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Número 8 (jul-dez/07) - Dialogarts - Uerj

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Caderno Seminal Digital – Vol. 8 – Nº 8 – (Jul/Dez-20<strong>07</strong>). Rio de Janeiro: <strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>07</strong>.<br />

ISSN 1806-9142<br />

Semestral<br />

1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -<br />

Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />

CONSELHO CONSULTUVO<br />

André Valente (UERJ / FACHA)<br />

Clarissa Rolim Pinheiro Bastos (PUC–Rio)<br />

Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)<br />

Darcilia Simões (UERJ)<br />

Edwiges Zaccur (UFF)<br />

Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)<br />

Flora Simonetti Coelho (UERJ)<br />

José Lemos Monteiro (UFC/ UECE/ NIFOR)<br />

José Luís Jobim (UERJ / UFF)<br />

José Carlos Barcellos (UERJ / UFF)<br />

Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)<br />

Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)<br />

Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)<br />

Maria Leny H. de Almeida (UERJ)<br />

Maria Teresa G. Pereira (UERJ)<br />

Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />

Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)<br />

Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />

Valderez H. G. Junqueira (UNESP)<br />

Vilson José Leffa (UCPel-RS)<br />

EDITORA<br />

Darcilia Simões<br />

CO-EDITOR<br />

Flavio Garcia<br />

ASSESSOR EXECUTIVO<br />

Cláudio Cezar Henriques<br />

DIAGRAMAÇÃO<br />

Carlos Henrique de Souza Pereira (Bolsista de Extensão)<br />

Vitor Roberto de Paula Bornéo (Bolsista de Extensão)<br />

Vanessa Rodrigues Caldeira (Bolsista de Extensão)<br />

PROJETO DE CAPA<br />

Carlos Henrique de Souza Pereira ((Bolsista de Extensão)<br />

LOGOTIPO<br />

Rogério Coutinho<br />

Contato:<br />

seminal@oi.com.br<br />

dialogarts@oi.com.br<br />

publicações.dialogarts@oi.com.br


Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um Projeto Editorial de Extensão Universitária<br />

da UERJ do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a<br />

Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O objetivo<br />

deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade,<br />

com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto<br />

sociocultural em que está inserida.<br />

O Projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela<br />

DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no<br />

momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenadores<br />

do Projeto, as produções digitais com vistas a recuperar a ritmo de suas<br />

publicações e ampliar a divulgação.<br />

Visite nossa página:<br />

http://www.dialogarts.uerj.br<br />

ÍNDICE:<br />

AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A MULHER QUE<br />

ESCREVEU A BÍBLIA............................................................................... 6<br />

ADRIANA APARECIDA DE FIGUEIREDO FIUZA - UNESP-ASSIS /<br />

UNIOESTE<br />

ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS? ............................... 21<br />

ALEXANDRE MELO DE SOUSA - UFAC<br />

A ANATOMIA DA PERDA:THE SNOW MAN, DE WALLACE<br />

STEVENS.................................................................................................. 32<br />

ANDRÉ CECHINEL - UFSC<br />

UM RELATO DE TRABALHO COM LEITURA/REDAÇÃO EM<br />

LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E<br />

ADULTOS (EJA)...................................................................................... 44<br />

AYTEL MARCELO TEIXEIRA DA FONSECA - UERJ<br />

REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA IMPRESSA: O<br />

APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍCIAS DE JORNAL.............. 61<br />

BRUNO DEUSDARÁ - UERJ<br />

O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO PARA A<br />

PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO............................................ 77<br />

CLÁUDIO LUIZ ABREU FONSECA - UFPA-MARABÁ / UERJ<br />

A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA ............................. 94<br />

CRISTIANO DE SALES - UFSC<br />

CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRAVÉS DA<br />

LITERATURA........................................................................................ 108<br />

DANIELLE DE PAIVA LOPES - USP


FONOLOGIA E LETRAMENTO: SUPORTE SEMIÓTICO PARA O<br />

ENSINO DA LÍNGUA MATERNA...................................................... 121<br />

DARCILIA SIMÕES - UERJ / PUC-SP<br />

MARIA SUZETT BIEMBENGUT SANTADE - FIMI / FMPFM / UERJ<br />

AIRA SUZANA RIBEIRO MARTINS - UERJ / CPII<br />

SEMIÓTICA: EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO<br />

.................................................................................................................. 134<br />

DULCE HELENA PONTES-RIBEIRO -UERJ<br />

MADAMA SUI: MEMÓRIA E EROTICIDADE COMO FORMAS DE<br />

RESISTÊNCIA AO PODER ................................................................. 156<br />

ELIANE MARIA DE OLIVEIRA GIACON - UEMS<br />

UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO ROMANCE DE<br />

ISABEL RAMOS.................................................................................... 173<br />

ELISABETE CARVALHO PEIRUQUE - UFRGS<br />

O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: O<br />

AMOR COMO SAGRADO RITUAL POÉTICO OU COMO MERO<br />

RITUAL SAGRADO.............................................................................. 184<br />

MARIA ALCIENE NEVES - UFSJ<br />

ADELAINE LA GUARDIA RESENDE - UFSJ<br />

ROMANCE DO OLHAR DANDI DE CLARICE LISPECTOR....... 201<br />

MÁRIO GUIDARINI - UNISUL<br />

DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM CARTAS AO<br />

EDITOR EM NEWSWEEK ................................................................... 210<br />

MAURÍCIO MOREIRA CARDOSO - UECE<br />

O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO............................................ 231<br />

VANILDA SALTON KÖCHE - UCS<br />

ADIANE FOGALI MARINELLO - UCS<br />

ODETE MARIA BENETTI BOFF -UCS<br />

AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A<br />

MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA<br />

Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza<br />

UNESP-Assis / UNIOESTE<br />

RESUMO:<br />

A mulher que escreveu a Bíblia está narrado em primeira pessoa, apresentando<br />

um narrador autodiegético. Conta a historia da suposta escritura da<br />

Bíblia por uma mulher extremamente feia, intercalando episódios religiosos<br />

e sexuais em um tom satírico e paródico. O objetivo deste estudo é revelar<br />

como o narrador reescreve a história da Bíblia sob o código do humor e da<br />

ironia, utilizando a intertextualidade como artifício de escritura.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Literatura Brasileira, romance contemporâneo, intertextualidade.<br />

Introdução<br />

Os livros falam sempre de outros<br />

livros e toda história conta uma<br />

história já contada.<br />

(ECO, 1985: 20)<br />

A menção a Umberto Eco possibilita o início da discussão<br />

para a compreensão do processo de intertextualidades que<br />

se estabelecem no romance A mulher que escreveu a Bíblia,<br />

publicado em 1999. Esta obra de Moacyr Scliar nada mais é do<br />

que aquilo que nos definiu Julia Kristeva (1974: 64) ao estudar<br />

a obra de Bakhtin: “um mosaico de citações” que ajudam a<br />

construir o discurso da narrativa, criando um efeito de colcha<br />

de retalhos marcado pela fragmentação e presença dos mais<br />

variados textos e discursos que se inserem no discurso da ficção.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 6


As citações principais, como o próprio título da obra<br />

sugere, pertencem à Bíblia, possivelmente um dos livros mais<br />

importantes para a civilização ocidental no sentido de referir-se<br />

à cosmogonia e às crenças religiosas. Nas mais variadas religiões,<br />

o discurso bíblico é sempre visto como o discurso da verdade,<br />

paradigmático às condutas humanas. Talvez por esse<br />

motivo, por sua cultura judaica e pela inspiração do Livro de J.<br />

(1992) de Harold Bloom, Scliar tenha aderido à idéia de escrever<br />

um romance que pudesse contestar, sob o recurso da paródia<br />

e da carnavalização, as passagens das escrituras sagradas.<br />

O objetivo deste estudo é revelar como o narrador reescreve<br />

a história da Bíblia sob o código do humor e da ironia,<br />

utilizando a intertextualidade como artifício de escritura. O<br />

título da obra juntamente com a epígrafe, uma citação dos dois<br />

primeiros parágrafos do Livro de J., marcam o início dos ecos<br />

intertextuais no romance, que no desenrolar da narrativa expandir-se-ão<br />

a outros autores e textos.<br />

O romance como um encaixe de histórias<br />

Utilizando a técnica da mise en abyme, o romance de<br />

Scliar se encaixa no Livro de J. de Bloom que se encaixa na<br />

Bíblia, assim sendo, A mulher que escreveu a Bíblia traz referências<br />

destas obras, constituindo uma relação de intertextualidade<br />

com elas.<br />

No Livro de J., a partir da tradução de David Rosemberg<br />

do antigo hebraico para o inglês, Bloom examina os textos<br />

de J., autor das mais antigas histórias da Bíblia judaica, postulando<br />

uma identidade feminina para este autor. Para o crítico<br />

norte-americano, J é um escritor, do ponto de vista estético, da<br />

altura de Homero, Shakespeare e Tolstoi, e do ponto de vista<br />

psicológico e literário, feminino, possivelmente uma mulher da<br />

corte do rei Salomão (p. 15). A maior criação de J. é o personagem<br />

Yahweh, que Bloom caracteriza por exuberante e genio-<br />

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so, peculiaridades que podem ser encontradas também na personagem<br />

da feia de Scliar.<br />

Ao levantar a hipótese de que a primeira versão da Bíblia<br />

teria sido escrita por uma mulher, proporcionou o mote<br />

para Scliar escrever seu romance, que inverte todo o sentido<br />

das regras sociais presentes no livro sagrado, pois a escritora da<br />

ficção não estaria de acordo com a versão oficial dos textos<br />

bíblicos. Por tal razão, procurará mostrar ao leitor uma versão<br />

mais humanizada, portanto, menos mítica da história bíblica.<br />

A narrativa inicia-se relatando no tempo atual a história<br />

de uma mulher feia, que se submete a uma terapia de vidas<br />

passadas com um charlatão, ex-professor de História, para decifrar<br />

o enigma de sua solidão, concluindo que em outra encarnação,<br />

há três mil anos, ela teria escrito a primeira versão da<br />

Bíblia. Enfim, o falso terapeuta acaba por apaixonar-se pela<br />

personagem, sendo trocado por outro amante pela mesma. Para<br />

a compreensão de sua história, a feia atual deixa um livro para<br />

o historiador, que rememora suas aventuras da vida passada,<br />

quando pertencia ao harém de Salomão.<br />

Utilizando aqui também a técnica da mise en abyme, o<br />

narrador encaixa a experiência da feia atual à história da feia do<br />

passado, propiciando ao leitor um salto temporal para a época<br />

do rei bíblico. Esta segunda parte do romance é o relato da trajetória<br />

dessa personagem, filha de um pastor de cabras do deserto,<br />

que vai a Jerusalém para torna-se uma das setecentas<br />

esposas do rei Salomão. Por ser a única letrada do harém, o<br />

soberano a encarrega de escrever a história do povo judeu, ainda<br />

que para isso ela entre em choque com os circunspetos escribas<br />

oficiais da corte. Porém a personagem enfrenta um problema<br />

muito grande, sua condição de feia.<br />

O enredo, porém, supera a mera aventura amorosa da<br />

feia, com momentos de reflexão sobre a meta-narrativa presente<br />

na obra, seu sentido, razão de ser e a conflitante relação com<br />

a vida, onde se destaca a perspectiva dos marginalizados: da<br />

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mulher dos tempos bíblicos, feia e pertencente a uma tribo do<br />

deserto, representando, portanto, uma situação periférica. A<br />

obra se constrói a partir de dicotomias como a beleza e a feiúra,<br />

a sabedoria e a ignorância, o antigo e o contemporâneo, o sagrado<br />

e o profano, que vão dar o tom carnavalizado ao romance.<br />

No romance de Scliar como se pode observar são várias<br />

as relações intertextuais que se estabelecem, sendo as passagens<br />

bíblicas as que mais se sobressaem. Levantar-se-á aqui as<br />

mais relevantes para o estudo da obra.<br />

Com Vinícius de Moraes<br />

A narrativa inicia com a seguinte afirmativa: “A feiúra<br />

é fundamental, ao menos para o entendimento desta história”<br />

(SCLIAR, 2002: 19). Tal frase nos remete ao poema “Receita<br />

de mulher” de Vinícius de Moraes:<br />

Receita de mulher<br />

As muito feias que me perdoem<br />

Mas beleza é fundamental. É preciso<br />

Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa<br />

de haute couture<br />

Em tudo isso (ou então<br />

Que a mulher se socialize elegantemente em azul,<br />

como na República Popular Chinesa).<br />

Não há meio-termo possível. É preciso<br />

que tudo isso seja belo. É preciso que súbito<br />

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas<br />

pousada e que um rosto<br />

Adquira de vez em quando essa cor só encontrável<br />

no terceiro minuto da aurora.<br />

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se<br />

reflita e desabroche<br />

No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente<br />

preciso<br />

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Que tudo seja belo e inesperado (...)<br />

A presença desta antítese de um autor contemporâneo<br />

para enfocar um texto que aparentemente abordará como tema,<br />

o livro mais antigo do mundo comprova que os grandes clássicos<br />

da humanidade, no caso a Bíblia, estão em constante enlace<br />

com os temas atuais. Além disso, demonstra logo de início o<br />

tom irônico, a inversão da beleza pela feiúra já implanta na<br />

obra um matiz paródico que estará presente em todo o romance.<br />

Diferentemente do poema de Vinícius, na narrativa a<br />

feiúra é fundamental porque ela é a porta de entrada para o<br />

conhecimento e para a tomada de consciência da personagem.<br />

A feia só aprende a ler e escrever porque o escriba de sua tribo,<br />

também medonho, sente pena da mulher que nunca se casaria e<br />

constituiria família devido à sua aparência. Então, em uma atitude<br />

transgressora, posto que as mulheres da época não eram<br />

alfabetizadas por questões culturais e sociais, como forma de<br />

oferecer-lhe outra possibilidade de viver, introduz-lhe nas letras.<br />

Esta inserção abre-lhe o caminho para um outro mundo,<br />

o do conhecimento que a retirará da solidão, visto que a leitura<br />

e a escrita proporcionarão momentos de comunhão com o sagrado,<br />

e posteriormente, sua elevação ao posto de grande escriba<br />

na corte do rei Salomão, da mulher que escreverá a história<br />

da humanidade. Nestes termos afirma a feia:<br />

Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho<br />

letra após letra, palavra após palavra, era<br />

algo que me deliciava. Não era só um texto que<br />

eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta<br />

da ordem, da harmonia. Eu descobria que<br />

uma letra atrai outra, que uma palavra atrai outra,<br />

essa afinidade organizando não apenas o texto,<br />

como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho,<br />

quando terminava o trabalho, era um mapa,<br />

como os mapas celestes que indicavam a po-<br />

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sição das estrelas e planetas, posição essa que não<br />

resulta do acaso, mas da composição de misteriosas<br />

forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam<br />

minha mão quando ela deixava seus sinais<br />

sobre o pergaminho.<br />

(SCLIAR, 2002: 41)<br />

A leitura e a escrita possuem no romance um simbolismo<br />

relevante já que podem representar a comunhão com o divino<br />

e, no caso da feia, a superação de sua inferioridade em<br />

relação ao mundo. Segundo Chevalier (2002: 385), “a escrita<br />

surge a imagem de Deus, tem uma origem sagrada, depois identifica-se<br />

com o homem. É o sinal visível da atividade divina,<br />

da manifestação do Verbo. Desta forma, pode-se ressaltar a<br />

importância que o ato de ler e escrever adquire na narrativa.<br />

Para alguns estudiosos mulçumanos as letras do alfabeto<br />

são consideradas elementos constitutivos do próprio corpo<br />

de Deus (CHEVALIER, 2002: 385), o que poderia explicar os<br />

sentimentos da feia ao traçar seus primeiros esboços:<br />

Quando dei por mim, estava traçando a primeira<br />

letra do alfabeto – o alef, que é o começo de tudo.<br />

Que emoção. Deus, que emoção. Eu olhava aqueles<br />

vacilantes traços com a satisfação de um artista<br />

contemplando sua obra-prima.<br />

(SCLIAR, 2002: 39)<br />

De acordo com a tradição judaica o “alef” ou “aluf” é a<br />

primeira letra do alfabeto hebraico, possuindo três significados:<br />

mestre, professor e maravilhoso. A letra indica o início de tudo,<br />

pode ser comparada ao “alfa” do alfabeto grego. Simbolicamente<br />

na cultura hebraica significa que há um criador, Deus é o<br />

mestre do universo, o que remete à idéia de que o domínio das<br />

letras é o encontro com o sagrado, a unidade entre o homem e o<br />

universo. Por tal razão a personagem sente-se quase feliz e menos<br />

feia ao delinear suas primeiras letras:<br />

Naquele curto espaço de tempo eu mudara. Já não<br />

me sentia tão feia. Meu rosto continuava o mesmo,<br />

mas a sensação da fealdade intrínseca [...] se<br />

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atenuara consideravelmente. Eu agora era... feinha.<br />

Uma condição perfeitamente suportável e<br />

que, comparada ao que eu passara, representava<br />

até um estado de inesperado bem-estar, de felicidade,<br />

quase.<br />

(SCLIAR, 2002: 39)<br />

Aqui o narrador expressa a elevação que sofre a feia<br />

devido à sua nova condição, que a colocará em vantagem em<br />

relação às outras mulheres do harém de Salomão e até mesmo<br />

de sua irmã, considerada bela. No palácio do rei é a capacidade<br />

de narrar da feia que a põe em evidência. Salomão a considera<br />

mais que as outras mulheres, dando-lhe inclusive um quarto<br />

fora do harém, ao lado do seu nos aposentos reais, embora a<br />

paixão que a feia sentisse por ele não fosse correspondida.<br />

A beleza da irmã não se compara ao conhecimento adquirido<br />

pela personagem, pois trata-se de uma situação efêmera,<br />

a beleza perde-se com o passar do tempo enquanto a sabedoria<br />

permanece para a eternidade. Esta dicotomia está<br />

presente no texto de Scliar, sendo revelada pelo espelho, que<br />

constitui o leitmotiv da obra.<br />

O espelho, do latim speculum, segundo Chevalier<br />

(2002: 33-34), “reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do<br />

coração e da consciência, é a revelação da verdade, é o instrumento<br />

da iluminação, símbolo da sabedoria e do conhecimento”.<br />

No caso da feia, o cristal revela duas realidades, a da feiúra,<br />

até então desconhecida pela personagem que nunca tinha<br />

visto sua imagem refletida, e a da sabedoria, porquanto esta<br />

transparece a partir da identificação da feiúra ancestral da mulher<br />

e de sua simbologia como elemento de iluminação do saber.<br />

É importante notar como na obra a imagem do espelho<br />

reflete também a imagem da própria estrutura do recurso da<br />

mise en abyme, na projeção de uma narrativa na outra.<br />

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Passagens bíblicas<br />

Aparecem no decorrer de toda a narrativa várias passagens<br />

do Antigo Testamento com uma roupagem “nova”, paródica,<br />

que subverte a versão oficial da Bíblia. Os episódios relatados<br />

são aqueles mais clichês, de cunho popular,<br />

principalmente os do livro de Gênesis, que narram o início da<br />

criação do mundo e da existência humana na terra e os da época<br />

de Salomão, uma vez que o tempo do romance é justamente<br />

o do período da corte do rei.<br />

Uma das primeiras alusões às escrituras sagradas referese<br />

à condução dos israelitas por Moisés à terra prometida. Na<br />

Bíblia, o livro do Êxodo, cuja autoria é dada a Moisés, relata a<br />

fuga dos israelitas do Egito, conduzidos pelo patriarca, à terra<br />

prometida, passando por muitas dificuldades, entre elas a travessia<br />

do Mar Vermelho e a peregrinação pelo deserto.<br />

Na obra, há uma menção à empreitada de Moisés, que<br />

no romance é representado pelo pai da feia. Esta quando domina<br />

a arte da escrita relata a história do próprio pai, o patriarca<br />

de sua tribo no deserto:<br />

Falava de meu pai; um homem bonito e vigoroso,<br />

um líder que conduzia sua gente pelo deserto até<br />

o oásis junto à montanha: aqui construiremos<br />

nossas casas, aqui fundaremos uma grande cidade.<br />

(SCLIAR, 2002: 41)<br />

O texto bíblico também faz referências a passagens por<br />

oásis no deserto e elucida a origem de Israel, o que possibilita<br />

estabelecer uma relação com o romance. O discurso bíblico<br />

está inserido pela voz do pai da feia “aqui construiremos nossas<br />

casas, aqui fundaremos uma grande cidade”, estas são as palavras<br />

de Moisés iluminado para encontrar o local da terra santa.<br />

É um discurso que já está no imaginário popular seja por meio<br />

da leitura da Bíblia ou pela refração destes textos no cinema.<br />

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Um outro relato que há no romance é o famoso <strong>jul</strong>gamento<br />

de Salomão a causa de duas mulheres que disputam um<br />

bebê recém nascido. Na Bíblia o episódio encontra-se no Primeiro<br />

Livro dos Reis, fragmento que narra o reinado de Salomão.<br />

A narrativa bíblica relata a história de duas prostitutas<br />

que deram à luz praticamente juntas, entretanto, uma das crianças<br />

morre porque uma das mães ao dormir junto ao filho sufoca-o<br />

sem querer. À noite, esta mulher troca o filho morto pelo<br />

filho vivo da outra mãe. Ambas comparecem ao palácio real<br />

para que Salomão, considerado o rei da sabedoria e da justiça,<br />

<strong>jul</strong>gue o caso.<br />

O desfecho é largamente conhecido, o rei manda cortar<br />

a criança ao meio, mas a verdadeira mãe roga que não se cumpra<br />

às ordens do monarca, doando o filho vivo para a outra<br />

mãe. Sabiamente, Salomão percebe aquela mulher como a verdadeira<br />

mãe, capaz de abdicar do filho para preservar seu bem<br />

estar.<br />

No romance de Scliar a mesma cena é relatada em tom<br />

paródico e mais dramático que na Bíblia. Nestes termos:<br />

Pára! – ordenou ao soldado, que se deteve, como<br />

que congelado. Dirigindo-se à mulher que havia<br />

gritado, proclamou: - És a verdadeira mãe, o grito<br />

que ouvimos foi o da tua maternidade. O filho é<br />

teu, podes pegá-lo.<br />

(SCLIAR, 2002: 61)<br />

O discurso das escrituras sagradas é visivelmente mais<br />

contido, menos afetado que o discurso do romance. Tal procedimento<br />

é explicado pela construção hiperbólica do mito de<br />

Salomão que se realiza na narrativa scliariana. Como na Bíblia,<br />

a imagem do rei é edificada sobre a égide do homem abençoado<br />

por Deus com o dom da sabedoria e da justiça, bens<br />

maiores que se pode querer na terra. Portanto, como homem<br />

sábio e justo, <strong>jul</strong>gar era uma de suas atividades prediletas, embora<br />

esta pudesse acarretar-lhe algum trabalho.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 14


Dos episódios reconstruídos de Salomão, o que mais se<br />

destaca é a visita da Rainha de Sabá, constituindo um ponto<br />

forte de intertextualidade, uma vez que os textos do Cântico<br />

dos Cânticos estão citados literalmente no romance e a presença<br />

da rainha representa o ápice dos conflitos da narrativa, devido<br />

à sua beleza e ao interesse que despertou no rei.<br />

Na Bíblia a passagem está no Primeiro Livro dos Reis.<br />

Reconta a visita da rainha que apresenta três enigmas para<br />

comprovar a sabedoria do rei Salomão, que responde todas as<br />

perguntas sem deixar nenhuma dúvida. Como recompensa de<br />

seus conhecimentos, o monarca recebe uma doação:<br />

Presenteou o rei com cento e vinte mil talentos de<br />

ouro e grande quantidade de perfumes e pedras<br />

preciosas (...). A frota de Hirão, que trazia o ouro<br />

de Ofir, trouxe também grande quantidade de<br />

madeira de sândalo e pedras preciosas.<br />

(p. 379-80)<br />

Na obra de Scliar a personagem da Rainha de Sabá<br />

também está construída a partir do mito da beleza e da riqueza.<br />

Considerada a mulher mais bela entre todas as mil mulheres do<br />

harém, visita o rei para conhecer sua sabedoria e riqueza, ao<br />

mesmo tempo em que desfruta de suas qualidades masculinas,<br />

como a beleza, o sexo e a sabedoria para seduzir, hiperbolicamente<br />

enfatizadas no romance na criação do mito de Salomão.<br />

Nestes termos:<br />

Tratava-se da soberana de um lendário país cuja<br />

localização ninguém sabia ao certo: ficava na Arábia,<br />

segundo uns, na África, segundo outros.<br />

Era famosa, essa mulher, pela beleza e pela audácia<br />

e pela riqueza. De há muito desejava conhecer<br />

Salomão, cuja fama de sábio chegara até ela.<br />

(SCLIAR, 2002: 171)<br />

O caráter mítico da personagem está presente no discurso<br />

do narrador que não sabe precisar a localização de seu país,<br />

remontando a um espaço mítico, a uma época em que não havia<br />

registros de lugar ou do tempo. A beleza juntamente com a<br />

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riqueza proporcionam-lhe poderes suficientes para portar-se de<br />

modo transgressor para a época, viajar sozinha com uma comitiva<br />

para conhecer Salomão e render-lhe homenagens por meio<br />

de oferendas, que lhe possibilitariam momentos apaixonados<br />

com o rei de Israel.<br />

O texto do Cântico dos Cânticos escrito pelo rei de Israel<br />

é o escolhido para referir-se ao tipo de diálogo refinado que<br />

os amantes (Salomão e a Rainha de Sabá) estabeleciam durante<br />

o ato sexual. Nota-se que há uma reescritura de quase todos os<br />

fragmentos do livro bíblico, mas de forma paródica e carnavalizada.<br />

O discurso do Cântico sai do contexto das escrituras<br />

sagradas para o de uma relação sexual, subvertendo seu significado<br />

sagrado, ainda que o suposto texto de Salomão tenha um<br />

caráter visivelmente sensual e erótico, como se constata:<br />

Ah!, Beija-me com os beijos de tua boca!<br />

Porque os teus amores são mais deliciosos que o<br />

vinho,<br />

O teu nome é como um perfume derramado:<br />

Por isto amam-te as jovens.<br />

(BÍBLIA, 1989: 826)<br />

Os versos do Cântico apresentam um campo semântico<br />

(“beija”, “beijos”, “boca”, “amores”, “deliciosos”, “vinho”,<br />

“perfume”, “amam”, “jovens”) que insere o leitor em uma ambiente<br />

de voluptuosidade, contrariamente a todo o discurso da<br />

Bíblia. O leitor certamente é surpreendido quando se depara<br />

com a beleza erótica dos versos sagrados.<br />

Na obra de Scliar a mesma sensualidade e erotismo são<br />

recriados por meio da citação entre aspas de fragmentos do<br />

texto bíblico e da intervenção do narrador, que rearranja o discurso<br />

para o contexto do casal, como se comprova:<br />

Para minha surpresa, e profunda inveja, o diálogo<br />

deles era refinadíssimo – e em versos. “Tua boca<br />

cubra-me de beijos”, dizia ela, no hebraico que<br />

aprendera especialmente para a viagem, e continuava:<br />

“São mais suaves que o vinho tuas carícias<br />

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e mais aromático que perfumes é o teu nome, por<br />

isso as jovens de ti se enamoram”. (E depois ficam<br />

no harém, curtindo a raiva, acrescentaria<br />

eu.).<br />

(SCLIAR, 2002: 184)<br />

Contudo, o elemento paródico se faz presente também<br />

pelo comentário que entre parênteses estabelece a feia. Aqui o<br />

narrador mostra-se irônico ao revelar a condição de segundo<br />

plano das mulheres do harém, disputando entre si as atenções<br />

de Salomão, agravada com a chegada da nobre viajante.<br />

No romance, poder-se-ia questionar a contribuição da<br />

ironia para a manifestação da voz do autor na narrativa ao considerar-se<br />

este recurso não apenas como um tropo retórico, mas<br />

também como forma de demonstração de posicionamento ideológico,<br />

ou “uma estratégia discursiva que opera ao nível da<br />

linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual, textual)”<br />

(HUTCHEON, 2000: 27).<br />

Ainda segundo Linda Hutcheon, tal procedimento significa<br />

que “a ironia é a transmissão intencional tanto da informação<br />

quanto da atitude avaliadora além do que é apresentado<br />

explicitamente” (2000: 28). Portanto, é por meio da ironia que<br />

se deflagra o autor implícito que <strong>jul</strong>ga as atitudes de Salomão,<br />

como se observa no seguinte fragmento:<br />

Às parelhas dos carros de faraó eu te comparo,<br />

minha amada. Graciosa é tua face, gracioso é o<br />

teu pescoço. Faremos para ti brincos de ouro,<br />

com filigranas de prata. (Ouro fornecido por ela.<br />

Prata fornecida por ela. Que cretino.)<br />

(SCLIAR, 2002: 184)<br />

Como no trecho anteriormente examinado, embora aqui<br />

sem as aspas há a inserção de fragmentos do Cântico dos cânticos:<br />

A égua dos carros do Faraó<br />

Eu te comparo, ó minha amiga;<br />

Tuas faces são graciosas entre os brincos,<br />

E o teu pescoço entre os colares de pérolas.<br />

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Faremos para ti brincos de ouro<br />

Com glóbulos de prata.<br />

(BÍBLIA, 1989: 826)<br />

Mais uma vez o narrador interroga sobre a conduta do<br />

mito por meio dos parênteses, ironicamente <strong>jul</strong>gando-o por<br />

“cretino”. É conveniente perceber como ocorre o embate entre<br />

a voz do Salomão bíblico e a do narrador, que se faz ouvir como<br />

o off do teatro. Esta intromissão proporciona a subversão<br />

do texto bíblico, ainda que a voz do narrador seja uma voz estranha<br />

ao discurso bíblico.<br />

Outras alusões às passagens bíblicas também poderiam<br />

ser exploradas no romance, como as diversas vitórias do rei<br />

Davi narradas no Primeiro Livro das Crônicas, a criação do<br />

homem, a história de Caim e Abel e o dilúvio que Deus envia<br />

como forma de castigo aos homens relatados no primeiro livro<br />

do Pentateuco. Todas estas narrativas estão recriadas dentro da<br />

narrativa que a feia se vê obrigada a escrever, contando a história<br />

da humanidade até chegar ao tempo da corte de Salomão. A<br />

princípio ela é convidada para relatar as histórias de seu povo,<br />

no entanto, é censurada por contá-las sob um outro viés, um<br />

olhar feminino que modifica a versão do texto bíblico original.<br />

Nota-se que a reescritura que a feia estabelece é contestatória,<br />

pois critica e coloca em dúvida o discurso da verdade<br />

impetrado pela Bíblia oficial, assim como toda a tradição de<br />

culpa que as escrituras sagradas postulam desde as origens com<br />

a “culpa original” de Adão e Eva até o último livro do Antigo<br />

Testamento, revogada na Bíblia cristão apenas no Novo Testamento.<br />

Desse modo:<br />

Assim, me vi, no dia seguinte, escrevendo a história<br />

tal como eles queriam. A mulher sendo fabricada<br />

a partir de uma costela de Adão. A mulher<br />

dando ouvidos à serpente. A mulher provando do<br />

fruto da árvore do Bem e do Mal. Em suma: a<br />

mulher cagando tudo. E aí vinha aquela história<br />

do Caim e do Abel, os dois filhos do casal (dois<br />

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filhos: nenhuma filha. Ou seja, não teriam chance<br />

de se reproduzir, nem por incesto). O Abel pastor<br />

(de ovelhas, não de cabras), o Caim agricultor; os<br />

dois brigam, em vez de optar por um empreendimento<br />

agropastoril conjunto, o que seria mais lógico<br />

e rendoso.<br />

(SCLIAR, 2002: 138)<br />

O narrador discorda claramente da versão oficial da criação<br />

da mulher a partir da costela de Adão, de sua fragilidade<br />

diante da serpente, da história de Caim e Abel como dois irmãos<br />

sem oportunidade de reprodução da espécie humana, ou<br />

seja, a feia parece questionar a inverossimilhança que a narrativa<br />

bíblica apresenta. Por fim, conclui de forma irônica que melhor<br />

negócio teriam feito os irmãos se tivessem optado por um<br />

“empreendimento agropastoril conjunto”, inserindo no discurso<br />

antigo das escrituras sagrados o discurso da contemporaneidade<br />

do mundo business.<br />

Considerações finais<br />

A mulher que escreveu a Bíblia é uma releitura das escrituras<br />

sagradas, ou seja, do discurso da “verdade”. O narrador<br />

questiona essa suposta “verdade”, interrogando sobre uma suposta<br />

identidade cultural cristã, ocidental, branca e masculina.<br />

Agora é uma voz feminina quem narra a história da humanidade.<br />

Esse outro olhar inverte a versão oficial das escrituras sagradas,<br />

questionando os fatos históricos narrados, como a mitificação<br />

de Salomão e da Rainha de Sabá.<br />

Além desta questão, caberia a interrogação acerca de<br />

um dos temas do romance, o da feiúra, que é enfaticamente<br />

mencionado ao longo da narrativa. No contexto atual da ditadura<br />

da beleza (juventude, magreza), onde o parecer está acima<br />

do ser, não seria a obra de Scliar uma forma de questionamento<br />

destes valores que a sociedade de consumo nos impõe, quando<br />

o conhecimento e a sabedoria perderam o valor que possuíam<br />

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nas sociedades antigas? A obra de Scliar é muito simbólica<br />

neste sentido de explicitar a superioridade da feia pelo domínio<br />

da arte da escritura.<br />

Por fim, poder-se-ia avaliar que tanto a polifonia, como<br />

a carnavalização e a paródia formam um conjunto no processo<br />

de intertextualidades que se estabelecem na obra de Scliar posto<br />

que são estratégias discursivas que enriquecem o texto literário.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BÍBLIA Sagrada. Tradução dos originais mediante a versão dos<br />

Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico.<br />

67 ed. São Paulo: Claretiana, 1989.<br />

BLOOM, Harold. O livro de J. Tradução de Monique Balbuena.<br />

Rio de Janeiro: Imago, 1992.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de<br />

símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.<br />

ECO, Umberto. Pós-escrito ao Nome da rosa. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1985.<br />

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos<br />

das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro<br />

Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />

KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva,<br />

1974.<br />

SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. 7ª reimpressão,<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 2002.<br />

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ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS?<br />

Alexandre Melo de Sousa<br />

UFAC<br />

RESUMO:<br />

Este trabalho apresenta alguns enfoques sobre a onomatopéia: fenômeno<br />

lingüístico que consiste na imitação ou reprodução aproximada de ruídos<br />

por meio dos sons da linguagem. São apresentadas algumas discussões de<br />

base teórica, a saber: a relação som – sentido, o tratamento da onomatopéia<br />

no âmbito morfológico, a manifestação onomatopaica em outras línguas, a<br />

onomatopéia como recurso estilístico, entre outras; baseadas nas quais,<br />

concluímos que a onomatopéia é melhor apreendida na esfera fonoestilística.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Onomatopéia, fonologia, formação de palavras, estilística.<br />

Considerações iniciais<br />

A onomatopéia (termo de origem grega onomatopoiía –<br />

criação de palavras – que foi transferido para o Latim onomatopoeia<br />

– invenção de palavras) tratada, simultaneamente, como<br />

um fenômeno lingüístico e uma figura da retórica, é caracterizada,<br />

comumente, como a semelhança, por meio da<br />

imitação ou da reprodução que se estabelece entre o som de<br />

uma palavra e a realidade por ele representada, seja de fenômenos<br />

naturais, seja de ruídos de animais, entre outros. Para<br />

Grammont (1971: 377), a onomatopéia é sempre uma aproximação,<br />

jamais uma reprodução exata.<br />

Este artigo, cujo escopo é a onomatopéia, tem por objetivo<br />

precípuo apresentar, panoramicamente, alguns enfoques a<br />

respeito do referido fenômeno lingüístico, com vistas a localizá-lo<br />

num dos âmbitos dos estudos da linguagem.<br />

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Embora demos maior destaque ao aspecto estilístico,<br />

mais exatamente fonoestilístico, não deixamos de salientar outros<br />

aspectos: um deles é a relacionar o referido fenômeno de<br />

imitação sonora com a noção de arbitrário do signo, para isso<br />

assinalaremos algumas considerações a respeito do liame que<br />

se estabelece entre som e sentido.<br />

Outro aspecto consiste em mostrar o tratamento do fenômeno<br />

na lingüística estrutural, mais especificamente na Morfologia,<br />

no tocante à formação de palavras.<br />

1 - A relação som – sentido<br />

Inicialmente queremos traçar uma discussão sobre o elo<br />

que se estabelece entre som e sentido. Para tanto, faz-se necessário<br />

tecer algumas importantes considerações sobre a natureza<br />

do signo lingüístico, já que este reúne em si a relação entre<br />

conteúdo e expressão: mecanismo no qual se baseia a linguagem<br />

humana.<br />

De acordo com Jakobson (1969), a relação entre conteúdo<br />

e expressão constitui, desde a Antiguidade, um constante<br />

problema para a ciência da linguagem, mas que foi retomado,<br />

após longo período de esquecimento por parte dos lingüistas,<br />

por Ferdinand de Saussure, que retomou a concepção e a terminologia<br />

da teoria apresentadas pelos estóicos:<br />

Essa doutrina considerava o signo (sêmeion) como<br />

uma entidade constituída pela relação entre o<br />

significante (sêmainon) e o significado (sêmainomenon).<br />

O primeiro era definido como "sensível"<br />

(aisthêton) e o segundo como "inteligível"<br />

(noêton), ou então, para utilizar um conceito mais<br />

familiar aos lingüistas, "traduzível”.<br />

(Jakobson, 1969: 98-9).<br />

Segundo Saussure (1995), a linguagem une a expressão<br />

ao conteúdo por convenção, não por natureza. De acordo com a<br />

teoria saussureana, o signo lingüístico não estabelece relação<br />

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entre uma coisa e uma palavra, mas entre um conceito (significado)<br />

e uma imagem acústica (significante), como explica o<br />

autor:<br />

O laço que une o significante ao significado é arbitrário<br />

ou então, visto que entendemos por signo<br />

o total resultante da associação de um significante<br />

com um significado, podemos dizer mais simplesmente:<br />

o signo lingüístico é arbitrário.<br />

Assim, a idéia de "mar" não está ligada por relação<br />

alguma interior à seqüência de sons m-a-r que<br />

lhe serve de significante; poderia ser representada<br />

igualmente bem por outra seqüência, não importa<br />

qual (...)<br />

(SAUSSURE, 1995: 81-82)<br />

De acordo com Saussure, “arbitrário” quer dizer que o<br />

significante não possui nenhum vínculo natural com a realidade.<br />

Podemos dizer, então, que o significante é "imotivado" em<br />

relação ao significado. Para o autor, tal constatação é aplicável<br />

até mesmo no caso das onomatopéias, cujas imitações aproximativas<br />

de certos ruídos naturais poderiam relacionar, equivocadamente,<br />

significante e significado. Então, apresenta os seguintes<br />

argumentos em defesa de sua posição:<br />

a) as onomatopéias, como uma "imitação aproximativa"<br />

de ruídos, são criadas a partir de sons<br />

vocais padronizados na língua, portanto, são<br />

convencionais;<br />

b) as onomatopéias tendem a adquirir características<br />

dos demais signos à medida que se integram<br />

ao léxico da língua, sofrendo, por exemplo, alterações<br />

morfológicas;<br />

c) as onomatopéias tornam-se de importância secundária,<br />

já que se apresentam um número bem<br />

reduzido na língua.<br />

A despeito das conclusões do mestre genebrino sobre a<br />

natureza das onomatopéias, não há por que demolir o caráter<br />

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convencional das mesmas, mas simplesmente relativizá-lo, na<br />

medida em que a associação som-sentido depende de fatores<br />

nitidamente culturais e não universais. Quer dizer: a relação<br />

som/sentido é “sentida” como motivada pelos falantes, mas, no<br />

contexto de uma análise científica, vemos que esta relação é<br />

puramente intuída, mas isto não garante focos de universalidade<br />

à relação sígnica. A motivação, pois, existe, mas não é tão<br />

universal que destrua o arbitrário do signo, ainda que, no seio<br />

de uma cultura, a motivação onomatopaica seja maior que para<br />

signos como mesa e cadeira.<br />

Rigorosamente, há dois tipos de subtrair:<br />

a) aqueles determinados pelo sistema, como arbitrário<br />

relativo: a exemplo dos derivados e compostos,<br />

no plano da expressão, e da metáfora e<br />

da metonímia, no plano do conteúdo<br />

(Cf. GUIRAUD, 1980);<br />

b) aqueles determinados pela relação som/ sentido,<br />

mediados pelo referente: é o caso da imitação<br />

sonora, que consiste numa aproximação dos<br />

sons físicos através de sons lingüísticos; a ilustração<br />

sonora, que consiste no aproveitamento<br />

da linha melódica para dar sugestão de que os<br />

fonemas estão expressado algo inerente à natureza<br />

do que se comunica. “Assim, a sibilante /s/<br />

participa dos exemplos de imitação sonora<br />

quando se fala dos assobios, dos sussurros. Se<br />

porém transmite um apelo de silêncio ou sua<br />

impressão de suavidade tem-se uma ilustração<br />

sonora”.<br />

(Cf. MONTEIRO, 1991: 109)<br />

Como vemos a abstração sonora está ligada às sensações<br />

naturais, táteis, visuais, excluído as auditivas. Para nos<br />

valermos de Jakobson (1969), neste caso, prepondera a função<br />

conativa da linguagem.<br />

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Do ponto de vista semântico, há que se fazer a distinção<br />

entre a onomatopéia primária, que consiste na imitação do som<br />

pelo som e a onomatopéia secundária, que evoca não uma experiência<br />

acústica, mas um movimento.<br />

Por fim, é o caso da sugestão rítmica, que resulta da<br />

tensão do relaxamento e da distensão prosódicos de que resulta<br />

o ritmo (Cf. MASSINI-CAGLIARI, 1992). Mas não vamos nos<br />

deter neste aspecto relacionado à motivação sonora. Voltemos<br />

ao nosso interesse central: a imitação sonora ou onomatopéia.<br />

2 - A onomatopéia na formação de palavras<br />

A onomatopéia ou imitação sonora é um fenômeno<br />

marginal em morfologia, porque não segue a nenhuma sistematização.<br />

Não parte de constituintes mórficos, sendo antes uma<br />

formação ex nihilo, de modo que não tem tratamento especial<br />

em morfologia, que trata dos processos regulares e sistemáticos<br />

de formação de palavras. Representativo desta concepção é<br />

Rocha (1998: 99), que caracteriza o fenômeno como assistemático<br />

e imprevisível. Reporta-se a Melo (1975: 225-6), que se<br />

refere à onomatopéia ou imitação sonora nestes termos:<br />

outros processos de formação vernácula difíceis<br />

ou impossíveis de sistematizar: obscuras analogias,<br />

"intuição poética, espírito chistoso, vivacidade<br />

de imaginação dão nascimento a novas palavras,<br />

que não se podem enquadrar nos processos clássicos,<br />

ou ao menos não obedecem aos planos e<br />

normas habituais. Quem explicará satisfatoriamente<br />

palavras como maçaroca, serelepe, bagunça,<br />

ganzepe, beldroega, bigorrilhas, desmilinguido,<br />

borocoxô, saçaricar, chinfrim, fuzarca,<br />

pilantra, ranzinza, fuzuê, esbregue, calhorda, salafrário,<br />

bisbórria, safardana, I mazorro, salabórdia,<br />

engazopar, et similia.<br />

(apud ROCHA, 1998: 99)<br />

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3 - A onomatopéia nas diversas línguas<br />

Decorrente do seu valor imitativo, mas dependente da<br />

cultura, o que torna a imitação sonora onomatopéia um fenômeno<br />

intermediário entre o arbitrário absoluto e o arbitrário<br />

relativo, há que se enfatizar o caráter relativo do fenômeno<br />

onomatopaico. Lopes (s/d) exemplifica com os seguintes verbos<br />

relativos a “miau”:<br />

Francês – miauler<br />

Inglês – mew<br />

Alemão – miauen<br />

Outros exemplos poderiam ser aduzidos aqui, mas cremos<br />

que é o suficiente para mostrar que a onomatopéia não<br />

fere o principio da arbitrariedade do signo, mas também não se<br />

circunscreve a pura comunalidade de que fala Saussure (1995).<br />

Nem é particular o suficiente para contribuir specimen de arbitrário<br />

absoluto, nem universal o suficiente para ilustrar a tese<br />

naturalista.<br />

Visto que a onomatopéia exige uma afinidade entre o<br />

nome e o sentido, seria de esperar que esses itens fossem os<br />

mesmos em todas as línguas. No entanto, como foi mostrado,<br />

cada língua convencionou a onomatopéia a seu modo. E, acrescente-se<br />

que, mesmo quando traduzidas graficamente, formações<br />

reconhecidamente onomatopaicas têm poucas semelhanças<br />

nos diferentes idiomas. Para alguns estudiosos da<br />

linguagem, o efeito onomatopaico depende da situação em que<br />

se pronuncia uma palavra, assim “uma palavra não é uma onomatopéia<br />

se não for sentida como tal (GRAMMOND, 1971:<br />

380).<br />

4 - A onomatopéia como fenômeno estilístico<br />

A nosso ver a onomatopéia, no âmbito de uma cultura<br />

de uma língua se caracteriza mormente como num fenômeno<br />

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estilístico e expressivo. Faz parte do que Troubetzkoy (1970)<br />

denominou forma expressiva, que pode ser assim definida:<br />

Ces difficultés peuvent être résolues au mieux si<br />

I'on attribue I'étude dês procedes phoniques d'expression<br />

et d'appel à une branche scientifique particuliere,<br />

à savoir Ia phonostyfistique. On pourrait<br />

Ia subdiviser d'une part em stylistique expressive<br />

et em stylistique appellative, et d'autre part em stylistique<br />

phonétique et em stylistique phonologique.<br />

Si dans Ia description phonologique d'une<br />

langue on doit étudier Ia stylistique phonologique<br />

(aussi bien au point de vue de Ia fonction expressive<br />

qu'à celui de Ia fonction d'appel), Ia tache<br />

propre de cette description doit toutefois rester<br />

I'étude phonologique du "plan représentatir. La<br />

phonologie n'a done pás à être subdívisée em<br />

phonologie expressive, appellative et représentetive.<br />

Lê nom de "phonologie" peut comme auparavant<br />

être reserve à I'étude de Ia face phonique<br />

de Ia langue, de valeur représentative, tandis que<br />

\'étude dês éléments de Ia face phonique de Ia<br />

Jangue, de valeur expressive et de valeur appellative,<br />

será faite par Ia "stylistique phonologique",<br />

qui de son cote ne serait qu'une partie de Ia "phonostylistique".<br />

(TRUBETZKOY, 1970: 29)<br />

Dessa forma, segundo o autor, apenas os elementos fônicos<br />

de caráter expressivo e apelativo têm valor para a Estilística,<br />

já que esta atenta para a manifestação expressiva da linguagem.<br />

Como Câmara Jr. (1978) observou, ao dedicar espaço<br />

à Fonoestilística, em seu estudo, Trubetzkoy pretendia, na verdade,<br />

mostrar que não deveriam ser incluídos no conceito de<br />

fonema os traços expressivos nos quais se revelam "a manifestação<br />

psíquica ou o apelo", já que o fonema está exclusivamente<br />

relacionado com a função representativa.<br />

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Como acrescenta Câmara Jr (1978: 29), a Fonoestilística<br />

aproveita traços fonéticos "que não estão sistematicamente<br />

utilizados nas oposições e nas correlações dos fonemas e dos<br />

grupos fonêmicos". Cabe a ela, portanto, destacar o valor expressivo<br />

das vogais e das consoantes, as ilustrações e os simbolismos<br />

sonoros, as sugestões rítmicas entre outros recursos sonoros.<br />

Dá-se destaque ao critério acústico a fim de detectar as<br />

impressões auditivas que despertam os fonemas.<br />

Aqui nos aproveitamos da proposta de Herculano de<br />

Carvalho (1974) a respeito da qual fala Martins (2000: 48-49) e<br />

assim que tipifica as onomatopéias:<br />

a) como sons imitativos produzidos acidentalmente<br />

pelo homem, possuem caráter momentâneo e<br />

individual; são uma imagem intencional do som<br />

natural. Têm a possibilidade de repetir-se em situação<br />

semelhante e valer como sinal (natural e<br />

intencional). As onomatopéia criadas por escritores<br />

ficam geralmente restritas a um único ou a<br />

poucos empregos.<br />

b) como objeto sonoro de configuração definida e<br />

valor significativo constante, dentro de uma determinada<br />

comunidade lingüística, constituído<br />

por uma combinação de sons correspondentes<br />

aos fonemas da língua dessa comunidade: zás,<br />

pum, pimba, dlim-dlão, tlim-tlim, tic-tac, etc. –<br />

são as onomatopéias propriamente ditas.<br />

Os dois tipos onomatopaicos, referidos anteriormente,<br />

não se integram ao sistema léxico-gramatical da língua, uma<br />

vez que não constituem verdadeiras palavras; “são sinais quase<br />

totalmente destituídos de valor denotativo próprio e representam<br />

globalmente uma situação e não desempenham função na<br />

frase”. Cada uma delas, assim como as interjeições, tem valor<br />

de toda uma frase (cf. MARTINS, 2000: 49):<br />

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Considerações finais<br />

a) como significante que desempenha um papel<br />

sintático na frase e recebe uma categoria gramatical,<br />

temos uma forma lexicalizada e não uma<br />

onomatopéia propriamente dita. É comum a onomatopéia<br />

tornar-se substantivo ou verbo. O<br />

signo onomatopaico é uma verdadeira palavra;<br />

seja qual for o seu valor conotativo, denota o<br />

objeto que significa e desempenha função na<br />

frase, como os substantivos pio, uivo, estalo, ribombo,<br />

ou verbos como tilintar, bimbalhar,<br />

zumbir, etc. “Estas palavras estão ligadas ao seu<br />

significado em razão de convenções e, independentemente<br />

de seu valor conotativo, exercem<br />

função representativa”.<br />

(MARTINS, 2000: 49)<br />

Pelo exposto, conclui-se que a onomatopéia é um fenômeno<br />

marginal em lingüística, em especial na morfologia,<br />

em que recebe o inexpressivo nome de criação ex nihilo<br />

(CARVALHO, 1984: 22).<br />

Para Lopes (1961: 20), no entanto, as onomatopéias não<br />

existem apenas para acudir à falta ou ao desconhecimento de<br />

certos termos abstratos (como, por exemplo, acontece na criação<br />

de alguns termos infantis: popó, pipi, memé). São, na verdade,<br />

um recurso expressivo para transmitir um som ou um<br />

movimento contido numa frase, a fim de torná-la mais viva,<br />

mais comunicativa, portanto, segundo a autora, trata-se de uma<br />

“palavra motivada que se mantém em relação com a realidade<br />

que exprime – ou por imitação de um som, ou por sugestão de<br />

um movimento, ou ainda por simultaneidade dos dois”.<br />

O raio de ação da onomatopéia, como vimos, é mais apreendido<br />

na estilística da expressão, tendo alcance tanto na<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 29<br />

fala cotidiana quanto na criação poética, haja vista o conhecido<br />

“Sinos de Belém”, de Manuel Bandeira e “Incêndio em Roma”,<br />

de Olavo Bilac. Em abordagem imanente-fenomenológica, do<br />

polonês Roman Ingarden, (Cf. CEIA, 2005), os itens onomatopaicos<br />

fazem parte do estrato fônico, portanto, possui tratamento<br />

mais adequado no âmbito da Fonoestilística.<br />

Contudo, por não ser universal para as línguas naturais,<br />

não fere o princípio da arbitrariedade do signo. Apenas relativiza<br />

o princípio.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

CÂMARA Jr. J. M. Contribuição à estilística portuguesa. Rio<br />

de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1978.<br />

CARVALHO, J. H. de. Teoria da linguagem. Coimbra: Atlântida,<br />

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1984.<br />

CEIA, C. “Crítica fenomenológica”. In: Carlos Ceia. E-<br />

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http://www.citadel.edu/faculty/leonard/ISER.html)<br />

GRAMMONT, M. Traité de Phonétique. Paris: Delagrave,<br />

1971.<br />

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LOPES, E. Fundamentos da lingüística contemporânea. São<br />

Paulo: Cultrix, s/d.<br />

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MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo: fonética do português<br />

– elementos musicais da fala, sílaba, duração e acento.<br />

São Paulo: Contexto, 1992.<br />

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MONTEIRO, J. L. A estilística. São Paulo: Ática, 1991.<br />

ROCHA, L. C. de A. Estruturas morfológicas do português.<br />

Belo Horizonte: UFMG, 1998.<br />

SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix,<br />

1995.<br />

TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonofogie. Paris:<br />

Klincksieck, 1970.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 31<br />

A ANATOMIA DA PERDA:<br />

THE SNOW MAN, DE WALLACE STEVENS<br />

André Cechinel<br />

UFSC<br />

RESUMO:<br />

A poesia de Wallace Stevens parece assombrada pelo embate entre consciência<br />

e realidade. Em outras palavras, o poeta trabalha a distância entre<br />

percepção e realidade, com o intuito principal de expor as inevitáveis atribuições<br />

adjetivantes operadas pela mente - nunca podemos, pois, ver as coisas<br />

como elas de fato são. Em The Snow Man, entretanto, Stevens nos mostra os<br />

eventos que decorreriam de uma hipotética visualização absoluta da natureza<br />

das coisas. A presente investigação se propõe, finalmente, a investigar<br />

justamente esse momento de contato “puro”, em que a mente incide inteiramente<br />

sobre as coisas que a cercam.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Wallace Stevens; poesia; percepção; imaginação; realidade.<br />

A disputa entre consciência e realidade talvez seja o<br />

grande tema de Wallace Stevens – ao menos tanto seus ensaios<br />

literários quanto a crítica acerca de sua obra assim apontam.<br />

Em seu famoso texto intitulado “The Noble Rider and the<br />

Sound of Words” (1942), por exemplo, Stevens atesta que “it is<br />

not only that the imagination adheres to reality, but, also, that<br />

reality adheres to the imagination and that the interdependence<br />

is essential” (STEVENS, 2005: 644). Em outras palavras, longe<br />

de favorecer qualquer dualismo opositivo, o poeta demonstra<br />

que a relação entre imaginação e realidade somente pode ser<br />

compreendida a partir da interdependência dos termos, uma<br />

vez que qualquer tentativa de isolá-los resulta automaticamente<br />

na própria dissolução do par. Nesse sentido, se a consciência é<br />

por vezes produtora do real, a essência da natureza nunca pode<br />

ser inteiramente apreendida, fato que atesta a parcialidade e a<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 32


temporalidade daquilo que entendemos como verdade. Ora, por<br />

não estar em total sintonia com o que é visualizado, a consciência<br />

situa-se em movimento de perpétua ordenação do real,<br />

isto é, atribuir sentido à natureza significa, também, afastar-se<br />

dela como verdade inequívoca.<br />

As premissas acima poderiam ser facilmente acionadas<br />

através da leitura do célebre The Man with the Blue Guitar,<br />

publicado por Stevens em 1937. Em poucas palavras, o poema<br />

aborda, ao longo de 33 seções, a questão da produção do real e<br />

seu estreito envolvimento com a consciência que o concebe. A<br />

primeira seção do poema abre com a imagem de um homem<br />

curvado sobre seu violão azul: “The man bent over his guitar, /<br />

A shearsman of sorts. The day was green. / They said, ‘You<br />

have a blue guitar, / You do not play things as they are’”. Aparentemente,<br />

para os que acompanham a cena, a tarefa do músico<br />

seria a de “tocar as coisas como elas são”; no entanto, o homem<br />

que toca, consciente de sua atividade, sabe que as coisas<br />

se modificam justamente no momento em que são percebidas<br />

pelo violão, seguindo disso a impossibilidade de atender ao<br />

pedido de seu público: “The man replied, ‘things as they are /<br />

Are changed upon the blue guitar.’”. Muito mais que constatar<br />

a realidade despida de seus adornos, o músico recodifica aquilo<br />

que canta – a própria cor azul de seu instrumento assim o sugere.<br />

Resumidamente, o discurso nunca incide totalmente sobre<br />

seu objeto, ou melhor, ao selecionar canto e instrumento, o<br />

homem do violão já delimita seu escopo, transformando-o continuamente.<br />

A bem da verdade, The Man with the Blue Guitar é apenas<br />

uma das possíveis referências ao tema percepção / realidade<br />

em Stevens. Dentre outros casos, poderíamos citar Of<br />

Modern Poetry e Notes Toward a Supreme Fiction, poemas<br />

igualmente conhecidos pela auto-reflexividade de seus versos.<br />

O primeiro, presente no livro Parts of a World (1942), estabelece,<br />

como o título indica, os fundamentos que deveriam<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 33<br />

orientar a poesia moderna, expressos de modo geral nos seguintes<br />

versos: “It has to be living, to learn the speech of the<br />

place. / It has to face the men of the time and to meet / the<br />

women of the time”. O segundo, publicado por sua vez no conjunto<br />

Transport to Summer (1947), traz novamente à tona a<br />

idéia de um código estético para a poesia, anunciado dessa vez<br />

por uma tríade fundamental: “It Must be Abstract”, “It Must<br />

Change” e, por fim, “It Must Give Pleasure”. Seja como for, o<br />

importante é notar que a discussão relativa à representação da<br />

realidade certamente permeia os dois poemas:<br />

Two things of opposite natures seem to depend<br />

On one another, as a man depends<br />

On a woman, day on night, the imagined<br />

On the real. This is the origin of change.<br />

Winter and spring, cold copulars, embrace<br />

And forth the particulars of rapture come.<br />

Conforme visto até o momento, para Stevens, o real encontra-se<br />

em um processo contínuo de constituição, ou seja,<br />

nossa percepção da realidade é sempre intermediada por uma<br />

consciência inevitavelmente participativa, e, portanto, o que<br />

tomamos por verdade está sempre preso a condições temporais.<br />

Em suma, produzimos verdades para posteriormente descartálas,<br />

atestando assim uma indispensável insuficiência que dá<br />

movimento ao par consciência e realidade. Todavia, embora<br />

cônscio do impossível alinhamento completo entre o real e a<br />

mente que o apreende, o poeta não deixa de apontar a experiência<br />

de choque que decorreria de um desnudamento absoluto<br />

do primeiro. Colocado de outra maneira, Stevens tenta representar,<br />

em alguns de seus poemas, a situação hipotética de uma<br />

visualização absoluta das coisas como ela são, ainda que, de<br />

modo geral, sua obra se mostre conhecedora dos limites da<br />

experimentação. A questão por ele proposta parece ser a seguinte:<br />

o que aconteceria se, de fato, pudéssemos obter uma<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 34


precisa equivalência entre o que vemos e as coisas tal como<br />

são?<br />

Sem adentrar as questões heideggerianas acerca da poesia<br />

de Hölderlin – questões essas que não somente influenciaram<br />

Stevens, mas que também dizem respeito ao que até aqui<br />

foi dito –, este ensaio se propõe, finalmente, a trabalhar a pergunta<br />

acima formulada a partir do poema The Snow Man, publicado<br />

pelo poeta primeiramente em 1921 e a seguir incluído<br />

em Harmonium (1923), seu primeiro livro de poesia. Em linhas<br />

gerais, The Snow Man discute mais uma vez o principal assunto<br />

eleito por Wallace Stevens, a saber, a estreita ligação entre a<br />

mente e a cena por ela percebida. Contudo, diferentemente de<br />

seus outros experimentos, esse poema tenta dar conta do exato<br />

momento em que a percepção esvazia-se por completo para<br />

ceder lugar a uma aparição “pura” do real, experiência essa que<br />

resulta inevitavelmente no aniquilamento do “eu” convergente.<br />

Diante da captação da verdade, do cenário em si, qualquer identidade<br />

fechada se desfaz, e a sensação de perda é inevitável.<br />

***<br />

A “cena primitiva” é por todos conhecida: Blanchot pede<br />

para imaginarmos uma criança por volta de sete, oito anos,<br />

abrindo uma das cortinas de sua casa e olhando através da janela.<br />

Dentre as coisas que avista, o jardim, as árvores e o muro –<br />

a princípio, um episódio corriqueiro. Após cansar-se do que<br />

observa, a criança volta seu olhar para o céu ordinário, de luz<br />

cinzenta; “le jour terne et sans lointain” (BLANCHOT, 1980:<br />

117). Eis o que se passa em seguida: esse mesmo céu cotidiano,<br />

carregado de seus significados passados, abre-se subitamente,<br />

revelando para a criança uma ausência que ela nunca<br />

antes havia sentido, como se o vidro – seu espelho diário – tivesse<br />

quebrado para lhe liberar o significado final de tudo o<br />

que existia por trás. À medida que a cena se desvenda, a sensação<br />

de destituição parece aumentar progressivamente, até que,<br />

enfim, a criança desperta em lágrimas. Procura-se consolá-la,<br />

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mas ela nada diz. “Il vivra désormais dans le secret. Il ne pleurera<br />

plus” (BLANCHOT, 1980: 117). Essa visão singular, de<br />

exposição total ao que é reconhecido, funde completamente o<br />

interno e o externo, e, dessa forma, impede a identificação de<br />

um campo de imanência interior ao “eu”. Em suma, corpo e<br />

linguagem se desfazem perante a prova do real, pois só a falta<br />

ali resta.<br />

Com efeito, os versos de Stevens assemelham-se ao evento<br />

descrito por Blanchot exatamente pelo registro da reação<br />

de um corpo que, após deparar-se com a concretude do real,<br />

torna-se estranho a si mesmo. Na esteira dos preceitos imagistas<br />

expostos por Ezra Pound no ensaio-prospecto “A Retrospect”,<br />

segundo os quais a poesia deveria visar um “direct treatment<br />

of the ‘thing’ whether subjective or objective”<br />

(POUND, 2004: 84), Stevens escreve uma espécie de poema<br />

em fuga, ou melhor, dada a absoluta condensação e impessoalidade<br />

dos versos, The Snow Man se oferece como um poema<br />

que intenta, a todo instante, retirar-se da linguagem. Como dito<br />

anteriormente, o texto de Stevens pode ser lido, em poucas<br />

palavras, como um retrato momentâneo e imaginário da mente<br />

na ocasião precisa em que ela capta a natureza em sua essência.<br />

Tendo em vista a concisão do poema, cabe citá-lo integralmente:<br />

One must have a mind of winter<br />

To regard the frost and the boughs<br />

Of the pine-trees crusted with snow;<br />

And have been cold a long time<br />

To behold the junipers shagged with ice,<br />

The spruces rough in the distant glitter<br />

Of the January sun; and not to think<br />

Of any misery in the sound of the wind,<br />

In the sound of a few leaves,<br />

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Which is the sound of the land<br />

