobre a pós-modernidade, conclui que ela não constitui<br />

um período, com base no pressuposto moderno da ruptura. Tomando como medida essa noção moderna,<br />

estes estudiosos assinalam que não houve uma ruptura – ou que ela não é verdadeiramente marcante –<br />

entre a modernidade e a pós-modernidade. Todos estes teóricos levam <strong>em</strong> conta, para distinguir um período<br />

de outro possível, a presença ou não da ruptura.<br />

L<strong>em</strong>bramos Gianni Vattimo, um estudioso da pós-modernidade, quando observa que:<br />

Afirmar com efeito que situamos <strong>em</strong> um momento posterior à modernidade e conferir a este fato uma significação de<br />

alguma maneira decisiva, pressupõe a aceitação disto que caracteriza mais frequent<strong>em</strong>ente o ponto de vista da moderni-<br />

dade, a saber, a idéia da história e de seus corolários: as noções de progresso e de ultrapassag<strong>em</strong> (1987, p. 10).<br />

Vattimo afirma que a pós-modernidade “se caracteriza não somente como novidade <strong>em</strong> relação ao<br />

moderno, mas mais radicalmente, como dissolução da categoria do novo, como experiência de um ‘fim da<br />

história’” (1987, p. 10). Ele explica que este “fim” seria somente o da historicidade. Não chega a falar de<br />

“período” pós-moderno, já que, segundo ele, a referência a períodos encontra-se dominada pelo historicismo<br />

hegeliano, com suas necessárias rupturas dirigidas a um progresso infinito.<br />

De maneira geral, a maior parte dos teóricos que se debruça no estudo de uma pós-modernidade assinala<br />

a crise da razão iluminista tal qual ela se desdobrou nos séculos seguintes, balizando o marco para a<br />

3 Sublinhamos nossa concordância com alguns teóricos, como Habermas, que identifica o início da modernidade com o<br />

Iluminismo.<br />

4 Quando pensamos <strong>em</strong> termos de periodização, torna-se tentador, ao invés de <strong>em</strong>pregarmos o termo modernidade, fazermos<br />

uso de “Idade Moderna”. No entanto, a flexibilidade que o termo oferece, <strong>em</strong> termos de data, conforme já observamos<br />

páginas atrás, nos tiraria do centro de um dos aspectos mais exarcebados da modernidade – juntamente com o aspecto da<br />

racionalização – que é sua visão de ruptura, de periodização


A PALO SECO<br />

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Ano 3, n. 3, 2011<br />

desconstrução dessa razão <strong>em</strong> Friedrich Nietzsche. De tal constatação não fog<strong>em</strong>, n<strong>em</strong> Lyotard, n<strong>em</strong> Habermas,<br />

mesmo se eles não se detenham no estudo desse aspecto <strong>em</strong> Nietzsche.<br />

As diferenças entre os estudiosos da pós-modernidade se fundam <strong>em</strong> suas posturas quanto ao próprio<br />

Iluminismo. Aqueles que abordam o projeto do Iluminismo como conhecimento a serviço da <strong>em</strong>ancipação<br />

dos homens pretend<strong>em</strong> seu prolongamento, com as necessárias revisões. Daí ser<strong>em</strong> contrários à perspectiva<br />

de uma mudança capaz de instalar uma pós-modernidade. Seria o caso, por ex<strong>em</strong>plo, de Jürgen Habermas<br />

(1988). Outros estudiosos, que destacam no projeto do Iluminismo o saber como instrumento para o<br />

domínio dos homens, geralmente se direcionam a uma crítica mais exacerbada do legado iluminista e à<br />

instalação da pós-modernidade como móvel para esse fim, como é o caso de Gianni Vattimo. A simples<br />

constatação da pós-modernidade como transformação do saber, ou melhor dizendo, da legitimação desse<br />

saber, fundamentado na razão iluminista, é apontada nos estudos de Jean-François Lyotard (1990).<br />

Jürgen Habermas é um dos pensadores que defend<strong>em</strong> o prolongamento do projeto do Iluminismo, mas<br />

com as necessárias revisões, reavaliando-o e revalidando-o através de sua inserção no processo de modernização<br />

social, ou seja, contextualizando-o, de alguma forma, no histórico, no <strong>em</strong>pírico.<br />

Uma observação aqui necessária, antes de introduzirmos esse pensador <strong>em</strong> nosso trabalho, é termos<br />

<strong>em</strong> conta o seu contexto histórico, pois a Al<strong>em</strong>anha, saída de uma guerra, não tinha ainda completado a<br />

sua modernidade, sobretudo a cultural – aí incluída a arte. Eis, então, um el<strong>em</strong>ento para a defesa do<br />

prolongamento do projeto iluminista efetuada por Habermas. Porém, l<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os Lyotard, para o qual a<br />

história da Al<strong>em</strong>anha mostra-nos como a razão, objetivando o domínio, pode servir aos motivos mais<br />

obscuros e irracionais. Este teórico francês assinala o campo de concentração de Auschwitz como a exarcebação,<br />

a explosão e o fim do projeto iluminista. Assim, observamos que, enquanto alguns estudiosos<br />

apontam o contexto al<strong>em</strong>ão da Segunda Guerra como um recuo da modernidade, como Habermas, outros<br />

assinalam esse mesmo contexto como o fim da racionalidade, na racionalização pelo domínio, da forma<br />

como ela se efetivou na Al<strong>em</strong>anha.<br />

Atendo-nos à discussão da pós-modernidade efetivada por Habermas, no seu artigo “Modernidad versus<br />

postmodernidad” (1988), o autor vai denominá-la um movimento cultural conservador, circunscrito aos<br />

círculos de cultura alternativa. Ele contrapõe as “forças obscuras” do que ele chama “conservadorismo<br />

antimoderno” às “forças ilustradas” e iluminadoras da modernidade. Habermas afirma ainda que esses<br />

neoconservadores são descontentes que “estão enraizados <strong>em</strong> reações profundamente assentadas contra<br />

o processo de modernização da sociedade” (1988, p. 93). Ora, o que os neoconservadores atacam, isto é,<br />

a modernização da sociedade racionalizando a esfera cultural, seria, para Habermas, um processo inerente<br />

ao mundo da vida. Uma forma de agir sobre este seria através da “racionalidade comunicativa”, sendo<br />

ela o que se deve tomar como objeto de estudo, e não mais relação entre a modernização social e a<br />

cultural, como o faz<strong>em</strong> os “neoconservadores”, visto a relação de opostos que nelas se delineou. Como<br />

consequência apresenta-se um processo independente de modernização do capitalismo e uma negação<br />

da mesma sob a forma de uma crítica da modernidade cultural. É exatamente <strong>em</strong> virtude dessa crítica,<br />

segundo Habermas, negativa e destacada da modernidade social, que a pós-modernidade adquire seu<br />

aspecto antimoderno e conservador.<br />

Constatada essa falta de legitimidade da crítica da modernidade cultural, ele procura uma saída<br />

para o distanciamento entre a modernidade cultural e a social na própria comunicação humana, nos<br />

“jogos de linguag<strong>em</strong>”, 5 assentados <strong>em</strong> um diálogo cuja progressão atingiria uma síntese, um consen-<br />

5 Expressão cunhada por Ludwig Wittgenstein, na obra Investigações filosóficas (1995). O filósofo entende os “jogos da linguag<strong>em</strong>”<br />

como a relação que esta linguag<strong>em</strong> mantém com as formas de vida. Eles mostram uma não-limitação de sentidos da<br />

linguag<strong>em</strong>, pois esta última está implicada nas ilimitadas formas de vida, ou seja, <strong>em</strong> suas formas <strong>em</strong>píricas. Os jogos de<br />

linguag<strong>em</strong> seriam as maneiras infinitas com as quais a linguag<strong>em</strong> e o <strong>em</strong>pírico, real, se comunicam, entrelaçam e se<br />

determinam. Alguns de seus aforismos afirmam seja o rompimento com a ideia de que a linguag<strong>em</strong> funciona s<strong>em</strong>pre de<br />

uma única maneira, e com uma mesma finalidade, seja a defesa a uma recondução das palavras de seu uso metafórico à


A PALO SECO<br />

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so final. 6 Neste, ainda segundo o autor, encontrar-se-ia justamente a verdade – cuja legitimidade está<br />

ameaçada pela autonomia do conhecimento e sua falta de relação com a sociedade. Em outras palavras,<br />

a verdade seria uma produção humana dos “jogos de linguag<strong>em</strong>” numa situação de comunicação, cujo fim<br />

seria o consenso. Alcançado este, restabelecer-se-ia o discurso unificado, universal e heg<strong>em</strong>ônico que se<br />

perdeu na pós-modernidade. O consenso seria uma forma de se resgatar o projeto central da modernidade,<br />

unindo o mundo da vida (práxis) às esferas de conhecimento. Seria o que ele denomina “racionalidade<br />

comunicativa”. No conceito de “racionalidade comunicativa” de Habermas haveria um compromisso tácito<br />

entre os falantes, articulado pelo mecanismo de uma situação ideal entre eles. O compromisso do qual<br />

fala o autor reside <strong>em</strong> uma concepção superficial da linguag<strong>em</strong>, no acordo ideal entre os falantes. Por esse<br />

motivo, o consenso pretendido por Habermas como solução pragmática não encontra concordância entre<br />

os teóricos da pós-modernidade. No entanto, estes apoiam a importância do teórico al<strong>em</strong>ão <strong>em</strong> sua formulação<br />

de uma teoria que pretende contextualizar a cultura, o saber e a racionalidade dentro da existência,<br />

do mundo da vida, <strong>em</strong> uma tentativa de restabelecimento de uma relação entre a modernidade social e a<br />

cultural.<br />

Nesta preocupação de Jürgen Habermas, de contextualização da verdade, da razão dentro da existência,<br />

do mundo da vida, histórico, cotidiano, ele acaba por alinhar-se ao aspecto central da pós-modernidade,<br />

que é a recusa de uma razão metafísica e a defesa de sua imanência no mundo da vida – o <strong>em</strong>pírico. A<br />

verdade como produção humana, retirando-se dela a metafísica, como defende o pensador, já não é mais<br />

uma característica da razão iluminista; a verdade como representação humana dá um passo além da<br />

modernidade. A verdade como síntese unificadora de pluralidades permanece ainda uma busca da modernidade.<br />

Sobre a modernidade cultural propriamente dita, na esfera axiológica do saber, encontramos o estudo<br />

de Jean-François Lyotard, retomado constant<strong>em</strong>ente pelos teóricos da pós-modernidade. Trata-se da narrativa<br />

sobre o declínio, a partir do século XIX, das teorias filosóficas (metafísicas) e político-sociais com<br />

pretensões universais ou totalizantes, que legitimavam todo o saber. Será a consciência da debilidade<br />

destas teorias que justamente irá se converter na experiência da pós-modernidade.<br />

