13.04.2013 Views

Sonhos - ICHTHYS - Instituto de Psicologia e Religião

Sonhos - ICHTHYS - Instituto de Psicologia e Religião

Sonhos - ICHTHYS - Instituto de Psicologia e Religião

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

36|<br />

<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas<br />

para vir a ser inteiro em psicoterapia<br />

Franciele Engelmann<br />

Ano I | número 1 | 2012 CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR


<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

* Psicóloga graduada<br />

pela UFPR – Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.<br />

Especialista em psicologia<br />

analítica e religião<br />

oci<strong>de</strong>ntal e oriental pelo<br />

<strong>ICHTHYS</strong> – <strong>Instituto</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong>.<br />

Resumo<br />

Abstract<br />

<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas<br />

para vir a ser inteiro em psicoterapia<br />

I. Introdução<br />

Companheiros da jornada humana, <strong>de</strong>s-<br />

<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong>, os sonhos con guraram-se,<br />

ao longo da história, como espaço signi cativo<br />

para a compreensão e cumprimento do vir a ser<br />

humano.<br />

Para os antigos egípcios, os sonhos apresentavam<br />

um caráter premonitório, que comumente<br />

manifestava a intenção dos <strong>de</strong>uses e o<br />

<strong>de</strong>stino da pessoa. Provavelmente, este povo foi,<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

Franciele Engelmann*<br />

Os sonhos acompanham a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong>. Constituídos <strong>de</strong> natureza premonitória e tidos<br />

como manifestação <strong>de</strong> forças ocultas para os egípcios; utilizados nos rituais <strong>de</strong> cura pelos gregos, os sonhos<br />

revelaram-se ao longo da história como ferramentas úteis na relação com a alma. Para Jung, o ser humano<br />

é habitado por um impulso que o impele à totalida<strong>de</strong>. O objetivo <strong>de</strong>ste artigo é abordar a importância dos<br />

sonhos no processo psicoterapêutico <strong>de</strong> vir a ser inteiro. O método utilizado é a revisão <strong>de</strong> literatura com<br />

base na psicologia analítica. O tornar-se inteiro, a individuação, se origina e culmina no si-mesmo, o arquétipo<br />

central, promovedor do <strong>de</strong>senvolvimento humano. Os sonhos, enquanto compensação <strong>de</strong> unilateralida<strong>de</strong><br />

da consciência e como manifestação do si-mesmo, con guram-se como possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma conexão com<br />

a alma, expressões que po<strong>de</strong>m contribuir para encontrar o sentido da vida e realizar a nalida<strong>de</strong> à qual se é<br />

chamado a ser.<br />

Palavras-chave: sonhos, psicoterapia, processo <strong>de</strong> individuação.<br />

Dreams come mankind since antiquity. Consisting of premonitory nature and taken as a manifestation of<br />

hid<strong>de</strong>n forces to the Egyptians, used in healing rituals by the Greeks, the dreams have proved throughout<br />

history useful tools in relation to the soul. For Jung, the human being is inhabited by an impulse that propels<br />

the whole. e aim of this paper is to address the importance of dreams in the psychotherapeutic process<br />

of becoming whole. e method used is a literature review on the basis of analytical psychology. Becoming<br />

a full-individuation originates and culminates in the Self, the central archetype, promoter of human <strong>de</strong>velopment.<br />