Full of the same wind<br />

That is blowing in the same bare place<br />

For the listener, who listens in the snow,<br />

And, nothing himself, beholds<br />

Nothing that is not there and the nothing that is.<br />

Os versos iniciais do poema descrevem, como se pode<br />

ver, uma paisagem de inverno, ou melhor, descrevem a sensação<br />

de um espectador perante cenário dominado pela ação da<br />

neve. Na verdade, faz-se necessário aqui chamar a atenção precisamente<br />

para o fato de que a cena contemplada recebe toda<br />

uma carga avaliativa, que pode ser percebida através de imagens<br />

como spruces rough e distant glitter (“abetos ásperos” e<br />

“luz distante”). Parafraseando, a imagem do inverno que nos é<br />

retratada passa, pois, por um filtro que pretende qualificar de<br />

antemão os efeitos da neve sobre o espaço que ocupa. Esse<br />

ponto é de extrema relevância, principalmente por estar intimamente<br />

relacionado à principal proposição do poema. O primeiro<br />

verso de The Snow Man inaugura uma questão que, a<br />

bem da verdade, só será inteiramente formulada em suas linhas<br />

finais, a saber: para o observador presente no poema, apenas<br />

uma “mente de inverno” (a mind of winter) seria capaz de captar<br />

a cena em pauta tal como ela de fato é, e não como está<br />

sendo por ele representada. Ou seja, para o nosso intermediador,<br />

somente uma mente que se confunda com a própria neve<br />

pode dar conta do episódio em sua, digamos, essência. Segue<br />

disso, aliás, o título The Snow Man, alusão ao estado exigido<br />

para a apreensão da imagem em si.<br />

Isso que pode ser entendido como um paradoxo fundamental<br />

– confundir-se com o que é observado para melhor percebê-lo<br />

– constitui o centro de articulação do poema. Em oposição<br />

aos já mencionados adjetivos presentes nas estrofes<br />

iniciais, The Snow Man segue em direção a uma sorte de economia<br />

da linguagem. Em outras palavras, se aquele que adjeti-<br />

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va a cena não alcança uma precisão descritiva, associando-a<br />

sempre à negatividade, à “miséria ao som do vento” (misery in<br />

the sound of the wind), aqueles que ambicionam a verdade devem,<br />

por sua vez, deixar a cena falar por si, reduzir suas escolhas<br />

lexicais a um grupo meramente constatativo. Ora, as contradições<br />

aqui são, vale lembrar, absolutamente propositais; as<br />

impossibilidades afirmam-se a todo momento e, ainda assim, a<br />

“mente de inverno” insiste em se insinuar. O “homem de neve”<br />

deve falar ocultando-se, precisa anunciar retirando-se; deve,<br />

enfim, se possível, pensar pouco: “and not to think / Of any<br />

misery in the sound of the wind”. Não é casualmente que esse<br />

sujeito é referido no poema através do impessoal “one” – “One<br />

must have a mind of winter”. “One”: qualquer um, ninguém em<br />

particular.<br />

De qualquer forma, os versos finais de The Snow Man<br />

nos levam a um ponto limite, instante em que revelam o que<br />

essa “mente de inverno” captaria, então, se sua existência fosse<br />

possível. A situação que temos até aqui é a seguinte: de um<br />

lado, a descrição do cenário é feita de modo avaliativo, pois<br />

registrar significa, necessariamente, impor uma significação; de<br />

outro, a sugestão de uma improvável mind of winter que, após<br />

neutralizar-se, conquistaria o cenário, integrando-se a ele, logicamente.<br />

A questão, entretanto, parece inevitável: o que detectaria<br />

a “mente de inverno” em seu estado de pura conexão? O<br />

que lhe aconteceria? Como já suspeitávamos, equivaler espectador<br />

e cenário significa, ao mesmo tempo, sacrificar o primeiro<br />

para preservar intocadamente o segundo. Finalmente, o ouvinte<br />

que “escuta na neve” (listens in the snow), sendo nada ele<br />

mesmo (nothing himself), contempla “nada que não está lá”<br />

(nothing that is not there); logo, contempla somente o que está<br />

– percebe o “nada” que lá está (the nothing that is). Colocado<br />

de outra forma, o snow man não admira nada que não esteja lá;<br />

admira sim – e exclusivamente – o “nada” que lá está. O verbo<br />

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ehold é, aliás, bastante sugestivo para esse ponto de total percepção,<br />

tendo em vista a precisão por ele próprio sugerida.<br />

A rigor, a hipótese defendida nas linhas finais de The<br />

Snow Man vem acompanhada de uma notável autoreferencialidade,<br />

isto é, se a abertura do poema adjetiva-se para<br />

mostrar a dificuldade de uma correspondência plena entre percepção<br />

e imagem, os versos finais visam aproximar-se formalmente<br />

de uma expressão ideal do “nada”, para assim sustentar<br />

a perspectiva do “homem de neve”. Opondo-se aos efeitos visuais<br />

da abertura, as três estrofes finais do poema são marcadas<br />

por uma circularidade entediante, acentuada principalmente<br />

pela repetição dos itens lexicais. Palavras como sound, wind e<br />

nothing são reiteradas exaustivamente com o intuito de indicar<br />

o vazio constitucional do cenário perante o espectador perfeito.<br />

Com efeito, se a linguagem da natureza deve sobressair-se à<br />

presença do espectador, ou melhor, se a paisagem precisa conquistar<br />

sua independência, os versos requerem um discurso que<br />

é “pura natureza” e, portanto, as palavras necessitam permanecer<br />

no limite do inumano. Para tanto, a sonoridade ganha<br />

espaço, o barulho do vento faz-se ouvir: “Of any misery in the<br />

sound of the wind, / In the sound of a few leaves, Which is the<br />

sound of the land / That is blowing in the same bare place”.<br />

Tudo que transcende o vácuo deixado pelo vento corrompe o<br />

“nada” que ali está realmente manifesto.<br />

O ponto capital para o presente ensaio continua a ser,<br />

todavia, a consumação do encontro entre sujeito e realidade. Se<br />

em Blanchot o vidro quebrado compõe o quadro de destituição<br />

da identidade fechada, em Wallace Stevens, como visto, o processo<br />

não se dá de modo muito diferente, fato que pode ser<br />

deduzido a partir da dualidade da expressão nothing himself. A<br />

princípio, o penúltimo verso de The Snow Man poderia ser traduzido<br />

como “Sendo nada ele mesmo, contempla”, sinalizando-se<br />

dessa forma a rejeição de qualquer traço identitário. No<br />

entanto, essa tradução afasta-se de uma segunda interpretação<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 39<br />

viável, não menos relevante para a compreensão do modo como<br />

o snow man se porta frente ao cenário. Paralelamente ao<br />

“nada ele mesmo”, pode-se ler o nothing de nothing himself<br />

como um verbo, muito embora tal apreensão esteja gramaticalmente<br />

equivocada. Ao invés de um sujeito que não é nada<br />

teríamos, então, um sujeito que, na verdade, “esvazia-se” ao<br />

defrontar-se com a ari<strong>dez</strong> do real. Nothing himself – “esvaziando-se”,<br />

pois. Em poucas palavras, privilegia-se, nesse caso, a<br />

simultaneidade dos eventos; ver e perder-se são agora forças<br />

análogas.<br />

***<br />

No livro intitulado L’Intrus, Jean-Luc Nancy aborda a<br />

questão do transplante de órgãos como intrusão indelével na<br />

própria identidade do paciente. Partindo de sua experiência<br />

pessoal – transplante de coração –, o autor equipara o recebimento<br />

de um órgão “estrangeiro” à perda dos sinais que até<br />

então orientavam a vida subjetiva do sujeito. Ora, se o órgão<br />

vem de outra pessoa, pode-se facilmente pressupor toda uma<br />

articulação externa ao corpo do paciente, que dele independe e<br />

é, ao mesmo tempo, responsável pela manutenção de sua vida.<br />

Nesse sentido, dada a alienação inevitável perante essas transferências<br />

exteriores, como sustentar a idéia de um sujeito individualizado?<br />

Como acreditar na completude de um programa<br />

fisiológico que, curiosamente, depende de algo que lhe é totalmente<br />

alheio para se conservar? Esses são alguns dos pontos<br />

levantado por Nancy no livro:<br />

Dès le moment où l’on me dit qu’il fallait me<br />

greffer, tous les signes pouvaient vaciller. (...)<br />

Simplement, la sensation physique d’un vide déjà<br />

ouvert dans la poitrine, avec une sorte d’apnée où<br />

rien, strictement rien, aujourd’hui encore, ne<br />

pourrait démêler pour moi l’organique, le<br />

symbolique, l’imaginaire.<br />

(NANCY, 2000: 14–15)<br />

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Acrescenta-se a isso a angústia sentida diante de uma<br />

vida que, a rigor, teve seu decurso “natural” severamente interrompido.<br />

Como podemos inferir, sem o transplante de coração<br />

o corpo seguiria tranquilamente seu rumo em direção ao fim<br />

programado; contudo, essa suspensão imposta pela cirurgia cria<br />

um descompasso entre a idade do corpo e aquela do coração<br />

recebido, alterando significativamente, é claro, a duração da<br />

vida do paciente. Essa sobrevida estrangeira, fruto de uma intrusão,<br />

dificulta a crença de que o corpo que sofre o transplante<br />

realmente me pertence. Afinal de contas, como coloca Nancy,<br />

se meu coração me abandona, se ele sai do meu corpo para<br />

somente assim restituir a vida que se encontra ameaçada, até<br />

que ponto devo referir-me a ele como “meu” órgão? Após o<br />

transplante, aquilo que bate dentro de mim opera como um tipo<br />

de mecanismo estrangeiro, transformando-me em uma espécie<br />

de alien para mim mesmo. “C’est donc ainsi moi-même qui<br />

deviens mon intrus, de toutes ces manières accumulées et<br />

opposées” (NANCY, 2000: 36).<br />

Segundo Jean-Luc Nancy, finalmente, a força da intrusão<br />

está no fato de que, na realidade, ela não pára de ocorrer, e<br />

é por isso que nos impede de pensar em termos dicotômicos.<br />

Sendo invadido continuamente por algo que me é externo, sou<br />

também essa invasão, também aquilo que, a princípio, ainda<br />

não me pertence, que nunca dominarei por inteiro. O transito é<br />

infindável, e minha identidade sempre por vir. Sou estrangeiro<br />

porque sou a invasão que em mim se faz. Ou seja, a morte que<br />

era iminente não se apaga inteiramente após a cirurgia; pelo<br />

contrário, “différer la mort, c’est aussi l’exhiber, la souligner”<br />

(NANCY, 2000: 24). O coração transplantado é registro de<br />

uma vida excedente, muito embora solidária a um corpo que<br />

ainda está ali e lhe é anterior. “Il y a l’intrus em moi, et je<br />

deviens étranger à moi-même” (NANCY, 2000 : 36). Há em<br />

mim uma vida que, acima de tudo, aponta para uma morte que<br />

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não ocorreu; há em mim uma morte que, por sua vez, remete a<br />

uma sobrevida originária de outro lugar.<br />

A mind of winter de Wallace Stevens em The Snow<br />

Man não é senão essa intrusão que confunde os limites entre o<br />

que é interno e externo. Essa mente, que sugere a substituição<br />

gradativa da consciência adjetivante, suspende totalmente a<br />

identidade antes fechada do espectador. Como visto, esse movimento<br />

é percebido no poema através de sua progressiva circularidade,<br />

pois o encontro entre cenário e sujeito só pode ser<br />

representado pela própria isenção da linguagem. A mente<br />

“transplantada” perde seu desejo de atribuir significado, e seu<br />

estrangeirismo é notado pelo modo como o observador se ausenta<br />

para deixar o cenário falar por si. Com efeito, a imagem<br />

já não se diferencia mais daquele que a percebe, e o que ocorre<br />

é sim um processo de equivalência absoluta – dessa equivalência<br />

resta apenas o som repetitivo do vento. Em poucas palavras,<br />

o poema de Stevens parece nos dizer que, em suma, o real só<br />

pode ser captado através de uma experiência alienante. Tal<br />

como em Nancy, o sujeito se perde perante as trocas que o<br />

transcendem.<br />

Para finalizar, vale citar um poema que, publicado um<br />

ano antes da morte de Wallace Stevens, mostra um pouco mais<br />

do tipo de alienação vivida pelo “homem de neve”. Em A Clear<br />

Day and No Memories, o poeta escreve versos que se apóiam<br />

inteiramente na própria negação daquilo que apresentam, como<br />

se a voz que nos fala procurasse fugir completamente de toda e<br />

qualquer forma de memória autoconsciente. Novamente, interno<br />

e externo se confundem em decorrência de uma mente que<br />

se afasta de possíveis relações associativas. Não pertencendo a<br />

nada e também não sentindo nada, a consciência deixa de existir,<br />

dando lugar a uma percepção exata dessa idéia de ausência<br />

absoluta. Tal como em The Snow Man, a mente retira-se para<br />

se unir à imagem do vazio. Nada se conhece, exceto o nada.<br />

Nunca estivemos aqui antes, e nem agora estamos:<br />

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Referências Bibliográficas:<br />

No soldiers in the scenery,<br />

No thoughts of people now dead,<br />

As they were fifty years ago,<br />

Young and living in a live air,<br />

Young and walking in the sunshine,<br />

Bending in blue dresses to touch something,<br />

Today the mind is not part of the weather.<br />

Today the air is clear of everything.<br />

It has no knowledge except of nothingness<br />

And it flows over us without meanings,<br />

As if none of us had ever been here before<br />

And are not now: in this shallow spectacle,<br />

This invisible activity, this sense.<br />

BLANCHOT, Maurice. L’Ecriture du Désastre. Paris :<br />

Éditions Gallimard, 1980.<br />

NANCY, Jean-Luc. L’Intrus. Paris: Éditions Galilée, 2000.<br />

POUND, Ezra. “A Retrospect”, em John Cook (ed.). Poetry in<br />

Theory – an anthology. Oxford: Blackwell Publishing Ltd,<br />

2004.<br />

STEVENS, Wallace. Poemas / Wallace Stevens (Tradução e<br />

introdução de Paulo Heriques Britto). São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1987.<br />

STEVENS, Wallace. “The Noble Rider and the Sound of<br />

Words”, em Lawrence Rainey (ed.). Modernism – an anthology.<br />

Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2005.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 43<br />

UM RELATO DE TRABALHO COM<br />

LEITURA/REDAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA<br />

NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS<br />

(EJA)<br />

Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca<br />

UERJ<br />

RESUMO:<br />

O presente artigo é o relato de um o trabalho com leitura / redação desenvolvido<br />

com alunos do Centro Supletivo de Ensino Fundamental e Ensino<br />

Médio (InvestUERJ). Tive como objetivo a superação de três obstáculos:<br />

dificuldade dos alunos em leitura e redação, trabalho artificial com o texto,<br />

e escassez do tempo. Para tanto, desenvolvi um curso que articulasse o<br />

“circuito do livro” com a avaliação pautada no portfólio. O “circuito do<br />

livro” caracteriza-se pela livre circulação dos livros entre os alunos. O portfólio<br />

possibilita uma avaliação individual e paulatina. Os estudantes registram<br />

as experiências com os livros. Em sala, esses relatos são trocados, o<br />

que intensifica a interação entre os sujeitos da aula.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Circuito do livro, portfólio, diálogo, trajetória de leitura.<br />

Introdução<br />

Em uma época em que o livro compete de forma desigual<br />

com outras fontes de informação e entretenimento, muito<br />

se discute sobre possíveis “estratégias” de aproximar o estudante<br />

do mundo da leitura e da escrita.<br />

Como bolsista de Iniciação à Docência, sob o auxílio<br />

dos meus coordenadores, estou tendo a chance de refletir e de<br />

pôr em prática idéias de incentivo à leitura e à produção textual.<br />

Desde março de 2006, dou aulas de Redação para turmas<br />

de EJA no Centro Supletivo de Ensino Fundamental e Ensino<br />

Médio (InvestUERJ), que é desenvolvido pela Superinten-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 44


dência de Recursos Humanos, através do Departamento de Seleção<br />

e Desenvolvimento de Pessoal, na Universidade do Estado<br />

do Rio de Janeiro.<br />

Do InvestUERJ participam docentes, que orientam e<br />

supervisionam os bolsistas na preparação das aulas; graduandos,<br />

que têm a chance de obter experiência regendo turmas de<br />

ensino fundamental e médio; e servidores, que são liberados do<br />

trabalho por três horas, de segunda a sexta, para freqüentarem<br />

as aulas.<br />

Nas páginas seguintes, pretendo explanar o trabalho<br />

com leitura e produção de texto desenvolvido por todo um período<br />

letivo, de 25 de outubro de 2006 a 08 de fevereiro de<br />

20<strong>07</strong>, com <strong>dez</strong>enove alunos do ensino médio, distribuídos em<br />

quatro fases (Fase A: 10; Fase B: 5; Fase C: 1 e Fase D: 3),<br />

tendo como principal objetivo a superação de três obstáculos:<br />

dificuldade dos alunos em leitura e redação, que, obviamente,<br />

não é exclusivo ao InvestUERJ; trabalho artificial com o texto,<br />

ainda muito presente na tradição escolar; e escassez do tempo,<br />

visto que à disciplina Redação é reservado apenas um tempo<br />

semanal de quarenta e cinco minutos.<br />

O desenvolvimento do artigo dá-se em dois momentos.<br />

No primeiro, detalho o planejamento, estabelecendo relações<br />

com os textos que me serviram de base. No segundo, relato as<br />

experiências de sala de aula. Por fim, há a conclusão, cujo título<br />

é auto-explicativo: Primeiros resultados e últimas considerações.<br />

Do planejamento<br />

Com base nos trabalhos de Fonseca e Geraldi (2004),<br />

Moulin (2001) e Villas Boas (2005), decidi organizar um curso<br />

articulando o “circuito do livro” com a avaliação pautada no<br />

portfólio.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 45<br />

Fonseca e Geraldi (2004), desde 1981, desenvolvem um<br />

projeto de leitura em parceira com 31 professores de quarta a<br />

oitava série do ensino fundamental, que atuam em 18 escolas<br />

da rede pública, em Aracaju. Os 3729 alunos assistidos têm a<br />

oportunidade de escolher, dentre os livros de narrativas longas<br />

(romances, novelas, peças teatrais) adquiridos ou retirados da<br />

biblioteca da escola, os títulos de sua preferência. A leitura não<br />

se limita ao tempo de aula, dado que os alunos podem levar a<br />

obra para casa. Adota-se o sistema de rodízio: para cada empréstimo,<br />

o professor faz um registro no caderno de controle.<br />

Sem muita burocracia, o livro circula com muita facilidade<br />

entre os alunos, formando um “circuito”.<br />

Trabalhando com números bem mais modestos, levei o<br />

“circuito do livro” para as minhas aulas de Redação, no InvestUERJ.<br />

Na verdade – diferentemente do objetivo de Fonseca e<br />

Geraldi (2004), que consistia em destinar, para as leituras de<br />

narrativas, um quinto das horas-aula (uma aula por semana) – o<br />

“circuito do livro” ocupou todo o tempo de que dispunha para<br />

o trabalho em sala de aula (um tempo semanal de 45 minutos),<br />

sendo, portanto, o centro, a base do curso.<br />

Não recorri a bibliotecas públicas para montar o acervo.<br />

Optei pela compra e pela doação. No total, reuni 41 títulos, dos<br />

quais 14 foram doados, espontaneamente, pelos estudantes.<br />

Para escolher as 27 obras restantes, baseei-me em conversas<br />

informais que travei com meus alunos no semestre anterior.<br />

Tive a preocupação de fazer uma lista bem diversificada, abarcando<br />

vários gêneros (poesia, crônica, conto, romance, ensaios,<br />

livro de auto-ajuda, peça teatral). Pensei da seguinte forma: se<br />

a obra for do interesse do aluno, se fizer parte da sua trajetória<br />

de leitor, não há “pecado”, não há “crime” em trazê-la para sala<br />

de aula. Um outro cuidado foi não dividir as leituras por séries<br />

(obra “A” para a primeira fase; obra “B” para a segunda etc.),<br />

visto que considero essa classificação de “adequado” e “inadequado”,<br />

no mínimo, dúbia e, quase sempre, injusta.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 46


No momento do planejamento, dividi o curso em três<br />

etapas. O objetivo da primeira é discutir a importância do ato<br />

de ler, considerando o “mapa de leitura” já traçado pelos alunos<br />

dentro ou fora da escola, e trabalhando composições de<br />

diversos gêneros (poesia, letra de música, conto, crônica, documentário).<br />

Trata-se da introdução do projeto.<br />

A etapa seguinte é a mais importante. Através de sinopses,<br />

críticas, adaptações, relatos informais, os livros selecionados<br />

são apresentados às turmas, para que o aluno possa escolher<br />

os de sua preferência. Nesse segundo momento, as<br />

“regras” são detalhadas: não há tempo máximo para a leitura,<br />

respeitando-se a caminhada do leitor; caso o livro não agrade, é<br />

possível interromper a leitura e partir para outro; o único controle<br />

é uma lista, atualizada semanalmente e exposta no mural,<br />

com os nomes dos alunos e dos textos que estão lendo.<br />

A aula, nessa perspectiva, passa a ser um espaço tanto<br />

para a troca de opiniões, impressões sobre os livros, quanto<br />

para o trabalho específico com determinado texto – momento<br />

de se explanar o conteúdo programático da ementa (centrado<br />

nos três modos textuais básicos: narração e descrição para as<br />

fases A e B, e dissertação para as fases C e D).<br />

Ressalto apenas que o destaque é para os relatos de leitura,<br />

para o circuito. As aulas expositivas são conseqüência do<br />

diálogo, da troca de experiências entre os alunos. Essa constante<br />

discussão em sala de aula, por seu turno, leva à produção<br />

textual, que é ponto de partida para análises lingüísticas. Enfatizo,<br />

assim, a idéia da leitura ser o centro, a base do curso, o<br />

elemento que desencadeia todo o trabalho com o texto.<br />

A última etapa é a apresentação de algum trabalho produzido<br />

pelos alunos no decorrer do curso. Pode ser uma encenação,<br />

um sarau, um círculo de leitura – a decisão cabe a eles.<br />

Como a leitura é essencialmente interdisciplinar, outros professores<br />

podem participar do evento de culminância.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 47<br />

O trabalho planejado, portanto, baseia-se em três partes<br />

indissociáveis: leitura, produção de texto e análise lingüística.<br />

Acredito que tenha ficado bem claro o caráter dialógico<br />

do trabalho planejado. Isso porque<br />

É próprio da linguagem seu caráter interlocutivo.<br />

A língua, como se sabe, é o meio privilegiado de<br />

interação entre os homens. Em todas as circunstâncias<br />

em que se fala ou se escreve há um interlocutor.<br />

(BRITTO, 2004: 118)<br />

O interlocutor, por sua vez, interfere diretamente na<br />

construção do texto. O autor, ao fazer escolhas, tomar decisões,<br />

baseia-se na imagem que tem do seu ouvinte/leitor. Na escola,<br />

no entanto, a forte presença do interlocutor torna-se um obstáculo<br />

à produção de texto, visto que, quase sempre, escreve-se<br />

para um leitor exclusivo: o professor, que com a caneta vermelha<br />

em punho, não deixa passar um erro sequer. Tal onipresença<br />

do interlocutor acaba por artificializar o ato comunicativo<br />

intencionado pela escola (Cf. BRITTO, 2004).<br />

Na proposta de produção de texto planejada, o leitor<br />

não é apenas o professor, dado que tanto os relatos orais, quanto<br />

os registros por escrito das experiências de leitura são compartilhados<br />

por todos da turma, sendo um fomentador do diálogo.<br />

Na interação, o texto, antes visto como “acabado”, é<br />

reformulado, revisado, repensado, tornando-se, de certa forma,<br />

uma produção coletiva.<br />

Após decidir pelo trabalho com o “circuito”, selecionar<br />

os livros, dividir o curso em três etapas, indaguei-me: como<br />

avaliar? A resposta partiu da pedagoga Márcia Taborda, excoordenadora<br />

do InvestUERJ, que, após ler a primeira versão<br />

do Plano de Curso, sugeriu-me o uso do portfólio, processo de<br />

avaliação continuada, o qual:<br />

consiste na sua essência de uma pasta individual,<br />

onde são colecionados os trabalhos realizados pelos<br />

alunos, no decorrer dos seus estudos de uma<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 48


disciplina, de um curso, ou mesmo durante alguns<br />

anos, como ao longo de um ciclo de estudos.<br />

(MOULIN, 2001: 01)<br />

Moulin (2001), além de enfatizar a adequação do portfólio<br />

aos propósitos do Ensino a Distância (EAD), cujas características<br />

são a aprendizagem independente e a auto-avaliação,<br />

relata o uso do portfólio na disciplina “Avaliação e Educação a<br />

Distância”, do curso de especialização em avaliação educacional,<br />

promovido pela UERJ e UFRJ. Os alunos, após a leitura de<br />

um texto, discutiram e definiram um roteiro para a elaboração<br />

da coletânea de documentos. Destaca-se, pois, o caráter participativo<br />

do processo.<br />

Dos pontos positivos, Moulin (2001) ressalta a possibilidade<br />

de se traçar, a partir do registro diário que o aluno faz na<br />

pasta, o seu perfil, que será o principal instrumento para o professor<br />

refletir, em parceria com os discentes, sobre o ritmo do<br />

aprendizado, o andamento do curso, as maiores dificuldades e<br />

inseguranças, os temas mais interessantes para as próximas<br />

aulas, etc. Adotar o portfólio significa, então, trazer o aluno<br />

para o centro do processo avaliativo.<br />

Outro trabalho no qual me baseei foi o de Villas Boas<br />

(2005). A professora apresenta os resultados de uma pesquisa<br />

realizada durante o ano de 2003, no Curso de Pedagogia para<br />

professores em exercício no início da escolarização (PIE), da<br />

Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).<br />

Participaram do projeto 2000 professores diplomados no Curso<br />

de Magistério em nível médio, que vivenciaram a experiência –<br />

vista, no início, com certa insegurança – de construírem seus<br />

portfólios. O resultado foi muito positivo: o portfólio passou a<br />

ser o eixo organizador de todo o trabalho.<br />

Moulin (2001) e Villas Boas (2005): duas professoras,<br />

duas experiências bem distintas com o portfólio. Pensei em<br />

contribuir também: optei pela adoção da avaliação continuada<br />

na Educação de Jovens e Adultos, um público muito diferente<br />

dos assistidos pelos dois trabalhos supracitados.<br />

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A questão passou a ser: como articular portfólio ao<br />

“circuito do livro”? Não foi difícil achar respostas. Como a<br />

construção da trajetória de leitura é paulatina, constante e individual,<br />

a avaliação deve seguir o mesmo ritmo e ser igualmente<br />

particular. Surgiu, então, a idéia da pasta Diário de Leitura: um<br />

espaço para o estudante registrar explicações dadas pelo professor;<br />

o grau de interesse pelo assunto estudado; dúvidas, desejos<br />

e sugestões; impressões sobre o livro; trechos que lhe<br />

chamaram a atenção nos livros; textos de sua própria autoria;<br />

opiniões sobre o andamento do curso e sobre a forma de trabalhar<br />

do professor etc.<br />

Um ponto muito importante: não tira maior nota o aluno<br />

que ler mais livros. Não se trata de uma avaliação quantitativa,<br />

o que está em jogo não é o número, mas sim a qualidade, a<br />

profundidade da leitura. Mas como avaliar a qualidade, a profundidade<br />

da leitura? Através da troca de experiência em sala<br />

de aula e do registro no diário, deixando-se de lado questionários<br />

padronizados que, dentre tantos equívocos, ignoram que a<br />

leitura é tanto mais multifacetada quanto mais numerosos e<br />

diferentes os leitores.<br />

Se há o Diário de Leitura, nada mais justo em existir um<br />

diário do professor, nomeado Relatos de Aula, para o registro<br />

de minhas autocríticas, interpretações das respostas dos alunos<br />

dadas às aulas, receios quanto ao planejamento das aulas, ao<br />

andamento do curso etc.<br />

Vários pontos de vista sobre a mesma realidade: a aula.<br />

Os alunos, com toda a diferença de opiniões, crenças, expectativas,<br />

redigem o diário. O professor, que exerce um outro papel<br />

social na escola, escreve seus relatos. Inevitável é a troca: educandos<br />

e educador compartilham experiências. Com dia marcado,<br />

os diários e os relatos viram o assunto da aula.<br />

O curso, portanto, como ficou evidente, é uma articulação<br />

– e não justaposição – do “circuito do livro” com o portfólio.<br />

Não é nem um, nem outro; são os dois, interpenetrados.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 50


Acredito também estar contribuindo ao reuni-los em um curso<br />

cujo público-alvo difere-se das crianças e adolescentes do ensino<br />

fundamental, do trabalho de Fonseca e Geraldi (2004), e dos<br />

professores-aluno, com nível médio ou superior, da pesquisa de<br />

Moulin (2001) e de Villas Boas (2005).<br />

É da natureza do planejamento certa idealização (o que,<br />

no entanto, não tira sua importância). Por isso, no tópico a seguir,<br />

vamos sair da teoria e entrar na prática; ver o quanto o<br />

planejamento se modificou quando confrontado com o dia-adia<br />

da sala de aula; saber se os objetivos lançados na introdução<br />

foram atingidos.<br />

Do trabalho em sala de aula<br />

As maiores alterações no planejamento foram conseqüências<br />

da escassez de tempo e não da falta de interesse dos<br />

alunos, que aceitaram, sem restrições, o desafio de estudar a<br />

disciplina Redação de uma forma que lhes era totalmente desconhecida.<br />

A primeira etapa do projeto, que consistia na discussão<br />

da importância do ato de ler, foi muito reduzida. Dos gêneros<br />

previstos no planejamento (poesia, letra de música, crônica,<br />

reportagem, conto e documentário), analisamos apenas dois:<br />

assistimos a um documentário e lemos uma reportagem sobre a<br />

trajetória de Evando dos Santos (fundador da biblioteca comunitária<br />

Tobias Barreto, no Rio de Janeiro), que, gentilmente,<br />

aceitou meu convite para visitar o InvestUERJ e compartilhar<br />

com os alunos sua paixão pelos livro.<br />

A apresentação dos livros (a segunda etapa) deu-se da<br />

seguinte forma: espalhei as obras na mesa e solicitei aos estudantes<br />

que escolhessem o título que mais lhes interessassem.<br />

Logo em seguida, discutimos os possíveis motivos de escolher<br />

um livro e não outro. Muitos confessaram que a quantidade de<br />

páginas foi o primeiro critério; outros disseram que o título e o<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 51<br />

desenho da capa tiveram maior importância. Uma aluna, ao<br />

explicar os motivos da opção por determinado livro, fez um<br />

relato, emocionada, sobre a perda – creio que recente – de pessoas<br />

próximas e sobre outros problemas familiares que estava<br />

enfrentando no momento.<br />

Outras conversas pouco freqüentes nas escolas (mas<br />

nem por isso irrelevantes) foram motivadas pela leitura, pelos<br />

livros. Um outro livro despertou uma discussão sobre adultério,<br />

o que não estava previsto no plano de aula. Na medida do possível,<br />

tentei mediar o debate.<br />

Se por um lado, essa “fuga” do planejamento é um ponto<br />

positivo, já que se trata de uma contribuição do aluno para a<br />

aula; por outro, pode ser motivo de crítica. Um estudante, no<br />

nosso terceiro encontro, perguntou-me quando iriam começar<br />

as aulas de Redação.<br />

A terceira etapa do curso, que consistia na promoção de<br />

um evento de culminância interdisciplinar, não foi posta em<br />

prática. Com o tempo era reduzido, priorizei o relato de experiências<br />

e o estudo do conteúdo da ementa. Mais uma alteração,<br />

portanto, no planejamento.<br />

Quanto à minha experiência com os Relatos de Aula,<br />

confesso que, no início, achei tudo muito superficial, forçado,<br />

piegas até; mas, com o desenrolar do projeto, percebi o quanto<br />

são importantes minhas anotações auto-avaliativas sobre as<br />

aulas, dado que, mesmo após o término do curso, tenho informações<br />

precisas para redigir o presente artigo.<br />

A seguir, para dar uma dimensão maior do curso e exemplificar<br />

a dinâmica das aulas, transcrevo e comento trechos<br />

retirados dos diários dos alunos.<br />

Os autores dos diários permitiram a transcrição dos textos,<br />

que não foram alterados em momento algum. A identificação<br />

será feita pelas inicias dos dois primeiros nomes. Além<br />

disso, informarei a qual das quatro fases do ensino médio o<br />

estudante pertence.<br />

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As primeiras anotações no diário confirmam a hipótese<br />

de que grande parte dos discentes tem pouco ou nenhum contato<br />

com os livros, preferindo os meios de comunicação em massa,<br />

como a televisão:<br />

De um modo geral, eu não lia com freqüência.<br />

Hoje tenho lido nos ônibus, no trajeto de casa para<br />

o serviço ou escola pois tenho alguns trabalhos<br />

em casa e de um modo geral eu prefiro televisão e<br />

rádio.<br />

(V.S., Fase D)<br />

Não costumo ler com freqüência porque minha<br />

mente não se desenvolve com leitura e sim através<br />

de explicações. Tenho facilidade de entender<br />

através de rádio, televisão, fitas de vídeo, figuras<br />

ou manifestações.<br />

(A.N., Fase A)<br />

Outros motivos apontados pelos estudantes para o distanciamento<br />

da leitura estão relacionados a possíveis problemas<br />

de saúde ou ainda à falta de referência na família:<br />

Espero que no futuro venha a gostar de ler intensamente<br />

porque no momento minha vista não ajuda<br />

minha saúde não ajuda.<br />

(W.S., Fase A)<br />

Gostaria de poder ler mais, só que o sistema nervoso<br />

não ajuda, mas eu faço na medida do possível.<br />

(A.N., Fase A)<br />

A leitura, acho eu, que vai muito das oportunidades<br />

e da criação, pois na juventude eu lia gibi de<br />

super-heróis, brasileiro, mas não tive oportunidade<br />

de ler grandes livros ou até livros instrutivos.<br />

Meus pais não tinham costumes com a leitura<br />

nem jornais quando liam jornais era só a parte<br />

criminal. Por isso, eu espero muito deste curso<br />

para soltar a minha escrita e me acostumar com a<br />

leitura “sadia”.<br />

(V.S., Fase D)<br />

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Quando comentava o planejamento, insisti nas expressões<br />