Lyotard faz <strong>em</strong>prego do termo pós-moderno, no título de sua obra A condição pós-moderna (2000).<br />

Entretanto, Lyotard substituirá, mais adiante, o prefixo “pós” – alvo de infindáveis discussões – pelo prefixo<br />

“re”. Com o objetivo de fugir da periodicidade contida na noção pós-modernidade, Lyotard, <strong>em</strong> um<br />

artigo intitulado “Reécrire la modernité” (1990), contorna a probl<strong>em</strong>ática levantando um aspecto que<br />

considera deflagrador <strong>em</strong> nossos dias, que é o da reescritura da modernidade. Reescritura esta significando<br />

uma “perlaboração” do passado. Este é r<strong>em</strong>odelado <strong>em</strong> função de novas experiências que lhe confer<strong>em</strong><br />

novas significações.<br />

Na obra A condição pós-moderna, o teórico francês adota o termo “pós-moderno”, observando que este<br />

pertence ao domínio dos sociólogos e críticos do continente americano, designando o estado da cultura<br />

como resultado de transformações acontecidas no âmbito da ciência, da literatura, das artes, a partir do<br />

século XIX. Lyotard estudará esta transformação baseado na “crise dos relatos”, ou seja, na crise das<br />

teorias filosóficas e políticas. Explica, antes de tudo, que estes relatos são discursos de legitimação que<br />

enunciam o verdadeiro, de maneira a exercer sobre si uma autolegitimação. Entend<strong>em</strong>os como metarrelato<br />

qualquer discurso de legitimação – filosófico ou político – a que se queira imprimir o valor de verdade e<br />

seu uso cotidiano. Por meio de sua análise da linguag<strong>em</strong> reconduzida ao cotidiano, e sua concepção da palavra, entrev<strong>em</strong>os<br />

Wittgenstein <strong>em</strong> sua recusa à metafísica, à transcendentalidade da linguag<strong>em</strong>. A tentativa do autor é de reconduzi-la<br />

às formas de vida. Albrech Wellmer, <strong>em</strong> seu artigo “La dialéctica de modernidad y postmodernidad” , observa que “a crítica<br />

que a filosofia da linguag<strong>em</strong> exerce destrói o sujeito como autor e juiz final de suas intenções de significado” (1988, p.<br />

124).<br />

6 Sobre o diálogo sendo desenvolvido <strong>em</strong> direção de um consenso, de validade universal, ir<strong>em</strong>os apresentar uma perspectiva<br />

diferente, representada por Jean-François Lyotard.


A PALO SECO<br />

63<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

que possa legitimar quaisquer das esferas de conhecimento tornadas autônomas com a modernidade. A<br />

modernidade, ao deparar-se com a autonomia de cada uma das esferas axiológicas, produz esses metarrelatos<br />

que intentam torná-las totalizantes.<br />

O teórico francês não se detém na análise da divisão das esferas do conhecimento, mas a leitura de sua<br />

obra deixa entrever que esses metarrelatos, dos quais fala, teriam sido uma tentativa da modernidade de<br />

solucionar o probl<strong>em</strong>a da divisão, por meio de um discurso totalizante e legitimador de cada uma das<br />

esferas de conhecimento.<br />

Em O pós-modernismo explicado às crianças (1993), Lyotard localiza a filosofia de Hegel como aquela<br />

que totaliza todas essas narrativas e, nesse sentido, concentra <strong>em</strong> si a modernidade especulativa, isto é,<br />

o metarrelato. Mais que apontar o declínio dos metarrelatos a partir do final do século XIX sendo parte da<br />

condição do pós-moderno, Lyotard faz um diagnóstico dessa condição ao sublinhar sua característica central,<br />

que estaria na subversão do discurso fundamentado, que legitimava a ciência, a moral e a arte.<br />

O pensador francês não explica quais foram as transformações ocorridas a partir do final do século XIX,<br />

ele diz apenas que o desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação do saber (entend<strong>em</strong>os o saber<br />

como as esferas do conhecimento) ocorreu devido à crise da filosofia metafísica e da instituição universitária<br />

que dela dependia. Lyotard estuda, <strong>em</strong> A condição pós-moderna, o estatuto do saber consequente<br />

desta transformação.<br />

Em “Reécrire la modernité”, ele irá comentar, de maneira breve, essa transformação, colocando o seu<br />

marco <strong>em</strong> Nietzsche, dizendo que este filósofo<br />

[se] esforça para <strong>em</strong>ancipar o pensamento, a maneira de pensar, do que ele chama metafísica, isto é, deste princípio<br />

que prevaleceu desde Platão a Schopenhauer, que a única coisa para os humanos é descobrir o fundamento que lhes<br />

permite falar de acordo com o verdadeiro e agir de acordo com o b<strong>em</strong> ou o justo. O pensamento nietzscheano t<strong>em</strong> por t<strong>em</strong>a<br />

central o fato que não há nada “<strong>em</strong> acordo com”, por que não há nada que seja um princípio primeiro ou originário [...]<br />

(1990, p. 197).<br />

O pensamento de Nietzsche não acredita neste acordo, neste princípio originário, a ideia do B<strong>em</strong>, ou o<br />

princípio de razão. Lyotard, ao referir-se a Nietzsche, está mostrando uma relação causal entre a crise de<br />

legitimidade dos metarrelatos e o declínio da metafísica. Porém, não vai mais adiante <strong>em</strong> seu comentário,<br />

isto é, não faz uma análise dessa relação que ele próprio aponta.<br />

O estudioso irá discutir mais d<strong>em</strong>oradamente a esfera do conhecimento da ciência. Segundo ele, no<br />

século XX houve a vitória da ciência, no seu aspecto de tecnociência, sobre os outros candidatos à finalidade<br />

universal da história (<strong>em</strong>ancipação da humanidade, principalmente). No entanto, ele observa que<br />

esta vitória sobre as d<strong>em</strong>ais esferas axiológicas é “outra maneira de destruir o projeto moderno, dando ar<br />

de o realizar” (1993, p. 32). Afirma que a tecnociência não é acompanhada pela liberdade, educação, e<br />

pela riqueza melhor distribuída na humanidade. O autor aborda o estatuto da razão da pós-modernidade,<br />

cuja legitimidade oferecida<br />

v<strong>em</strong> diretamente da ideologia tecnicista [...]. A razão científica não é questionada segundo o critério do verdadeiro ou<br />

do falso (cognitivo), sobre o eixo mensag<strong>em</strong>/referente, mas segundo a performatividade dos seus enunciados, sobre o eixo<br />

destinador/destinatário (pragmático). Aquilo que eu digo é mais verdadeiro do que aquilo que tu dizes, visto que, com o<br />

que eu digo, posso “fazer mais” (1993, p. 77).<br />

A legitimidade do saber v<strong>em</strong> da necessidade inerente do capitalismo, da performatividade que cria,<br />

como afirma o autor, uma “pseudo-racionalidade” (1993, p. 88). Ele questiona se o êxito seria um critério<br />

de legitimidade, já que este é apenas constatado ou não, s<strong>em</strong> nenhuma d<strong>em</strong>anda de legitimidade. Observada<br />

essa condição pós-moderna, ele afirma ocorrer, na atualidade, uma aceleração do processo de deslegitimação.


A PALO SECO<br />

64<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

O projeto de <strong>em</strong>ancipação da modernidade – o projeto do Iluminismo – é, assim, frustrado. Lyotard<br />

l<strong>em</strong>bra Kant, ao negar a afirmativa desse filósofo iluminista, segundo a qual a história universal conduz de<br />

forma segura ao progresso, ou, respondendo a Kant, <strong>em</strong> “O que são as Luzes “, que a história universal<br />

não t<strong>em</strong> necessariamente uma finalidade universal, como se pretendia no ideal das Luzes.<br />

Acrescentamos que Lyotard não aponta somente o declínio da metafísica, com seus metadiscursos<br />

especulativos e de <strong>em</strong>ancipação humana, mas também l<strong>em</strong>bra certos fatos que derrubaram o fundamento<br />

racional destes. Ele indica acontecimentos do século XX que dão sinais do enfraquecimento da modernidade,<br />

tornando as grandes narrativas pouco críveis:<br />

Cada uma das grandes narrativas de <strong>em</strong>ancipação [...] foi, por assim dizer, invalidada no seu princípio ao longo dos<br />

cinqüenta anos. Tudo que é real é racional. Tudo o que é racional é real: “Auschwitz” refuta a doutrina especulativa (1993,<br />

p. 42).<br />

Lyotard cita o campo de concentração de “Auschwitz” como um marco do declínio das teorias de legitimação<br />

da razão (metarrelatos de <strong>em</strong>ancipação e especulação filosófica), por ter<strong>em</strong> sido estas instrumentalizadas<br />

a ponto de apagar<strong>em</strong> as Luzes, como no limiar da Segunda Guerra Mundial, onde a ideologia<br />

nazista se serviu das narrativas tradicionais de orig<strong>em</strong> de um povo, ou seja, utilizou-se de teorias etnocêntricas:<br />

Se um poder se autoriza através de um nome nacional ou étnico por sua vez inscrito num “corpus” de histórias mais ou<br />

menos fabulosas, como a saga germânica (ou céltica, ou itálica), isso só pode acontecer através de uma ruptura completa<br />

com a herança da Declaração dos Direitos de 1789. Trata-se, aí, não de um “abandono” do projecto moderno, como diz<br />

Habermas a propósito da pós-modernidade, mas da sua “liquidação” (1993, p. 64).<br />

Apreend<strong>em</strong>os que, para Lyotard, há dois fatos que liquidam o projeto moderno, concorrendo para o fim<br />

da própria modernidade. O primeiro seria o declínio das metanarrativas legitimantes, desde que ela começa<br />

a ser minada através da desconstrução efetuada por Nietzsche até sua liquidação <strong>em</strong> Auschwitz. O<br />

segundo é a aparente efetivação do projeto moderno, na vitória da tecnociência, na medida <strong>em</strong> que o<br />

hom<strong>em</strong> daí foi retirado. Um segundo abandono do projeto moderno seria encontrado na vitória da tecnociência:<br />

Mas a vitória da tecnociência capitalista sobre os outros candidatos à finalidade universal da história humana é<br />

outra maneira de destruir o projeto moderno, dando ar de o realizar (1993, p. 32).<br />

Torna-se difícil afirmar o fato principal de liquidação do projeto moderno, já que os irracionalismos,<br />

principalmente da primeira metade do século XX, poderiam ser simplesmente um período curto na história<br />

onde houve o abandono desse projeto, como afirma Habermas. Sob o ponto de vista de Lyotard, a razão foi<br />

instrumentalizada aí para fins irracionais. A modernidade é defendida pelo filósofo al<strong>em</strong>ão, mesmo encontrando-se<br />