Dreams, while compensation of one-si<strong>de</strong>dness of consciousness as a manifestation of the Self,<br />

con gured a possible connection to the soul, words that can help nd the meaning of life and achieve the<br />

purpose for which it is required to be.<br />

Keywords: dreams, psychotherapy, process of individuation.<br />

conforme Ramos (1994) o primeiro povo a institucionalizar<br />

uma forma <strong>de</strong> interpretação onírica,<br />

nos assim chamados, templos <strong>de</strong> incubação<br />

(apud GALLBACH, 2003).<br />

Se os egípcios foram os primeiros a utilizar<br />

a interpretação dos sonhos, coube aos gregos<br />

aprimorar tais técnicas e inserí-las no diagnóstico<br />

e tratamento <strong>de</strong> doenças. Com base na visão<br />

mítica, acreditavam que a doença era a conseqüência<br />

da violação <strong>de</strong> um tabu ou <strong>de</strong> uma ofen-<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR<br />

| 37


38|<br />

<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

sa aos <strong>de</strong>uses. A cura, segundo RAMOS (1994),<br />

consistia em restabelecer a relação entre o plano<br />

somático e o espiritual, buscando-se i<strong>de</strong>nti car<br />

no sintoma, o aspecto com o qual o indivíduo<br />

havia se <strong>de</strong>sconectado e <strong>de</strong>veria voltar a se reconectar.<br />

As práticas curativas caracterizavamse<br />

como verda<strong>de</strong>iros rituais, <strong>de</strong>senvolvidos nos<br />

templos <strong>de</strong>dicados a Esculápio, o <strong>de</strong>us da medicina.<br />

A atenção e o entendimento dos <strong>Sonhos</strong>,<br />

ao lado da música, meditação e dieta caracterizavam-se<br />

nesta época, como ativida<strong>de</strong>s, mediante<br />

as quais era possível um restabelecimento do<br />

equilíbrio entre psique e corpo (RAMOS, 1994<br />

e MEIER, 1999).<br />

Estudos e curiosida<strong>de</strong>s acerca da vida onírica<br />

esten<strong>de</strong>ram-se ao longo da história, permeando<br />

culturas e presenti cando-se em diferentes<br />

âmbitos do conhecimento e no trilhar dos diferentes<br />

caminhos <strong>de</strong> realização da alma.<br />

O que são os sonhos? De on<strong>de</strong> provêm?<br />

Expressarão eles algum signi cado, sentido para<br />

a vida do sonhador?<br />

II. O sonho como manifestação<br />

simbólica do inconsciente<br />

O sonho surge espontaneamente durante<br />

o sono como fruto <strong>de</strong> um “processo involuntário<br />

que ocorre num estado <strong>de</strong> consciência relaxado<br />

e não focalizado” (GALLBACH, 2003, p. 17).<br />

Segundo Jung (1971), suas raízes estão no inconsciente.<br />

Conforme Gallbach (2003), o sonho<br />

não apresenta um caráter <strong>de</strong> inconsciência total,<br />

uma vez que ocorre num estado limiar em que<br />

há um resíduo <strong>de</strong> consciência e percepção.<br />

Para Jung (1971), o sonho é expressão<br />

simbólica do inconsciente. Expressão esta que<br />

po<strong>de</strong> se dar mediante i<strong>de</strong>ias, sensações, emoções,<br />

imagens e situações que, ao serem <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas<br />

no processo onírico, po<strong>de</strong>m envolver <strong>de</strong> forma<br />

mais intensa, ou não, o sonhador.<br />

O sonho traz um sentido ( JUNG, 1971)<br />

para a vida do sonhador. Articula uma “mensa-<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

gem única para um sujeito único” (GALLBA-<br />

CH, 2003, p.13). Esta mensagem se encontra na<br />

interiorida<strong>de</strong> humana, tecida no entrelaçamento<br />

da história pessoal e coletiva.<br />

Nos sonhos, o inconsciente se manifesta<br />

mediante símbolos. Em sua obra O homem e seus<br />

símbolos, Jung <strong>de</strong> ne símbolo como:<br />

um termo, um nome ou mesmo uma imagem que<br />

nos po<strong>de</strong> ser familiar na vida diária, embora possua<br />

conotações especiais além do seu signi cado<br />

evi<strong>de</strong>nte e convencional. Implica alguma coisa<br />

vaga, <strong>de</strong>sconhecida ou oculta... uma palavra ou<br />

imagem é simbólica quando implica alguma coisa<br />

além do seu signi cado manifesto e imediato.<br />

Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente”<br />

mais amplo, que nunca é precisamente<br />

<strong>de</strong> nido ou <strong>de</strong> todo explicado. Por existirem<br />

inúmeras coisas fora do alcance da compreensão<br />

humana, é que frequentemente utilizamos termos<br />

simbólicos como representação <strong>de</strong> conceitos que<br />

não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> nir ou compreen<strong>de</strong>r integralmente...<br />