“trajetória do leitor” e “mapa de leitura”, diretamente ligadas<br />

às escolhas feitas pelos alunos-leitores. Como exemplo<br />

de trajetória, veremos os registros da aluna V.L., da Fase B:<br />

Hoje apanhei o livro “Venha ver o pôr-do-sol”<br />

são vários contos mas eu só consegui ler o primeiro.<br />

Falei com o professor se eu poderia ler um<br />

livro que não era da coleção que estamos lendo, e<br />

ele respondeu que sim aproveitei o feriadão e estou<br />

lendo “O Imperador da Ursa Maior”.<br />

A aluna V.L. foi a primeira a perguntar se era permitido<br />

trazer outros livros para o curso, o que fez com insistência e<br />

com algum remorso.<br />

V.L., depois de ler o primeiro livro, fez novas tentativas:<br />

Eu peguei o livro “Memórias de um sargento de<br />

milícias”, comecei a ler mas não consegui dar<br />

prosseguimento a minha leitura pois me dava sono<br />

fiquei cansada e parei de ler. O clássico da literatura<br />

não é um livro ruim eu é que não tenho o<br />

hábito de ler, do mesmo clássico comecei a ler “A<br />

escrava Isaura” sem sucesso pois não continuei a<br />

ler.<br />

Eu estou lendo “Dom Casmurro” mais parei na<br />

página 27 pois não consegui ler mais, eu espero<br />

voltar a lê-lo pois a história é interessante eu é<br />

que sou um pouco preguiçosa, e só deixo de ganhar<br />

só perco deixando de ler bons livros.<br />

Nesses relatos, fica evidente a dificuldade da aluna em<br />

ler as “melhores” obras, os “clássicos”. Mesmo insistindo, não<br />

conseguia chegar ao final. Nos momentos de interação em sala<br />

de aula, eu dizia-lhe que deveria ler o que mais lhe interessasse,<br />

por mais que precisasse iniciar, sem terminar, várias leituras.<br />

Influenciada por Evando dos Santos, V.L., menos presa<br />

à obrigação de ler determinados títulos, obteve êxito:<br />

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Hoje eu apanhei o livro “O triste fim de Policarpo<br />

Quaresma” e que foi citado no encontro com Evando,<br />

o pedreiro, apanhei também o livro de poemas<br />

“Arca de Noé”, que são poemas infantis de<br />

Vinícius de Moraes.<br />

Eu gostei muito de ler os poemas sei que tenho<br />

que ler outros livros mais no momento estou querendo<br />

ler poesia pois não estou conseguindo ir até<br />

o final das histórias que leio.<br />

Consegui terminar de ler o livro de Policarpo<br />

Quaresma foi até o fim. Estamos no mês de fevereiro<br />

e eu estou lendo o livro “O Fantástico mistério<br />

de Feiurinha”, sei que é história de crianças<br />

mais eu estou gostando de ler e estou chegando<br />

ao final.<br />

Cheguei ao final de feiurinha, história de Pedro<br />

Bandeira.<br />

A trajetória de V.L é um ótimo exemplo para validar a<br />

idéia de que quanto mais a escola exige, limita, mais difícil é o<br />

cumprimento da tarefa pelo aluno. Em muitos programas de<br />

Língua Portuguesa/ Redação/ Literatura, o professor limita a<br />

leitura de todo o ano letivo a pouquíssimos títulos, excluindo<br />

do discente a possibilidade de escolher. A conseqüência, quase<br />

sempre, é o afastamento do aluno da leitura, que passa a ser<br />

uma obrigação, uma tarefa indispensável para não tirar uma<br />

nota baixa.<br />

No relato de V.L., o peso da tradição escolar fica evidente.<br />

No último registro do diário, não obstante minha conduta<br />

de não impor leituras, o que se destaca é o remorso:<br />

Professor me desculpe pois eu não consegui ler os<br />

livros que o senhor com maior boa vontade nos<br />

cedeu, mais agora tenho a certeza que poderei ler<br />

com mais atenção e prazer um bom livro.<br />

A aluna, após fracassos e êxitos em leituras que ela<br />

própria escolheu, sem minha interferência direta, parece – ba-<br />

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seando-me em suas palavras – ter aprovado o trabalho com o<br />

“circuito do livro” associado ao portfólio.<br />

Um outro aspecto muito positivo do registro diário foi a<br />

aproximação do trabalho feito no InvestUERJ com o cotidiano<br />

do estudante, com a sua vida fora da escola, o que contribuiu<br />

para dar mais sentido ao nosso trabalho:<br />

Eu neste fim de semana não pude ler o livro porque<br />

teve muita gente em casa no sábado e domingo<br />

até a noite porque foi o aniversário da minha<br />

filha então não pude ler, mais vou começar tudo<br />

de novo ler no final de semana.<br />

(M.A., Fase C)<br />

Houve também espaço para reflexões sobre fatos da atualidade<br />

que muito incomodaram os estudantes, como os sucessivos<br />

ataques violentos no final do ano passado, no Rio de<br />

Janeiro:<br />

Estou muito triste com o que aconteceu no final<br />

do ano, a tragédia que se deu aqui no Rio. Eu<br />

pensei assim com meus botões: “se todos esses<br />

baderneiros tirassem uma duas ou três horas por<br />

dia sentassem para ler eles não fariam esta coisa<br />

muito triste matando gente inocente que não tem<br />

nada a ver com o que eles fazem”.<br />

(M.A., Fase C)<br />

No entanto, nem todos os alunos compreenderam a proposta<br />

do registro diário. Um aluno apenas transcreveu, ininteligivelmente,<br />

trechos de livros:<br />

João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos,<br />

empregado de um vendeiro que enriqueceu entre<br />

as quatro paredes de uma suja e obscura taverna<br />

nos refolhos do bairro Botafogo.<br />

(J.Q., Fase B)<br />

Apesar de falhas como essa, as últimas anotações nos<br />

diários comprovaram a superação de obstáculos, apontados<br />

pelos alunos na primeira aula:<br />

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Aprendi a gostar de ler todo lugar que estou tenho<br />

um livro na mão e sempre leio tudo que está ao<br />

meu redor. Anoto todas as dicas sobre leitura para<br />

cada vez melhorar ainda mais.<br />

(W.S., Fase A)<br />

Gostaria de afirmar que, ao ler o livro “A MPB na<br />

Era do Rádio”, notei que através da leitura a mente<br />

humana se desenvolve de uma tal maneira capaz<br />

de quebrar qualquer obstáculo que impede a<br />

leitura. Confesso que, essa barreira, eu já quebrei<br />

e estou pronto para desafios. Pretendo ler mais livros!<br />

(A. N., Fase A)<br />

Tal avaliação comparativa – ao final do trabalho, resgata-se<br />

o início para se notar o progresso – é uma das principais<br />

características do portfólio.<br />

Com a intenção de revisar os objetivos lançados no planejamento<br />

e enumerados na introdução, faço uma autoavaliação<br />

de todo o trabalho desenvolvido no período letivo.<br />

Dentre os pontos positivos, destaco: incentivo à leitura<br />

e à produção de texto, constante interação entre alunos e entre<br />

aluno e professor, avaliação continuada e otimização do tempo.<br />

Dos pontos que exigem revisão, menciono: ausência de<br />

um trabalho mais profundo com o conteúdo programático,<br />

pouco uso das variadas mídias (filmes, músicas, documentários<br />

etc), ausência de uma correção intensa dos textos do diário e<br />

poucos momentos de interação entre Diários de Leitura e Relatos<br />

de Aula (não digo que não houve diálogo, apenas afirmo<br />

que os relatos escritos não tiveram o mesmo peso que os orais).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 57<br />

Primeiros resultados e últimas considerações<br />

O curso abrangeu o período de 25 de outubro de 2006 a<br />

08 de fevereiro de 20<strong>07</strong>. Para definir o número de alunos participantes,<br />

usei o critério da freqüência: entraram na pesquisa os<br />

estudantes que compareceram a, pelo menos, 50% das aulas. O<br />

número final foram 19 discentes.<br />

Ao término do curso, os alunos preencheram uma ficha,<br />

em que eram solicitados os livros lidos parcial ou integralmente.<br />

A partir desses dados, foram feitas as estatísticas detalhadas<br />

a seguir.<br />

No total, registrei 53 empréstimos. Os títulos mais procurados:<br />

O Alienista, de Machado de Assis; A importância do<br />

ato de ler, de Paulo Freire; Memórias de um sargento de milícias,<br />

de Manuel Antônio de Almeida; Meu livro de cordel, de<br />

Cora Coralina; Para gostar de ler: crônicas, de vários autores; e<br />

Proezas do João Grilo, de João Ferreira de Lima.<br />

Dentre os livros que não foram solicitados, menciono:<br />

Assassinato no campo de golfe, de Agatha Christie; Livro de<br />

ocorrências, de Rubem Fonseca; e Reinações de Narizinho, de<br />

Monteiro Lobato (o livro com o maior número de páginas e em<br />

pior estado de conservação).<br />

Esse resultado desfez um preconceito: leitores iniciantes<br />

preferem obras simples, tidas como integrantes da subliteratura.<br />

Títulos como Bianca: uma garota especial, de Dorian Kelly,<br />

e Sabrina: razão ou paixão, de Caroline Clemmons, nem de<br />

longe, figuraram entre os mais procurados.<br />

Outros números: 30% dos alunos leram dois livros,<br />

20% leram três e 15% leram quatro; o número máximo de leituras<br />

foi oito. Vale dizer que considerei tanto as leituras integrais<br />

quanto as parciais.<br />

Por fim, resta informar que a média foi de 2,78 livros<br />

por aluno, incluindo as leituras parciais, que corresponderam a<br />

40% do total.<br />

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Considero um ótimo resultado, visto que quase todos os<br />

alunos tinham uma trajetória de leitura incipiente; outros tantos<br />

ficaram, por anos, longe das salas de aula.<br />

Não podemos supervalorizar as estatísticas, como se<br />

fossem as únicas evidências do êxito do projeto. Mais importantes<br />

que os números foram os relatos, nos diários e em aula,<br />

da satisfação ao abrir um livro e lê-lo até a última página.<br />

Sem muita pretensão, deixo claro que, da mesma forma<br />

que os trabalhos já mencionados me motivaram a planejar o<br />

curso de leitura / redação concretizado no InvestUERJ, espero<br />

que esse meu relato contribua para a elaboração de outros tantos<br />

projetos, com diferentes metodologias. Isso porque vejo o<br />

professor como um sujeito ativo, que faz da sua prática não<br />

somente um espaço para a aplicação de conhecimentos já construídos,<br />

mas, antes de tudo, um espaço para a produção de novos<br />

saberes, mais próximos à sua realidade. Em síntese, compartilho<br />

da opinião de que “o professor desenvolve e produz<br />

teoria da sua própria ação” (Cf. TARDIF apud VILLAS<br />

BOAS, 2005: 294).<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BRITTO, Luiz Percival Leme. Em terra de surdos-mudos (um<br />

estudo sobre as condições de produção de textos escolares). In:<br />

João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São<br />

Paulo: Ática, 2004.<br />

FONSECA, Maria Nilma e GERALDI, João Wanderley. O<br />

circuito do livro e a escola. In: João Wanderley Geraldi (Org.).<br />

O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2004.<br />

GERALDI, João Wanderley. Prática de leitura na escola. In:<br />

João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São<br />

Paulo: Ática, 2004.<br />

MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1999.<br />

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MOULIN, Nelly. A utilização de portfólio na avaliação do<br />

ensino a distância. Trabalho apresentado no VIII Congresso de<br />

Educação a Distância da ABED. Brasília, Agosto,<br />

2001(disponível no site www.abed.org.br/congresso2001).<br />

VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. O portfólio no curso<br />

de pedagogia: ampliando o diálogo entre professor e aluno.<br />

Educ. Soc. Campinas, vol. 26, n. 90, Jan./Abr. 2005.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 60


REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA<br />

IMPRESSA: O APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍ-<br />

CIAS DE JORNAL<br />

Bruno Deusdará<br />

UERJ<br />

RESUMO:<br />

Discutimos a questão da heterogeneidade na linguagem, com enfoque para<br />

o discurso relatado como forma de apreensão da alteridade. Tais contribuições<br />

fundamentam-se na idéia de que a linguagem é polifônica por constituição<br />

(Bakhtin, 2000). Acrescentam-se discussões em torno do discurso<br />

relatado (Authier-Revuz, 1990; Maingueneau, 2001). Ressaltamos ainda a<br />

categoria de discurso narrativizado, elaborada por Sant´Anna (2002), que<br />

possibilita acesso às formas mais apagadas de atribuição de um dizer a outro.<br />

As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar os efeitos de<br />

sentido que se produzem a partir das diferentes formas de apresentar outras<br />

vozes.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Análise do discurso, enunciação, notícia de jornal, discurso relatado.<br />

1 - Considerações iniciais<br />

Neste artigo, pretendemos discutir as contribuições oferecidas<br />

pelos estudos enunciativos à temática da heterogeneidade<br />

na linguagem, com enfoque para o discurso relatado como<br />

forma de apreensão da alteridade. Tais contribuições fundamentam-se<br />

na perspectiva assumida pelos estudos enunciativos<br />

segundo a qual as práticas de linguagem assumem um caráter<br />

polifônico por constituição (Bakhtin, 2000). Nesse sentido,<br />

deve-se ressaltar que as formas da alteridade que se mostram<br />

como tais – o discurso relatado entre elas – produzem como<br />

efeito de sentido a ilusão de que a heterogeneidade lingüística<br />

se mantém restrita a essas formas, pretendendo apagar a dimensão<br />

heterogênea que a integra. Ou seja, ao apresentar a voz<br />

do outro através de certas estratégias que parecem distanciá-la<br />

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da voz do enunciador, produz-se como resultado a impressão<br />

de que a alteridade se restringe a essa ocorrência de discurso<br />

relatado.<br />

Nosso foco de análise aqui recai sobre essa dimensão<br />

“mostrada” da heterogeneidade, para fazer referência às reflexões<br />

de Authier-Revuz (1990), por meio das marcas que se<br />

imprimem nos enunciados. Para tanto, faremos inicialmente<br />

uma caracterização do gênero notícia de jornal, privilegiando<br />

alguns dos seus aspectos que melhor se relacionam com o debate<br />

concernente ao discurso relatado. Em seguida, retomaremos<br />

os elementos fundamentais das reflexões sobre discurso<br />

relatado, fazendo referência especialmente aos trabalhos de<br />

Authier-Revuz (1990) e Maingueneau (2001). Para as nossas<br />

análises, privilegiaremos a categoria de discurso narrativizado,<br />

elaborada por Sant’Anna (2004), considerando as contribuições<br />

que a delimitação da referida categoria pode oferecer à discussão<br />

relativo ao funcionamento discursivo do gênero notícia de<br />

jornal. Optamos ainda por demonstrar alguns exemplos de possibilidade<br />

de articulação do discurso narrativizado com outras<br />

formas de relato, procurando evidenciar, no plano enunciativo,<br />

a construção da objetividade em notícias de jornal não como<br />

uma característica própria a esse gênero, mas como efeito de<br />

sentido relacionado a certos procedimentos.<br />

2 - Tensão entre informar e opinar: caracterizando o gênero<br />

notícia de jornal<br />

Neste item, pretendemos oferecer ao leitor uma caracterização<br />

da notícia de jornal como gênero discursivo. Com o<br />

intuito de nos mantermos nos limites propostos para este texto,<br />

evidenciaremos alguns aspectos que definem a notícia de jornal<br />

a partir de uma perspectiva própria às teorias da enunciação,<br />

com ênfase para as diferentes formas de apropriação da voz do<br />

outro. Nesse sentido, ressaltaremos dois aspectos que nos pare-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 62


cem mais relevantes para uma posterior compreensão do funcionamento<br />

discursivo do referido gênero: (i) a suposta atividade<br />

de transmissão de informação não seria uma característica<br />

inerente aos textos midiáticos, mas sim um efeito de sentido<br />

garantido por certos mecanismos lingüístico-discursivos; (ii)<br />

em decorrência disso, a produção de sentido desses textos e da<br />

notícia, em particular, se constitui a partir da tensão entre informar<br />

e / ou opinar.<br />

Veríamos nos aspectos explicitados anteriormente possibilidades<br />

de enfoque para uma análise necessária da relação<br />

entre mídia e sociedade. A esse respeito, Sant’Anna (2004)<br />

afirma o seguinte:<br />

Aprimorar as relações entre mídia e sociedade<br />

envolve o entendimento de que compreender o<br />

que se lê articula-se no cotejo entre textos e na<br />

capacidade de produzir comentários, e de que os<br />

discursos se constroem em cenas institucionais<br />

complexas, marcadas pela assimetria, empírica e<br />

discursivamente considerada, entre os que detêm<br />

o conhecimento e a informação – os quais, portanto,<br />

escolhem o que e como passar esse conhecimento<br />

a quem não o detém. É bem verdade que<br />

a imprensa deseja diminuir ao máximo tal assimetria,<br />

pois radicalizá-la significa criar maior dificuldade<br />

na venda dos seus produtos informativos,<br />

que se diferenciam de outros da cadeia de consumo,<br />

já que a imprensa escrita tem papel relevante<br />

na (re)criação e na divulgação de valores sociais,<br />

bem como na produção de identidades. Mas, ao<br />

mesmo tempo, um jornal não é somente um produto,<br />

como também permite a venda de um público<br />

aos anunciantes. Essa forma de constituição<br />

abre a imprensa escrita a estudos das transformações<br />

socioculturais e também das relações entre<br />

produção discursiva e formas genéricas de expressá-las.<br />

(Sant’Anna, 2004: 119)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 63<br />

Não é difícil encontrarmos propagandas de jornais e revistas<br />

de grande circulação reafirmando que o periódico anunciado<br />

apresenta-se mais imparcial e, portanto, confiável que os<br />

demais. Vemos nesse tipo de material as pistas que nos apontam<br />

para o fato de que o projeto de imparcialidade mostra-se<br />

explicitamente como um objetivo a ser alcançado pelos jornais<br />

e revistas na atualidade e, por conseqüência, apagam-se as dimensões<br />

sociais, econômicas e culturais que constituem a relação<br />

mídia e sociedade. Desse modo, entendemos que seja através<br />

desse projeto de imparcialidade que jornais e revistas<br />

pretendem instituir lugares para si e para seus leitores.<br />

Do ponto de vista discursivo, se considerarmos que os<br />

sentidos são sempre parciais e provisórios, porque inseridos na<br />

dinâmica da história, podemos afirmar que a suposta imparcialidade<br />

não seria uma qualidade a ser atingida por um dado periódico,<br />

antes se trataria de um efeito de sentido que se produz<br />

a partir de procedimentos muito diversificados.<br />

A título de ilustração do que estamos sustentando acerca<br />

da constituição de uma “vontade de imparcialidade” na mídia<br />

brasileira, colocaríamos lado a lado as notícias, os editoriais<br />

e as colunas assinadas, redigidas por colaboradores dos jornais.<br />

Nessas colunas, a presença da assinatura cria um efeito de afastamento<br />

da opinião expressa naquele texto frente à linha editorial<br />

do jornal, como se se tratasse de uma grande citação em<br />

discurso direto. No editorial, a autoria expressa, embora não<br />

explícita, também parece nos indicar que se trata de um texto<br />

em que uma opinião está sendo posta em questão. Em contraposição<br />

aos textos em que haveria uma autoria expressa, a notícia<br />

parece reivindicar o estatuto de texto não opinativo, tão<br />

desejado pela mídia, como é possível perceber através de seus<br />

manuais de redação.<br />

Assim, podemos afirmar que, hoje, na sistemática<br />

de organização de um jornal diário que pretende<br />

atingir um grande público, existe a preocupação<br />

de apresentar textos não opinativos – nos quais a<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 64


informação é recriada discursivamente, mas pretende-se<br />

apresentada como relato do fato tal como<br />

ocorreu – e textos opinativos, nos quais o leitor<br />

sabe que encontrará pontos de vista, que tanto ele<br />

poderá identificar com os do jornal, ou seja, o<br />

editorial, quanto os de alguém devidamente autorizado<br />

a se identificar, a saber, o artigo.<br />

(Sant’Anna, 2004: 144)<br />

Ao discutir as formas de apropriação do empírico pela<br />

imprensa escrita, Sant’Anna (2004) destaca a existência de<br />

tensão entre informar e/ou opinar, o que levaria a um cruzamento<br />

dos atos de fala que a integram. Por outro lado, ao tratar<br />

o jornal como suporte, é possível notar diferentes posições enunciativas<br />

sendo assumidas, o que, do ponto de vista macro,<br />

se caracterizaria como marca de heterogeneidade (Sant’Anna,<br />

2004).<br />

A autora passa, a partir dos aspectos levantados anteriormente,<br />

a procurar diferenciar o jornal de outras práticas linguageiras.<br />

Para isso, chama a atenção para a discussão de definição<br />

do jornal como gênero ou não.<br />

As restrições que a empiria impõe na caracterização<br />

do enunciador, do público-genérico, das formas<br />

de circulação, do suporte – bem como da distribuição<br />

interna que o organiza, definindo a<br />

paginação, os temas, os recursos verbais e nãoverbais<br />

–, fazem-nos retornar à questão anterior,<br />

de saber se o jornal é um gênero.<br />

(Sant’Anna, 2004: 134)<br />

Essa discussão acerca da existência de um gênero jornalístico<br />

leva à consideração de que, quando se pretende informar<br />

ou opinar, esse gênero se atualiza de forma independente. A<br />

autora considera ser possível identificar as coerções genéricas<br />

em dois planos:<br />

• as características do suporte, que determinam uma<br />

certa organização de qualquer elemento que venha a<br />

ser atualizado num determinado veículo, e que estariam<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 65<br />

ligadas a um nível superior de discurso jornalístico, no<br />

qual se constata uma separação muito clara entre informar<br />

e opinar;<br />

• o plano dos textos em estudo, os gêneros notícia, editorial<br />

e artigo –, isto é, as atualizações efetuadas, por<br />

meio do suporte, como a forma concreta de operacionalizar<br />

as coerções da ordem abstratas do nível superior,<br />

nas quais se constata que a separação entre opinar<br />

e informar não se dá de modo tão óbvio como se poderia<br />

esperar.<br />

(Sant’Anna, 2004: 135)<br />

É interessante notar, portanto, que a referida autora irá<br />

definir notícia em contraposição ao artigo e ao editorial, como<br />

“textos informativos em sentido lato (...), que não se pretendem<br />

opinativos, podendo ter ou não autoria definida” (Sant’Anna,<br />

2004: 147).<br />

3 - O relato em notícias de jornal: a heterogeneidade enunciativa<br />

em questão<br />

No item anterior, discutimos uma caracterização da notícia<br />

como um gênero discursivo, a partir de uma perspectiva<br />

enunciativa. Tecemos considerações acerca do projeto de<br />

transmissão de informações, tão reivindicado na atualidade<br />

pela mídia na tentativa de mostrar-se como imparcial e, por<br />

conseqüência, confiável. Dissemos então que a imparcialidade<br />

não é uma qualidade de um jornal que pudesse ser medida de<br />

modo a assegurar que um fosse mais ou menos imparcial que<br />

outro. A partir da perspectiva aqui adotada, preferimos considerar<br />

que essa “vontade de imparcialidade” seria antes um efeito<br />

de sentido a ser garantido por certos procedimentos.<br />

Neste item, discutiremos um desses procedimentos: o<br />

discurso relatado. A citação de um discurso por outro será entendida<br />

aqui não em termos de tentar compreender qual seria a<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 66


forma mais fiel às palavras do outro ou a menos fiel, como tentaram<br />

mostrar as gramáticas tradicionais. Trata-se de problematizar<br />

as relações de embates que se manifestam nos diferentes<br />

modos de introdução da voz do outro, compreendendo os efeitos<br />

de sentido dela decorrentes.<br />

Inicialmente, explicitaremos o lugar do discurso relatado<br />

nas reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa, bem como<br />

os critérios para sua identificação. Em seguida, faremos<br />

uma discussão acerca dos efeitos de sentido criados por algumas<br />

das formas de relato.<br />

A discussão em torno do discurso relatado como forma<br />

de apreensão da alteridade integra um conjunto de reflexões<br />

acerca do caráter heterogêneo da linguagem. A esse respeito,<br />

poderíamos fazer menção aos trabalhos de Authier-Revuz<br />

(1990), em que a autora apresenta tais reflexões como forma de<br />

problematizar a questão do sujeito na linguagem.<br />

Segundo Authier-Revuz (1990), o sentido de um enunciado<br />

se produz não apenas a partir das palavras efetivamente<br />

ditas, mas remete sempre a outras palavras. Na linearidade da<br />

cadeia, imprimem-se marcas que nos deixam entrever esse diálogo.<br />

O esforço da análise residiria exatamente em buscar nessas<br />

marcas indícios da remissão inconclusa a outros discursos.<br />

Operacionalizando as reflexões a respeito da alteridade<br />

na linguagem, Authier-Reuvz (1990) propõe dois planos da<br />

heterogeneidade enunciativa: a heterogeneidade constitutiva,<br />

que remete ao princípio teórico do dialogismo bakhtiniano,<br />

segundo o qual as práticas de linguagem são, por constituição,<br />

heterogêneas, e a heterogeneidade mostrada, que aponta para<br />

as materialidades apreensíveis da heterogeneidade, criando a<br />

ilusão de que a presença do outro se restringe a essas entradas.<br />

O discurso relatado integra essas entradas.<br />

De acordo com tal ponto de vista, podemos dizer que<br />

haveria um embate constante entre essas duas dimensões da<br />

heterogeneidade, a que faríamos menção citando as notícias<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 67<br />

como exemplo. Ao lermos uma notícia, as diversas posições<br />

enunciativas que ela abrange explicitam-se de diferentes modos,<br />

entre eles o discurso relatado. No entanto, ao marcar a<br />

presença de uma outra voz através do relato, o que se cria como<br />

efeito é a ilusão de que as outras vozes trazidas pela notícia<br />

restringem-se àquelas que se encontram marcadas. Teríamos<br />

então a impressão de que todo o restante é atribuído à voz do<br />

EU que enuncia tal texto, supostamente eliminando a dimensão<br />

constitutiva da heterogeneidade.<br />

Tradicionalmente, os estudos sobre língua compreenderam<br />

o discurso relatado (DR) deixando-se convencer por aqueles<br />

que seriam seus efeitos de sentidos, não fazendo menção ao<br />

DR como forma de inscrição da alteridade e, portanto, como<br />

modo de produção de sentido.<br />

Tal equívoco levou a que se pensasse que a distinção<br />

entre o discurso direto e o discurso indireto seria a do acesso<br />

mais ou menos fiel à voz do outro. A esse respeito, Authier-<br />

Revuz (2001) afirma que a insuficiência dessa interpretação<br />

tradicional do DR, por ela denominada “vulgata”, teria o inconveniente<br />

de afirmar que o DD é a representação mais objetiva<br />

e séria das palavras do outro. A referida autora argumenta<br />

dizendo que “reproduzir a materialidade exata de um enunciado<br />

não significa restituir o ato de enunciação – do qual o enunciado<br />

é (apenas) o ‘núcleo” (Authier-Revuz, 2001, p. 134).<br />

A respeito da escolha do DD e dos efeitos de sentido<br />

correlatos, Maingueneau (2001) afirma:<br />

Mesmo quando o DD relata falas consideradas<br />

como realmente proferidas, trata-se apenas de<br />

uma encenação visando criar um efeito de autenticidade:<br />

eis as palavras exatas que foram ditas,<br />

parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se<br />

com efeito pelo fato de supostamente indicar as<br />

próprias palavras de enunciador citado: diz-se que<br />

ele faz menção de tais palavras.<br />

(Maingueneau, 2001: 141)<br />

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4 - Apagamento do relato: o discurso narrativizado<br />

No item que segue, discutiremos algumas formas de apropriação<br />

do relato nas notícias de jornal, com ênfase para<br />

uma categoria de DR que parece pôr em análise o apagamento<br />

de vozes em relato, o discurso narrativizado (DN)<br />

A categoria DN deve sua elaboração inicial ao trabalho<br />

de Sant’Anna, em que a autora problematiza a constituição de<br />

sentidos do trabalho em notícias sobre o Mercosul. No referido<br />

trabalho, que corresponde à publicação inspirada na tese de<br />

doutorado da autora, defendida no LAEL/PUC-SP, em 2000,<br />

ao observar o funcionamento do intertexto como DR, a referida<br />

autora compreende a necessidade de pressupor um conjunto de<br />

implicações, como o contato do jornalista diretamente com os<br />

textos citados, ou indiretamente, através de outras pessoas, que<br />

forneceriam as informações necessárias. Nesse contexto de<br />

reconfiguração de critérios para o DR, Sant’Anna identifica a<br />

abertura para a elaboração de uma outra categoria de DN, aquela<br />

que corresponde à “forma mais apagada de atribuição do<br />

discurso a outro e, ao confundir-se com a idéia de ‘informar<br />

objetivamente’, corresponde a uma forma narrativizada máxima<br />

de um possível discurso indireto” (Sant’Anna, 2004: 180).<br />

Nessa obra, teríamos a seguinte definição de DN: “enunciados<br />

cuja existência é apresentada pelo enunciadorjornalista<br />

como um dizer que este capta e transforma, apagando<br />

a fonte do relato de forma decisiva” (Sant’Anna, 2004:<br />

181).<br />

Explicitaremos agora alguns fragmentos para análise,<br />

que nos permitam, em um primeiro momento, compreender de<br />

que modo o relato em DN se articula, nas notícias de jornal,<br />

com as demais formas de citar um discurso em outro discurso.<br />

Vejamos o seguinte fragmento, extraído de uma notícia<br />

que tematiza o Nova Escola, programa de gratificação aos pro-<br />

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fissionais de educação do estado do Rio de Janeiro, instituído<br />

desde 2000.<br />

O diretor se preocupa com o provão. Ano passado,<br />

78% dos alunos da unidade alcançaram pontuação<br />

satisfatória. ‘Foi um ótimo resultado, mas<br />

é claro que, com questões de Ciências e outras<br />

matérias, a prova ficará mais difícil. Não houve<br />

preparação, nem tivemos acesso às provas passadas’,<br />

comenta.<br />

No fragmento anterior, as aspas constituem-se como<br />

marcas tipográficas que apontam para a existência de DR. Há<br />

outras pistas como a quebra na estrutura sintática e ainda a presença<br />

de um verbo que indica ter havido um ato de fala. Nesse<br />

caso, o verbo comentar. A voz trazida é a de um diretor de escola<br />

da rede pública estadual do Rio de Janeiro, comentando o<br />

resultado e algumas das dificuldades encontradas para a realização<br />

de uma prova promovida pela Secretaria de Estado de<br />

Educação do Rio de Janeiro. Tal prova é parte dos critérios<br />

para o pagamento da gratificação prevista pelo Programa Nova<br />

Escola.<br />

Gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção do leitor<br />

para o seguinte trecho do fragmento anterior: “O diretor se preocupa<br />

com o provão.”<br />

A partir desse trecho, seria possível questionar: como o<br />

jornalista teria tido acesso à preocupação do diretor? Teria sido<br />

o próprio diretor o responsável por essa declaração ou outra<br />

pessoa, por exemplo, no momento da apresentação do diretor<br />

ao jornalista? Poderíamos considerar ainda um conjunto de<br />

outras hipóteses, como imaginar que essa preocupação não<br />

tenha sido dita, mas sim interpretada pelo jornalista.<br />

Diríamos assim que no trecho anterior há um relato que<br />

não ganha visibilidade como tal, seja através de marcas tipográficas,<br />

seja pela introdução de um verbo dicendi. Estaríamos<br />

assim no terreno das ocorrências de DN, cujos critérios de i-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 70


dentificação apresentamos a seguir, tal como aparece em Deusdará<br />

e Sant’Anna (20<strong>07</strong>):<br />

i) apagamento da fonte: este critério remete à definição<br />

de DN elaborada por Sant’Anna (2004), apresentada<br />

anteriormente. No DN, o relato caracteriza-se pela ausência<br />

de marcas que nos permitissem atribuir o dito<br />

em questão a outro enunciador que não seja o próprio<br />

jornalista;<br />

ii) encadeamento das situações de enunciação: o relato<br />

em DN implica, além da situação em que o enunciadorjornalista<br />

se dirige ao leitor do jornal, duas outras:<br />

uma, a situação de enunciação original, aquela em que<br />

o dito relatado é originalmente proferido, outra, a situação<br />

de enunciação intermediária, aquela em que alguém<br />

relata o dito da situação original ao jornalista.<br />

Esse critério fora estipulado, como desdobramento dos<br />

trabalhos de Sant’Anna (2004), por Arias (2003).<br />

iii) Concepção não restrita do elemento dicendi: para<br />

identificação do relato em DN, é preciso ultrapassar a<br />

concepção tradicional de verbo dicendi, de modo que<br />

se possam compreender as situações em que uma outra<br />

voz emerge, considerando tanto elementos introdutórios<br />

de natureza verbal, quanto de natureza nominal.<br />

Tal critério remete igualmente ao trabalho de Arias<br />

(2003);<br />

iv) Grupos de elemento dicendi: em consonância com os<br />

critérios ii e iii, trabalhamos em nossa dissertação de<br />

Mestrado (Deusdará, 2006) no intuito de colaborar na<br />

operacionalização do elemento dicendi. Percebemos<br />

assim ser possível organizá-los em três grupos que abrangeriam<br />

os verbos e locuções verbais, verbos associados<br />

a grupos nominais, ou ainda grupos nominais<br />

apenas.<br />

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A partir dos critérios explicitados anteriormente, optamos<br />