<strong>em</strong> crise devido ao distanciamento entre a modernização da sociedade e o pensamento sobre<br />

ela; a modernidade é entendida como finda para o pensador francês.<br />

No entanto, os dois pensadores coincid<strong>em</strong>, <strong>em</strong> parte, quanto às alternativas para a crise do pensamento<br />

da modernidade (iluminista). Lyotard irá, como Habermas, partir dos “jogos de linguag<strong>em</strong>” de Wittgenstein.<br />

Os dois primeiros tentam uma reconexão da modernidade cultural (ciência, moral, arte) no processo<br />

de modernização social. Vislumbram e defend<strong>em</strong> a legitimação da verdade, não mais a partir de teorias<br />

filosóficas e ou especulativas, mas sim alcançadas através de uma interpe<strong>net</strong>ração no mundo da vida (o<br />

cotidiano), na comunicação, no diálogo.<br />

Sobre a própria comunicação, Habermas e Lyotard diverg<strong>em</strong>. Este último afirma que a verdade, a razão<br />

da pós-modernidade, não estará no consenso desenvolvido e almejado numa situação de diálogo entre os


A PALO SECO<br />

65<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

falantes. Nesta situação, o consenso será uma ideia, um fim que se persegue por meio do dissenso. O<br />

consenso quando alcançado será momentâneo, pois ele não promove o conhecimento. Para Lyotard, o<br />

dissenso convém ao conhecimento, já que ele d<strong>em</strong>anda s<strong>em</strong>pre o desenvolvimento de uma ideia. A verdade<br />

é construída no desenvolvimento entre os diferentes – a paralogia. Esta seria uma saída para a razão da<br />

pós-modernidade.<br />

A questão da defesa do consenso, por parte de Habermas, e a defesa do dissenso e da paralogia por<br />

Lyotard, guardam, <strong>em</strong> última instância, posições distintas sobre a concepção de razão – objeto de estudo<br />

da pós-modernidade. No pensador al<strong>em</strong>ão ilustra-se a defesa de uma razão de natureza universal, que t<strong>em</strong><br />

seu ideal no Iluminismo, e no pensador francês a defesa de uma razão provisória, elaborando-se e transformando-se<br />

s<strong>em</strong> cessar – ambos marcados pela procura de sua inserção na história, no <strong>em</strong>pírico.<br />

Referências bibliográficas<br />

ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A dialética do esclarecimento. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar Editor, 1985.<br />

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1988, p. 87-102.<br />

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Editora Ática, 2000.<br />

KANT, E. Qu’est-ce que les Lumières? Trad. Jean Mondot. Saint-Etienne: Publications de l’Université de<br />

Saint-Étienne, 1991.<br />

______ . Finalité et unité systématique. In: VAYSSE, J. M. Kant et la finalité. Paris: Ellipes/Éditions Marketing<br />

S. A., 1999.<br />

LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo C. Barbosa. São Paulo: José Olympio Editora, 2000.<br />

______ . .Réécrire la modernité. Les cahiers de philosophie. Lille: Coédition CNDP, n. 5, 1988.<br />

______ . O pós-modernismo explicado às crianças. Trad. Tereza Coelho. Lisboa: Publicação Dom Quixote,<br />

1993.<br />

ROUANET, P. S. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. VAYSSE, J-M. Finalité et<br />

unité systématique. In: Kant et la finalité. Paris: Ellipses/Marketing S. A., 1999.<br />

VATTIMO, G. La fin de la modernité: nihilisme et herméneutique dans la culture post-moderne. Traduit de<br />

l’italien par Charles Alunni. Paris: Éditions du Seuil, 1987.<br />

WELLMER, A. La dialéctica de modernidad y postmodernidad. In: Modernidad y postmodernidad. Madrid:<br />

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WITTGENSTEIN, L. Tratado lógico-filosófico e Investigações filosóficas. Trad. M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação<br />

Calouste Gulbenkian, 1995.


Discurso e interdiscurso:<br />

a tradução da filosofia na literatura e nas artes<br />

66<br />

Dominique M. P. G. Boxus<br />

Departamento de Línguas Estrangeiras/UFS<br />

No presente artigo, explicarei brev<strong>em</strong>ente como concebo minha presença <strong>em</strong> um grupo como o <strong>GeFeLit</strong>,<br />

ao apresentar o espírito e o projeto da disciplina que pretendo ministrar no âmbito do curso de especialização<br />

<strong>em</strong> filosofia e literatura que, com meus colegas do grupo, pretend<strong>em</strong>os iniciar nesse ano de 2011.<br />

Insisto nas palavras espírito e projeto: de fato, não escreverei aqui sobre os resultados de uma pesquisa<br />

feita e acabada, mas antes evidenciarei o que, como estudioso da literatura, venho concebendo e construindo,<br />

através de meus diversos trabalhos de ensino e pesquisa, e que poderia fundamentar uma disciplina<br />

para um curso de especialização.<br />

Partindo, então, de minhas indagações de mestrado e doutorado sobre as letras francófonas, e insistindo<br />

também sobre o que condiciona meu local de observação, a saber, o fato de que sou belga francófono<br />

(e não francês) e que moro no Brasil, com o qual me comparo, considerando ainda os meus trabalhos como<br />

tradutor-intérprete <strong>em</strong> língua francesa e <strong>em</strong> língua portuguesa, posso dizer quanto a probl<strong>em</strong>ática das<br />

fronteiras – e das identidades que elas visam a definir – ocupa todo o espaço de minhas atenções acadêmicas:<br />

gosto de olhar para o diverso das línguas, literaturas e culturas nacionais (França, francofonias e<br />

Brasil), comparar suas especificidades, estudar seus entrecruzamentos, evidenciar suas tensões.<br />

Mencionarei, portanto, alguns ex<strong>em</strong>plos de trabalhos realizados, ou <strong>em</strong> processo de realização, sobre<br />

essa t<strong>em</strong>ática das fronteiras. Estudei no passado a projeção da Bélgica francófona no pólo cultural francoparisiense:<br />

imitação do outro e apagamento de si. Estudei também a presença do Brasil na literatura<br />

quebequense, por ex<strong>em</strong>plo, nos romances do brasileiro exilado Sérgio Kokis, escritor migrante, que retrata<br />

seu país de orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> língua francesa. Observo atualmente a expressão do Brasil no romance belga O<br />

jardim do nada, de Conrad Detrez; como também a presença dos mitos americanos – o Novo Mundo e o<br />

Bom Selvag<strong>em</strong> – na literatura francesa: Michel Tournier e Jean-Christophe Rufin. Recent<strong>em</strong>ente, meus<br />

interesses me levaram para a área do cin<strong>em</strong>a. Iniciei uma pesquisa sobre o filme franco-brasileiro de<br />

Marcel Camus, Orfeu negro, no qual me fascina a transferência do mito da antiguidade clássica <strong>em</strong> um<br />

contexto brasileiro, e <strong>em</strong> língua portuguesa, através de uma produção dupla: francesa e brasileira; nesse<br />

filme, o carnaval, o negro e o candomblé traz<strong>em</strong> o mito antigo no campo da identidade nacional brasileira,


A PALO SECO<br />

67<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

a partir de um olhar tanto exógeno (turístico-tropicalista) quanto endógeno (o de Vinícius de Moraes, o da<br />

bossa nova recém-lançada, o dos atores brasileiros e da língua portuguesa). No mesmo registro, estudo a<br />

passag<strong>em</strong> do mito do andrógino de Platão para o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.<br />

Leio com interesse sobre a missão artística francesa no Rio de Janeiro, cujos pintores retrataram o Brasil a<br />

partir de seus cânones europeus e tiveram que encontrar – ou não encontrar – meios para expressar o<br />

outro, tal como o negro escravo, que Nicolas-Antoine Taunay não quis ver, mas que está onipresente <strong>em</strong><br />

suas telas, na forma de pontinhos pretos. Diante desses ex<strong>em</strong>plos, me v<strong>em</strong> a percepção de um processo<br />

de transferência, o qual me leva ao conceito de tradução.<br />

Explico esse meu interesse para as passagens, reciclagens e travessias de fronteiras pelo fato de que<br />

sou, eu mesmo, um transeunte. Por ex<strong>em</strong>plo, ao falar português, vivo traduzindo incessant<strong>em</strong>ente: isso<br />

causa <strong>em</strong> mim um estrangeirismo, a sensação de não estar nunca totalmente <strong>em</strong> casa com minha língua.<br />

Resumindo, eu foco, <strong>em</strong> meus estudos, fenômenos de migração, especificamente na literatura e no cin<strong>em</strong>a,<br />

e também na tradução no sentido restrito, literária e não literária. Sinto-me bastante satisfeito por ter<br />

conseguido reunir na UFS uma equipe de estudantes que estão pesquisando comigo nessa direção.<br />

Portanto, no presente artigo, me estenderei primeiro sobre dois conceitos: o interdiscurso e a tradução.<br />

Ou melhor: falarei sobre a tradução enquanto interdiscurso. Espero assim manifestar, a partir da literatura,<br />

alguns el<strong>em</strong>entos de encontro entre a mesma, incluindo a arte, e a filosofia. Deter-me-ei primeiro no<br />

conceito de transcriação. A leitura que fiz de ensaios sobre tradução (George Steiner; Antoine Berman;<br />

Pascale Casanova; Inês Oseki-Dépré, entre outros) me leva a entender a existência de uma filosofia da<br />

tradução, ou seja, de uma reflexão teórica totalizante sobre esse conceito: uma tradutologia no sentido<br />

amplo, quer dizer, situada além do sentido comum (o de passar um texto de uma língua-fonte para uma<br />

língua-alvo). Essa visão ampliada da tradutologia evidencia diversas práticas de transferência, s<strong>em</strong>ântica<br />

e formal, no âmbito tanto verbal quanto s<strong>em</strong>iótico, envolvendo outros signos, como a imag<strong>em</strong>: dois dos<br />

meus orientandos estão estudando hoje o mito de Orfeu na literatura e no cin<strong>em</strong>a da França e do Brasil.<br />

Da leitura dos ensaios sobre a tradução, destacarei apenas os tópicos que mais r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> à minha<br />

pesquisa. 1. O fato de que cada língua, literatura e cultura humana erig<strong>em</strong> do mundo um mapa diferente:<br />

o Orfeu francês não é o mesmo Orfeu brasileiro. 2. A importância da tradução para as coletividades nacionais<br />

confinadas, as culturas dominadas importando mais as literaturas e culturas estrangeiras, seus t<strong>em</strong>as e<br />

símbolos, do que elas próprias exportam os seus: eis aqui uma estratégia típica das coletividades nacionais<br />

minoritárias, <strong>em</strong> busca de visibilidade e de identidade (para elas, importa imitar, trazer algo prestigioso,<br />

projetar-se). 3. Mais do que nunca, nossa época está mergulhada até o pescoço no mundo da tradução,<br />