Mas este uso consciente que fazemos <strong>de</strong><br />

símbolos é apenas um aspecto <strong>de</strong> um fato psicológico<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância: o homem também<br />

produz símbolos, inconsciente e espontaneamente,<br />

na forma <strong>de</strong> sonhos (1964, p. 20-21).<br />

A manifestação do símbolo no sonho po<strong>de</strong> se<br />

dar <strong>de</strong> diferentes formas: apresentar um caráter<br />

claro, estranho, obscuro ao sonhador. Em suas<br />

mais variadas expressões, o símbolo articula um<br />

signi cado, um sentido, os quais por sua vez po<strong>de</strong>m<br />

estar ocultos, sob <strong>de</strong>terminadas imagens,<br />

pensamentos, emoções, à espera <strong>de</strong> vir a serem<br />

<strong>de</strong>scobertos, compreendidos e assimilados pelo<br />

sonhador.<br />

Ao abordar o conceito <strong>de</strong> sentido nos<br />

sonhos, Jung situa os mesmos no contexto <strong>de</strong><br />

nalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>stacando que esta <strong>de</strong>signa a “tensão<br />

psicológica imanente dirigida a um objetivo<br />

futuro” (1971, p. 181). Além <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o aspecto<br />

causal, Jung <strong>de</strong>staca a importância <strong>de</strong> se<br />

consi<strong>de</strong>rar o porquê do sonho. Ao falar sobre as<br />

assimilações que sucessivamente acontecem em<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR


<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

1| Neste escrito, Jung<br />

i<strong>de</strong>ntifica o processo<br />

<strong>de</strong> individuação com<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

personalida<strong>de</strong>, don<strong>de</strong><br />

os termos individuação e<br />

personalida<strong>de</strong>, serem utilizados<br />

como sinônimos.<br />

2| No contexto <strong>de</strong>ste<br />

trabalho, o si-mesmo (Self)<br />

será abordado como<br />

centro or<strong>de</strong>nador da personalida<strong>de</strong>.<br />

Em Memórias,<br />

sonhos e reflexões, Jung o<br />

<strong>de</strong>fine como: “arquétipo<br />

central da or<strong>de</strong>m, da<br />

totalida<strong>de</strong>... é uma realida<strong>de</strong><br />

‘sobre-or<strong>de</strong>nada’ ao<br />

eu consciente. Abrange<br />

a psique consciente e a<br />

inconsciente, constituindo<br />

por esse fato uma<br />

personalida<strong>de</strong> mais ampla,<br />

que também somos... É<br />

também a meta da vida,<br />

pois é a expressão mais<br />

completa <strong>de</strong>ssas combinações<br />

do <strong>de</strong>stino que se<br />

chama indivíduo” (1963,<br />

p. 358).<br />

relação ao sonho, ressalta que elas conduzem a<br />

uma meta; para o além do aqui e agora da vida<br />

do sonhador, conduzem “à plena realização do<br />

homem inteiro, à individuação” (2008, p. 31). No<br />

tocante à prática psicoterapêutica, assim escreve:<br />

todo médico <strong>de</strong>veria estar consciente do fato <strong>de</strong><br />

que qualquer intervenção psicoterapêutica, e, em<br />

especial, a analítica, irrompe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um processo<br />

e numa continuida<strong>de</strong> já orientados para um<br />

<strong>de</strong>terminado m, e vai <strong>de</strong>svendando, ora aqui, ora<br />