por constituir o seguinte quadro, que colabora no sentido<br />

de dar visibilidade ao encadeamento de situações de enunciação<br />

como elemento fundamental para o reconhecimento do<br />

relato.<br />

Vejamos o quadro:<br />

Quadro 1 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do<br />

exemplo 1<br />

Ocorrência:<br />

O diretor se preocupa com o provão.<br />

Situação de enunciação atual<br />

• enunciador: jornalista<br />

• co-enunciador: leitor<br />

• tempo: data do jornal<br />

• marca lingüística: se preocupa<br />

Situação de enunciação intermediária<br />

• enunciador: fonte desconhecida<br />

• tempo: anterior à situação de enunciação<br />

atual<br />

• conteúdo do dito: preocupação com a<br />

prova do Programa Nova Escola<br />

Situação de enunciação original<br />

• enunciador: diretor<br />

• tempo: anterior à situação de enunciação<br />

atual<br />

• tipo do dito que poderá ser emitido:<br />

conversa informal ou entrevista<br />

• co-enunciador: jornalista<br />

• co-enunciador: indefinido<br />

Com o intuito de prosseguir com as análises que vimos<br />

realizando, traremos um outro fragmento:<br />

Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito<br />

máximo a ser obtido por essas escolas: ‘No fórum<br />

de diretores, houve a contraproposta de uma avaliação<br />

especial. Resolvi acatar.<br />

Nesse fragmento, à semelhança do que vimos no anterior,<br />

a ocorrência de um relato em DD, sendo antecedida de um<br />

DN. A voz trazida em DD é a do então secretário de Educação<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 72


do Rio de Janeiro, um dos responsáveis pelas políticas de gratificação,<br />

que tem, desde então, aprofundado a precarização das<br />

condições de trabalho dos profissionais da rede pública estadual.<br />

Se atentarmos para o trecho “Mendonça pensou em baixar<br />

para 3 o conceito máximo a ser obtido por essas escolas”,<br />

poderemos fazer questionamentos semelhantes aos que fizemos<br />

nas análises do fragmento anterior: como o jornalista teve acesso<br />

ao que o secretário teria pensado?<br />

A partir desse fragmento, compusemos o seguinte quadro:<br />

Quadro 2 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do<br />

exemplo 2<br />

Ocorrência:<br />

Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito máximo a ser obtido por<br />

essas escolas: “No fórum de diretores, houve a contraproposta de uma<br />

avaliação especial. Resolvi acatar”.<br />

Situação de enunciação atual<br />

• enunciador: jornalista<br />

• co-enunciador: leitor<br />

• tempo: data do jornal<br />

• marca lingüística: pensou<br />

Situação de enunciação intermediária<br />

• enunciador: fonte desconhecida<br />

• tempo: anterior à situação atual de<br />

enunciação<br />

• conteúdo do dito: redução do<br />

conceito máximo de algumas escolas,<br />

na avaliação do Programa Nova<br />

Escola<br />

Situação de enunciação original<br />

• enunciador: Cláudio Mendonça<br />

• tempo: momento de realização do<br />

fórum<br />

• tipo do dito que poderá ser emitido:<br />

proposta levada ao fórum de<br />

diretores<br />

•co-enunciador: jornalista<br />

• co-enunciador: provavelmente,<br />

os presentes no fórum de diretores<br />

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A partir dos dois fragmentos analisados, é possível<br />

compreender um dado funcionamento discursivo do relato em<br />

DN, nas notícias de jornal. Considerando que se trata de uma<br />

forma apagada de acesso a outras vozes, o relato em DN articula-se<br />

de maneira particular com outras formas de DR. Nos dois<br />

fragmentos analisados, a seqüência que apresenta um relato em<br />

DD precedido de um outro em DN parece evidenciar uma articulação<br />

sobre a qual caberia uma reflexão mais detida.<br />

Ao afirmar que “o diretor se preocupa com o provão”,<br />

sem explicitar a fonte, ou seja, a partir de que relato, em que<br />

circunstâncias, alguém teria feito referência à preocupação do<br />

diretor, tal relato apresenta-se de um determinado modo que o<br />

aproxima de uma “informação objetiva”. O relato em DD evidenciado<br />

em seguida parece constituir-se em um comentário à<br />

informação anterior.<br />

A partir dessa articulação dos relatos em DN e DD, o<br />

apagamento da fonte no primeiro caso e sua explicitação no<br />

segundo parece conferir estatuto diferenciado a ambas as ocorrências,<br />

construindo assim a objetividade como efeito dessa<br />

articulação.<br />

5- Considerações finais<br />

Oferecemos ao leitor, ao longo deste texto, algumas<br />

discussões relativas à heterogeneidade enunciativa, privilegiando<br />

o discurso relatado como entrada para análise. Ao optar<br />

pela notícia de jornal como material de análise, centramos a<br />

caracterização do referido gênero do discurso questionando a<br />

pretensa tarefa de transmitir informações não como algo que se<br />

efetivaria, mas sim como um dos aspectos que comporiam seu<br />

“projeto de dizer”.<br />

Assim sendo, vimos sustentando neste texto a idéia de<br />

que a objetividade não poderia corresponder a uma característica<br />

atribuída à mídia. Não caberia assim procurar identificar que<br />

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jornal seria mais ou menos objetivo. A nosso ver, é preciso<br />

considerar a objetividade como uma construção que vai se<br />

dando a partir de certos procedimentos que passam a integrar o<br />

funcionamento discursivo.<br />

Entre os aspectos aqui discutidos, ressaltaríamos as análises<br />

efetuadas acerca das articulações possíveis entre as diferentes<br />

formas de relato. Vimos então que o apagamento da fonte<br />

ou sua explicitação conferem estatuto distintos a cada uma<br />

dessas ocorrências, oferecendo como leitura possível a idéia de<br />

que os relatos em DN mais se aproximariam das “informações<br />

objetivas”, enquanto as formas que explicitam a fonte, como o<br />

DD, apareceriam como comentários a essas “informações”.<br />

As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar<br />

os efeitos de sentido que se produzem a partir das diferentes<br />

formas de apresentar outras vozes, bem como mapear, através<br />

da categoria do discurso relatado, o funcionamento enunciativo<br />

do gênero notícia de jornal e os efeitos da suposta neutralidade<br />

que esse gênero pretende instituir.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

ARIAS, Sandra di L. A enunciação do espanhol como língua<br />

estrangeira: vozes da notícia. Dissertação de Mestrado, Rio de<br />

Janeiro: UERJ, 2003.<br />

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as nãocoincidências<br />

do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.<br />

_______. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Caderno de Estudos<br />

Lingüísticos 19. Campinas: Unicamp, <strong>jul</strong>ho-<strong>dez</strong>embro,<br />

1990.<br />

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2000.<br />

DEUSDARÁ, Bruno; SANT’ANNA, Vera. Narrando para não<br />

explicar: mídia e sentido do trabalho dos profissionais de educação.<br />

In: SANT’ANNA, Vera; DEUSDARÁ, Bruno (orgs).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 75<br />

Trajetórias em Enunciação e Discurso: conceitos e práticas.<br />

São Carlos: Claraluz, 20<strong>07</strong>.<br />

DEUSDARÁ, Bruno. Imagens da Alteridade no Trabalho Docente:<br />

enunciação e produção de subjetividade. Dissertação de<br />

Mestrado, Rio de Janeiro: UERJ, 2006.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. A gênese dos discursos. Curitiba:<br />

Criar Edições, 2005.<br />

_______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez,<br />

2001.<br />

SANT’ANNA, Vera Lúcia de Albuquerque. O Trabalho em<br />

notícias sobre o Mercosul: heterogeneidade enunciativa e noção<br />

de objetividade. São Paulo: Educ, 2004.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 76


O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO<br />

PARA A PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO<br />

Cláudio Luiz Abreu Fonseca<br />

UFPA-Marabá / UERJ<br />

RESUMO:<br />

O presente artigo tem por objetivo empreender uma análise semióticodiscursiva<br />

de um texto fílmico, O mistério da libélula (2002), a fim de que<br />

se possa compreender como se desenvolve a progressão cognitiva do signo,<br />

segundo os postulados peirceanos sobre a aplicação da teoria geral dos<br />

signos (SANTAELLA, 2005). Para tanto, tomar-se-á o texto fílmico como<br />

um investimento metateórico para uma compreensão de como se processa a<br />

semiose, mediante o trabalho de leitura. Considerar-se-á, nesse sentido, o<br />

filme como um discurso sobre o processamento da significação, que se<br />

inscreve no escopo da interação verbal (BAKHTIN / VOLOCHINOV,<br />

1992).<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Signo, texto, discurso, significação, leitura.<br />

Introdução<br />

A fim de compreender os postulados básicos que devem<br />

nortear a análise semiótica peirciana, propõe-se proceder à leitura<br />

de um texto fílmico (O mistério da libélula), a partir do<br />

qual se pretende refletir sobre a natureza do processo cognitivo<br />

de apreensão do signo e do texto-discurso, consoante o caminho<br />

percorrido pela personagem principal da trama para a sua<br />

interpretação.<br />

Em princípio, pode se dizer que O mistério da libélula<br />

reitera um tema clássico não só da literatura mundial como<br />

também das artes em geral, da filosofia, cujo signo mais famoso<br />

tenha sido estampado na célebre frase de Hamlet: “Há mais<br />

coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” ou<br />

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em sua citação, entre nós, em “A cartomante”, de Machado de<br />

Assis.<br />

Em uma palavra, o tema da (in)credulidade tem sido<br />

objeto de reflexão em muitas obras, pois a dialética de que resulta<br />

esse tema ou isotopia, gnosticismo vs. ceticismo ou sensitividade<br />

vs. racionalidade, provoca no ser humano desde sempre<br />

o questionamento sobre aquilo que não se pode explicar<br />

através da razão, da legibilidade convencional dos signos do<br />

campo da ciência.<br />

Procura-se fazer aqui, contudo, uma leitura que busque<br />

apreender não a reiteração de uma temática universal que assombra<br />

igualmente ainda o homem comum ou o artista, mas<br />

uma leitura circunscrita a um investimento teórico, cujo resultado<br />

é uma compreensão da própria teoria geral dos signos e do<br />

processamento da semiose do texto-discurso, de que resultam<br />

temas ou isotopias possíveis.<br />

Nesse sentido, propõe-se considerar o texto em análise<br />

como um objeto metateórico que leve o analista-espectador a<br />

compreender como se processa cognitivamente a significação<br />

do texto-discurso e dos signos verbais e não-verbais que o<br />

compõem, de acordo com a perspectiva da semiótica peirciana,<br />

bem como dos postulados relativos a tema e significação, de<br />

base bakhtiniana.<br />

1 - O percurso teórico<br />

A partir de uma concepção fenomenológica de mundo e<br />

de conhecimento, Peirce concebe a linguagem como representação<br />

da realidade, em que os signos constituem a maneira pela<br />

qual a penetramos e a compreendemos. (Cf. SANTAELLA,<br />

2005)<br />

Nesse sentido, os fenômenos são percebidos em sua<br />

configuração sígnica, por meio do que nos sugerem, indicam e<br />

simbolizam. Esses três aspectos que orientam a nossa percep-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 78


ção cognitiva dos signos estão ligados à concepção triádica de<br />

signo e os seus modos de representação: como ícone, índice e<br />

símbolo.<br />

Os ícones se caracterizam pelas qualidades que sugerem<br />

e evocam, pelas similitudes que entretêm com os objetos a que<br />

remetem. Os índices indicam a sua existência, apontando para<br />

os objetos que lhes conferem sua concretude. Os símbolos são<br />

de natureza mais complexa, geral e abstrata e são apreendidos<br />

pela lei que ensejam, fruto das convenções sociais.<br />

No processo de apreensão do signo, intervêm as operações<br />

de significação, objetivação e interpretação, consoante a<br />

sua natureza triádica: signo, objeto e interpretante.<br />

A interpretação do signo pressupõe um percurso que vai<br />

da sua configuração mais concreta, em relação ao objeto a que<br />

se refere ou evoca, à sua natureza mais abstrata e geral, decorrente<br />

de sua legitimação social como signo, dado o contexto de<br />

sua produção.<br />

A nossa hipótese é a de que o processo cognitivo de<br />

percepção do signo, consoante a teoria semiótica, passa pelas<br />

suas qualidades, evocadas pelo objeto, transformando-se em<br />

indício que remete à sua própria existência, para se configurar,<br />

por fim, como um símbolo que se legitima em virtude, seja das<br />

convenções sócio-culturais que o integram ao seu quadro de<br />

referências, seja das mudanças dessas convenções que reorganizam<br />

e ressignificam as concepções internalizadas, mediante o<br />

processo interpretativo.<br />

Nesse sentido, por ser uma teoria muito abstrata, a semiótica<br />

permite apreender, pois, as linguagens nos seus aspectos<br />

mais gerais, o que impõe um diálogo com outras teorias<br />

mais específicas, ligadas ao objeto de investigação. (Cf.<br />

SANTAELLA, 2005)<br />

Não se trata aqui de mobilizar, contudo, uma teoria sobre<br />

a linguagem cinematográfica, já que concebemos o objeto<br />

de nossa análise como um texto-discurso, seja ele verbal e/ou<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 79<br />

não-verbal, que se realiza num dado contexto de interação, tanto<br />

o imediato como o mais amplo, em virtude do qual se processa<br />

a significação.<br />

Aliás, o problema da significação tem sido abordado, no<br />

âmbito da pesquisa semântica e lingüística, ou como um fenômeno<br />

circunscrito à imanência do sistema formal de uma língua<br />

e, nesse caso, ligado à tradição estruturalista, ou como um<br />

fenômeno relacionado à natureza enunciativo-discursiva da<br />

linguagem, dos sujeitos e do contexto que a atualizam, configurando-se,<br />

pois, o estudo da significação em duas perspectivas,<br />

ou como asseveram Bakhtin/Volochinov:<br />

A investigação da significação de um ou outro elemento<br />

lingüístico pode (...) orientar-se para duas<br />

direções: para o estágio superior, o tema; neste<br />

caso tratar-se-ia da investigação da significação<br />

contextual de uma dada palavra nas condições de<br />

uma enunciação concreta. Ou então ela pode tender<br />

para o estágio inferior, o da significação: neste<br />

caso será a investigação da significação da palavra<br />

no sistema da língua, ou em outros termos a<br />

investigação da palavra dicionarizada.<br />

(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992: 131)<br />

Neste trabalho, nos limitaremos, pois, a tratar da progressão<br />

cognitiva do signo fílmico, de caráter inter-semiótico,<br />

já que atravessado tanto pela linguagem verbal como pela nãoverbal,<br />

vinculada ao problema da compreensão da totalidade do<br />

texto e, portanto, integrada à enunciação concreta, do seu processamento<br />

pelo leitor, que em um dado contexto de interação,<br />

mobiliza uma série de conhecimentos lingüísticos, textuais,<br />

semânticos, pragmáticos e discursivos, que lhes permite apreender<br />

o(s) tema(s) ou a(s) isotopia(s) do texto-discurso, em<br />

relação com outros discursos com os quais dialoga.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 80


2 - Desvendando a progressão cognitiva da significação: do<br />

signo ao texto<br />

A leitura de O mistério da libélula pode levar o espectador<br />

a fazer uma interpretação ancorada em estereótipos já<br />

consagrados, uma vez que sua produção faz emergir significados<br />

com os quais o espectador de massa se identifica, reiterando<br />

uma perspectiva cultural ligada à lógica do mercado cinematográfico,<br />

de fácil assimilação. Trata-se da construção de<br />

imagens que referendam a percepção do sobrenatural, consoante<br />

um efeito de suspense, que reitera uma visão saturada e banalizada<br />

do morto que reaparece na imagem do reflexo da janela<br />

ou da movimentação espontânea de objetos, que<br />

condicionam a expectativa do espectador para o esperado, não<br />

causando, pois, o estranhamento pelo inesperado e, assim, não<br />

modificando a percepção consagrada do fenômeno.<br />

Ainda que a história se oriente pela reiteração de estereótipos,<br />

o filme de Tom Shadyac pode se prestar a uma leitura<br />

que se norteie pela trajetória percorrida pelo protagonista na<br />

busca de interpretar a semiose produzida pelos signos verbais e<br />

não-verbais, que lhe querem transmitir uma mensagem.<br />

Joe Darrow (Kevin Costner) é um médico norteamericano<br />

que perde sua mulher grávida, Emily Darrow (Susanna<br />

Thompson), num acidente de ônibus na amazônia venezuelana,<br />

em que fora desenvolver um trabalho humanitário<br />

junto à uma tribo Yanomami. A partir daí, o protagonista começa<br />

a se ver diante de uma série de acontecimentos que sua<br />

razão médica não consegue explicar.<br />

Interessa aqui, o percurso que o protagonista percorre, e<br />

a que o espectador é também convidado a trilhar, para decifrar<br />

os signos de uma quase mensagem, cujo autor é em princípio<br />

desconhecido.<br />

Este percurso de apreensão cognitiva dos signos se divide,<br />

segundo nossa leitura, em três fases interdependentes e<br />

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que levam à construção da semiose do texto: uma fase em que<br />

os signos sugerem, outra em que indicam e, por fim, uma em<br />

que os signos simbolizam.<br />

Em princípio, uma cruz torta, desenhada por pacientes<br />

da ala de oncologia em que sua mulher trabalhara, constitui um<br />

possível signo a ser desvendado pelo protagonista. Esses pacientes<br />

teriam vivenciado uma experiência de quase-morte, dada<br />

a interrupção momentânea de suas vidas, e no retorno ao estado<br />

de consciência relataram ter encontrado de alguma forma com<br />

a doutora Emily, que lhes comunicou a necessidade de interagir<br />

com Joe. Esses relatos, somados aos desenhos da cruz torta,<br />

que insistentemente povoam as paredes dos quartos desses pacientes,<br />

desencadeiam no protagonista a necessidade de interpretá-los.<br />

Talvez haja algo a ser comunicado pela mulher, que<br />

estaria, afinal, morta ou viva? Aquelas duas linhas onduladas,<br />

entrecruzadas na vertical e horizontal, só poderiam evocar naquele<br />

momento uma cruz, ainda que estranha, devido às semelhanças<br />

icônico-pictóricas com o símbolo cristão, ou com outras<br />

referências que não faziam parte do acervo cultural de Joe.<br />

Diante de um signo, cujo objeto que evoca é insondável, o protagonista<br />

só pode contar com os pacientes, que funcionam como<br />

mediadores de uma interação quase impossível, para quem<br />

está imerso no mundo da razão cartesiana.<br />

As possibilidades de comunicação com uma interlocutora<br />

que presumivelmente está morta, pois os rituais sociais,<br />

religioso e jurídico, assim sentenciaram, levam o protagonista a<br />

supor que talvez a sua mulher ainda estivesse viva, já que se<br />

realizara uma cerimônia fúnebre em que o corpo estava ausente.<br />

Tal hipótese, plantada como pista falsa para a interpretação<br />

seja do texto fílmico, seja do texto fragmentado que o protagonista<br />

tem diante de si, constituirá temporariamente uma explicação<br />

plausível para uma interação que teima em ser efetivada,<br />

ainda que contrariando o mundo social que cerca o protagonista<br />

e, porque não alguns espectadores, cujas referências se coa-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 82


dunam com a razão cética. Para o protagonista, pois, alimentar<br />

uma esperança dessa natureza condiz melhor com as suas convicções,<br />

que são explicitadas, por exemplo, na recusa ao atendimento<br />

de uma vítima de tentativa de suicídio. O diálogo que<br />

trava com a personagem reitera suas convicções sobre haver<br />

somente vida quando se está vivo ou na asserção dirigida à<br />

vítima: “(...) por pior que isto aqui seja, é só o que existe”.<br />

A montagem do texto a ser decifrado cabe ao protagonista,<br />

cuja autoria desconhece ou presume ser uma comunicação<br />

de alguém que ainda está vivo. Não há em seu círculo social<br />

pessoas com quem possa dividir suas inquietações diante de<br />

novas peças de um quebra-cabeça, que vão abalando pouco a<br />

pouco suas crenças. Quando o faz, é tomado como louco. Razão<br />

e loucura, aliás, constituem fronteiras muito nítidas para o<br />

seu círculo familiar, de amizades e de trabalho. A cada novo<br />

evento que se vai acrescentando à comunicação que se pretende<br />

efetivar, Joe o relata ao seu círculo ou age de modo intempestivo,<br />

movido que é pelo desejo de desvelar os sentidos da mensagem.<br />

Avaliado como tendo um comportamento incompatível<br />

com sua função social de médico, é desacreditado por todos<br />

que o rodeiam.<br />

O texto que se vai forjando aos poucos, diante dos olhos<br />

incrédulos do protagonista, mediante o trabalho cognitivo que<br />

realiza, orienta-se ora pelo descarte de hipóteses interpretativas<br />

ora por sua assunção, em relação aos signos que constituem a<br />

tessitura dos eventos. Para van Dijk, as hipóteses interpretativas,<br />

“dada uma estrutura textual e contextual, permitem suposições<br />

sobre possíveis significados e intenções mesmo que sejam<br />

rejeitadas depois” (DIJK, 1996: 81).<br />

A cruz torta poderia ser, pois, um ícone que remeteria<br />

aos atributos da libélula, marca corpórea de identidade de sua<br />

mulher, já que as enunciações subseqüentes referendariam provisoriamente<br />

tal sentido. O recebimento de um pacote postal,<br />

decorrente de uma compra feita por sua mulher pela internet,<br />

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contendo um móbile de libélulas, para ser montado no quarto<br />

da filha que estava para nascer, e o peso de papel transparente<br />

contendo uma representação de libélula em seu interior, guardariam<br />

semelhanças com o possível ícone desenhado pelas<br />

crianças do setor de oncologia. Essa hipótese, no entanto, é<br />

descartada seja em função da explicação dada por um dos pacientes,<br />

para quem a cruz seria um índice, a representação de um<br />

lugar, no qual haveria um arco-íris, seja em relação à pesquisa<br />

que o protagonista realiza em dicionário de símbolos não encontrar<br />

similar com as representações de cruz de outras referências<br />

culturais.<br />

Na verdade, esses signos só começam a fazer sentido,<br />

na medida em que participam de acontecimentos, que lhes dão<br />

origem. Quando ainda se espraiam como signos isolados e estáticos,<br />

descolados e não articulados a um contexto, funcionam<br />

como signos desorientadores do processo cognitivo de construção<br />

da semiose.<br />

Nesse sentido, as inferências construídas pelo protagonista,<br />

decorrentes dos acontecimentos que se sucedem, em que<br />

os signos ganham um encadeamento sintáxico-semântico em<br />

processos enunciativos inusitados, passam a possibilitar uma<br />

progressão de sentido coerente. No processo de interação, em<br />

que se vai configurando o texto, Joe se define como coprodutor<br />

de sentido em relação à enunciação realizada por sua<br />

mulher, ainda que em outra instância de enunciação. Para Bakhtin/Volochinov,<br />

“compreender a enunciação de outrem significa<br />

orientar-se em direção a ela, encontrar o seu lugar no contexto<br />

correspondente.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992:<br />

131-132).<br />

Como se trata de comunicação, cuja efetivação depende<br />

do contato de duas dimensões, normalmente incomunicáveis,<br />

as interações entre Joe e Emily se processaram, de início, no<br />

plano material, por assim dizer.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 84


A casa do casal constitui espaço privilegiado para algumas<br />

das enunciações, de que participam os signos, cujos<br />

objetos que os representam, manifestam-se como se alguém ou<br />

uma força os fizessem se movimentar, já que sua materialidade<br />

e sua condição de inanimados os definissem pelo princípio da<br />

inércia. Esse movimento, no entanto, como o do peso de papel,<br />

encadeia-se com a lembrança do protagonista, de que a mulher<br />

tinha cravado em seu dorso um ícone, cujos traços evocavam<br />

uma libélula, forma escolhida por Emily para retornar, depois<br />

de morta, numa outra vida. A historicidade do discurso do casal,<br />

presentificada através de flash backs e recuperada pelo<br />

protagonista, possibilita que se articule, consoante a sintaxe<br />

fílmica, seus nexos com as manifestações da libélula, seja no<br />

móbile, no peso de papel, no dorso da mulher, seja em sua aparição<br />

como ser vivente diante da janela da casa, como símbolo<br />

da companheira desaparecida.<br />

Se o signo libélula indica e mesmo simboliza uma locutora<br />

que efetivamente quer comunicar alguma coisa, faltava, no<br />

entanto, decifrar ou, mais precisamente, identificar o que significaria<br />

a cruz torta, a fim de que o quadro textual pudesse ter<br />

mais uma de suas peças colocada, agora por um índice, que<br />

levaria o protagonista ao contexto de interação com Emily.<br />

As manifestações que se seguem são cruciais para que<br />

se opere no protagonista as mudanças necessárias, para que de<br />

fato acredite na possibilidade de interagir com sua mulher. No<br />

entanto, Joe ainda oscila entre credulidade e incredulidade,<br />

diante da imagem da mulher, no reflexo da janela, ou da tentativa<br />

de comunicação de um homem com morte cerebral, usado<br />

presumivelmente por Emily para tentar uma interação, no entanto,<br />

mal sucedida.<br />

Se o seu círculo social não o ajuda a resolver o dilema,<br />

que o faz oscilar entre uma pretensa loucura e uma razão coercitiva,<br />

o protagonista apela para uma freira, cujas investigações<br />

sobre os casos de quase-morte, conferem-lhe um saber, ainda<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 85<br />

que não-científico, sobre graus profundos da consciência humana<br />

poderem operar uma descendência a dimensões quase<br />

inescrutáveis, saber este que o levaria a prosseguir na busca de<br />

decifrar o enigma da cruz torta, malgrado as tentativas de seu<br />

círculo de dissuadi-lo a fazê-lo.<br />

No entanto, as convicções do protagonista são ainda suficientemente<br />

fortes para resistir aos fatos. Depois de ser convencido<br />

por seu círculo a vender sua casa e sair em viagem<br />

para recobrar a consciência e bom senso, o protagonista se vê<br />

diante de acontecimentos que lhe fazem retomar a sua busca. O<br />

retorno espontâneo das roupas da mulher ao armário, do peso<br />

de papel à mesinha de cabeceira, depois de empacotados, as<br />

luzes que se queimam espontaneamente, fazem com que o protagonista<br />

irrompa para fora da casa, da qual se preparava para<br />

mudar, e vislumbre do lado de fora, que as respostas que procurava<br />

se encontrariam em seu interior. Depara, então, com a<br />

cruz torta em um mapa de viagem. Não uma, muitas! Descobre,<br />

ao consultar o amigo que o acompanharia em viagem por<br />

um rio com corredeiras, que se tratava de um símbolo indicativo<br />

de cachoeira, legível aos olhos de quem sabe interpretar a<br />

linguagem de um mapa. Bastava, pois, articular esse dado, com<br />

uma fotografia, em que Emily aparece em primeiro plano, uma<br />

cachoeira ao fundo, bordada por arco-íris.<br />

É importante observar que os signos que o levariam enfim<br />

ao encontro com Emily, reúnem dados significativos para<br />

que tome a decisão de fazer uma outra viagem, não aquela recomendada<br />

por seu círculo, para que recobrasse a razão perdida,<br />

mas aquela que o levaria ao lugar indicado pela foto, que o<br />

transportaria também para as profun<strong>dez</strong>as de sua consciência.<br />

Viajar, pois, para a amazônia venezuelana, a fim de localizar<br />

os objetos a que os signos indiciais remetiam, significaria<br />

para o protagonista fazer uma outra viagem, interior, ao<br />

mundo da consciência insondável.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 86


No local em que acontecera o acidente que vitimou sua<br />

esposa, Joe localiza a cachoeira, referência da cruz torta, reiterada<br />

pelo símbolo cartográfico. Dirige-se para lá, parecendo<br />

ainda acreditar que sua esposa estaria viva, pois um dos dois<br />

índios, que o recebera juntamente com o piloto do avião, que o<br />

transportara para a área indígena, reconhecera sua mulher na<br />

foto que lhes mostrara, como “a doutora da Cruz Vermelha”.<br />

Num impulso, depois de avistar o ônibus, que transportara sua<br />

mulher no dia do acidente que a vitimou, semi-imerso nas águas<br />

do rio onde caíra, atira-se do alto da cachoeira, num mergulho<br />

que o levaria para o interior do ônibus, no afã talvez de<br />

verificar com os próprios olhos as possíveis pistas deixadas por<br />

sua companheira.<br />

O fluxo intenso das águas, somado ao movimento do<br />

protagonista no interior do ônibus, levam o veículo a se deslocar<br />

abruptamente, ocasionando a prisão de um de seus pés nas<br />

ferragens do ônibus. Imerso totalmente nas águas que tomam o<br />

interior do ônibus, o protagonista como que desiste de lutar<br />

para se desprender.<br />

É, pois, no meio aquático que se vai operar a interação<br />

entre Joe e Emily, mediante o contato entre as duas dimensões<br />

em que se localizam. O entrelaçamento das mãos do casal possibilita<br />

que a comunicação se processe, consoante imagens que<br />

recobram as circunstâncias que envolveram o acidente, bem<br />

como o rumo que tomara o corpo de Emily pelas águas, em<br />

direção à aldeia dos Yanomamis, que o resgataram. Trazido à<br />

tona pelas mãos do piloto, o protagonista recobra a consciência<br />

e se dirige à aldeia, a fim de completar a mensagem tecida por<br />

sua mulher.<br />

A comunicação que se dá entre o protagonista e os índios<br />

é mediada pela foto de Emily, cuja imagem é reconhecida<br />

pelos membros da aldeia. Uma velha índia, depois de dizer ao<br />

protagonista que a alma de sua mulher sobrevivera, toma-lhe<br />

pelas mãos e o conduz a uma tenda, onde lhe entrega uma me-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 87<br />

nina, a que se refere metonimicamente como Libélula, cuja<br />

marca de nascença, tatuada em seu tornozelo, justifica a denominação.<br />

Naturalmente, o enigma da libélula se resolve a partir<br />

do entrelaçamento dos signos icônicos e indiciais, cujos sentidos<br />

são recuperados, quando se completa o quadro interacional<br />

e enunciativo, por meio do qual é possível compreender a significação<br />

do texto como um todo. Para tanto, o protagonista,<br />

bem como o leitor, que assimila sua trajetória interpretativa,<br />

são levados a compreender a significação dos signos verbais e<br />

não-verbais, por meio de um processo cognitivo, que mobiliza<br />

mecanismos inferenciais, referências culturais e de mundo,<br />

cujas hipóteses interpretativas, quando válidas, são referendadas<br />

pelo contexto interacional, que as legitimou, ou como entendem<br />

Simões e Dutra que,<br />

Na consideração dos conhecimentos prévios de<br />

mundo e histórico-social necessários para se resgatar<br />

o sentido do texto (...) a identificação de ícones<br />

e índices na superfície dos textos depende<br />

não só do repertório do leitor, mas também de seu<br />

conhecimento enciclopédico.<br />

(SIMÕES e DUTRA, 2002: 4)<br />

3 - O diálogo interdiscursivo entre temas ou isotopias<br />

Tal como propusemos de início, a leitura que estamos<br />

empreendendo toma o texto fílmico como um discurso sobre<br />

como se processa a significação. No tópico anterior, tentamos<br />

demonstrar que a trajetória percorrida pelo protagonista para a<br />

interpretação dos signos verbais e não-verbais, a que o espectador<br />

também é convidado a percorrer, condiciona-se às hipóteses<br />

válidas que constrói para o processamento da significação<br />

da totalidade do texto.<br />

Nesse sentido, O Mistério da libélula pode ser concebido<br />

como um metatexto, cuja reflexão nos permite compreender<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 88


que a significação dos signos só se efetiva em ligação estreita<br />

com o contexto imediato e mais amplo de interação, no qual a<br />

enunciação completa se constitui. É nessa dimensão da linguagem<br />

que os conhecimentos lingüísticos, experienciais e de<br />

mundo vão ser mobilizados pelo leitor, a fim de que coproduza<br />

os sentidos de uma mensagem forjada por um autor,<br />

em uma dada instância de enunciação.<br />

Assim, o metatexto configura-se como um investimento<br />

metateórico, por meio do qual é possível compreender os postulados<br />

básicos da teoria semiótica peirceana, bem como relacioná-los<br />

a uma concepção de significação, inscrita na interação<br />

verbal, concebida como realidade fundamental da língua e<br />

do discurso. (Cf. BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992)<br />