<strong>em</strong> um mundo que é a tradução de outros mundos. Mais do que nunca se vive na intercultura, e Babel<br />

aparece ao mesmo t<strong>em</strong>po como um desastre e uma chuva de estrelas sobre o hom<strong>em</strong>: refiro-me aqui à<br />

etimologia da palavra desastre (dis-astro: astro fora de seu eixo), sendo que traduzir é ultrapassar a aparente<br />

catástrofe das fronteiras. 4. As linguagens simbólicas, quer dizer, a literatura e as artes, teriam um<br />

poder de tradução multiplicado. Por prova, pens<strong>em</strong>os na importância da Grécia e da civilização hebraica<br />

para a tradição/tradução ocidental: r<strong>em</strong>eterei à universalidade de Homero e à da Bíblia. “Nossa arte e<br />

nossa literatura são, <strong>em</strong> uma larga medida, um jogo de variações sobre t<strong>em</strong>as fixados de uma vez por<br />

todas” (Steiner, 1998, p. 5). A história enquanto tradução é fundamental para a existência das culturas. Só<br />

existe história enquanto tradução, o passado sendo a organização narrativa das l<strong>em</strong>branças; cada cultura<br />

t<strong>em</strong> seu modo específico de estilizar sua paisag<strong>em</strong> histórica.<br />

O brasileiro Haroldo de Campos (1982) viabiliza a ideia (e a realidade) de uma tradução-transcriaçãotransluciferação,<br />

associada à de um tradutor-usurpador-translucífero: atrás da ironia e da provocação,<br />

entenda-se aqui o apagamento do texto original que, servindo a tradução, deixa que ela ocupe o lugar de<br />

destaque; a missão angelical do tradutor, mensageiro-passador, é experimentada e formalizada por Campos<br />

como uma missão do anjo Lúcifer, que pode cometer hybris, ou seja, provocar, desafiar, fomentar<br />

crimes, transgredir, a ponto de criar um novo texto, aberto para novas traduções. O linguista e historiador<br />

da literatura Dominique Maingueneau (1984), ao descrever os fenômenos da intertextualidade, parte do


A PALO SECO<br />

68<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

postulado de que “o interdiscurso precede o discurso”, quer dizer, a experiência da prática tradutória antecede<br />

o resultado da obra de criação. Maingueneau situa o texto literário numa perspectiva sociocrítica,<br />

que o associa a uma tradução da história, da religião, da política, da filosofia.<br />

Concluindo sobre os ensaios tocantes à tradutologia, e para explicitar minha visão das relações entre a<br />

literatura e a filosofia – precisando novamente que meu campo de estudo é a literatura, onde me situo –,<br />

espero ter conseguido expressar como posso tirar proveito, para cont<strong>em</strong>plar meus objetos de pesquisa, de<br />

uma idéia ampliada da tradução.<br />

No que diz respeito a uma tradução da filosofia na literatura e nas artes, título deste artigo, evidencio a<br />

perspectiva do trans (presente na etimologia da palavra traduzir), quer dizer, de uma transformação, recriação,<br />

e criação no sentido pleno, o fazer do tradutor ocupando o primeiro plano. A literatura e as artes<br />

filosofam, s<strong>em</strong> dúvida, de modo genuíno, isso valendo no âmbito da teoria como no da criação. Parece-me<br />

oportuno l<strong>em</strong>brar o discurso pronunciado por Roland Barthes, <strong>em</strong> 1977: La leçon [A aula] (Barthes, 1993-<br />

1995), no qual o autor evidencia a especificidade da literatura, que ele vê como um contrapoder, ou seja,<br />

como uma força transgressiva. O uso comum da língua, inevitavelmente, é sinônimo de moralismo, servilismo<br />

e dominação: expressão de autoridades e grupos heg<strong>em</strong>ônicos, o uso comum da língua é arrogância<br />

de qu<strong>em</strong> toma a palavra, e submissão ou alienação de qu<strong>em</strong> a recebe. Barthes explica que um idioma não<br />

permite dizer, mas sim obriga a dizer. Assim, na língua francesa, só posso usar o masculino e o f<strong>em</strong>inino: a<br />

língua não me dá acesso à complexidade e à ambivalência do neutro; da mesma forma, <strong>em</strong> francês, só<br />

posso usar tu ou vous, perdendo a liberdade de criar qualquer suspense afetivo ou social. Logo abro um<br />

parêntese: no caso da denominação do grupo <strong>GeFeLit</strong>, o uso comum da língua não nos permite evitar a<br />

linearidade; somos obrigados a iniciar por uma ou outra das duas disciplinas, não tendo como escapar de<br />

alguma prevalência (Filosofia e Literatura, ou Literatura e Filosofia?); a criação da sigla <strong>GeFeLit</strong>, ao se<br />

aproximar de um uso literário da língua, consegue apagar (pelo menos <strong>em</strong> parte) essa aporia (limitação).<br />

Portanto, e voltando a Barthes, todo uso comum da língua é fascismo. E o autor pergunta: Onde está a<br />

liberdade? Como escapar das estruturas de poder? A resposta logo v<strong>em</strong>: através da literatura, cujo uso da<br />

língua opera desvios e oferece possibilidades de esquiva. Independente da pessoa cívica e política do<br />

autor, independente de modas e escolas estéticas, a literatura é escritura. Ela não é um corpo de autores;<br />

tampouco uma lista de obras, um setor de comércio ou de ensino. Ela é, antes, uma prática textual. Na<br />

literatura, a língua encontra meios para combater contra si mesma, pelo jogo das palavras que ela promove.<br />

Barthes acrescenta: a literatura é mímesis, quer dizer, absolutamente e categoricamente realista; todas<br />

as ciências são convocadas pelo monumento literário. No romance Robinson Crusoé, inúmeros saberes<br />

se entrecruzam: histórico, geográfico, antropológico, técnico, botânico, político, colonial, social – eu poderia<br />

acrescentar: filosófico. Nessa capacidade de usar a língua fora do contexto do poder, nesse esplendor<br />

de uma revolução permanente da língua, aí está a originalidade e a liberdade da literatura. Os chamados<br />

escritores-filósofos (Voltaire, Sartre, Camus, Beckett, Ionesco, Tournier) manifestam, a meu ver, essa liberdade<br />

da literatura. Nessa capacidade de atravessar ou romper fronteiras pelo uso livre da linguag<strong>em</strong>,<br />

incluo as artes de modo geral.<br />

Não deixarei de sublinhar, com ênfase, o aporte da filosofia para fundamentar e conceituar uma especulação<br />

sobre a noção de tradução. Inclusive, eu gostaria muito de refletir e debater com meus colegas de<br />

filosofia sobre a abrangência e a pertinência de uma especulação desse tipo.<br />

A fim de ex<strong>em</strong>plificar o que foi dito, darei um pequeno mergulho na criação literária e cin<strong>em</strong>atográfica.<br />

A obra do escritor antilhano francófono Édouard Glissant pode ser definida como um conjunto de ilhas, um<br />

arquipélago textual onde as obras comunicam e se entrecruzam, onde é praticada uma mestiçag<strong>em</strong> dos<br />

gêneros literários. A capa do livro Tout-monde [Tudo-mundo; Mundo-Todo; Inter-mundo – mais um desafio<br />

de tradução], publicado <strong>em</strong> 1993, menciona um conceito tradicional para se autodenominar como gênero<br />

textual “romance”. Na leitura, percebe-se, no entanto, que as fronteiras são permeáveis: o romance é<br />

também um longo po<strong>em</strong>a de 600 páginas, e cada capítulo se abre com uma citação vinda de um suposto<br />

Traité du Tout-monde [Tratado do Inter-mundo], atribuído a Mathieu Béluse (personag<strong>em</strong> fictícia), tratado


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Ano 3, n. 3, 2011<br />

que será realmente publicado quatro anos depois, <strong>em</strong> 1997, com o subtítulo Poética IV. Esse tratado desenvolve<br />

uma reflexão sobre o que Glissant chama de Poética da Relação: essa poética (entendamos:<br />

escritura, discurso, palavra, voz) será trans-histórica, crioula, heterogênea, plurilíngue, situada na transversalidade<br />

das culturas. No romance do Inter-mundo, o arquipélago dos caribes metaforiza um modo de<br />

pensar e ver o mundo: a fluidez da água liga e relaciona ilhas e continentes diss<strong>em</strong>inados, culturas diversas<br />

e, não obstante, necessárias à carne do mundo (s<strong>em</strong> elas, o mundo não seria mais mundo). O mangue<br />

(la mangrove) textualiza poeticamente a visão (deleuziana) de seres vegetais entrelaçados, diversos e<br />

plurais, desprovidos de raízes que desceriam fundo na terra. A Poética da Relação conforme os votos de<br />

Glissant expressa a necessária multiplicação das práticas de tradução no inter-mundo. Uma filosofia encontra-se<br />

aqui, característica da virada do século XX.<br />

Do outro lado do oceano, numa coletividade francófona tão pequena quanto as Antilhas, o escritor<br />

belga Pierre Mertens, <strong>em</strong> seu romance Uma paz real (1995), traduz a des-história do povo belga. Ele<br />

procura reconstruir uma nova Bélgica, renascente de seus destroços e de sua grande lacuna (Mertens usa<br />

a palavra béance: vazio, grande buraco). Para tanto, o buraco belga, que suas fronteiras geográficas assimilam,<br />

no romance, a um triângulo, é poeticamente posto <strong>em</strong> relação com as grandes civilizações do<br />

mundo, através da letra grega maiúscula: delta; e também do delta do rio Nilo. Diversas cadeias de signos,<br />

espalhados como ruínas e destroços no espaço do romance, tend<strong>em</strong> a recompor um sentido para o país<br />

pequeno e mal-amado. Pelo poder da literatura, elas inser<strong>em</strong> redes s<strong>em</strong>ânticas que atravessam as fronteiras<br />

do t<strong>em</strong>po e do espaço, superando o niilismo da des-história. São assim relacionados a Bélgica e o Egito<br />

antigo; Nefertiti, as rainhas belgas Élizabeth e Astrid, a esposa do rei Toutankhamon, a rainha de Sabá, e la<br />

petite reine (a pequena rainha, na Bélgica, designa a bicicleta; o ciclismo é um esporte que, nesse país,<br />

tornou-se um grande símbolo nacional, <strong>em</strong> decorrência das inúmeras vitórias do ciclista Eddy Merckx,<br />

entre outros grandes campeões do pedal). Absurdie e cu do mundo, o país belga minúsculo traduz o drama<br />

pós-moderno do esvaecimento do sentido.<br />

Por fim, mencionarei a trilogia fílmica do realizador, escritor e artista Jean Cocteau, que estamos estudando<br />

com meus orientandos do Pibic: ao traduzir mitos antigos como Orfeu, Narciso e o andrógino, essa<br />

obra cin<strong>em</strong>atográfica de Cocteau (Sangue de um poeta; Orfeu; O testamento de Orfeu) expressa, no âmbito<br />

universal, as ambivalências das representações do masculino e do f<strong>em</strong>inino, como também o misterioso,<br />

arriscado e t<strong>em</strong>erário trabalho da criação poética.<br />

O conceito de tradução me oferece a possibilidade de abraçar vários tipos de passagens, e indagar<br />

sobre eles. Creio que “uma cultura é um encadeamento de traduções e transformações constantes” (Steiner,<br />