acolá, fases isoladas do mesmo, que à primeira vista<br />

po<strong>de</strong>m até parecer contraditórias. Cada análise<br />

individual mostra apenas uma parte ou um aspecto<br />

do processo fundamental (Id., 2008, p. 31).<br />

III. <strong>Sonhos</strong>, individuação<br />

e psicoterapia<br />

Em seu ensaio1 Da Formação da Personalida<strong>de</strong>,<br />

Jung (1998) salienta que, além dos aspectos<br />

<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>cisão, há a <strong>de</strong>signação<br />

que, perpassando o eu, o convoca a individuarse.<br />

Esta é <strong>de</strong> nida como: “um fator irracional<br />

traçado pelo <strong>de</strong>stino que impele a emancipar-se<br />

da massa gregária e <strong>de</strong> seus caminhos <strong>de</strong>sgastados<br />

pelo uso” ( JUNG, 1998, p.181). A i<strong>de</strong>ia<br />

vinculada no conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>signação remete ao2 si-mesmo (Self ), que enquanto instância maior,<br />

promove a individuação. Aceitar a <strong>de</strong>signação, a<br />

ação do si-mesmo na vida, implica em “ <strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

à sua própria lei” (Id. p. 179).<br />

A noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino expressa no conceito<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>signação não po<strong>de</strong> ser tomada como pre<strong>de</strong>terminação:<br />

o Self enquanto arquétipo latente<br />

na vida do indivíduo é uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vir a ser. Possibilida<strong>de</strong> esta que assume, segundo<br />

Fogel, o caráter <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, numa perspectiva<br />

<strong>de</strong> circularida<strong>de</strong>: no sentido <strong>de</strong> ser um envio <strong>de</strong><br />

si para si, uma “possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>”<br />

(1999, p. 152). A individuação, como <strong>de</strong>signação,<br />

requer que a pessoa se empenhe na tarefa<br />

<strong>de</strong> dar-se conta do movimento do próprio Self<br />

em sua vida, pois, na perspectiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, enquanto<br />

movimento <strong>de</strong> circularida<strong>de</strong>, o Self é ao<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

mesmo tempo germe (<strong>de</strong>signação) e meta (unida<strong>de</strong>,<br />

totalida<strong>de</strong>) da Individuação.<br />

Os sonhos constituem-se como um dos<br />

espaços para o dar-se conta <strong>de</strong>sta a ação do simesmo<br />

na vida. Para Sanford (2007), originamse<br />

no centro da personalida<strong>de</strong>, constituindo-se o<br />

elo <strong>de</strong> ligação entre a realida<strong>de</strong> menor do ego e a<br />

maior do si-mesmo. Von Franz, assim se expressa:<br />

Os sonhos não nos protegem das vicissitu<strong>de</strong>s, doenças<br />

e eventos dolorosos da existência. Mas eles<br />

nos fornecem uma linha mestra <strong>de</strong> como lidar com<br />

esses aspectos, como encontrar um sentido em<br />

nossa vida, como cumprir nosso próprio <strong>de</strong>stino,<br />

como seguir nossa própria estrela, por assim dizer,<br />

a m <strong>de</strong> realizar o potencial <strong>de</strong> vida que há em nós<br />

(1988, p. 25).<br />

Para esta realização, é preciso uma busca a<br />

m <strong>de</strong> se compreen<strong>de</strong>r o signi cado, a mensagem<br />