Em vista disso, é que propusemos, neste trabalho, proceder<br />

a uma análise semiótico-discursiva, com intuito de compreender<br />

como se dá o processamento cognitivo do signo.<br />

Importa, pois, conceber o signo na sua dimensão textual-discursiva,<br />

consoante o paradigma dialógico bakhtiniano, em<br />

que os discursos são entendidos como resultantes de um processo<br />

histórico-social, em virtude do qual se confrontam ou<br />

convergem em direção a tema(s) ou isotopia(s), que a análise<br />

do signo textual possibilita.<br />

Nesse sentido, pode-se perceber, mediante a leitura que<br />

vimos propondo, um confronto entre dois discursos, o científico<br />

e o religioso, que coexistem, de início, como vozes dissonantes<br />

no interior de uma mesma formação social, a que pertence<br />

o protagonista. Charaudeau e Maingueneau entendem<br />

formação social dentro do quadro teórico do marxismo althusseriano,<br />

caracterizando-a como investida de “uma certa relação<br />

entre as classes sociais”, o que implica a coexistência de posições<br />

políticas e ideológicas, “que mantêm entre si relações de<br />

antagonismo, de aliança ou de dominação”, tendo em vista diferentes<br />

formações discursivas (Cf. CHARAUDEAU e<br />

MAINGUENEAU, 2004: 241).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 89<br />

Na verdade, como dissemos, o conflito interior e exterior<br />

que vive o protagonista, em relação às crenças e valores que<br />

o identificam e, posteriormente, o diferenciam de seu círculo<br />

social, resultam de uma mesma formação discursiva, uma vez<br />

que<br />

Uma formação discursiva não é um espaço estrutural<br />

fechado, já que ela é constitutivamente ‘invadida’<br />

por elementos provenientes de outros lugares<br />

(i.e., de outras formações discursivas) que<br />

nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências<br />

discursivas fundamentais.<br />

(Pêcheux apud CHARAUDEAU e<br />

MAINGUENEAU, 2004: 241)<br />

O discurso científico, pois, que referenda as convicções<br />

racionalistas do médico, legitimado por seu círculo social, é<br />

atravessado por “elementos provenientes de outros lugares”,<br />

cujos signos e os eventos que lhes dão origem se ligam ao<br />

mundo religioso e espiritual. A experiência de quase-morte,<br />

vivenciada no espaço da medicina de tradição ocidental, materializada<br />

pelo hospital, requer uma explicação, um discurso,<br />

oriundo de um outro lugar, não propriamente do discurso religioso<br />

oficial, mas de uma instância discursiva que está à margem<br />

deste, mas que com ele encontra convergências, entre as<br />

quais a de que existe vida após a morte, evidência que, no entanto,<br />

não constitui um objeto de investigação canônico. A aceitação<br />

de uma crença não implica necessariamente para o<br />

mundo mítico-religioso uma explicação científica sobre as evidências<br />

que tornam essa crença possível. Pelo contrário, uma<br />

tal convicção é assumida muitas vezes como dogma que não<br />

pode ser refutado, porque investido de um discurso que não<br />

deve ser objeto de indagação e questionamento. Nesse sentido,<br />

o discurso da freira, ainda que marginal aos postulados oficiais<br />

da igreja, como que constrói uma ponte entre uma convicção<br />

inquestionável e a pesquisa científica que empreende sobre os<br />

casos de quase-morte, cujos signos referendam a crença tradi-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 90


cional, bem como permitem que a razão médica redimensione<br />

suas convicções.<br />

Não se trata, pois, de opor absolutamente o mundo científico<br />

e religioso, mas de perceber que coexistem nessas formações<br />

discursivas confrontos e convergências, que fazem com<br />

que as convicções da razão médica, materializadas pelo itinerário<br />

percorrido pelo protagonista, sejam ressignificadas, permitindo<br />

que o protagonista afirme em off, ao final do filme, que<br />

sua esposa, além de ensinar-lhe em vida, a ter fé e a sempre<br />

acreditar, também lhe ensinou na morte a mesma lição, que “só<br />

acreditando chegamos lá”.<br />

Diante disso, pode-se afirmar que o interdiscurso, compreendido<br />

como “um conjunto de dizeres já ditos e esquecidos<br />

que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2005: 59), evidencia-se<br />

pelas inter-relações entre o mundo científico e o religioso,<br />

conferindo ao texto-discurso analisado uma atualidade,<br />

na medida em que o diálogo entre os temas ou isotopias de<br />

cientificidade e religiosidade, ainda constituem objeto de debate<br />

e não deixaram de sê-lo no decurso da história.<br />

Ao propor o tratamento do tema da (in)credulidade, por<br />

meio do discurso fílmico, o diretor Shadyac se conforma a uma<br />

visão de que ciência e religião devem interpenetrar-se numa<br />

espécie de casamento, em que uma não exclua a outra, mas que<br />

sirvam aos mesmos propósitos, quais sejam, o de compreender<br />

e admitir a existência dos fenômenos que transcendem a realidade<br />

ou na atribuição simbólica que confere a Joe e Emily, em<br />

que esta representaria a emoção, este a razão, formando um<br />

casamento perfeito.<br />

Considerações quase finais<br />

Não se trata aqui de fechar a discussão sobre a progressão<br />

cognitiva do signo, em virtude da qual a semiose se constrói,<br />

mas antes admitir que o estudo parcial que empreendemos<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 91<br />

sobre o processamento da significação do texto-discurso, possibilitou-nos<br />

refletir sobre alguns dos postulados da análise<br />

semiótico-discursiva, que intervêm na construção do significado<br />

do texto como um todo. Esse fato nos permitiu pensar também<br />

sobre alguns dos conhecimentos lingüísticos, textuais,<br />

semânticos, pragmáticos e discursivos que são mobilizados no<br />

processo de leitura de textos, sejam verbais e/ou não-verbais,<br />

por meio dos quais a interpretação do texto-discurso se evidencia<br />

como atividade verdadeiramente complexa.<br />

Resta, pois, apostar que a reflexão que realizamos sobre<br />

a progressão cognitiva do signo, dentre outras possíveis, possa<br />

contribuir com o debate em torno da questão da leitura no âmbito<br />

do ensino de língua materna, já que se inscreve numa concepção<br />

de significação, que considera a heterogeneidade como<br />

constitutiva da linguagem e do discurso, o que implica que a<br />

leitura de textos se realiza em confronto ou em convergência<br />

com outros textos, com os quais dialoga. Isso se aplica também<br />

aos discursos sobre a leitura, cujo debate se faz necessário para<br />

a qualificação do ensino de língua materna.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BAKHTIN, M. e VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia<br />

da linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992.<br />

CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de<br />

análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.<br />

DIJK, T. A. van. “Contexto e cognição”, in: Cognição, discurso<br />

e interação. São Paulo: Contexto, 1996.<br />

ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação de<br />

sentidos. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.<br />

SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira<br />

Thomson Learning, 2005.<br />

SHADYAC, T. O mistério da libélula (Dragonfly). EUA,<br />

2002.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 92


SIMÕES, D. M. P. e DUTRA, V. L. R. “La iconicidad en la<br />

unidad textual: un análisis”. Escritos 27 Revista Del Centro de<br />

Ciencias Del Lenguaje Puebla México, Univ.Aut.de Puebla -<br />

México, v. 27, p. 91-104, 2003.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 93<br />

A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA<br />

Cristiano de Sales<br />

UFSC<br />

RESUMO:<br />

A crítica cinematográfica se ocupa da imagem em movimento a partir de<br />

diferentes métodos: ora se desenvolvem análises numa perspectiva psicológica,<br />

ora sob o prisma do formalismo, ou ainda os argumentos procuram<br />

relacionar essa prática artística a alguma intervenção política. Por sua vez, o<br />

ensaio apresentado aqui sugere um olhar sobre essa prática, que é acima de<br />

tudo estética, a partir da fenomenologia, mais precisamente da fenomenologia<br />

de Merleau-Ponty. O recurso a este filósofo se dá pela necessidade de se<br />

pensar o que há de real nessa linguagem artística que aparentemente é a arte<br />

da realidade por excelência.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Cinema, fenomenologia, real.<br />

1 - Uma chave de leitura<br />

A noção de Real é algo de que vem se ocupando significativamente<br />

a crítica das diferentes artes no ambiente acadêmico.<br />

Em se tratando, porém, de pensar um conceito (ou apenas<br />

uma noção) e os diferentes campos epistemológicos dos<br />

quais se ocupa a estética, quem estaria mais autorizado a conduzir<br />

a discussão que não a filosofia?<br />

No entanto, levando-se em conta que o campo epistemológico-estético<br />

enfocado aqui para pensar o Real é o cinema,<br />

resistamos um pouco antes de entregarmos a responsabilidade<br />

do assunto à filosofia. Pois, tendo-se em mente os três<br />

séculos e meio em que a ciência do pensamento vem se ocupando<br />

explicitamente da estética, ou – sejamos mais radicais –<br />

tendo-se em mente que a filosofia já se ocupa dessas discussões<br />

desde os escritos de Platão, e considerando, enfim, a pouca<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 94


idade dessa que é a sétima das artes, atribuamos essa responsabilidade,<br />

ao menos nesse primeiro momento, aos críticos cinematográficos.<br />

Em A Experiência do Cinema, uma antologia organizada<br />

por Ismail Xavier, em que se encontram ensaios críticos de<br />

cinema numa perspectiva do olhar, da poesia e da psicanálise,<br />

nota-se um esboço daquilo que Deleuze reivindicava numa<br />

entrevista de 1985: conversa em que o filósofo fala de uma<br />

necessidade de se teorizar o cinema, e não apenas descrevê-lo.<br />

O cinema precisa, segundo ele, de seus próprios conceitos, e<br />

estes não se reduzem à linguagem técnica cinematográfica, mas<br />

sim devem se constituir a partir de suas próprias linguagem e<br />

capacidade de revelar limites. Ou seja, a crítica cinematográfica<br />

deve, pensa o filósofo, elaborar sua própria episteme, para<br />

então revelar suas próprias incompreensões, pois “a técnica não<br />

é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica”<br />

(DELEUZE, 1992: 76).<br />

Voltemos, porém, ao livro organizado por Ismail Xavier.<br />

Nele encontramos ensaios que exercitam sim a crítica descritiva<br />

apontada por Deleuze (é o caso explícito de Pudovkin,<br />

que ensina como montar um filme, ou até mesmo o caso de<br />

Eisenstein, que, embora subordine a descrição das técnicas à<br />

criação de efeitos, não deixa de situar o argumento no nível dos<br />

aparatos técnicos, que é o nível da composição tratando-se de<br />

cinema); mas encontramos também algumas entradas no campo<br />

reivindicado pelo filósofo do virtual: é o caso de Balázs, que<br />

reflete acerca da linguagem gestual antes de seu olhar focar a<br />

câmera, bem como o caso de Bazin, que reflete sobre o potencial<br />

de retenção da imagem e libertação do artista proporcionadas<br />

pela fotografia, ou ainda o caso de Metz que esboça uma<br />

reflexão sobre o discurso trazendo à baila a psicanálise.<br />

Entretanto, diferente de Deleuze, este artigo não entende<br />

essa recorrência das descrições técnicas como algo que possa<br />

estagnar a crítica cinematográfica (se pensadas, claro, à ma-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 95<br />

neira eisensteiniana, em que se ultrapassa a técnica rumo ao<br />

efeito), pois veremos adiante que na impossibilidade de se apreender<br />

alguma verdade, ou realidade, seja no cinema ou em<br />

qualquer outra linguagem, um caminho possível para a compreensão<br />

de algo é nos ocuparmos do ‘como’ e não do ‘o que<br />

é’ esse algo que nos escapa ao mesmo tempo que nos prende, e<br />

que chamamos de Real.<br />

Façamos então um recuo epistemológico a fim de compreendermos<br />

melhor esse exercício de pensar o Real a partir do<br />

cinema. Tentemos não nos lançar imediatamente ao encontro<br />

das críticas cinematográficas já ensaiadas desde o início do<br />

século para evitarmos, ao menos de início, o risco de não fazermos<br />

mais que metacrítica (No sentido que Compagnon empregou<br />

o termo em O Demônio da Teoria).<br />

Partindo-se da hipótese que a sétima arte é uma linguagem<br />

– embora cientes de que Pasolini e Deleuze não concordariam<br />

com isso, haja vista o capítulo 2 de A Imagem-Tempo –<br />

pensemos nas demais linguagens artísticas para começarmos a<br />

responder as seguintes perguntas: qual a dificuldade do cinema,<br />

quando comparado às demais artes, em fazer perceber o Real?<br />

E que Real é esse?<br />

Deixemos claro que não estamos nos opondo a Deleuze,<br />

pois não acreditamos numa linguagem cinematográfica de acordo<br />

com a perspectiva lingüística, dado que se assim procedêssemos<br />

cairíamos na lógica imagem-enunciado; estamos<br />

apenas pensando que há uma linguagem própria do cinema,<br />

que é da ordem da própria forma de manifestação artística, assim<br />

como as cores para o pintor trazem seu próprio ser e não<br />

devem ser reduzidas a enunciados propostos por alguma análise<br />

lingüística.<br />

Se estivéssemos pensando nas correntes realistas, poderíamos<br />

começar respondendo as perguntas acima de forma bastante<br />

objetiva: quando comparado às demais artes, o cinema<br />

tem a grande vantagem de evocar a realidade, ou seja, de re-<br />

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produzir fielmente, por meio da retenção da fotografia, os objetos<br />

da vida real. Assim sendo, o cinema seria por excelência a<br />

linguagem artística da realidade.<br />

No entanto, estamos lidando com uma linguagem que<br />

se consolida por meio de uma experiência estética, por isso,<br />

apostar numa leitura realista não consiste, no nosso entender,<br />

numa boa chave de leitura. Aceitar a idéia de apreensão da realidade,<br />

tratando-se de uma linguagem que, mais explicitamente<br />

que qualquer outra, só existe na passagem, consiste numa negação<br />

do próprio cinema como campo epistemológico possível<br />

(e passível) de diferentes teorias – conforme pedia Deleuze.<br />

Sendo assim, que Real é esse que poderíamos pensar a<br />

partir do cinema?<br />

O recuo sugerido acima tem por preocupação nos desarmarmos<br />

o máximo possível dos conceitos já estabelecidos<br />

acerca do assunto antes de escolhermos o que chamamos de<br />

chave de leitura. Seria o momento, talvez, de fazermos como<br />

Barthes em Ao sair do cinema (texto em que ele reflete a partir<br />

do próprio gesto de ir ao cinema e assistir a filmes), ou apenas<br />

de aceitarmos a idéia de que o cinema enquanto efeito estético<br />

só existe lá, na sala escura enquanto os rolos projetam as imagens<br />

na tela grande. Todo o artesanato empenhado na composição<br />

de um filme, que ocupa predominantemente o conteúdo da<br />

crítica cinematográfica, é meticulosamente arquitetado para<br />

que no momento da projeção algo aconteça. E é somente nesse<br />

acontecimento que podemos ser tocados por algo que nos pareça<br />

Real. Diferente de artes como a do pintor, a do escritor e até<br />

mesmo a do músico, o cineasta não é surpreendido no momento<br />

do acontecimento, pois ele trabalhou minuciosamente na<br />

criação daquele efeito, ao passo que, mesmo munido de toda a<br />

técnica, o pintor, o escritor e o músico podem muito bem ser<br />

surpreendidos enquanto compõem, seja numa pincelada inesperada,<br />

num verso sem ritmo que tenha imposto sua própria música,<br />

ou na execução de uma nota expressiva. Isso evidencia o<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 97<br />

quanto o trabalho do artista que propõe significações pela linguagem<br />

cinematográfica se distancia do trabalho dos demais<br />

artistas. Não estamos aqui ignorando o trabalho de Antonioni,<br />

que se deixava surpreender com a atuação dos corpos para depois<br />

partir para as montagens cinematográficas, estamos apenas<br />

afirmando que essa surpresa não toma o artista (cineasta) no<br />

momento da exibição do filme, no nosso entender, momento<br />

em que o filme se faz arte. Eis mais um motivo para abdicarmos,<br />

o quanto possível, da crítica pré-concebida.<br />

Não sejamos, porém, negligentes a ponto de propormos<br />

uma falta de atenção à crítica cinematográfica, pois, já mencionamos<br />

acima, encontramos em Bazin, Balázs, Eisenstein, Metz<br />

e outros uma reflexão crítica que ultrapassa as descrições do<br />

artesanato. E mesmo não pensando nesses autores não poderíamos,<br />

da mesma maneira, acusar Pudovkin e outros de reduzirem<br />

a crítica à descrição, pois, como já antecipamos, a busca<br />

por um Real que não se pode apreender está mais próxima da<br />

descrição (como é) que da definição (o que é).<br />

Mas não adiemos mais a escolha da chave de leitura<br />

deste ensaio (numa linguagem científica, provavelmente, estaríamos<br />

falando de metodologia). Comprometamo-nos de uma<br />

vez com o Real no cinema.<br />

Alain Badiou propôs em seu Pequeno Manual de Inestética<br />

que a verdade da arte deve ser buscada não a partir de<br />

conceitos pressupostos de Real e de arte, mas sim a partir do<br />

próprio objeto artístico. E podemos pensar que se há uma verdade<br />

a ser buscada, a sugestão feita por Badiou pode bem servir<br />

ao que chamamos de chave de leitura. Porém, essa postura,<br />

sugerida pelo crítico inesteta, diante da experiência artística,<br />

não se trata, bem sabemos, de novidade pelo menos desde a<br />

crítica literária pós-estruturalista: haja vista textos como A morte<br />

do autor e Da obra ao texto, de Roland Barthes, bem como<br />

todo o argumento acerca da escritura (Derrida) e do discurso<br />

(Foucault). Porém, a referência mais explícita de Badiou nos<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 98


parece ser Deleuze, com suas inspirações leibnizianas, pois o<br />

exercício de buscar a verdade na arte nos leva a acreditar na<br />

imanência e no desdobramento da obra. Enfim, o autor do Pequeno<br />

Manual de Inestética tentou com seu livro organizar<br />

idéias (leia-se aqui vários ensaios e vários autores publicados)<br />

tributárias de uma mesma necessidade de se livrar do subjetivismo<br />

que tende a reduzir as reflexões estéticas a uma função<br />

intencional e consciente.<br />

Não desmereçamos, entretanto, o trabalho de Alain Badiou<br />

por não se revelar um tratado absolutamente original, pois<br />

seu texto viabiliza entradas efetivas para uma crítica que reconheça<br />

a necessidade de reavaliação conceitual. Um dos capítulos<br />

do Manual está dedicado a exercitar a postura inesteta nos<br />

limites do cinema. Porém, nossa entrada nessa discussão (Real/arte)<br />

não se dará por meio dessa intervenção do autor junto<br />

ao cinema, muito embora este último também seja nosso foco.<br />

Interessa-nos como chave de leitura um outro capítulo desse<br />

Manual, em que somos levados a Fernando Pessoa.<br />

O recurso, porém, a esse capítulo do livro de Badiou<br />

não entrelaça nosso argumento às noções de antiplatonismo<br />

dissertadas pelo filósofo acerca da obra de Fernando Pessoa<br />

(nessa empreitada Álvaro de Campos parece atender mais ao<br />

argumento de Badiou, dado que esse é o heterônimo com um<br />

projeto metafísico mais explícito), mas se deve apenas ao fato<br />

de reconhecermos em outro heterônimo de Pessoa a nossa chave<br />

de leitura: Alberto Caeiro:<br />

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la<br />

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.<br />

Por isso quando num dia de calor<br />

Me sinto triste de gozá-lo tanto,<br />

E me deito ao comprido na erva,<br />

E fecho os olhos quentes,<br />

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,<br />

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Sei a verdade e sou feliz.<br />

(Trecho do poema IX de O Guardador de Rebanhos)<br />

Assim nos postaremos diante dessa questão que nos faz<br />

ir atrás de uma verdade na arte: abdicando de todo um aparato<br />

prévio que nos determine os passos a serem dados no concernente<br />

à realidade e ao cinema. Deitemos o corpo no cinema.<br />

Desarmemo-nos.<br />

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!)<br />

Isso exige um estudo profundo,<br />

Uma aprendizagem de desaprender<br />

E uma seqüestração na liberdade daquele convento<br />

De que os poetas dizem que as estrelas são as<br />

freiras eternas<br />

E as flores as penitentes convictas de um só dia,<br />

Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas<br />

Nem as flores senão flores,<br />

Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.<br />

(Trecho do poema XXIV de O Guardador de Rebanhos)<br />

2 - real em minúscula<br />

Definida a maneira como pensaremos realidade no<br />

cinema, a saber, uma maneira que já dispensa o real<br />

grafado com letra maiúscula (que nos remeteria<br />

mais ao Realismo), voltemos a uma das discussões<br />

iniciais deste artigo: filósofos ou críticos cinematográficos?<br />

Deleuze já falava, na série de entrevistas mencionada<br />

anteriormente, que críticos cinematográficos como Bazin já<br />

assumem posturas filosóficas ante as experimentações práticas<br />

e teóricas com/no cinema, ou seja, uma escolha não exclui a<br />

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outra. E nessa esteira onde críticos cinematográficos e filósofos<br />

podem ser entrelaçados para uma melhor compreensão dos<br />

limites do cinema (leia-se epistemologia), aceitemos o conselho<br />

que Ismail Xavier nos faz na Introdução da primeira parte<br />

d’A Experiência do Cinema. Neste texto introdutório o autor<br />

fala numa possível aproximação entre Hugo Munsterberg e<br />

Merleau-Ponty, referindo-se aos ensaios do psicólogo alemão<br />

editados em A Experiência do Cinema e à conferência O Cinema<br />

e a Nova Psicologia, do fenomenólogo da percepção. Entretanto,<br />

nosso interesse pela aproximação apontada por Xavier<br />

provém de outro ensaio de Merleau-Ponty, intitulado O Olho e<br />

o Espírito, com os mesmos ensaios de Munsterberg sugeridos<br />

na introdução citada.<br />

Os motivos? Vejamos alguns.<br />

Para a chave de leitura que estabelecemos como norteadora<br />

de nosso argumento <strong>jul</strong>gamos mais coerente confiar num<br />

filósofo que se encarrega de pensar a filosofia a partir da arte e<br />

não submeter a segunda às necessidades de comprovação da<br />

primeira; sem dizer que estamos nos referindo ao filósofo que<br />

estabelece o corpo como fundação das significações do mundo<br />

(à maneira de Merleau-Ponty, acreditamos no corpo próprio<br />

como elemento determinante da percepção das experiências<br />

vividas diante de uma tela de cinema. Portanto, se há uma verdade<br />

a ser alcançada, isso somente ocorrerá por meio do corpo,<br />

no caso, do espectador). Além disso, acreditamos que em O<br />

Olho e o Espírito Merleau-Ponty problematiza as questões ambicionadas<br />

por Alain Badiou num nível mais complexo tratando-se<br />

de experiências estéticas. Enfim, no nosso entendimento,<br />

o filósofo das (in)visibilidades se presta melhor do que o inesteta<br />

ao que Caeiro chamou de “aprendizagem de desaprender”.<br />

Do outro lado (ou do mesmo?), não se deitando ao<br />

comprido na erva, como fez Caeiro, mas acomodando-se bem<br />

na poltrona do cinema, como sugeriu Barthes, Musnterberg foi<br />

preciso na observação das atenções exigidas para se experien-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 101<br />

ciar a arte na tela de cinema. Contrastando as atenções exigidas<br />

no cinema com as do teatro, o psicólogo alemão foi perspicaz<br />

ao nos fazer entender (já em 1916, numa época em que Saussure<br />

ainda não era lido e o cinema ainda não falava) que a arte<br />

feita para a tela impõe muito mais os movimentos de atenção<br />

do espectador do que se fazia no teatro. Ou seja, evidenciava-se<br />

uma diferença de linguagem que passaria de forma definitiva<br />

pela reconfiguração do espectador enquanto percebedor da obra.<br />

Aos tipos de atenção Munsterberg chamou voluntária e<br />

involuntária: por atenção voluntária se entende aquela em que<br />

o espectador determina seu foco de atenção (um espectador de<br />

teatro com binóculos, por exemplo); por atenção involuntária<br />

se entende aquela que atrai o espectador para determinado elemento<br />

sem que o mesmo premedite seu foco de atenção para<br />

aquele elemento. Assim, o cinema estaria mais carregado de<br />

atenção involuntária que o teatro. Além dessas definições propostas<br />

pelo cineasta-psicólogo, outros elementos de seus ensaios<br />

justificam sua escolha para o nosso argumento: é o caso da<br />

profundidade e do movimento. Embora o autor tenha preferido<br />

não problematizar essas questões tal como fez com as atenções<br />

voluntária e involuntária, essas duas noções interessam muito<br />

ao nosso ensaio, dado que em O Olho e o Espírito Merleau-<br />

Ponty lapida seus conceitos de visível e invisível a partir justamente<br />

da noção de profundidade e, em certa medida, a partir<br />

também da noção de movimento.<br />

Pois bem, justificadas as presenças de um e de outro<br />

pensemos no cinema.<br />

Dissemos acima que o cinema numa perspectiva realista<br />

seria por excelência a linguagem artística da realidade. Mas<br />

reformulemos esse pensamento: o cinema, com todo seu potencial<br />

de demonstração do movimento, está, em certa medida,<br />

condenado à realidade. O movimento na imagem cinematográfica<br />

não é sugerido ou elaborado de tal maneira que exija do<br />

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percebedor a continuidade da obra. Por um fenômeno físico e<br />

incontornável a geração de <strong>dez</strong>enas de fotos por segundos impõe<br />

ao espectador de cinema a percepção do movimento. Esse<br />

mesmo movimento só será obtido em pintura, ou em escultura,<br />

devido a um deslocamento de quem percebe a obra; pensemos<br />

em obras como Noiva de Duchamp e Homem andando de Rodin.<br />

Para a primeira, percebe-se que aquela espécie de armadura<br />

se articula propondo um deslocamento; “está aqui e<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 103<br />

está ali, magicamente, mas não vai daqui até ali” (Merleau-<br />

Ponty, 2004, p. 41).<br />

Para a escultura de Rodin, percebemos o movimento ao<br />

nos anteciparmos a própria visibilidade que o bronze propõe, o<br />

movimento está exatamente no corte da passada, na paralisação<br />

do movimento, o movimento está no que não está posto, está<br />

no instante seguinte, está na frente do homem de bronze. Por<br />

isso acreditamos que o esforço da pintura e da escultura para<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 104


evocar as coisas do mundo que nos envolve e que percebemos<br />

(talvez seja essa a busca, talvez seja esse o real) não deveria<br />

perturbar tanto o autor de cinema.<br />

Porém, seria bastante reducionista da nossa parte tomarmos<br />

o movimento como único problema a ser resolvido<br />

para evocar a realidade, pois se assim fosse o teatro já estaria<br />

muito adiantado em relação à pintura e à escultura. Bem sabemos<br />

que não se trata apenas de trazer à tona o movimento, mas,<br />

principalmente, de suscitar a partir dele percepções comparadas<br />

às da realidade. Assim sendo, Meliès se atira às folhinhas que<br />

aparecem ao fundo no filme em que o bebê come papinha, imaginando<br />

que aquela evidência de realidade (folhas que balançam<br />

num galho de árvore) seria o potencial que o cinema<br />

teria para explorar. No entanto, aquela imagem que afetou<br />

Meliès provocando nele a sensação de realidade só existiu no<br />

momento da percepção. No instante seguinte, aquele em que o<br />

futuro pai do cinema tenta estabelecer com as folhinhas que<br />

balançam alguma relação de contigüidade do real, a sua percepção<br />

já afetou seu corpo e aquele instante de realidade já foi<br />

para a memória (se quiséssemos falar com Bergson), ou para as<br />

experiências do corpo habitual (se preferíssemos Merleau-<br />

Ponty), ou, simplesmente, foi para algo que já é passado.<br />

A realidade escapou a Meliès como tem escapado sempre<br />

à arte e às linguagens. Entretanto, no cinema, esse constante<br />

escapar da realidade ganha potencia devido à linguagem cinematográfica<br />

que está fadada ao movimento. Mais que em<br />

qualquer outra linguagem artística o real no cinema está somente<br />

na passagem, pois o próprio cinema só fala algo na passagem.<br />

Esse real que passa e que escapa deixa rastros que por<br />

se tratarem de marcas de algo que já passou não têm o poder de<br />

evocar a realidade. Então o que fazemos nada mais é do que<br />

nos apropriarmos dessas marcas que evocaram, no instante da<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 105<br />

percepção, algo a que possamos chamar de real, para a partir<br />

delas descrevermos quiçá o efeito de real.<br />

Nos agarramos às marcas em busca do efeito como<br />

quem se agarra ao visível em busca do invisível. Sugerimos,<br />

assim, que se entenda aquilo que Munsterberg chamou de profundidade<br />

e movimento de acordo com as noções que Merleau-<br />

Ponty chamou de visível e invisível. Isso nos permitiria dizer<br />

que a profundidade – seja na vida ou na tentativa de evocação<br />

da vida pela arte – é o que viabiliza a percepção do movimento<br />

e sua contigüidade, e estes por sua vez alimentam no espectador<br />

o constante desejo de tocar a profundidade, de tocar o que<br />

está além. O que buscamos ao percebermos uma imagem visível<br />

não é o que está contido entre os traços que a limitam, mas<br />

justamente o que está ao fundo dessa contigüidade. Partimos<br />

em busca do invisível e nosso caminho rumo a esse objetivo<br />

vai sendo lapidado pelos contornos precisos daquilo que nos<br />

separa, a saber, o visível. Contrário do que se poderia pensar, o<br />

visível não se opõe ao invisível, ele apenas alimenta em nós o<br />

desejo de alcançarmos essa profundidade inalcançável. O visível<br />

inaugura o invisível da mesma forma que a folhinha balançando<br />

na árvore inaugurou o real para Meliès, porém, no instante<br />

mesmo em que o cineasta esticou a mão para alcançá-la<br />

no galho e sentir sua aspereza o vento já a havia soprado pra<br />

outro lugar.<br />

Assim sendo, tudo que poderíamos afirmar acerca do<br />

real no cinema é que o poder dessa linguagem está na diferente<br />

forma de tentar buscar essa folhinha que insiste em voar pelas<br />

visibilidades possíveis, inaugurando a cada instante diferentes<br />

realidades.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Tradução:<br />

Marina Appenzeller, São Paulo: Estação Liberdade, 2002.<br />

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BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação<br />

do corpo com o espírito. Tradução: Paulo Neves, São Paulo:<br />

Martins Fontes, 1999.<br />

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. Tradução: Eloísa de Araújo<br />

Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 2005.<br />

_______. Conversações. Tradução: Peter Pál Pelbart, Rio de<br />

Janeiro: Ed 34, 1992.<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Tradução:<br />

Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira, São<br />

Paulo: Cosac & Naif, 2004.<br />

_______. O Visível e o Invisível. Tradução: José Artur Gianotti<br />

e Armando Mora d’Oliveira, São Paulo: Perspectiva, 2005.<br />

PESSOA, Fernando; CAEIRO, Alberto. O Guardador de rebanhos:<br />

seguido de o pastor amoroso. São Paulo: princípios,<br />

1997.<br />

XAVIER, Ismail. (org). A experiência do Cinema: antologia.<br />

Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.<br />

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CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRA-<br />

VÉS DA LITERATURA<br />

Danielle de Paiva Lopes<br />

USP<br />

RESUMO:<br />

Este trabalho propõe discutir as contribuições tecnológicas para a literatura<br />

e as relações intersemióticas entre letra e imagem no livro juvenil Cibermãe,<br />

de Alexandre Jardin. São abordadas algumas questões como linguagem<br />

verbal e não-verbal e analfabetismo visual. O impacto da imagem para<br />

o texto literário é investigado no livro, já que facilita alguns conceitos da<br />