1998). Nesse encadeamento, a literatura e a filosofia se encontram.<br />

Referências bibliográficas<br />

BARTHES, Roland. Oeuvres complètes. Paris: Seuil, 1993-1995.<br />

BERMAN, Antoine. L´épreuve de l´étranger. Paris: Gallimard, 1984. Col. “Tel”.<br />

CASANOVA, Pascale. La république mondiale des lettres. Paris: Seuil, 1999.<br />

COCTEAU, Jean. Orfeu. 1949. DVD. Continental Home Vídeo. 2005.<br />

GLISSANT, Édouard. Tout-monde. Paris: Gallimard, 1993. Col. “Folio”.<br />

______. Traité du Tout Monde. Poétique IV. Paris: Gallimard, 1997. Col. “NRF”.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Genèses du discours. Bruxelles: Mardaga, 1984. Col. “Philosophie et Langage”.<br />

MERTENS, Pierre. Une paix royale. Paris: Seuil, 1995.<br />

OSEKI-DÉPRÉ, Inês. De Walter Benjamin à nos jours: essais de traductologie. Paris: Honoré Champion,<br />

2007.<br />

STEINER, George. Après Babel: une poétique du dire et de la traduction. Paris: Albin Michel, 1998.


Peirce e o método dos detetives<br />

1. Considerações iniciais<br />

70<br />

Sergio Hugo Menna<br />

Departamento de Filosofia/UFS<br />

O objetivo deste trabalho é expor as principais características da metodologia da indagação de Peirce,<br />

e destacar sua importância nos estudos sobre a criatividade <strong>em</strong> geral e sobre a estrutura do romance<br />

policial <strong>em</strong> particular.<br />

Acho que o t<strong>em</strong>a do trabalho – Peirce e o método dos detetives – é um bom ex<strong>em</strong>plo de relação entre<br />

filosofia e literatura. Antes de começar a falar desta relação, gostaria de apresentar as pessoas (e personagens)<br />

sobre as quais falarei: Peirce e os detetives.<br />

Charles Sanders Peirce<br />

Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um pensador da segunda metade do século XIX. Foi cientista,<br />

linguista, filósofo e escritor, e detetive <strong>em</strong> suas horas vagas.<br />

Deixou uma obra enorme que ainda está sendo descoberta. Não foi muito conhecido por seus cont<strong>em</strong>porâneos,<br />

mas nas últimas décadas v<strong>em</strong> sendo reconhecido como um dos grandes filósofos do século XIX.<br />

A relação de Peirce com as letras se baseia <strong>em</strong> dois pontos centrais: por um lado, <strong>em</strong> suas contribuições<br />

à s<strong>em</strong>iótica – ele é considerado o fundador da teoria moderna dos signos. Por outro, <strong>em</strong> seu método de<br />

indagação, denominado “abdutivo”, “retrodutivo” ou “explicativo”. Este método, no contexto dos estudos<br />

literários, pode ser utilizado para analisar as estratégias dos detetives, e avaliar se essas estratégias são<br />

boas ou não.


A PALO SECO<br />

Os detetives<br />

71<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Os detetives aos que se refere o título são alguns dos grandes nomes da literatura policial: Zadig, o<br />

personag<strong>em</strong> do romance Zadig, escrito por Voltaire <strong>em</strong> 1747; Auguste Dupin, o detetive amador de Edgar<br />

Allan Poe; Padre Brown, o sacerdote pesquisador de Chesterton; Isidro Parodi, “o sentenciado da cela 273”,<br />

de Bustos Domecq (J. L. Borges e A. Bioy Casares), que resolve seus casos de dentro da prisão; Guilherme<br />

de Baskerville, o detetive medieval de Umberto Eco; a hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikael Blomkvist,<br />

os pesquisadores nórdicos da saga Millennium de Steig Larsson, e tantos outros. E, é claro, Sherlock<br />

Holmes, o imortal detetive de Sir Artur Conan Doyle.<br />

Para as pessoas que conceb<strong>em</strong> os argumentos da mat<strong>em</strong>ática ou da física como paradigmas dos argumentos<br />

científicos, os argumentos de Zadig, ou de detetives como Dupin ou Sherlock Holmes, pod<strong>em</strong><br />

parecer pouco importantes, pouco “científicos” ou nada “acadêmicos”. Mas observ<strong>em</strong>os que são o mesmo<br />

tipo de argumentos de pesquisadores de especialidades como “polícia científica” ou “ciência criminal”,<br />

pesquisadores reconhecidos por desenvolver<strong>em</strong> “investigações científicas”. Investigações, aliás, às quais<br />

pod<strong>em</strong>os ter acesso <strong>em</strong> séries de TV como C.S.I. (Crime Scene Investigation), ou The Evidence, ou Without<br />

a Trace, ou Cold Case –série da WB cujo slogan publicitário é: “onde as evidências faz<strong>em</strong> justiça”...<br />

Gostaria de ter incluído na lista anterior, de grandes detetives, Grissom, do seriado C.S.I. Las Vegas,<br />

porque é um detetive brilhante, mas, infelizmente, não posso porque por enquanto não é um personag<strong>em</strong><br />

literário. Entretanto, posso, com toda satisfação, excluir Robert Langdon, de Dan Brown, porque além de O<br />

código Da Vinci ser um romance ruim do ponto de vista literário, a maioria das estratégias de Langdon são<br />

forçadas e óbvias, e não passam pelo teste abdutivo.<br />

2. Peirce e o método abdutivo<br />

O que é o método abdutivo de Peirce? Basicamente, um procedimento que possibilita avaliar as respostas<br />

iniciais ou as primeiras soluções que t<strong>em</strong>os para um probl<strong>em</strong>a.<br />

Quando t<strong>em</strong>os um probl<strong>em</strong>a – científico, filosófico, no dia-a-dia – geralmente pensamos <strong>em</strong> algumas<br />

tentativas de solução. O que fez Peirce foi identificar os critérios não <strong>em</strong>píricos que intervêm nesse processo<br />

– por ex<strong>em</strong>plo, simplicidade, coerência, precisão, analogia etc. –, e articulá-los num esqu<strong>em</strong>a que<br />

permite avaliar quais tentativas de solução têm mais possibilidades de sucesso.<br />

Pense na seguinte situação, que é freqüente na vida universitária: você t<strong>em</strong> que escrever um artigo ou<br />

uma tese. Esse é de fato, no contexto acadêmico, um grande probl<strong>em</strong>a. Diante dessa situação, você tenta<br />

pensar <strong>em</strong> algum t<strong>em</strong>a ou idéia sobre o qual trabalhar. A dificuldade é que você só saberá se essa idéia era<br />

efetivamente boa depois de um t<strong>em</strong>po considerável de trabalho; isto é, depois de desenvolver a pesquisa<br />

– situação que, você concordará, poderá ser dispendiosa <strong>em</strong> termos de dinheiro, t<strong>em</strong>po ou esforço. Nesses<br />

casos, o que faz a abdução é tentar identificar, antes de desenvolver a pesquisa, se a idéia pode ser boa.<br />

Atenção: a abdução não garante que essa resposta será verdadeira ou – melhor – se ela terá sucesso:<br />

você só terá essa informação quando aplicá-la na prática. A abdução simplesmente indica com que resposta<br />

é conveniente começar a trabalhar.<br />

O que a abdução faz, <strong>em</strong> termos técnicos, é indicar se uma idéia é “plausível”. Quando os cientistas<br />

chegam a um consenso a respeito de que uma hipótese é “promissora”, ou quando os integrantes da<br />

comissão avaliadora de uma entidade de apoio à pesquisa decid<strong>em</strong> outorgar um subsídio a um projeto que<br />

consideram “viável”, o que estão fazendo, consciente ou inconscient<strong>em</strong>ente, é aplicar critérios abdutivos.


A PALO SECO<br />

3. O método abdutivo e os detetives<br />

72<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

O motivo de toda esta explicação é que os detetives, assim como os cientistas, os filósofos e todos nós<br />

quando resolv<strong>em</strong>os probl<strong>em</strong>as, também pensam abdutivamente.<br />

Sim, você leu b<strong>em</strong>: o raciocínio dos detetives – diferent<strong>em</strong>ente do que acreditávamos – não é dedutivo,<br />

mas abdutivo. Sherlock Holmes, como todos sab<strong>em</strong>os, <strong>em</strong> suas obras repete sist<strong>em</strong>aticamente que seu<br />

trabalho é “simples dedução”. Mas, <strong>em</strong> sentido estrito, seu trabalho é exatamente o oposto: “simples<br />

abdução”. 1<br />

O sentido da dedução é do geral ao particular, da causa ao efeito. Se eu sei que todas as bolas de uma<br />

caixa são amarelas, posso deduzir que, se tirar uma bola dela, essa bola será amarela.<br />

A abdução segue o caminho oposto do da dedução. Vai do efeito à causa. (De fato, outro nome da<br />

abdução é “retro-dução”, que quer dizer “dedução inversa”). A abdução procura, por ex<strong>em</strong>plo, conjeturar<br />

de que caixa provém uma bola amarela, s<strong>em</strong> saber qual a cor das bolas das caixas disponíveis.<br />

Samuel Johnson afirmou, e com razão, que “o ex<strong>em</strong>plo é s<strong>em</strong>pre mais eficaz que o preceito”. Por isso,<br />

nada melhor que passar rapidamente a um ex<strong>em</strong>plo. Pod<strong>em</strong>os começar com um texto do próprio Peirce.<br />

Diz ele:<br />

Certa ocasião visitei uma província turca. Quando des<strong>em</strong>barquei, vi um hom<strong>em</strong> a cavalo, pomposamente vestido.<br />

Estava rodeado por guardas, que o levavam <strong>em</strong> uma carruag<strong>em</strong>. Como o governador era a única pessoa que pensei que<br />

poderia reunir essas características, inferi que esse hom<strong>em</strong> era o governador, e acertei (2.625).<br />