que o Self envia a cada noite, sob a forma<br />

<strong>de</strong> símbolos.<br />

No tocante à prática psicoterapêutica, Jung<br />

(2008, 1964) ressalta que os sonhos são a forma<br />

especí ca <strong>de</strong> o inconsciente se comunicar com<br />

a consciência. Seus conteúdos po<strong>de</strong>m exprimir<br />

fatos passados, <strong>de</strong>senfreadas fantasias, planos,<br />

antecipações, visões telepáticas ( JUNG, 1971);<br />

vincular-se a realida<strong>de</strong>s problemáticas ou con itantes<br />

do presente, bem como manifestar componentes<br />

da personalida<strong>de</strong> do sonhador (Id.,<br />

2008).<br />

Consi<strong>de</strong>rando que os sonhos são manifestações<br />

do inconsciente, é importante lembrar<br />

que Jung i<strong>de</strong>nti cou quatro conteúdos inconscientes<br />

que simbolicamente são personi cados<br />

nos sonhos:sombra, anima, animus e self. Em<br />

função da brevida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste artigo, não se abordará<br />

aqui o trabalho com tais elementos; remetemos<br />

o leitor aos escritos <strong>de</strong> Marie-Louise Von<br />

Franz: O Caminho dos <strong>Sonhos</strong> (1988) e O Processo<br />

<strong>de</strong> Individuação – contido na obra <strong>de</strong> Jung: O<br />

Homem e seus Símbolos (1964), nos quais a autora<br />

discorre ampla e profundamente sobre tais<br />

conteúdos.<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR<br />

| 39


40|<br />

<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

Ao se buscar compreen<strong>de</strong>r um sonho, é<br />

preciso a colaboração do sonhador ( JUNG,<br />

1971). Faz-se necessário, ainda, conhecer as situações<br />

concretas nas quais o indivíduo está inserido,<br />

pois o sonho, conforme Jung: “não é um<br />

acontecimento isolado, inteiramente dissociado<br />

do cotidiano e do caráter do mesmo” (2008, p.<br />

25).<br />

Com base nas experiências dos primitivos,<br />

Jung (1971) distingue entre gran<strong>de</strong>s sonhos e pequenos<br />

sonhos. Estes últimos, também <strong>de</strong>nominados<br />

banais, articulam signi cados ordinários,<br />

diários, <strong>de</strong>rivam da dimensão subjetiva e pessoal,<br />

vindo a ser esquecidos facilmente. Os gran<strong>de</strong>s<br />

sonhos, também chamados <strong>de</strong> signi cativos/<br />

importantes, brotam do inconsciente coletivo,<br />

relacionam-se a temas arquetípicos, mitológicos,<br />

cujo signi cado principal se encontra intrínseco,<br />

com base nas experiências que acompanharam<br />

a humanida<strong>de</strong> nas diferentes épocas e culturas.<br />

Normalmente, ocorrem em momentos cruciais<br />

da existência: na infância, puberda<strong>de</strong> e no meio<br />

da vida, cando frequentemente gravados na<br />

memória por toda a vida, vindo a con gurar etapas<br />

do processo da individuação.<br />

Jung (1971) <strong>de</strong>staca ainda que há uma<br />

predominância <strong>de</strong> sonhos médios, cuja dinâmica<br />

apresenta, normalmente, quatro fases, as quais se<br />

assemelham à estrutura do drama. A exposição<br />

refere-se à situação inicial que esboça a temática<br />

ou problemática; contextualiza, no tempo e no<br />

espaço, o cenário no qual os personagens atuam.<br />

A segunda fase, a do <strong>de</strong>senvolvimento da ação,<br />

apresenta o <strong>de</strong>senrolar da problemática, manifestando<br />

a complicação e a tensão da situação,<br />

sem saber no que <strong>de</strong>la vai resultar. A culminação<br />

ou peripécia evi<strong>de</strong>ncia o auge do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

dramático em sua dinâmica oposta; nesta,<br />

algo <strong>de</strong>cisivo acontece ou a situação se altera<br />

inteiramente. A quarta fase, a lise, mostra a situação<br />

nal, apresenta a solução e a conclusão<br />

esboçada pelo sonho.<br />

No que concerne à interpretação onírica,<br />

Jung (1971) estabelece dois níveis: o do sujei-<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