área tecnológica para o leitor. A fundamentação teórica parte de alguns<br />

estudiosos como Donis A. Dondis, Lúcia Pimentel Góes e Lúcia Santaella.<br />

PALAVRAS CHAVE:<br />

Literatura para a juventude, Cibernética, semiótica.<br />

1 - O Ciberespaço<br />

O livro de Alexandre Jardin é uma viagem pelos clássicos,<br />

tendo a tecnologia como suporte. Antes de discutir a viagem<br />

das personagens, vale ressaltar a importância que o espaço<br />

virtual ganha em Cibermãe. Ao analisar o próprio título, observamos<br />

que esse neologismo (ciber + mãe) carrega em si tanto a<br />

questão principal do enredo (o desaparecimento da mãe) quanto<br />

a presença de um espaço virtual. O prefixo ciber- é oriundo<br />

da palavra Cibernética (ing. Cybernetcs), “a ciência que estuda<br />

as comunicações e o sistema de controle nos organismos<br />

vivos e também nas máquinas” (FERREIRA, 2006: 233). Em<br />

outras palavras, trata, por exemplo, da relação entre o cérebro e<br />

qualquer dispositivo eletrônico, que substitua membros humanos.<br />

Há dois espaços no livro: o virtual e o não-virtual. Neste,<br />

há uma família, composta pelo viúvo Arthur e os três filhos:<br />

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Lili, Felix e César. O pai resolve armazenar na memória do<br />

computador tudo o que guarda da esposa falecida (Lúcia): fotos,<br />

vídeos, fitas. Ao acreditar fielmente no poder de armazenamento<br />

da máquina, ele desfaz-se do material, já que este vinha<br />

se deteriorando pelo tempo. Segundo um vizinho e amigo,<br />

Zeig, as fotos não sofreriam quaisquer danos no novo espaço,<br />

por este ser atemporal.<br />

No espaço virtual, ou Ciberespaço, as personagens entram<br />

num universo novo. Nele, elas livram-se do peso carnal,<br />

penetrando na máquina através do cérebro. Dessa forma, coexistem<br />

junto aos outros seres virtuais. Nesse novo espaço tudo<br />

é possível, inclusive o armazenamento da memória da mãe. No<br />

entanto, as informações não estão totalmente protegidas, já<br />

que, não há totalidade sem fissuras (SANTAELLA, 2004:<br />

126). É, assim como o organismo vivo, passível de falhas, devendo<br />

o ser humano atentar para isso.<br />

Ao entrarem literalmente na máquina, as crianças enfrentam<br />

obstáculos próprios desse mundo, como um hacker.<br />

Jones, uma espécie de cibervilão, apaixonado pela falecida<br />

Lúcia, rouba os arquivos da mãe das crianças. Por conta disso,<br />

essas personagens embarcam numa viagem extraordinária, enfrentando<br />

uma importante prova: a de coexistirem nos dois<br />

universos do livro, para resgatarem a memória da mãe.<br />

Não se deseja criticar esses dois espaços, mas mostrar,<br />

com na Cibernética, a existência de uma comunhão entre o<br />

virtual e o não-virtual, pois um contribui de forma a auxiliar o<br />

outro na narrativa. Na verdade, isso já é possível, por exemplo,<br />

através da internet. A máquina troca informações entre as pessoas,<br />

que estão do outro lado da tela do computador. Nota-se a<br />

comunicação entre o organismo vivo (o pai e o vizinho Zeig) e<br />

a máquina (o computador Ulisses), para reaver essas informações<br />

perdidas.<br />

No livro, nota-se a reunião, num único espaço, de milhares<br />

de informações, como ocorre, por exemplo, com Cd’s ou<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 109<br />

Dvd’s atualmente. Em relação a Cibermãe, o pai Arthur, na<br />

ilusão de que o Ciberespaço guarda informações de forma<br />

segura, desfaz-se de todos os materiais da mulher. De fato, a<br />

máquina encadeia o problema, perdendo os arquivos. No entanto,<br />

no final da história, ela ajuda as crianças a retornarem ao<br />

mundo não-virtual. Assim, a proposta do livro é mostrar a utilidade<br />

do espaço virtual para o ser humano, desde que caiba ao<br />

homem a consciência de a máquina ser algo falível.<br />

2 - A linguagem das representações verbais e não-verbais:<br />

imagens em Cibermãe<br />

Como estudar o que nós já conhecemos? A resposta<br />

a essa pergunta encontra-se numa definição<br />

do alfabetismo visual como algo além do simples<br />

enxergar, como algo além da simples criação de<br />

mensagens visuais. O alfabetismo visual implica<br />

compreensão, e meios de ver e compartilhar o<br />

significado a um certo nível de universalidade.<br />

(DONIS, 1997: 227)<br />

Cibermãe é um espaço híbrido. A reunião de representações<br />

verbais e não-verbais levam o leitor a interagir com a<br />

história, de forma inteiramente nova, fazendo referência aos<br />

clássicos da literatura universal. Segundo Maria Auxiliadora<br />

Baseio, há<br />

seguramente a explosão de imagens que solicitam<br />

a atenção do leitor em Cibermãe, cores, formas,<br />

aparatos virtuais, intertextos diversos, podem tirar<br />

o leitor de dentro de si mesmo, mas, por outro lado,<br />

também podem levar ao verdadeiro encontro,<br />

ao tecer com os múltiplos fios, a rede de seu autoconhecimento,<br />

retirando do caos uma nova ordem.<br />

(BASEIO, 2000: 99)<br />

Desde os primórdios, o homem serve-se dos utensílios<br />

para suas necessidades, não apenas vitais, mas também artísti-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 110


cas. As diversas formas de expressão (verbal ou não-verbal)<br />

mostram o aflorar da sensibilidade, em relação a tudo o que<br />

rodeia o homem.<br />

O homem vem adquirindo essa nova forma de perceber<br />

o meio em que vive com a imagem e a escultura. Através delas,<br />

os seres humanos criam diferentes formas de manifestação. É,<br />

pois, um exemplo de olhar, distante de paradigmas impostos,<br />

aberto ao novo, ao movimento de criar em ação. “A informação<br />

visual é o mais antigo registro da história humana” (DONDIS,<br />

1997: 7) e é através do olhar que a juventude desperta para a<br />

leitura das imagens nos livros. Atualmente, a linguagem verbal<br />

é constantemente enriquecida com contribuições dos meios<br />

eletrônicos. Dessa forma, apre(e)nde-se a realidade, em que os<br />

seres humanos vivem, de modo novo, como a (re)descoberta do<br />

ato de ler.<br />

Em Cibermãe, texto e imagem podem ser grandes aliados<br />

da aprendizagem tecnológica das crianças e (por que não?)<br />

dos adultos. Através do olhar, o leitor percebe o grande panorama<br />

de signos, como imagens fotográficas e os textosimagem,<br />

compondo uma imensa explosão híbrida de ícones.<br />

A linguagem visual é um processo multidimensional e<br />

simultâneo. Numa grande velocidade, a visão transmite ao cérebro<br />

milhares de informações, num contato direto com o exterior,<br />

sem mediações. No entanto, a eficácia da comunicação<br />

visual só pode ser alcançada através de estudo, e não por meio<br />

da intuição e do acaso. De acordo com a imagologia, a imagem<br />

não é mais o que o olhar apreende, mas qualquer segmento da<br />

vida.<br />

Para haver aprendizado com a linguagem visual, os seres<br />

humanos devem considerar inúmeros componentes, como<br />

“o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a<br />

dimensão, a escala e o movimento” (DONDIS, 1997: 51). Ler<br />

requer considerar o global. Todavia, hoje, nota-se a dificuldade,<br />

sentida pelos alunos, na leitura de uma imagem, embora a<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 111<br />

linguagem visual esteja presente em toda parte. Segundo Lúcia<br />

Pimentel Góes, falta-lhes o “olhar de descoberta” (GÓES,<br />

2003: 19), a capacidade de apre(e)nder e devolver as informações<br />

de uma forma inteiramente nova.<br />

Segundo a autora, a leitura é “operação que faz surgir<br />

sentidos no texto, sendo o leitor co-produtor ou co-autor do<br />

texto, visto ser ele quem concretiza esses sentidos e deles se<br />

apossa” (GÓES, 2003: 20). Em Cibermãe, saber ler, percebendo<br />

todas as nuances verbais e não-verbais, faz brotar infinitos<br />

significados no livro, concretizados pelo próprio leitor na prática<br />

do “olhar de descoberta”.<br />

Neste trabalho, vamos discutir o fato de que tanto a linguagem<br />

verbal quanto a não-verbal serem consideradas imagens,<br />

com as quais podemos construir informações. Para isso, o<br />

tema Analfabetismo Visual é uma questão fundamental para<br />

este estudo.<br />

Do latim tardio analphabētus (CUNHA, 2005: 43), a<br />

palavra analfabetismo significa muitas vezes alguém que não<br />

domina a modalidade de leitura e escrita da língua. Nesse trabalho,<br />

a palavra analfabetizado ganha uma roupagem nova,<br />

referindo-se tanto ao verbal quanto ao visual. Assim, o analfabeto<br />

visual é o indivíduo que não domina a leitura de texto e de<br />

imagem.<br />

O alfabetismo significa participação, e transforma<br />

todos que o alcançaram em observadores menos<br />

passivos.(...) o alfabetismo visual (...) eleva nossa<br />

capacidade de avaliar acima da aceitação (ou recusa)<br />

meramente intuitiva de uma manifestação<br />

visual qualquer.<br />

(DONIS, 1997: 231)<br />

Segundo Dondis, cabe à alfabetização visual “construir<br />

um sistema básico para aprendizagem, a identificação, a criação<br />

e a compreensão de mensagens visuais que sejam acessíveis<br />

a todas as pessoas” (DONIS, 1997: 231), de forma nãohierárquica.<br />

Ler uma imagem não significa apenas passar os<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 112


olhos nas figuras, mas compreender alguns pormenores, sugeridos<br />

pelo pintor ou pelo fotógrafo.<br />

O primeiro capítulo do livro Sintaxe da Linguagem Visual<br />

começa com a pergunta: “Quantos de nós vêem?” (Op.cit:<br />

5). Na verdade, muitos são os jovens que lêem, mas poucos são<br />

os que compreendem a leitura. O mesmo processo ocorre com<br />

a imagem. Em Cibermãe, a imagem não aparece como mero<br />

auxiliador da linguagem verbal. Elas falam por si através de<br />

mecanismos próprios para transmitir a mensagem, pois “ver<br />

passou a significar compreender” (DONDIS, 1997: 13):<br />

Expandir nossa capacidade de ver significa expandir<br />

nossa capacidade de entender uma mensagem<br />

visual. A visão envolve algo mais do que o<br />

mero fato de ver ou de que algo nos seja mostrado.<br />

É parte integrante do processo de comunicação,<br />

que abrange todas as considerações relativas<br />

às belas-artes, às artes aplicadas, à expressão subjetiva<br />

e à resposta a um objetivo funcional.<br />

(DONIS, 1997: 13)<br />

Em geral, nos textos impressos, a linguagem verbal adquire<br />

importância maior do que a não-verbal. Já “nos modernos<br />

meios de comunicação acontece exatamente o contrário. O visual<br />

predomina, o verbal tem a função de acréscimo”<br />

(DONDIS, 1997: 12). No entanto, esse pensamento não considera<br />

o sentido de ambos serem polissêmicos e percorrerem<br />

caminhos de descoberta e espaços de escolha. Dessa forma,<br />

percebe-se que a intertextualidade está presente tanto nos meios<br />

eletrônicos quanto no papel impresso.<br />

Em Cibermãe, as linguagens (verbal ou não-verbal) não<br />

se sobrepõem uma a outra. Ambas trabalham para compôr<br />

harmoniosamente cada página do livro. A representação das<br />

palavras transmite uma informação, assim como as imagens<br />

fotográficas. Ambas significam muito mais do que se complementarem,<br />

pois são a própria mensagem.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 113<br />

Segundo Dondis, entendemos a imagem através da representação,<br />

do simbolismo e da abstração. A representação de<br />

uma imagem seria o ícone, formada por elementos básicos elementares.<br />

Já “a abstração voltada para o simbolismo requer<br />

uma simplificação radical, ou seja, a redução do detalhe visual<br />

a seu mínimo irredutível. Para ser eficaz, um símbolo não deve<br />

ser apenas visto e reconhecido: deve ser lembrado, e mesmo<br />

reproduzido”. (DONDIS, 1997: 91)<br />

Para Santaella, o mundo das imagens abrange as representações<br />

visuais e mentais. A primeira refere-se aos “desenhos<br />

pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,<br />

televisivas, holo e infográficas” (SANTAELLA, 2005: 15). Já<br />

na segunda, “as imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações,<br />

esquemas, modelos ou em geral como representações<br />

mentais”. (SANTAELLA, 2005: 15)<br />

Em Cibermãe, o autor brinca com essas duas formas de<br />

representação. A primeira explora a parte gráfica das palavras,<br />

com negrito, itálico, cores e tamanhos. Além do lado gráfico,<br />

há o predomínio da fotografia no livro, que possui “uma característica<br />

que não compartilha com nenhuma arte visual—a credibilidade”<br />

(DONDIS, 1997: 216), ainda que não consiga reproduzir<br />

a ampla visão periférica do olho.<br />

A fotografia é dominada pelo elemento visual em<br />

que interagem o tom e a cor, ainda que dela participem<br />

a forma, a textura e a escala. (...) Em conjunto,<br />

os elementos visuais essenciais da fotografia<br />

reproduzem o ambiente e qualquer coisa, com<br />

enorme poder de persuasão.<br />

(DONIS, 1997: 215)<br />

A forma com que o livro foi produzido remete-nos a<br />

uma espécie de fotonovela cibernética. Considerada como um<br />

subgênero da literatura, a fotonovela é produzida para consumo<br />

rápido, sem maior preocupação artística. Segundo Isabel Galucho,<br />

“têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos,<br />

morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ide-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 114


ologia dominante através da integração da mulher na sociedade<br />

urbana” (GALUCHO). Seus planos e enquadramentos são quase<br />

sempre retirados do cinema. No entanto, Cibermãe foge à<br />

regra, pois sua produção é notadamente brilhante, tanto pelo<br />

cuidado com a linguagem verbal quanto com a não-verbal, como<br />

já foi comentado anteriormente.<br />

Segundo Santaella, a segunda forma de representação é<br />

a mental. Além das diversas formas de se trabalhar o visual no<br />

livro, Cibermãe também discute imagens mentais da nossa infância,<br />

rememoradas através do enredo, questões a serem tratadas<br />

no próximo item. Dessa forma, o livro propõe ao leitor o<br />

exercício da alfabetização, tanto verbal quanto não-verbal, no<br />

aprofundamento da leitura.<br />

3 - A viagem pela literatura<br />

Embora os antigos contos de fadas de nossa infância<br />

continuem a pronunciar suas palavras mágicas,<br />

é fato que a forma como são contados tende<br />

a mudar, refletindo o contexto cultural em que se<br />

inserem.<br />

(BASIEO, 2000: 89)<br />

Os clássicos da literatura universal desde sempre são retomados<br />

através de novas formas narrativas. Em todas as narrativas,<br />

o fascínio, sentido pelo leitor, permanece. Em Cibermãe,<br />

podemos perceber vários contos, inseridos na história. O livro é<br />

uma grande viagem pela tecnologia, pela arte e pela literatura.<br />

Através do recurso das fotografia, a história remete-nos a vários<br />

clássicos da literatura universal, como A bela adormecida,<br />

Odisséia, Viagem ao centro da terra e Alice no país das maravilhas.<br />

A proposta desse trabalho é apontar, de forma sucinta,<br />

algumas viagens por esses clássicos, pois não é nosso intuito<br />

esgotar possibilidades de análise de Cibermãe.<br />

Neste livro, rememora-se a história da menina Alice na<br />

cena em que as personagens escapam dos anti-vírus pelo bura-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 115<br />

co da pia: “Só deu tempo de agarrarem a imagem do bichinho e<br />

fugirem pelo buraco do cano; já se ouviam os gritos dos antivírus”<br />

(JARDIN, 1998: 27), no livro, algumas pontes entre o<br />

mundo virtual e o não-virtual, como os “propulsores virtuais”<br />

ou a cena em que descem pelo modem do computador.<br />

César, Lili e félix se preparavam para a grande<br />

viagem descendo pelo velho modem de Ulisses, o<br />

aparelho que permite a circulação de informações<br />

por meio dos fios telefônicos. O momento favorecia<br />

o sentimentalismo. Ao despedir-se dos visitantes<br />

inesperados, Ulisses sentiu um certo tremor<br />

na voz que o surpreendeu. Mas as crianças nem<br />

tiveram tempo de mostrar sua emoção.<br />

(JARDIM, 1998: 58)<br />

O ambiente em que os três penetraram remete-nos à história<br />

de Júlio Verne, escritor clássico de ficção científica. Assim<br />

como em seu livro Viagem ao centro da terra, três personagens<br />

exploram um novo ambiente de forma extraordinária.<br />

Em Cibermãe, contudo, essa viagem ocorre no centro do computador,<br />

Ulisses: “No fim do túnel, o trio descobriu de repente<br />

o coração da máquina, uma enorme depressão na qual palpitava<br />

a alma de Ulisses” (JARDIM, 1998: 26). O texto recebe a contribuição<br />

da fotografia, que retrata todo aparato de uma máquina<br />

antiga.<br />

Bruscamente, a temperatura começou a subir.<br />

O ar ficou carregado de vapor e fumaça. Assustados,<br />

eles correram para o avesso da tela, procurando<br />

sair da máquina, cuja temperatura continuava<br />

subindo.<br />

(JARDIM, 1998: 28)<br />

No livro de Alexandre Jardin, uma da partes do computador<br />

é marcada pela imagem de um círculo coicidentemente<br />

no centro do livro. Assemelha-se à uma roda ou olho gigante,<br />

que irradia luz. Na verdade, é uma parte fundamental do computador<br />

Ulisses, para conectar-se à rede Internet.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 116


Ulisses resfriou ligeiramente seus chips e contou<br />

aos meninos, surpresos, que os computadores conectados<br />

à rede internet fazem parte da grande<br />

comunidade eletrônica do ciberespaço, onde<br />

vigora uma nova fraternidade universal. Quando<br />

um modesto micro precisa ampliar sua capacidade<br />

ou pedir socorro a um programa especial, os<br />

mais potentes, em Paris, Tóquio ou Chicago, não<br />

deixam de ceder sua potência disponível ou sua<br />

competência!<br />

(JARDIM, 1998: 31)<br />

As personagens seguem à procura pela mãe, agora no<br />

Ciberespaço. Com a digitalização, as crianças entram num site,<br />

onde recuperam “a sensação de si próprios, o raciocínio, assim<br />

como a faculdade de sentir. Nada havia mudado”.(JARDIM,<br />

1998: 31) O reencontro com a imagem da mãe está cada vez<br />

mais próximo. Nessa altura da narrativa, o livro rememora a<br />

Bela adormecida através da imagem de Lúcia. A imagem da<br />

mãe é guardada por Jones, sobre uma espécie de “sarcófago<br />

eletrônico” (JARDIM, 1998: 56). Lúcia, então, transfigurou-se<br />

virtualmente na princesa e os filhos, no príncipe encantado.<br />

Nesse momento, a aparição da mãe eliminou a sensação de<br />

solidão e desamparo, sentida pelas crianças. O beijo, em Cibermãe,<br />

é retratado pela voz, que tem a finalidade de despertar<br />

Lúcia da hibernação.<br />

Ao som de sua voz, o arquivo se abriu e a imagem<br />

virtual da mãe apareceu. Lili perdeu o fôlego.<br />

César ficou boquiaberto. Felix mais ainda.<br />

Lúcia sorriu para eles. Certos momentos no ciberespaço<br />

se parecem com a vida real – e aquele pareceu<br />

o mais real de todos.<br />

(JARDIM, 1998: 58)<br />

Outra história a que o livro faz referência é Odisséia,<br />

pois também ambas retratam uma viagem extraordinária, em<br />

que os heróis deparam-se com muitos obstáculos. Em Cibermãe,<br />

deseja-se reencontrar Lúcia, transfiguração da Penélope<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 117<br />

homérica. Assim, as crianças buscam a imagem da mulher e<br />

seu lado materno, acolhedor, de onde provém cor e vitalidade.<br />

O reencontro das crianças com a mãe ao final da narrativa significa<br />

o retorno à infância, ao início de tudo.<br />

As crianças então perceberam que nunca mais estariam<br />

sozinhas, que sempre seriam ouvidas,<br />

mesmo que não falassem. Era possível, naquele<br />

universo virtual, voltar à vida. Nada neles ficaria<br />

morto. Ao encontrar de novo a mãe, era a própria<br />

infância que estavam reencontrando.<br />

(JARDIM, 1998: 58)<br />

Benedito Nunes considera a criança como um retorno<br />

ao passado, às origens, mas também como “um prenúncio de<br />

um novo ser” (JARDIN, 1998: 58). As personagens, em Cibermãe,<br />

percorrem caminhos que as impulsionam a novas descobertas.<br />

Por outro lado, esse caminhar também significa retornar<br />

à literatura clássica, pois há cenas no livro que se<br />

assemelham muito a algumas situações ocorridas nos contos<br />

clássicos, como a questão da Mãe-Bela adormecida ou a viagem<br />

fantástica.<br />

Essa consciência só é possível, porque o leitor possui<br />

representações mentais de alguns contos, por permearem desde<br />

sempre nosso imaginário. Isso é positivo na medida em que<br />

lança novas formas de desenvolver a potencialidade das personagens<br />

e do próprio leitor.<br />

Conclusão<br />

A proposta de Cibermãe é viajar pela literatura, rememorando<br />

lugares, acontecimentos, também presentes nos clássicos<br />

da literatura universal. Para tanto, utiliza a tecnologia<br />

tanto como um avanço para a sociedade, quanto um progresso<br />

que muitas vezes significa retorno, ao que é primordial.<br />

No entanto, tal retorno não deve ser entendido de forma<br />

nostálgica, mas como semente para novas possibilidades de<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 118


crescimento das personagens na história. O Ciberespaço, então,<br />

serve para fortalecer as relações entre seres virtuais e nãovirtuais,<br />

de forma positiva, desde que o internauta tome as<br />

devidas precauções, já que no espaço virtual, as informações<br />

não estão totalmente seguras.<br />

Cibermãe permite que a literatura seja um meio de viajar<br />

pelas diversas formas de representação verbal e não-verbal,<br />

contribuindo, assim, para a alfabetização verbal e visual. Esses<br />

dois espaços co-existem de forma harmônica no livro, trabalhando<br />

o exercício de um novo olhar.<br />

Esse exercício mostra a necessidade de o leitor buscar o<br />

“olhar de descoberta”. A cada nova percepção visual dos signos<br />

e suas combinações, apre(e)ndemos melhor o mundo. Além<br />

disso, é possível desfrutar o prazer de rememorar alguns<br />

clássicos da literatura universal. Dessa forma, Cibermãe é um<br />

convite ao exercício diferentes formas de leitura de imagens<br />

verbais e não-verbais, fazendo com que o leitor “quebre o que<br />

lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde o ler circula”.<br />

(LLANSOL, 1990: 25)<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BASEIO, Maria Auxiliadora Fontana. No vaivém,da lançadeira:<br />

o retorno do sagrado na literatura infantil/juvenil. São<br />

Paulo, USP, 2000. (Dissertação de Mestrado)<br />

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimolígico Nova<br />

fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,<br />

2005.<br />

DONDIS, A Donis. Sintaxe da linguagem visual. [Trad. Jefferson<br />

Luiz Camargo]. São Paulo, Martins Fontes, 1997.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. MiniAurélio: o dicionário<br />

da língua portuguesa. Curitiba, Positivo, 2006.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 119<br />

GALUCHO, Isabel. Fotonovela.> (último acesso,<br />

30/05/20<strong>07</strong>)<br />

GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de descoberta: proposta analítica<br />

de livros que concentram várias linguagens. São Paulo,<br />

Paulinas, 2003.<br />

JARDIN, Alexandre. Cibermãe: uma viagem extraordinária<br />

dentro do computador. Trad. Estela dos santos Abreu. São Paulo,<br />

Moderna, 1998.<br />

LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa,<br />

ed. Rolim, 1990.<br />

NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo, Perspectiva,<br />

1976.<br />

SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. São<br />

Paulo, Experimento, 1993.<br />

_______. Navegar no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2004<br />

_______ & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica,<br />

mídia. São Paulo, Iluminuras, 2005.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 120


FONOLOGIA E LETRAMENTO:<br />

SUPORTE SEMIÓTICO PARA O ENSINO<br />

DA LÍNGUA MATERNA<br />

Darcilia Simões<br />

UERJ / PUC-SP<br />

Maria Suzett Biembengut Santade<br />

FIMI / FMPFM / UERJ<br />

Aira Suzana Ribeiro Martins<br />

UERJ / CPII<br />

RESUMO:<br />

O texto objetiva-se na pesquisa metodológica voltada para o letramento e<br />

subsidiada por aportes fonológicos de base mattoseana combinados com a<br />

teoria da iconicidade peirceana. A intenção do estudo é subsidiar os professores<br />

alfabetizadores no acompanhamento do processo de aquisição da<br />

escrita, tendo em conta as interferências da fala e sua variação na construção<br />

de um padrão gráfico anterior e intermediário ao domínio da ortografia.<br />

O componente semiótico opera sobre fonemas e grafemas, tirando proveito<br />

das qualidades sonoras e visuais, respectivamente, e deduzindo as regras<br />

produzidas experimentalmente pelos aprendizes na tentativa de grafar sua<br />

fala. Nessa linha de raciocínio, busca-se reconhecer na escrita a competência<br />

fono-ortográfica dos aprendizes de modo a conduzir o processo de ensino-aprendizagem<br />

de forma imagética mais espontânea.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Letramento, fonemas, grafemas, iconicidade.<br />

0 – Preliminares<br />

Aproveitamos o ensejo do II Seminário Internacional de<br />

Fonologia (UFRGS, 20<strong>07</strong>) para tratar das dificuldades no processo<br />

de aquisição da escrita têm sido objeto de muitas e valiosas<br />

pesquisas. Contudo, supomos que em função do nãoinvestimento<br />

na atualização docente, as práticas didáticas nesse<br />

âmbito apresentam problemas variados. Ora surgem modismos<br />

desavisados de condução do processo de ensino-aprendizagem<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 121<br />

que confundem teorias psicológicas com metodologia de ensino<br />

ora entrega-se o processo de aquisição à própria sorte, entre<br />

outras “saídas” extravagantes.<br />

Em nossa prática, temos buscado observar as estratégias<br />

espontâneas dos aprendizes e interpretá-las à luz da descrição<br />

fonológica proposta por Câmara (1953) e da teoria da iconicidade<br />

(C. S. Peirce -1839-1914).<br />

A partir do suporte mattosiano, discutimos a estruturação<br />

silábica em confronto com as soluções práticas produzidas<br />

pelos falantes-aprendizes (mesmo os não-escolarizados) na fala<br />

e na escrita. Com base na iconicidade, observamos a construção<br />

de hipóteses fono-ortográficas que orientam a escrita dos<br />

principiantes.<br />

Como nosso trabalho sempre se realizou por meio do<br />

contato direto com os aprendizes, pudemos acompanhar a evolução<br />

de suas conclusões fono-ortográficas na construção da<br />

escrita, bem como suas conseqüências na leitura oral.<br />

Preocupamo-nos com o aperfeiçoamento da metodologia<br />

de ensino da língua materna como primeira língua (L1) e<br />

temos podido ministrar cursos em níveis diversos (desde a atualização<br />

docente até disciplinas regulares na pós-graduação lato<br />

e stricto sensu em Língua Portuguesa). Nesses cursos, buscamos<br />

discutir as dificuldades experimentadas pelos docentes e,<br />

com eles, decifrar a fala e a escrita dos aprendizes, com vistas a<br />

assessorar-lhes o processo de letramento (aqui entendido como<br />

aquisição do código escrito para fins de leitura e expressão sem<br />

compromisso imediato com o uso padrão). Em outras palavras,<br />

propomos uma metodologia que entende que o letramento básico<br />

deve considerar a variação lingüística para poder interpretar<br />

mais adequadamente as realizações fono-ortográficas dos<br />

neo-letrantes (como denominamos os aprendizes em fase de<br />

aquisição da escrita).<br />

Nessa perspectiva, vimos analisando produções escritas<br />

de neo-letrantes com uma intenção precipuamente pedagógica<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 122


e voltada para a minimização de problemas oriundos da política<br />

do certo&errado pautada na exclusão das variedades nãopadrão<br />

durante o processo de letramento. Entendemos que a<br />

semiótica pode operar como lente para o entendimento das diferenças<br />

diatópicas e diastráticas projetadas nas formas gráficas<br />

construídas pelos neo-letrantes. Isso porque tais formas seriam<br />

interpretadas como índices ou ícones do contexto original do<br />

falante e orientariam o entendimento da forma, suas deduções<br />

hipotéticas e a condução do processo de ensino-aprendizagem<br />

dirigida à aquisição da ortografia do uso padrão sem negar ou<br />

desprezar formas gráficas possíveis em usos não-padrão ou<br />

encontráveis em textos literários.<br />

1 – Desenvolvimento<br />

Neste texto discutiremos algumas impropriedades de<br />

escrita encontradas em produções textuais de estudantes de 6º<br />

ano (antiga 5ª série) do Ensino Fundamental. Além das marcas<br />

de oralidade, identificamos outros aspectos a serem destacados,<br />

próprios do processo de aquisição da escrita, como problemas<br />

de juntura intervocabular e segmentação de palavras, modificação<br />

morfológica dos vocábulos, supressão, troca e uso indevido<br />

de letras.<br />

É importante destacar que, de um modo geral, não observamos<br />

distorções do ponto de vista da coesão e da coerência<br />

textual. Podemos dizer que os textos são ricos em informatividade,<br />

além de serem bastante criativos.<br />

Nosso cuidado, nessa fase de escolaridade, está em eliminar<br />

os problemas fono-ortográficos sem afastar a criança da<br />

vivência da linguagem. Para isso, é importante evitar propostas<br />

de tarefas artificiais e alienadoras, buscando sempre a realização<br />

de atividades contextualizadas, compatíveis com o desenvolvimento<br />

cognitivo do aluno e com as motivações próprias<br />

da faixa etária em que se encontram.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 123<br />

De acordo com Labov (in Neves, 2006), a criança no<br />

processo de aquisição da leitura e da escrita, apesar de já ter o<br />

domínio de uma gramática básica, não tem a capacidade de<br />

variar de estilo, ou seja, ela reproduz o registro de seu grupo<br />

sem qualquer tipo de avaliação social das características dessa<br />

fala. A escola, por sua vez, tenta promover uma mudança de<br />

dialetos, conforme observa Neves (2006), fixando-se nos “erros”<br />

desse registro estigmatizado. Segundo Simões (2006), a<br />

conquista das formas gráficas é algo paulatino e decorrente,<br />

logo, espera-se que a escola assegure ao aluno o domínio satisfatório<br />

da variedade padrão da língua; sem, contudo, deixar de<br />

estimular sua produção lingüística, criando situações que o<br />

levem a expressar-se tanto na oralidade como na escrita de<br />

forma livre e criativa.<br />

Os textos elaborados pelos estudantes, sujeitos a aperfeiçoamento<br />

por meio da reescritura, devem ser respeitados e<br />

valorizados. Dessa forma, eles se sentirão motivados a executar<br />

as tarefas de forma espontânea. Essas produções textuais dos<br />

estudantes oferecem valiosas informações o professor. A partir<br />

de um levantamento das dificuldades ortográficas presentes nos<br />

escritos discentes, é possível elaborar estratégias metodológicas<br />

que visem à resolução dos problemas de forma objetiva e<br />

satisfatória, preferencialmente desenvolvidas com atitude científica:<br />

observando, discutindo, testando e validando ou não o<br />

modelo experimentado.<br />

As primeiras produções textuais do grupo de estudantes<br />

aos quais nos referimos neste artigo nos forneceram importantes<br />

informações sobre suas reais necessidades no plano da escrita.<br />

Veremos nas próximas seções do texto os principais problemas<br />

fono-ortográficos detectados nos textos analisados.<br />

1.1 - Juntura intervocabular<br />

Destacamos os principais exemplos de juntura intervocabular<br />

nas produções textuais observadas:<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 124


Vejamos:<br />

porenquanto porcausa<br />

porexemplo derrepente<br />

agente oque<br />

mecinto<br />

Esses exemplos são vestígios da escrita em cordão, em<br />

que o escrevente transpõe para o espaço gráfico a ausência de<br />

silêncio na cadência frasal, ligando palavras. Vemos vocábulos<br />

fonológicos formados a partir de preposições, pronomes e artigo,<br />

sem força expiratória no contexto em que se encontravam,<br />

unidos a substantivos, pronome e verbo. Como podemos ver, o<br />

aprendiz, nessa etapa do letramento, esporadicamente, ainda<br />

transpõe para a escrita o vocábulo fonológico, subordinando os<br />

espaços em branco às pausas entre as palavras e não entre os<br />

vocábulos formais.<br />

Existe também a possibilidade de o aluno ter a noção<br />

equivocada de que essas construções constituam um único vocábulo<br />

formal. É importante que o professor reserve um período<br />

de sua aula para dar esclarecimentos acerca do problema,<br />

seguido de atividades, tais como isolar os vocábulos e mostrar<br />

aos alunos pequenos textos em que tais palavras apareçam em<br />

outros sintagmas (ou ambientes fonológicos distintos daqueles<br />

com que lidaram).<br />

Ilustrando:<br />

porenquanto por<br />

enquanto<br />

derrepente de<br />

repente<br />

agente a<br />

gente<br />

Oque o<br />

que<br />

Mecinto me<br />

sinto<br />

cinto<br />

O menino não saiu por estar chovendo<br />

O menino não saiu enquanto não<br />

parou de chover.<br />

De manhã ele estava em casa.<br />

Saiu em um repente.<br />

A casa é de Pedro.<br />

Pedro é gente.<br />

O menino não saiu por estar chovendo<br />

O menino que saiu é o Pedro.<br />

Ele me chamou.<br />

Sinto fome.<br />

O cinto está largo.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 125<br />