Este é um argumento abdutivo. Por quê? Porque Peirce não se limita a dizer: “Esse hom<strong>em</strong> é o governador<br />

desta província”. Ele nos oferece algumas razões de por que acreditou, inferiu, concluiu, que um hom<strong>em</strong>,<br />

que ele nunca tinha visto, era efetivamente o governador de uma província turca.<br />

Observ<strong>em</strong>os que esse hom<strong>em</strong> b<strong>em</strong> poderia não ter sido o governador da província visitada por Peirce:<br />

poderia, p.ex., ter sido um governador de outra província, ou um prefeito, ou inclusive um ator representando<br />

uma autoridade pública. Mas o argumento de Peirce, mesmo com conclusão incerta, não deixa de ser<br />

um argumento: ele não adivinhou; ele inferiu a partir de algumas observações, e nos ofereceu as evidências<br />

que lhe permitiram inferir sua conclusão.<br />

É exatamente o que acontece na situação clássica dos relatos policiais. Há um assassinato e o detetive<br />

t<strong>em</strong> que procurar o assassino. Mas para isso só conta com indícios. Ele não conhece a causa – o assassino;<br />

só conhece alguns efeitos: “sangue”, “pegadas”, “impressões digitais”, “motivações”. Quando Sherlock<br />

Holmes infere que o mordomo é o assassino, faz isso porque entende que a hipótese “o mordomo é o<br />

assassino” é a que melhor explica a presença de sangue nas mãos do mordomo, as impressões digitais do<br />

mordomo no punhal que está no peito da pessoa assassinada etc.<br />

O raciocínio dedutivo t<strong>em</strong> uma característica distintiva: é um procedimento seguro. Você t<strong>em</strong> certeza de<br />

que, se ele foi b<strong>em</strong> aplicado, o resultado alcançado é correto. Você não duvida que a bola que retira de<br />

uma caixa que contém somente bolas amarelas vai ser amarela. Mas, precisamente por ser um procedimento<br />

seguro, é pouco criativo: não produz nenhuma informação nova. (Essa é uma tensão essencial <strong>em</strong><br />

nossas vidas: quanto maior segurança, menor novidade; quanto menor a segurança, maior a novidade – o<br />

que equivale a afirmar que a procura de conhecimento é uma tarefa perigosa.)<br />

1 É plausível pensar que. numa breve conversa com qualquer metodólogo cont<strong>em</strong>porâneo, Conan Doyle compreenderia<br />

rapidamente a distinção entre esses dois padrões inferenciais – dedução e abdução –, e até concordaria que os raciocínios<br />

de seu detetive, de um ponto de vista técnico, seriam descritos melhor com o termo “abdução“. (Paralelamente, também é<br />

plausível supor que, mesmo assim, Conan Doyle priorizasse a trama narrativa e a simplicidade comunicativa de seus textos<br />

e não substituísse o termo “dedução“ – mas nada disso muda o núcleo de minha argumentação.)


A PALO SECO<br />

73<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

A situação, no caso dos detetives, é contrária à da dedução: eles têm novidade, e por isso mesmo,<br />

insegurança. No ex<strong>em</strong>plo anterior, as evidências disponíveis – “sangue”, “pegadas”, “impressões digitais”<br />

– não implicam dedutivamente a hipótese de Holmes; não indicam infalivelmente que o mordomo é de fato<br />

o assassino. S<strong>em</strong>pre existe a possibilidade de que outra pessoa seja o culpado. 2 De fato, a estratégia<br />

típica (e desesperada) dos advogados de defensa é a da “segunda pessoa” – isto é, a de levantar a<br />

hipótese de que pode ter havido outra pessoa na cena do crime, o “verdadeiro” assassino. (Entre parênteses,<br />

observo que nos últimos dois grandes crimes mediáticos no Brasil – filha que mata seus pais, pais que<br />

assassinam sua filha –, os advogados da defesa enfrentaram a hipótese incriminadora e a evidência abrumadora<br />

do promotor apelando ao recurso da “segunda pessoa”. Todos l<strong>em</strong>brarão, por ex<strong>em</strong>plo, o caso<br />

Isabella Nardoni, a menina que foi jogada – aparent<strong>em</strong>ente pelo pai – pela janela de seu apartamento.<br />

Nesse caso, a defesa argumentou que “a menina foi jogada por um assaltante” – a “segunda pessoa”. Mas<br />

o júri não admitiu esta hipótese – plausivelmente, porque abdutivamente entendeu que a mesma não<br />

tinha nenhuma evidência a favor, além de quebrar o critério de simplicidade. Em outras palavras, que não<br />

era uma boa explicação. Quando nos perguntamos que significa ter evidência a favor, e o que é uma boa<br />

explicação, estamos falando da abdução.)<br />

A questão é que parece ser uma boa decisão inferir provisoriamente – isto é, desenvolver, admitir,<br />

utilizar – uma hipótese abdutiva se alguns critérios for<strong>em</strong> favoráveis a ela. E aqui não se pode dizer que se<br />

trate só de conjetura, suspeita ou “palpite” subjetivo. Holmes pode dar razões <strong>em</strong> favor de sua decisão.<br />

Não há, por parte dele, uma eleição arbitrária. Ele não escolheu seu suspeito ao acaso – por ex<strong>em</strong>plo,<br />

fechando seus olhos e pondo seu dedo <strong>em</strong> qualquer lugar da lista telefônica. Além disso, ele pode compartilhar<br />

suas reflexões conosco – todos os leitores, todos os humanos –, e eventualmente poder<strong>em</strong>os concordar<br />

com ele. O júri, nos casos mencionados, <strong>em</strong> princípio também poderia fazer o mesmo. O relevante<br />

aqui é que, nos dois ex<strong>em</strong>plos, aqueles que avaliam pod<strong>em</strong> explicitar boas razões abdutivas.<br />

Sherlock Holmes e um ex<strong>em</strong>plo abdutivo<br />

O método abdutivo, então, possibilita analisar os raciocínios de resolução de probl<strong>em</strong>as –científicos,<br />

filosóficos, policiais– e avaliar se são bons.<br />

Vamos ilustrar o funcionamento da análise abdutiva com um ex<strong>em</strong>plo muito simples, extraído do conto<br />

“O carbúnculo azul” ([1892g]), que está no livro de Conan Doyle, As aventuras de Sherlock Holmes.<br />

Vou me centrar numa passag<strong>em</strong> desse conto. É um diálogo entre Sherlock Holmes e seu ajudante Watson<br />

a respeito de um único indício presente na cena de um crime: um velho chapéu.<br />

Watson: – Que pista você t<strong>em</strong> da identidade [do desconhecido]?<br />

Holmes: – Só o que nos é possível deduzir. [Aqui dev<strong>em</strong>os ler: “abduzir”]<br />

Watson: – Do seu chapéu?<br />

Holmes: – Exatamente.<br />

Watson: – Você está brincando, Holmes. Que pode deduzir desse velho chapéu de feltro?<br />

Holmes: – [Watson, peço-lhe que olhe este chapéu como um probl<strong>em</strong>a intelectual]. Cá está a minha lupa. Conhece meu<br />

método. Que [hipótese] pode fazer sobre o hom<strong>em</strong> que [o] utilizou?<br />

[...]<br />

2 T<strong>em</strong>os evidências incontestáveis de que aquilo que parece verdadeiro muitas vezes não o é. Tom<strong>em</strong>os como ex<strong>em</strong>plo uma<br />

informação do jornal americano The Washington Post (23 de abril de 2007). O jornal informa que, nos Estados Unidos, exames<br />

comparativos genéticos de DNA realizados desde 1989 permitiram absolver mais de 200 presos condenados erroneamente.


A PALO SECO<br />

Watson: – Não consigo ver coisa alguma.<br />

74<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

Holmes: – Pelo contrário, Watson, você pode ver tudo. Não é capaz, contudo, de raciocinar a partir do que vê. É tímido<br />

d<strong>em</strong>ais <strong>em</strong> fazer suas inferências (p. 286-7).<br />

O que Holmes está dizendo é: aqui estão os indícios: toda observação que for possível fazer sobre o<br />

chapéu. Como é possível que a partir de tanta informação você não possa extrair uma hipótese explicativa?<br />

Em outras palavras: Holmes parece estar exigindo de Watson que aplique critérios abdutivos à evidencia,<br />

com o objetivo de construir una explicação. Coisa que Watson não sabe fazer.<br />

Watson, evident<strong>em</strong>ente irritado com Holmes, responde:<br />

Watson: – Então, pode me dizer por favor o que consegue inferir deste chapéu?<br />

Holmes: – [Este chapéu, Watson...] permite algumas inferências muito claras [...]. Sua aparência deixa bastante claro<br />

que o hom<strong>em</strong> era muito inteligente.<br />

Watson: – Holmes! Certamente você está brincando!<br />

[...]<br />

Holmes: – De maneira alguma. Será possível que mesmo agora, depois que lhe apresentei a conclusão, você não consiga<br />

ver como cheguei a ela? (p. 287-8).<br />

O que Holmes está dizendo agora é: aqui (no chapéu) estão as pr<strong>em</strong>issas, e você conhece a conclusão:<br />

“o proprietário do chapéu é muito inteligente”. Como é possível você não ver o vínculo entre as evidências<br />

e a hipótese, já dada?<br />

Holmes está exigindo que Watson use critérios abdutivos para reconstruir o caminho que ele fez. Coisa<br />

que, novamente, Watson não sabe fazer.<br />

Em outras palavras, Holmes parece acreditar que é possível usar alguns princípios de raciocínio para<br />

reconstruir – compreender, explicar – os processos criativos.<br />

Continu<strong>em</strong>os com o relato. Watson, ainda mais irritado que anteriormente, responde:<br />

Watson: – Holmes, não tenho dúvida que sou muito burro, mas não consigo acompanhar seu raciocínio. Por ex<strong>em</strong>plo,<br />

como deduziu que o desconhecido era muito inteligente?<br />

Como resposta, Holmes enfiou o chapéu na cabeça. Este cobriu-lhe inteiramente a testa e apoiou-se no osso do nariz.<br />

“É uma questão de capacidade cúbica”, disse Holmes. “Um hom<strong>em</strong> com uma cabeça tão grande deve ter alguma coisa nela”.<br />

[...]<br />

Watson: – Seu raciocínio é certamente plausível (p. 288-9).<br />

Se fizermos uma reconstrução racional do relato, ter<strong>em</strong>os o seguinte esqu<strong>em</strong>a argumentativo:<br />