to e o do objeto. A interpretação a nível do sujeito<br />

i<strong>de</strong>nti ca as diferentes imagens do sonho como<br />

personi cações da personalida<strong>de</strong> do sonhador.<br />

Nesta perspectiva, a elaboração apresenta um<br />

caráter essencialmente subjetivo: “o sonhador<br />

funciona, ao mesmo tempo, como cena, ator,<br />

ponto, contra-regra, autor, público e crítico” (Id.,<br />

p. 205). Já, em nível <strong>de</strong> objeto, a interpretação concebe<br />

as diferentes guras como representações<br />

do mundo concreto, no qual o sonhador está<br />

inserido. Para orientar-se por uma interpretação<br />

ou outra, Jung (1971) ressalta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se levar em conta as especi cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada caso,<br />

buscando i<strong>de</strong>nti car qual é o aspecto predominante;<br />

se uma imagem é reproduzida por causa<br />

<strong>de</strong> seu signi cado objetivo – quando, por exemplo,<br />

uma relação <strong>de</strong> importância vital é o conteúdo<br />

e a causa do con ito – ou <strong>de</strong>vido ao signi-<br />

cado subjetivo – ou quando, por exemplo, uma<br />

imagem se relaciona à dinâmica do indivíduo ou<br />

às etapas do próprio processo psicoterapêutico,<br />

como no caso <strong>de</strong> se sonhar com o nascimento <strong>de</strong><br />

uma criança.<br />

Para a psicologia analítica, os sonhos<br />

são manifestações do Self. Têm a função <strong>de</strong><br />

compensar atitu<strong>de</strong>s unilaterais da consciência,<br />

as quais po<strong>de</strong>m estar em <strong>de</strong>sacordo com o todo<br />

psíquico ou ameaçar necessida<strong>de</strong>s vitais do indivíduo<br />

( JUNG, 1964, 1971, 2004, 2008).<br />

Para Jung (2008), a teoria das compensações<br />

é a regra básica do comportamento psíquico:<br />

a insu ciência num aspecto cria excesso<br />

em outro aspecto. Cada sonho é, então, uma tentativa<br />

da própria natureza psíquica <strong>de</strong> centrar o<br />

indivíduo. Justi ca-se, <strong>de</strong>sta forma, a importância<br />

<strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar o contexto <strong>de</strong> vida e os aspectos<br />

da personalida<strong>de</strong> do sonhador no ato <strong>de</strong><br />

compreensão <strong>de</strong> um sonho. A autorregulação do<br />

equilíbrio psíquico, realizada mediante a compensação<br />

do sonho, vincula-se em uma perspectiva<br />

mais profunda e mais ampla à individuação<br />

( JUNG, 2008). Decorre daí a importância que<br />

o autor atribui para a análise e interpretação <strong>de</strong><br />

um sonho no contexto <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> sonhos.<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR


<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

3| Segundo CHEVALIER<br />

e GHEERBRANT, tememos<br />

é uma palavra grega,<br />

que tem a mesma origem<br />

do radical indu-europeu<br />

tem: cortar, <strong>de</strong>limitar,<br />

dividir, e “significava o local<br />

reservado aos <strong>de</strong>uses,o<br />

recinto sagrado que cercava<br />

um santuário e que era um<br />

lugar intocável”((2008, p.<br />

874).<br />

Em sua obra A prática da psicoterapia, ao<br />

falar da individuação, Jung (2004) discorre sobre<br />

o importante papel da consciência na compreensão<br />

dos símbolos compensatórios produzidos<br />

em sonho pelo inconsciente: “Um sonho não<br />

compreendido não passa <strong>de</strong> um simples episódio,<br />

mas a sua compreensão faz <strong>de</strong>le uma vivência”<br />

(Id., p. 117).<br />

Com base no fenômeno da compensação,<br />

JUNG (1971) reconhece que os sonhos<br />

po<strong>de</strong>m favorecer gran<strong>de</strong>mente o processo <strong>de</strong><br />