– Há um chapéu grande.<br />

– Alguém [o desconhecido] é o proprietário deste chapéu.<br />

– Proprietários de grandes chapéus têm grandes cabeças.<br />

– Pessoas de grandes cabeças têm cérebros grandes.<br />

– Pessoas de cérebros grandes são muito inteligentes.<br />

______________________________________________________<br />

– O proprietário deste chapéu é muito inteligente.<br />

Poderíamos encontrar vários probl<strong>em</strong>as nesse raciocínio. O principal é que, mesmo que este argumento<br />

possa ter sido considerado “plausível” pelos leitores de Conan Doyle na Inglaterra de fins do século XIX,<br />

hoje não seria aceito como uma boa explicação. Como sab<strong>em</strong>os, na era vitoriana estava “na moda” –


A PALO SECO<br />

75<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

ainda que com muitos questionamentos por parte da maioria dos cientistas – a frenologia. Essa disciplina,<br />

hoje definitivamente considerada “pseudo-científica”, pretendia determinar a personalidade de uma pessoa<br />

a partir do estudo da estrutura de seu crânio. O princípio derivado da mesma, “cabeça grande, cérebro<br />

grande; cérebro grande, mente excepcional”, foi muito popular na época <strong>em</strong> que Conan Doyle, médico,<br />

escreveu seus textos. 3 Mas vamos nos situar na época <strong>em</strong> que o conto foi publicado e conceder que<br />

Holmes efetivamente estabelece um vínculo “plausível”, um caminho razoável entre a evidência disponível<br />

e sua conclusão. 4 O relato poderia finalizar com as seguintes palavras de Watson:<br />

Watson: – Holmes, quando escuto você expondo suas razões, tudo parece tão simples que tenho a impressão de que eu<br />

próprio seria capaz de fazer o mesmo. Mas o fato é que, a cada raciocínio seu, fico perplexo até você explicar seu<br />

procedimento. 5<br />

Em outras palavras, o que Watson está dizendo é: “agora, depois que você me indicou, posso ver o<br />

vínculo entre as evidencias e a hipótese, e posso, deste modo, avaliar o raciocínio”. Isto é: Watson está<br />

aplicando critérios abdutivos de plausibilidade, e concordando com o processo de raciocínio de Holmes.<br />

4. Considerações finais<br />

Neste trabalho caracterizei brev<strong>em</strong>ente o método abdutivo de Peirce, apresentando-o como um procedimento<br />

que possibilita avaliar as primeiras soluções que t<strong>em</strong>os para um probl<strong>em</strong>a.<br />

Tentei mostrar, reconstruindo abdutivamente um conto de As aventuras de Sherlock Holmes de Conan<br />

Doyle, de que modo o método de Peirce possibilita avaliar os raciocínios dos detetives. Como indiquei,<br />

quando os cientistas chegam a um consenso a respeito de que uma hipótese é “promissora”, ou quando os<br />

integrantes da comissão avaliadora de uma entidade de apoio à pesquisa decid<strong>em</strong> outorgar um subsídio a<br />

um projeto que consideram “viável”, o que estão fazendo, consciente ou inconscient<strong>em</strong>ente, é aplicar<br />

critérios abdutivos. E é exatamente isso – formular juízos abdutivos – que Sherlock Holmes faz no relato<br />

que apresentei.<br />

3 Como b<strong>em</strong> observou meu colega, o Dr. Ricardo Vale – que participou no evento <strong>em</strong> que este texto foi apresentado –, a cena<br />

montada por Holmes de algum modo debilita seu próprio argumento. Holmes, segundo o relato de Watson, colocou <strong>em</strong> sua<br />

cabeça o chapéu do desconhecido, e este “cobriu-lhe inteiramente a testa e apoiou-se no osso do nariz”, do que se segue<br />

que a cabeça de Holmes era muito menor que a do desconhecido. É verdade que o desconhecido b<strong>em</strong> poderia ter sido<br />

inusitadamente mais inteligente que o próprio Holmes, que era considerado pelos seus conhecidos como um hom<strong>em</strong> de<br />

inteligência inusual. Mas também é verdade que <strong>em</strong> nenhum dos relatos da saga Watson indica que a cabeça de Holmes<br />

seja maior que a de seus cont<strong>em</strong>porâneos, fato que conduz a duvidar do princípio “cabeça grande, cérebro grande; cérebro<br />

grande, mente excepcional“ da frenologia.<br />

4 Entretanto, dev<strong>em</strong>os destacar que o fato de que o raciocínio abdutivo de Holmes hoje não seja aceito não deve ser<br />

considerado como um ponto contra essa classe de raciocínio. Pelo contrário, dev<strong>em</strong>os destacar que deve ser considerado<br />

como um ponto a favor, pois o próprio método abdutivo, autocorretivo, exige que seja considerada toda a evidência disponível.<br />

E a evidência hoje disponível é diferente da evidência disponível na época de Holmes; por ex<strong>em</strong>plo, hoje contamos com<br />

uma enorme quantidade de evidência contra a frenologia.<br />

5 Esta é a observação padrão de Watson na maioria dos contos. Por brevidade, transcrevo uma passag<strong>em</strong> do relato “Escândalo<br />

na Boêmia” ([1891]: 65-6).


A PALO SECO<br />

Referências bibliográficas<br />

76<br />

Ano 3, n. 3, 2011<br />

CONAN DOYLE, Arthur. [1891]. Escândalo na Boêmia. In: Conan Doyle [1892], p. 61-101.<br />

______ . [1892g]. O carbúnculo azul. In: Conan Doyle [1892], p. 282-316.<br />

______ . [1892]. Sherlock Holmes – Edição definitiva, I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.<br />

ECO, Umberto; SEBEOK, Thomas (Eds.). [1983]. O signo de três: Dupin, Holmes, Peirce. São Paulo: Perspectiva,<br />

1991.<br />

HERNÁNDEZ MARTÍN, Jorge. Readers and labyrinths: detective fiction in Borges, Bustos Domecq and Eco.<br />

Nova York: Garland, 1995.<br />

IRWIN, John. The mystery to a solution: Poe, Borges, and the analytic detective story. Londres: The Johns<br />

Hopkins, 1994.<br />

PEIRCE, Charles. Collected Papers. In: Hartshorne, C.; Weiss, P. (eds.), 1931-35, vols. I-VI; Burks, A. (ed.),<br />

1958, vols. VII-VIII. Cambridge : Harvard University Press, 1931-58.


Realidade e ficção e ensaio e conto <strong>em</strong> Borges<br />

Fabian Pineyro<br />

Graduado <strong>em</strong> Letras Espanhol, Mestre <strong>em</strong> Ciências Sociais (UFS),<br />

Professor de Literatura Faculdade Pio Décimo e UFS.<br />

Introdução<br />

Borges, além de escrever ensaios breves e contos dentro da mais pura tradição ocidental, discute<br />

t<strong>em</strong>as próprios da metafísica e da estética <strong>em</strong> seus contos e escreve rigorosos ensaios sobre intelectuais<br />

que nunca existiram. Neste cruzamento, são revistas as formas que nossa literatura reserva para a realidade<br />

e a ficção. Se teses filosóficas são discutidas na forma de uma narração, fato que talvez não seja pouco<br />

frequente, escrever ensaios com dados falsos é mostrar o meio de representação da realidade objetiva<br />

como uma perfeita construção de base fantasiosa.<br />

Esta transgressão formal – o ensaio que é puro conto – corresponde a uma estética e a uma metafísica<br />

que, na obra de nosso autor, são tratadas como experiências que não pod<strong>em</strong> ser contidas completamente<br />

nos limites da razão, ou da fala. Isso até porque a língua, as ideias que se representam com a língua,<br />

aquelas que o ser humano é capaz de perceber, são tributárias do esquecimento. Para saber, entender,<br />

formar conceitos ou ideias é preciso esquecer alguns detalhes para concentrar-se <strong>em</strong> outros. Esta maneira<br />

de conhecer não é suficiente quando o que pretend<strong>em</strong>os abordar é a eternidade; ali, o cabal conhecimento<br />

dessa ideia se transforma <strong>em</strong> experiência que foge ao entendimento, como a experiência estética.<br />

Este trabalho propõe acompanhar o roteiro desse argumento ao longo de quatro escritos de Borges,<br />

publicados na primeira metade do século XX.<br />

O ensaio que é puro conto<br />

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O ensaio pode ser puro conto.<br />

(“Examen de la obra de Herbert Quain”)<br />

Pensar é esquecer certas diferenças e ater-se a outras.<br />

(“Funes, el m<strong>em</strong>orioso”)


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Vamos considerar aqui o conto como uma narrativa breve de ficção para concentrar-nos, ainda que s<strong>em</strong><br />

muita exaustividade, no ensaio.<br />

Uma das definições mais comuns diz que o ensaio é um escrito sobre um t<strong>em</strong>a qualquer destinado a<br />

leitores não especializados. O ensaio t<strong>em</strong> a função de levar um saber para além do âmbito dos especialistas.<br />

Em palavras de Ortega y Gasset, trata-se de ciência s<strong>em</strong> a prova explícita.<br />

Casas (1999), por outra parte, afirma que o ensaio é um gênero recente, que deve somar-se aos clássicos<br />

lírico, épico e dramático e que se caracteriza por uma forte personalização do sujeito locutor, ao<br />

contrário do que acontece no conto, onde as vozes das personagens pod<strong>em</strong> apagar o escritor real. No<br />

ensaio, diz Casas, produz-se a fusão do autor real, do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado.<br />

A partir daqui, pod<strong>em</strong>os dizer, <strong>em</strong> primeiro lugar, que se o ensaio é ciência qualquer dado falso significa<br />

a não validade do dito no escrito. Contudo, também pod<strong>em</strong>os dizer que a falsidade deliberada transforma<br />

o escrito numa outra forma que é válida s<strong>em</strong>pre que cria cumplicidade com o leitor, s<strong>em</strong>pre que o leitor<br />

participa do jogo que a obra propõe. Pod<strong>em</strong>os concluir também que, ao escrever ensaios rigorosos a partir<br />

de dados falsos, Borges nos leva a suspeitar que essa base irreal, essa pr<strong>em</strong>issa falsa, pode encontrar-se<br />

<strong>em</strong> muito do que existe por aí escrito de acordo com as exigentes normas da ciência.<br />

Um ex<strong>em</strong>plo do que vimos falando está <strong>em</strong> “Examen de la obra de Herbert Quain” (Borges, 1974, p.<br />

461). Ali, Borges apresenta a obra desse autor inglês e nos diz que seus diálogos parec<strong>em</strong> com os epigramas<br />

de Oscar Wilde e que sua comédia – só escreveu uma – contém, segundo a crítica, a influência de<br />

Freud. Com estas referências, nós, leitores de alto grau de escolaridade, sentimo-nos num lugar bastante<br />

cômodo. Reconhec<strong>em</strong>os ambos intelectuais s<strong>em</strong> maior esforço e ambos nos induz<strong>em</strong>, junto com os dados<br />

biográficos e a enumeração das obras, a receber o material como parte da realidade objetiva. E nada no<br />