cura. Convém <strong>de</strong>stacar que cura, numa abordagem<br />

analítica junguiana, exprime, segundo Guggenbühl-Craig<br />

(1983), o signi cado do termo<br />

alemão a ele correspon<strong>de</strong>nte: heilen – cura total.<br />

A cura con gura-se, assim, como uma busca da<br />

totalida<strong>de</strong>, do si-mesmo. Don<strong>de</strong> temos um dos<br />

propósitos da psicoterapia: curar, vir, a ser inteiro,<br />

total, consciente da ação do Self na vida<br />

( JUNG, 2004).<br />

Segundo Ja e (2002), a consciência <strong>de</strong>sempenha<br />

um componente essencial no individuar-se:<br />

o próprio eu se esforça para integrar<br />

as forças <strong>de</strong>sconhecidas surgidas durante o caminho<br />

e contribui para a ativação da cura, para<br />

a totalida<strong>de</strong> psíquica se instalar. A consciência<br />

exerce, pois, uma in uência estimuladora sobre o<br />

inconsciente, uma vez que se esforça para compreen<strong>de</strong>r<br />

as mensagens que este lhe apresenta.<br />

Assim, escreve Sanford: “... O potencial total <strong>de</strong><br />

cura contido em nossos sonhos não se atualizará<br />

a não ser que seja acompanhado pelo crescimento<br />

e <strong>de</strong>senvolvimento da consciência” (2007,<br />

p. 49). O hábito <strong>de</strong> registrar e re etir sobre os<br />

sonhos constitui, segundo o autor, uma possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> a consciência trazer à luz aspectos do<br />

inconsciente, bem como participar do uxo <strong>de</strong><br />

energia que <strong>de</strong>le emana. O próprio Jung (2008)<br />

orientava seus pacientes a efetuarem tais procedimentos.<br />

Em sua conceituação mais simples, a<br />

individuação, conforme Ja e, consiste no processo<br />

permanente e contínuo <strong>de</strong> tornar-se um<br />

indivíduo consciente (2002, p. 27). Segundo o<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

autor, a palavra consciência <strong>de</strong>riva dos termos latinos<br />

“con”, que expressa “com”, e “sciere”, “saber”,<br />

vindo a signi car “saber com” “outro”, sendo<br />

que este outro po<strong>de</strong> ser uma pessoa, alguma<br />

parte <strong>de</strong> si ou o próprio Deus. Para Ja e (2002),<br />

a consciência integra cabeça e coração, sendo sua<br />

base formada pelo conhecimento animado pelo<br />

coração. Isso converge com o que Jung escreve<br />

acerca do processo psicoterapêutico: “O paciente<br />

não <strong>de</strong>ve ser instruído acerca <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>. Se<br />

assim zermos, estaremos nos dirigindo apenas<br />

à sua cabeça. Ele tem que evoluir para esta verda<strong>de</strong>.<br />

Assim, atingiremos o seu coração. Isso o<br />

toca mais fundo e age mais intensamente” (2008,<br />

p. 18). Registrar, pintar, re etir afetivamente sobre<br />

as imagens oníricas são formas concretas <strong>de</strong><br />

a consciência participar da individuação.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Diferentes visões e abordagens teóricas<br />

surgiram, no <strong>de</strong>correr dos tempos, acerca dos<br />

sonhos. Para alguns, são imagens <strong>de</strong>sprovidas<br />

<strong>de</strong> sentido; para outros, resíduos <strong>de</strong> memória<br />

ativados; para esotéricos e adivinhos, indicam<br />

caminhos e apontam soluções para diferentes<br />

problemas; para místicos e crentes religiosos,<br />

exprimem a vonta<strong>de</strong> divina; para a psicologia<br />

analítica, con guram-se como possibilida<strong>de</strong>s do<br />

vir a ser humano.<br />

Enquanto mensagens do Self, da totalida<strong>de</strong><br />

psíquica maior, os sonhos personi cam diferentes<br />

aspectos da vida e da busca do indivíduo,<br />

bem como elementos essenciais com os quais<br />

este po<strong>de</strong> ter se <strong>de</strong>sconectado. Todo drama articulado<br />

no sonho – trama <strong>de</strong> relações, cenário,<br />

protagonistas, plateia... – fala do indivíduo em<br />

uma composição mais ampla, revela vivências,<br />

afetos e atitu<strong>de</strong>s indispensáveis para a vivência<br />

da individuação.<br />

Se os antigos rituais <strong>de</strong> cura ofereciam um<br />

espaço simbólico para restaurar ofensas, integrar<br />

conteúdos e religar o humano ao divino, constata-se,<br />

atualmente, que a psicoterapia constitui-se<br />

como um novo temenos3 , on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> integrar<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR<br />

| 41


42|<br />

<strong>Sonhos</strong>: possíveis ferramentas para vir a ser inteiro em psicoterapia | Franciele Engelmann | 37 - 42<br />

diferentes aspectos da vida e estabelecer uma relação<br />

viva com o Self. Com base na revisão <strong>de</strong><br />

literatura <strong>de</strong>senvolvida neste trabalho, i<strong>de</strong>nti-<br />

cou-se que as mensagens simbólicas enviadas<br />

pelo Self à noite, con guram-se como ferramentas<br />

signi cativas na busca <strong>de</strong> sentido e na <strong>de</strong>scoberta<br />

dos caminhos que conduzem à realização<br />

do vir a ser da totalida<strong>de</strong> humana.<br />

Referências<br />

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário<br />

<strong>de</strong> símbolos. 22ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />

Olympio, 2008.<br />

FOGEL, G. Da solidão perfeita. Petrópolis:<br />

Vozes, 1999.<br />

GALLBACH, M. R. Apren<strong>de</strong>ndo com os sonhos.<br />

2ª ed. São Paulo: Paulus, 2003.<br />

GUGGENBÜHL-CRAIG. O arquétipo do<br />

inválido e os limites da cura, in: Revista Junguiana<br />

- Revista da Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong><br />

Analítica, n. 1, 1983.<br />

JAFFE. L. W. A alma celebra: preparação para<br />

uma nova religião. São Paulo: Paulus, 2002.<br />

JUNG, C. G. Memórias, sonhos e re exões.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1963.<br />

Ano I | número 1 | 2012<br />

JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Nova Fronteira, 1964.<br />

JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis:<br />

Vozes, 1971. Obras Completas: Vol. VIII/2.<br />

JUNG, C. G. O <strong>de</strong>senvolvimento da personalida<strong>de</strong>.<br />

Petrópolis: Vozes, 1998. Obras Completas:<br />

Vol. XVII.<br />

JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. Petrópolis:<br />

Vozes, 2004. Obras Completas: Vol.<br />

XVI/1.<br />

JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos,<br />

transferência. Petrópolis: Vozes, 2008. Obras<br />

Completas: Vol. XVI/2.<br />

MEIER, C. A. Sonho e ritual <strong>de</strong> cura: incubação<br />

antiga e psicoterapia mo<strong>de</strong>rna. São Paulo:<br />

Paulus, 1999.<br />

RAMOS, D. G. Psique e corpo, uma compreensão<br />

simbólica da doença. São Paulo: Summus,<br />

1994.<br />

SANFORD, J. A. Os sonhos e a cura da alma.<br />

4ª ed. São Paulo: Paulus, 2007.<br />

VON FRANZ. O caminho dos sonhos. São<br />

Paulo: Cultrix, 1988.<br />

CONIUNCTIO Revista Científica <strong>de</strong> <strong>Psicologia</strong> e <strong>Religião</strong> | Ichthys <strong>Instituto</strong> | Curitiba - PR

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!