“ensaio” foge da linha com exceção do final, quando l<strong>em</strong>os que a ideia do conto “Las ruinas circulares”,<br />

publicado no mesmo volume umas páginas antes, foi extraída da obra de Herbert Quain. É nesse momento<br />

que se confirma a suspeita de que o autor é falso; que, portanto, Freud e Wilde seriam personagens e<br />

poderíamos perguntar-nos inclusive se neste caso narrador e escritor real são entidades que pod<strong>em</strong> separar-se<br />

claramente ou estão fundidos.<br />

À idéia pelo esquecimento<br />

No conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” (Borges, 1974, p. 431), Borges realiza uma paródia da filosofia<br />

através de uma enumeração de sist<strong>em</strong>as mirabolantes. Em Tlön, por ex<strong>em</strong>plo, exist<strong>em</strong> duas línguas; uma<br />

s<strong>em</strong> substantivos e outra cuja “célula primordial” é o adjetivo monossilábico; há textos filosóficos que,<br />

rigorosamente, contêm a tese e sua antítese; a literatura está formada por todas as permutações imagináveis<br />

de um único argumento e o materialismo e o idealismo se encontram envoltos num jogo de espelhos.<br />

Existe um outro conto, entretanto, <strong>em</strong> que o argentino vai além da enumeração e apresenta e argumenta<br />

a seguinte tese filosófica: as idéias precisam do esquecimento para poder formar-se. A razão de existir<br />

do conto “Funes el m<strong>em</strong>orioso” (Borges, 1974, p. 484) é a representação dessa tese.<br />

Ireneo Funes sabia a hora exata <strong>em</strong> qualquer momento s<strong>em</strong> consultar o relógio n<strong>em</strong> o céu. Depois de<br />

um acidente, <strong>em</strong> que ficará paralítico, acrescentará a essa habilidade humana uma m<strong>em</strong>ória prodigiosa<br />

que lhe permitirá d<strong>em</strong>orar-se horas na observação de uma figueira ou de uma teia de aranha, concentrado<br />

<strong>em</strong> captar seus mais mínimos detalhes. Antes disso, “él había sido lo que son todos los cristianos: un<br />

ciego, un sordo, un abombado, un desm<strong>em</strong>oriado [...] Diecinueve años había vivido como quien sueña;<br />

miraba sin ver, oía sin oír, se olvidaba de todo, de casi todo” (Borges, 1974, p. 488). Agora podia perceber<br />

todos os galhos e cachos e frutos de uma parreira com a facilidade com que nós pod<strong>em</strong>os ver três taças<br />

numa mesa, podia também l<strong>em</strong>brar das formas das nuvens de dias passados e podia compará-las, na sua


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m<strong>em</strong>ória, com a l<strong>em</strong>brança da espuma que um r<strong>em</strong>o levantou no rio. Podia também reconstruir um dia<br />

inteiro, mas para isso precisava de um dia inteiro. O pensado uma vez jamais se apagava.<br />

Entretanto, Ireneo era incapaz de idéias gerais, platónicas: “le costaba comprender que el símbolo<br />

genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa forma; le molestaba,<br />

inclusive, que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres<br />

y cuarto (visto de frente)”. Ireneo percebia os progressos da morte, da umidade; suas l<strong>em</strong>branças eram tão<br />

claras que, para dormir, acostumava imaginar o fundo do rio. De maneira tal que “no era muy capaz de<br />

pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había<br />

sino detalles, casi inmediatos” (Borges, 1974, p. 490).<br />

Para poder formar conceitos, ideias, t<strong>em</strong>os então que apagar certas diferenças da nossa m<strong>em</strong>ória, pelo<br />

menos no instante <strong>em</strong> que pensamos a ideia. Para entender o triângulo, por ex<strong>em</strong>plo, é necessário esquecer<br />

as diferenças entre isósceles e escalenos. Qu<strong>em</strong> não consegue realizar essa operação não pode pensar;<br />

qu<strong>em</strong> não consegue esquecer, não pode pensar.<br />

Como produtos do esquecimento, condenadas à simplificação que significa limpar de detalhes incômodos<br />

os casos isolados para poder englobá-los sob um rótulo, as ideias, os conceitos, permit<strong>em</strong> que os<br />

homens realiz<strong>em</strong> o trânsito entre o um e o múltiplo. Mas se para pensar <strong>em</strong> cachorros precisamos descartar<br />

um monte de informação irrelevante, que pod<strong>em</strong>os esperar destas operações do conhecimento na hora<br />

de tentar definir <strong>em</strong> palavras a fruição estética ou de abordar idéias metafísicas como a de eternidade?<br />

A metafísica e a fruição estética exist<strong>em</strong> no além da palavra<br />

La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el ti<strong>em</strong>po, ciertos crepúsculos y ciertos<br />

lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de<br />

una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético (Borges, 1974, p. 635).<br />

Deste trecho de “La muralla y los libros” pod<strong>em</strong>os inferir que o fato estético não é privativo da arte e<br />

que se manifesta através de uma sensação fugaz que nunca chega a plasmar-se <strong>em</strong> pensamento, <strong>em</strong><br />

palavras. Já <strong>em</strong> “Examen de la obra de Herbert Quain” (1974, p. 461), Borges dirá também que o fato<br />

estético não pode prescindir de algum el<strong>em</strong>ento de surpresa e, sendo assim, são necessários para isso a<br />

ignorância ou o esquecimento, pois ninguém pode surpreender-se de cor.<br />

Mais uma vez esquecer; esquecer para formar conceitos, esquecer para desfrutar do fato estético.<br />

Caminhos parecidos para a intelecção das verdades últimas e para desfrutar do prazer do estético. E uma<br />

tese por vir: pod<strong>em</strong>os aceder ao conhecimento das verdades últimas, como a eternidade, não através da<br />

intelecção de ideias mas através do súbito advento de uma experiência que não reconhec<strong>em</strong>os, que não<br />

pod<strong>em</strong>os encaixar facilmente <strong>em</strong> um esqu<strong>em</strong>a apriorístico.<br />

É <strong>em</strong> “Historia de la eternidad” que pod<strong>em</strong>os encontrar essa aproximação entre a metafísica e a fruição<br />

estética. Ali Borges, após confrontar as eternidades do nominalismo, de Platão e de Ireneo, expõe ao leitor<br />

sua “teoría personal” sobre o t<strong>em</strong>a:<br />

La tarde que precedió a esa noche estuve en Barracas [...] la calle era de barro el<strong>em</strong>ental, barro de América no<br />

conquistado aún [...] Sobre la tierra turbia y caótica, una tapia rosada parecía no hospedar luz de luna, sino efundir luz<br />

íntima. No habrá manera de nombrar la ternura mejor que ese rosado.<br />

Me quedé mirando esa sencillez. Pensé con seguridad en voz alta: Esto es lo mismo de hace treinta años... Conjeturé esa<br />

fecha: época reciente en otros países pero ya r<strong>em</strong>ota en este cambiadísimo lado del mundo. Tal vez cantaba un pájaro y<br />

sentí por él un cariño chico, y de tamaño de pájaro; pero lo más seguro es que en ese vertiginoso silencio no hubo más ruido<br />

que el también int<strong>em</strong>poral de los grillos. El fácil pensamiento Estoy en mil ochocientos y tantos dejó de ser unas cuantas


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aproximativas palabras y se profundizó a realidad. Me sentí muerto, me sentí percibidor abstracto del mundo: indefinido<br />

t<strong>em</strong>or imbuido de ciencia que es la mejor claridad de la metafísica. No creí, no, haber r<strong>em</strong>ontado las presuntivas aguas del<br />

Ti<strong>em</strong>po; más bien me sospeché poseedor del sentido reticente o ausente de la inconcebible palabra eternidad. Sólo<br />

después alcancé a definir esa imaginación (Borges, 1974, p. 367).<br />

Através de uma enumeração de sensações, Borges transmite sua experiência, ou teoria, pessoal da<br />

eternidade; diz que a metafísica é um alívio para o t<strong>em</strong>or e confessa que só através de uma série de<br />

casualidades pode alcançar o sentido reticente ou ausente do que depois acreditou haver sido a eternidade.<br />

Ou seja, a possibilidade de usufruir os consolos com que a metafísica aplaca nossos medos se dá<br />

através de uma sensação efêmera e esquiva, que a palavra não consegue conter, tal como no caso da<br />

experiência estética.<br />

Conclusão<br />

Os gêneros funcionam como mapas orientadores. O público de telenovela deixaria de assistir se os<br />

personagens passass<strong>em</strong> discutindo sobre a natureza do t<strong>em</strong>po; os intelectuais desdenham ou odeiam<br />

histórias onde o rico de bom coração contraria sua classe social e desposa a pobre honrada. Os gêneros<br />

são parte da cultura e permit<strong>em</strong>-nos adiantar a forma como serão tratados os assuntos, inclusive <strong>em</strong><br />

t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que transgredir é uma virtude.<br />

Se os gêneros funcionam como mapas orientadores, a transgressão surpreende o leitor com o seguinte<br />

dil<strong>em</strong>a: onde haveria ciência há ficção; onde haveria ficção, filosofia. Isso sucede quando o que pretend<strong>em</strong>os<br />

é expressar tudo com palavras. Os gêneros, no fim das contas, exist<strong>em</strong> porque existe a língua. E se a<br />

língua é falha porque, <strong>em</strong> definitivo, utiliza o t<strong>em</strong>po inteiro conceitos produtos do esquecimento, também<br />

o serão, <strong>em</strong> última instância, ou na instância das últimas verdades, os gêneros, os pretensiosos gêneros.<br />

Nessa transgressão dos gêneros próprios da realidade e da ficção, a metafísica e a fruição artística se<br />

apresentam como discursos que têm um mesmo grau de veracidade porque têm uma mesma forma de<br />

intelecção.<br />

Assim, a experiência de aplacar o medo provindo das incertezas do nosso trágico destino através da<br />

tentativa de apreender as verdades últimas e a experiência de desfrutar da arte, também a ficção, produz<strong>em</strong><br />

<strong>em</strong> nós uma vivência similar. Sentir <strong>em</strong> nós que a eternidade existe é uma experiência que só pode<br />

entender-se como só pod<strong>em</strong> entender-se as vivências produzidas por uma música, uma forma de dizer, um<br />

quadro. Verdades que se sent<strong>em</strong> mais do que se entend<strong>em</strong> e que só se completam como ideias t<strong>em</strong>pos<br />

depois de ter perdido parte da sua especificidade, quando se esvaec<strong>em</strong> antes de poder ser reduzidas a<br />

palavras.<br />

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GENETTE, Gérard. La literatura según Borges. In: J. L. Borges. Buenos Aires: Freeland, 1978.<br />

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VAX, Louis. Borges filósofo. In: J. L. Borges. Buenos Aires: Freeland, 1978.

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