O exercício de derivar outras palavras a partir dos vocábulos<br />

lexicais também pode ser uma excelente estratégia para<br />

os estudantes fixarem a imagem dos signos.<br />

Exemplificando:<br />

TerraA Terreno Terraço Aterro<br />

Pedra Pedrada Pedreiro Empedrar<br />

Bola Bolada Bolinha Embolado<br />

Introduzir outros nomes entre o vocábulo átono e o tônico<br />

ou fazer o deslocamento de um dos elementos da expressão<br />

podem ser também estratégias de levar o aluno a perceber a<br />

existência de dois vocábulos formais e a necessidade de separá-<br />

los por meio de espaços em branco:<br />

Sinto-me fraco.<br />

Eu me acidentei e sinto do-<br />

Levou um tombo por ler<br />

jornal enquanto caminhava.<br />

res.<br />

A boa gente nordestina é Ele gosta de ouvir repente.<br />

hospitaleira.<br />

Aprendi a admirá-lo por este O povo luta por esta impor-<br />

exemplo de honestidade. tante causa.<br />

A leitura dos verbetes relativos às palavras que compõem<br />

a locução adverbial pode ser oportuna para que se conheçam<br />

os elementos formadores das expressões.<br />

Exemplificando:<br />

Derrepente: sintagma formado pela preposição de<br />

e pelo substantivo repente.<br />

de. prep. 1. relaciona palavras por subordinação e<br />

expressa os sentidos: 1.1.procedência, ponto de<br />

partida, origem (chegou de Minas Gerais) (...)<br />

1.2. lugar onde está o agente da ação ( do alto avista-se<br />

a cidade) (...)<br />

(Houaiss, 2001: 913)<br />

repente. s. m. 1. ação repentina, dito repentino e<br />

impensado 2 qualquer improviso ou verso improvisado<br />

2.1B sextilha 3. MÚS. canto (melodia com<br />

versos improvisados. De r. de súbito; repentinamente<br />

2 B US. Para indicar possibilidade ou dú-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 126


vida; talvez (não gosto disso, mas de r., até aceito).<br />

ter bons r. dizer bons improvisos; ter ditos de<br />

espírito. ter repentes ter ímpetos de mau gênio;<br />

ser inconsiderado no momento. ETIM lat. Repente,<br />

de súbito, de repente.<br />

(Houaiss, 2001: 2430)<br />

É muito importante que o aprendiz tenha a noção de<br />

“palavra” como unidade escrita para o estabelecimento da ortografia.<br />

Acreditamos que a identificação das palavras seja o<br />

primeiro passo para se trabalhar com ortografia.<br />

O professor poderá pedir a reescritura do trecho em que<br />

se verifica uma impropriedade ortográfica como derrepente,<br />

após a leitura com os alunos dos verbetes de e repente, extraídos<br />

do dicionário. Essa leitura será oportuna para a formação<br />

de palavras cognatas do substantivo repente. É ainda interessante<br />

que o aluno observe a palavra em questão contextualizada.<br />

Vejamos um pequeno texto no qual foi empregada uma<br />

palavra cognata de repente:<br />

“(...) Na semana que antecede a Missa do Vaqueiro,<br />

o município de Serrita vive um clima de euforia<br />

e festa folclórica, com vaquejada banda de pífaros,<br />

cantorias, repentistas, aboiadores, além da<br />

Feira de Artesanato. (...)<br />

(Jornal da Feira, março de 20<strong>07</strong>: 2) (grifo nosso)<br />

A elaboração, junto com a turma, de pequenos textos<br />

com o objetivo de empregar as outras expressões que aparecem<br />

no verbete, contextualizadas, como o excerto do periódico, no<br />

qual se observa o emprego da palavra repentista, derivado de<br />

repente (ter repentes, de repente, ter bons repentes, repente,<br />

repentinamente...) é também uma tarefa interessante. Dessa<br />

forma, o aluno ver-se-á obrigado a fazer uso das expressões<br />

trabalhadas em aula, em situações contextualizadas, como a<br />

criação de um diálogo ou uma pequena cena dramatizada.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 127<br />

1.2 - Segmentação das palavras<br />

Foram observadas as seguintes ocorrências de segmentação<br />

de palavras nas redações em análise:<br />

Com migo Falar-mos<br />

a-miga Des-de<br />

De acordo com Cagliari (2002), a segmentação vocabular<br />

incorreta pode ocorrer devido à acentuação tônica das palavras.<br />

Nos primeiros exemplos, com migo, falar-mos, vemos<br />

que o escrevente teve a exata noção dos seus constituintes.<br />

Temos notícias de que, num determinado estágio da língua (cf.<br />

Coutinho, 1974) a preposição com se juntou ao pronome pessoal<br />

migo (com+ migo= comigo). Em falar-mos foi destacada a<br />

desinência número-pessoal da forma verbal infinitiva, onde se<br />

encontra a sílaba tônica da palavra.<br />

A forma a-miga pode estar associada a com migo, em<br />

que migo /miga seriam formas livres que se formariam as construções<br />

a-miga e com migo. A construção des-de pode ser justificada<br />

pelo fato de a vogal da sílaba inicial ser alongada na<br />

emissão verbal. Encontramos uma variação da preposição desde,<br />

a forma des-do, em que o artigo determinante do próximo<br />

substantivo se contraiu com a vogal final da preposição. Essas<br />

regularidades poderiam justificar essas formas encontradas nos<br />

textos, já que a formação de regras é uma tendência natural da<br />

criança.<br />

Essas construções devem ser evidenciadas e trabalhadas<br />

com discussões, e reescritura, pois é importante que a imagem<br />

gráfica das formas fixadas pela escrita ortográfica seja contextualizada<br />

em um texto coerente e coeso.<br />

1.3 - Alteração morfológica<br />

Depreendemos também nos textos analisados alterações<br />

morfológicas das seguintes palavras:<br />

Maitá<br />

(Humaitá)<br />

Doque Lobo<br />

(Haddock Lobo)<br />

Tá<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 128


Percebe-se que tais construções se dão pelo fato de retratarem<br />

a variedade dialetal do escrevente. Logo, é necessário<br />

trabalhar não só a escrita como também a oralidade m sala de<br />

aula. Percebemos também que os dois substantivos são nomes<br />

próprios estranhos ao universo lingüístico do aluno, pois são<br />

topônimos de regiões fora de sua área de movimentação.<br />

1.4 - As transcrições fonéticas<br />

Foram destacados também do grupo das redações analisadas<br />

exemplos de pseudo-transcrições fonéticas.<br />

Vejamos:<br />

fasem familha<br />

salcicha repitir<br />

muintos praneta<br />

pásqua framengo<br />

pessoua enrrita<br />

A pseudo-transcrição fonética foi o tipo de inadequação<br />

de escrita mais encontrada nas produções textuais analisadas.<br />

Tal ocorrência se deve ao fato de o escrevente tentar representar<br />

graficamente a própria fala.<br />

De acordo com Ferreiro e Teberosky (1985), essas incorreções<br />

nos textos mostram um estágio de raciocínio avançado<br />

em relação à escrita. Segundo essas autoras, ao chegar ao<br />

estágio da escrita alfabética, depois de ter passado pelos estágios<br />

da escrita pré-silábica e silábica, a criança percebe que a<br />

escrita tem relações com a fala. A partir de então, ela começa a<br />

tentar descobrir quais são as regras do sistema, representando<br />

os fonemas. No entanto, essa tentativa é feita de modo que o<br />

signo grafado reproduza fielmente o fonema emitido, fazendo<br />

uma correspondência biunívoca, o que nem sempre acontece, já<br />

que oralidade e escrita são dois sistemas semióticos distintos. A<br />

escrita é marcada por regras próprias, muitas vezes, desconhecidas<br />

por aprendizes nas fases intermediárias do letramento.<br />

Os exemplos destacados mostram que os estudantes fazem<br />

o reconhecimento dos fonemas, no entanto, por desconhe-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 129<br />

cerem as convenções ortográficas, resolvem sua dificuldade<br />

estabelecendo que cada letra é símbolo de um som e cada som<br />

é simbolizado por um signo.<br />

As convenções ortográficas que uniformizam, na escrita,<br />

as diferenças observadas na fala são gradualmente incorporadas<br />

pelo estudante ao longo do processo de aquisição da escrita,<br />

num trabalho sistemático, planejado pelo professor.<br />

Diversos estudiosos das questões de alfabetização, entre<br />

eles Nunes (1992), Cagliari (1995), Alvarenga (1981), acreditam<br />

que a consciência fonológica ou o conhecimento dos sons<br />

da língua são itens de grande importância para a correção das<br />

impropriedades ortográficas. Porém, apenas esse conhecimento<br />

não é suficiente para uma grafia satisfatória. É necessário que<br />

os alunos conheçam os motivos dos erros na grafia, conhecendo<br />

os princípios do sistema ortográfico. Como as crianças têm<br />

a tendência a formular regras, poderíamos aproveitar essa característica<br />

natural e, de forma gradativa, levá-los a formular as<br />

regras existentes no sistema ortográfico por meio da observação<br />

das regularidades.<br />

Tomemos um tipo de incorreção como exemplo. As<br />

formas praneta, e Framengo, são variantes desprestigiadas,<br />

refletindo o grupo social a que o usuário da língua pertence.<br />

Conforme observa Simões (2006), o rotacismo que ocorreu<br />

nesse ambiente, isto é, a evolução na fala dos grupos pl- e fl-<br />

para pr- e fr-, é uma tendência fonética natural da língua, já que<br />

na passagem do latim vulgar falado para o português houve<br />

esse fenômeno nos grupos consonânticos bl- cl- fl- gl-. De acordo<br />

com Mollica (1998), essas formas são estigmatizadas<br />

pela variante de prestígio. Logo, caso o indivíduo queira ascender<br />

socialmente, deve eliminar esse estilo de fala e de escrita,<br />

e à escola será delegada a tarefa de promover a correção em<br />

favor da variante de prestígio. Com base nisso, o estudante não<br />

pode desconhecer o fato de que a ocorrência de tais variantes<br />

em sua fala e escrita será um dos motivos pelos quais pode não<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 130


se dar a sua mobilização na escala social. A mudança de registro<br />

tanto na fala como na escrita é, portanto, necessária.<br />

É preciso, para que a mudança ocorra, que o professor<br />

trabalhe não só com a escrita dos alunos como também com a<br />

expressão oral, pois se não houver mudanças na fala, a modalidade<br />

escrita da língua continuará apresentando inadequações.<br />

Leitura em voz alta, elaboração de esquetes para dramatização<br />

com a inclusão e destaque das expressões cujas imagens gráficas<br />

necessitem de fixação, uso de dicionário e ainda material<br />

didático elaborado pelo professor podem são recursos bastante<br />

proveitosos.<br />

2 - Considerações finais<br />

Os estudos sociolingüísticos trouxeram uma imensa<br />

contribuição para que se opere, por parte da escola, uma mudança<br />

no que tange ao tratamento dispensado às variantes dialetais.<br />

Não é mais possível sustentar a ingênua postura de considerar<br />

a homogeneidade da língua, legitimando uma variante<br />

lingüística, no caso, a variante de prestígio. A variação e a mudança<br />

são vistas como propriedades constitutivas da linguagem.<br />

Nas séries iniciais do letramento, é natural que a criança,<br />

na atividade de produção de textos escritos, elabore seu<br />

texto do mesmo modo como elabora um texto oral. Como sabemos,<br />

é dever da escola gerenciar a aquisição da escrita na<br />

variante padrão da língua, porém vemos que essa passagem é<br />

feita de modo traumático, pois toda a bagagem cultural que a<br />

criança traz para a escola é desconsiderada e esta se vê obrigada<br />

a se expressar numa variante lingüística estranha à sua vivência.<br />

Assim, a instituição escolar contribui para tirar toda a<br />

espontaneidade do aprendiz levando-a a escrever de uma forma<br />

artificial e alienante.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 131<br />

Não podemos negar que uma das tarefas da escola é levar<br />

o aluno a ter o domínio da língua na variedade-padrão, tanto<br />

na escrita quando na fala. Entretanto, muitas vezes há uma<br />

grande distância entre o estilo lingüístico com o qual se trabalha<br />

na escola e o estilo que o aluno traz de seu meio social.<br />

Acreditamos que o conhecimento dos aspectos fônicos<br />

da língua seja de extrema importância para o professor trabalhar<br />

com as primeiras séries do ensino fundamental. Esse suporte<br />

dará subsídios ao professor não só de compreender os<br />

“erros” cometidos pelos alunos, como também será de grande<br />

auxílio na busca de soluções dos problemas de ortografia verificados<br />

nas produções textuais.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

ALVARENGA. Leitura e escrita: dois processos distintos.<br />

Educação em Revista. Belo Horizonte: Faculdade de Educação<br />

da UFMG, 1981.<br />

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo:<br />

Moderna, 2002.<br />

_______ Leitura e escrita na vida e na escola. In Revista Leitura.<br />

Teoria e Prática,1995.<br />

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Para o estudo da fonêmica<br />

portuguesa. Rio de Janeiro: Simões, 1953. / Rio de Janeiro:<br />

Padrão, 1977.<br />

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de<br />

Janeiro: Livraria Acadêmica, 1974.<br />

FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da<br />

língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.<br />

HOUAISS, Antônio. Dicionário de língua portuguesa. Rio de<br />

Janeiro: Editora Objetiva, 2001.<br />

MOLLICA, Maria Cecília. Influência da fala na alfabetização.<br />

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 132


NUNES, T. In: ALENCAR, E. Novas contribuições da psicologia<br />

aos processos Leitura e escrita:processos em desenvolvimento.<br />

de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez.<br />

NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática ensinar na<br />

escola? São Paulo: Contexto, 2006.<br />

SIMÕES, Darcilia. Considerações sobre a fala e a escrita.<br />

Fonologia em nova chave. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 133<br />

SEMIÓTICA:<br />

EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO<br />

Dulce Helena Pontes-Ribeiro<br />

UERJ<br />

RESUMO:<br />

O estudo em tela aborda a aquisição e o emprego apropriado do léxico, sob<br />

o viés da semiótica. Para tanto, investigou-se a origem da semiótica e o<br />

dinamismo do léxico, relacionando-os à noção de texto. Está fundamentado<br />

em teóricos do léxico e da semiótica, tais como Baccega (1995), Basílio<br />

(2000), Barcellos da Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin<br />

(2005; 20<strong>07</strong>), Santaella (1983), Simões (2002; 20<strong>07</strong>), entre outros. O artigo<br />

aponta para a vantagem de um entendimento do léxico através das lentes da<br />

semiótica, uma vez que, por ser uma ciência inter-, multi- e transdisciplinar,<br />

favorece o diálogo e o intercâmbio conceitual entre os muitos saberes.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Signo, palavra, discurso, texto.<br />

1 – Introdução<br />

O homem é um ser de linguagem. Agindo nela e por ela,<br />

constitui-se como sujeito na ação do discurso em determinado<br />

tempo e espaço, e se forma na prática social e histórica. A<br />

palavra estabelece uma distinção entre o homem e os brutos.<br />

Pela palavra o homem manifesta seus pensamentos e produz<br />

efeitos de sentido. O cerne do entendimento da realidade, das<br />

ações, é, portanto, a palavra. Esta, no discurso, é vida: cria,<br />

recria e desfaz mundos. Imerso na realidade, o homem é levado<br />

a buscar, no fascínio da palavra, o alento às inquietações e necessidades<br />

básicas de expressão.<br />

A palavra torna-se, então, utensílio necessário para o estar-no-mundo.<br />

Parte-se, aqui, do princípio de que os usuários<br />

de uma língua natural precisam ser cônscios das possibilidades<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 134


dos variados registros. Por essa razão, é de se esperar que o<br />

ensino de língua materna capacite os alunos a se apropriarem<br />

do léxico como um recurso facilitador do projeto de dizer.<br />

Acredita-se que o usuário da língua, muitas vezes, não<br />

realiza de forma eficaz o papel de monitor das combinações e<br />

seleções lexicais, impossibilitando a si próprio atingir com plenitude<br />

o nível de produtividade lexical na justa medida de seu<br />

intento comunicativo. Seu discurso deixa de ser instrumento de<br />

interação, tornando-se obstáculo no jogo comunicativo que se<br />

trava entre locutor / interlocutor.<br />

Há, decerto, urgência de entendimento das várias etapas<br />

do trânsito entre o pensamento e a expressão. Nesse sentido,<br />

torna-se premente a busca de possíveis respostas para o problema:<br />

em que medida a semiótica peirceana contribui para<br />

facilitar a aquisição e a melhor seleção do léxico, a fim de tornar<br />

mais eficaz a expressão comunicativa?<br />

Tal indagação aponta para o seguinte objetivo geral:<br />

compreender a relevância da leitura semiótica para o perscrutar<br />

dos vários sentidos dos signos verbais em textos. No intuito de<br />

operacionalizar a diretriz mencionada, os objetivos específicos<br />

foram assim hierarquizados: investigar a origem da semiótica;<br />

apresentar o léxico e seu dinamismo; demonstrar a relação possível<br />

entre conceitos semióticos e o estudo do léxico nos textos.<br />

Entre os autores consultados, busca-se fundamentação,<br />

sobretudo, em Baccega (1995), Basílio (2000), Barcellos da<br />

Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin (2005;<br />

20<strong>07</strong>), Santaella (1983), Simões (2002; 20<strong>07</strong>) entre outros,<br />

pelo estudo que realizam acerca do léxico e da semiótica, em<br />

diferentes níveis de profundidade e abordagem. Propõe-se uma<br />

reflexão sobre o enriquecimento das possibilidades lingüísticas<br />

dos utentes do léxico, de modo a aprimorar sua expressão a<br />

partir do entendimento do léxico em seu aspecto semiótico.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 135<br />

2 - Origens da Semiótica<br />

Semiótica (do grego semiotiké, a arte dos sinais) é a ciência<br />

dos signos e da semiose. Trata dos fenômenos culturais<br />

como sistemas sígnicos. Tem como foco a significação ou a<br />

representação do conceito, na natureza e na cultura. Seu objeto<br />

é qualquer sistema sígnico. Extrapola o estudo lingüístico que<br />

se atém ao signo da linguagem verbal, para abarcar artes visuais,<br />

fotografia, cinema, música, etc.<br />

Segundo Santaella (1983: 13),<br />

[...] a Semiótica é a ciência que tem por objeto de<br />

investigação todas as linguagens possíveis, ou seja,<br />

que tem por objetivo o exame dos modos de<br />

constituição de todo e qualquer fenômeno de produção<br />

de significação e de sentido.<br />

O primeiro ato de semiose (processo de engendramento<br />

de significado e sentido) remonta a Gênesis, 2; 19-20 (1997:<br />

50):<br />

Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos<br />

os animais dos campos, e todas as aves dos<br />

céus, levou-os ao homem, para ver como ele os<br />

havia de chamar; e todo o nome que os homens<br />

pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro<br />

nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a<br />

todas as aves dos céus e a todos os animais dos<br />

campos [...].<br />

Só no início do século XX, porém, a semiótica adquire<br />

o status de ciência, graças aos trabalhos paralelos de Ferdinand<br />

Saussure e de Charles Sanders Pierce.<br />

Na verdade,<br />

A semiótica propriamente dita teve seu início<br />

com filósofos como John Locke (1632-1704) que,<br />

no seu Essay on human understanding, de 1690,<br />

postulou uma "doutrina dos signos" com o nome<br />

de Semeiotiké, ou com Johann Heinrich Lambert<br />

(1728-1777) que, em 1764, foi um dos primeiros<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 136


filósofos a escrever um tratado específico intitulado<br />

Semiotik.<br />

(NÖTH: 1995: 18)<br />

Saussure foi o criador da designação Semiologia, estudo<br />

dos signos e das leis que os regem. Para ele, o signo é uma entidade<br />

psíquica de relação dicotômica: conceito (significado) e<br />

imagem acústica (significante). Para Santaella (1983: 58),<br />

“Signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto.<br />

Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de<br />

representar, substituir uma outra coisa diferente dele”.<br />

Na esteira de Saussure (Semiótica estruturalista ou Semiologia,<br />

cujo foco são os signos verbais), também estão Lévi-<br />

Strauss, Barthes e Greimas.<br />

A semiologia saussureana trata dos sinais na vida social,<br />

envolvendo tanto a psicologia social quanto a psicologia<br />

geral; distingue o mundo de representação do mundo real. Para<br />

o autor, o signo é sempre imotivado, salvo as onomatopéias,<br />

que são relativamente motivadas. Saussure aponta para dois<br />

tipos de relações de signo: sintagmáticas e paradigmáticas.<br />

a) sintagmáticas – eixo horizontal em que se dá a linguagem,<br />

a fala; relação que o signo mantém com o que está<br />

antes e com o que está depois dele; é o que está em presença.<br />

b) paradigmáticas – eixo vertical; são as relações associativas;<br />

é o que está em ausência. Na frase O pombo passeia<br />

na praça, associa-se o conceito de paz à palavra pombo.<br />

A semiologia, cujo objeto se restringe à fala e à linguagem<br />

humana, passa a ser uma parte da semiótica. Louis<br />

Hjelmslev torna mais complexos os conceitos de signos saussureanos.<br />

Chama de expressão o significante e de conteúdo o<br />

significado. Conteúdo e expressão remetem-se a dois níveis:<br />

forma e substância. É a denominada Semiótica russa ou Semiótica<br />

da cultura, que tem como foco linguagem, literatura e outros<br />

fenômenos culturais, como a comunicação não-verbal e<br />

visual, mito, religião. Nessa perspectiva, estão também Jakobson<br />

e Lotman.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 137<br />

Humberto Eco resume o conhecimento anterior de modo<br />

bem coerente e introduz outros conceitos aos tipos de signos,<br />

a saber:<br />

a) diagramas – representam relações abstratas: fórmulas<br />

lógicas, químicas...;<br />

b) emblemas – figuras a que se associam conceitos:<br />

pombo > paz;<br />

c) desenhos – correspondem aos ícones, às inferências<br />

naturais; são os índices de Peirce;<br />

d) equivalências abstratas – são os símbolos de Peirce.<br />

e) sinais – embora sejam indícios, baseiam-se em códigos.<br />

Exemplo: sinais de trânsito.<br />

Estudioso da Lógica e da Filosofia, Pierce (1839-1914)<br />

também se dedicou, dentre muitas áreas, ao estudo da Lingüística<br />

do ponto de vista de sua classificação entre as ciências psíquicas.<br />

Foi o fundador do Pragmatismo e da ciência dos signos,<br />

a Semiótica, ampliando as noções de signo e de linguagem.<br />

A Semiótica (teoria geral dos signos, dos modos de significar),<br />

para Peirce, é um sistema de lógica. A Fenomenologia<br />

(descrição e análise das experiências do homem) permeia a<br />

semiótica peirceana. O fenômeno é o que é percebido pelo homem,<br />

seja real ou não. Em sua teoria o homem significa tudo<br />

que o circunda, numa concepção triádica. Toda experiência é<br />

formada por três elementos: Qualidade, Relação (termo mais<br />

tarde substituído por Reação), Representação (termo mais tarde<br />

substituído por Mediação).<br />

Nesse estudo, Peirce apresenta as Categorias Universais<br />

do signo com a seguinte terminologia: Primeiridade, Secundidade,<br />

Terceiridade.<br />

a) Primeiridade – percepção, impressão, sentimento – o<br />

fenômeno se apresenta à consciência no seu estado puro, no<br />

instante presente; invisível. É tenro, frágil, original, espontâneo,<br />

livre, superficial, não-analisável. É o sentimento como<br />

qualidade, o que dá sabor, tom, matiz à imediaticidade da<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 138


consciência. Precede a síntese e a diferenciação, oculta-se ao<br />

pensamento. Não se pode tocá-la sem estragá-la. No caso de<br />

um texto, verbal ou não, é a primeira leitura que se faz.<br />

b) Secundidade – ação e reação – conflito da consciência<br />

com o fenômeno, na busca de entendê-lo. A Qualidade da<br />

Primeiridade está encarnada numa matéria que tem existência.<br />

A Secundidade é a corporificarão material, a arena da<br />

existência cotidiana. É a reação em relação ao mundo; é a ação<br />

dos fatos que resiste às fantasias e aos desejos; dá aspecto<br />

factual à existência. É a leitura realizada com compreensão,<br />

aprofundando-se no conteúdo. Em O gato pulou do telhado,<br />

visualiza-se gato / telhado e a ação de pular.<br />

c) Terceiridade – interpretação e generalização do fenômeno;<br />

representação. Da qualidade instintiva ao caráter factual,<br />

à intelegibilidade. É o pensamento em signos; é a representação<br />

da compreensão / interpretação do real. Extrapola o<br />

espectro da estrutura verbal. O homem conecta à frase a sua<br />

experiência de vida. No exemplo O gato pulou do telhado, pode-se<br />

associar gato a outros bichos que andam pelo telhado<br />

(pássaros, ratos...) ou a determinado gato que, por estar com a<br />

pata ferida, não pode pular do telhado; no sentido figurado, por<br />

exemplo, pode referir-se a um homem belo ou a um larápio<br />

despencando de um telhado. Enfim, associa-se à frase dada<br />

uma infindável série de elementos extratextuais.<br />

Para Peirce há três tipos de signos (ou representamen:<br />

que está em vez de, em lugar de; é a interpretação do objeto):<br />

ícone, índice, símbolo.<br />

a) ícone – pela relação de proximidade sensorial, motiva<br />

o signo (p. ex., desenho). Há ícone que também é símbolo,<br />

como é o caso de uma placa de sinal de trânsito: proibido buzinar<br />

(b). O traço em diagonal que corta o desenho é arbitrário,<br />

convencionou-se que aquele traço significa “proibido”.<br />

b) índice – mantém ligação física com o seu objeto; é<br />

parte representada de um todo, como os fios de cabelo de al-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 139<br />

guém. A fotografia, por sua vez, antes de ser ícone (representação<br />

do objeto, motivada), é índice (registro da luz em determinado<br />

momento).<br />

c) símbolo – relação convencionada, imotivada, arbitrária<br />

entre o signo e o objeto.<br />

A semiótica peirceana, dado o nível de generalidade,<br />

não é uma ciência aplicada nem especializada, ela se preocupa<br />

com a relação dos fenômenos para com a verdade.<br />

Há autores que afirmam que a Semiótica não se enquadra<br />

no campo da lingüística, já que ela se desenvolveu com<br />

trabalhos de não-lingüistas. Para esses, ela concentra-se na análise<br />

de domínios de mitos, fotografia, cinema..., isto é, em todo<br />

e qualquer tipo de texto que transmite significados. De fato, ela<br />

surge na área da medicina, com a sintomatologia; depois migra<br />

para os domínios da filosofia. Só mais tarde passa a ser de interesse<br />

das ciências de comunicação.<br />

Santaella (1983) estuda e avalia o texto sob a ótica pluridimensional<br />

peirceana, considerando a gramática (cerceada<br />

pelas fronteiras frase / período / texto) ineficiente para dar conta<br />

de um exame mais profundo de compreensão / interpretação<br />

que envolva a globalidade textual, capaz de extrapolar a natureza<br />

sígnica, transitando do eixo sintagmático para o paradigmático.<br />

Para Peirce, a Semiótica engloba todas as ciências, uma<br />

vez que ela é a ciência dos signos, portanto, geral. O autor apresenta<br />

uma análise dos signos nítida, compreensível, que se<br />

norteia sob uma tríade de relações cujos parâmetros possibilitam<br />

ao intérprete uma dada firmeza por se ater nas fronteiras da<br />

significância do signo.<br />

Em Dubois et alli (1998: 537), lê-se:<br />

A semiologia é a ciência das grandes unidades<br />

significantes do discurso: nota-se que tal definição<br />

da semiologia aproxima-a da semiótica, estudo<br />

das práticas significantes que tem como domínio<br />

o texto.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 140


Essas diferentes concepções de Semiótica ocorrem em<br />

função da delimitação do campo de estudo, da divergência de<br />

pressupostos.<br />

Em suma, a Semiótica é a ciência do signo, e como tal é<br />

imprescindível para o entendimento do léxico e de seu dinamismo,<br />

foco da seção seguinte.<br />

3 - O léxico e seu dinamismo<br />

Ao conjunto de palavras de uma língua, de um indivíduo<br />

ou de grupo, denomina-se léxico. De origem grega (lexicon),<br />

o léxico, em sentido lato, significa vocabulário. Quando<br />

se fala o léxico de uma língua, quer-se dizer todo o vocabulário<br />

de que ela se compõe, um conjunto virtual que, para ser posto<br />

em uso, depende de uma realidade exterior, não-lingüística.<br />

Cada léxico do conjunto lexical de uma língua é formado<br />

por morfema(s), unidade mínima formadora de significados.<br />

Os morfemas podem ser lexicais (lexemas) ou gramaticais<br />

(gramemas). Enquanto os últimos formam uma classe fechada,<br />

limitada, conservadora, por isso dificilmente passível de transformação,<br />

os primeiros (foco deste estudo) estão em constante<br />

renovação, na maioria das vezes, fazendo-se valer dos gramemas,<br />

mas sempre na língua em uso.<br />

O léxico é um conjunto ilimitado. Nele coexistem palavras<br />

de toda ordem: do cotidiano, das modalidades oral e escrita,<br />

empréstimos (estrangeirismos), neologismos, arcaísmos,<br />

jargões técnicos, vocabulários regionais, sociais, gírias, etc.<br />

Cada indivíduo conhece uma parte desse conjunto, e, da<br />

parte conhecida, emprega apenas uma fração. Assevera-se,<br />

inclusive, que o homem conta com um número mais ou menos<br />

limitado de elementos formadores de palavras em sua memória,<br />

mas consegue formar um infindável número de enunciados.<br />

Com efeito, tudo que o homem conhece tem nome, e esse no-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 141<br />

me está inserido no léxico, o qual abarca todo o saber lingüístico<br />

partilhado nas interações interlocutivas.<br />

A verdade é que a legitimação do que diz ou do<br />

que se deve dizer depende fundamentalmente da<br />

chancela da comunidade, do povo – povo que<br />

constrói nações, fortalece impérios, escreve e reescreve<br />

a sua história, vitaliza idiomas: povo que,<br />

por direito, justiça e fato, é o único, legítimo e<br />

verdadeiro “dono da língua”.<br />

(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 146)<br />

Conforme Carvalho (1989: 22), “o léxico de uma língua<br />

é como uma galáxia, vive em expansão permanente por incorporar<br />

as experiências pessoais e sociais da comunidade que a<br />

fala”. Na mesma perspectiva, Baccega (1995: 28) diz que<br />

[...] entre o homem e a realidade, entre o sujeito e<br />

o objeto, há uma mediação, há uma ‘cerca’, há<br />

uma ‘força’ que o impele a perceber essa realidade<br />

de um determinado modo. E a raiz dessa força<br />

é a palavra.<br />

Miranda; Santos; Lacerda (1995: 26) defendem que a<br />

palavra “[...] organiza o caos, dá-lhe contorno de cosmos. Como<br />

bumerangue, retorna a si, e tanto se carrega de energia a<br />

cada solicitação, quanto se desgasta com o excesso de uso”<br />

São as atividades humanas que, ao gerirem mudanças<br />

sociais, provocam transformações no léxico que atendam à sua<br />

emergência expressiva. Assim, a língua refaz-se incessantemente.<br />

Não é estática, mas processo eterno e ininterrupto, movimento,<br />

devir. É o dinamismo do uso corrente que engendra<br />

alterações semânticas responsáveis pela ampliação do léxico.<br />

Reconhecendo a mobilidade sócio-espacial do homem<br />

refletida no acervo lexical de uma comunidade lingüística, Aguilera<br />

(2002: 77) elucida:<br />

[...] a história interna das palavras não pode ser de<br />

maneira alguma isolada de sua história externa”.<br />

Bakhtin (2004: 41) complementa: “a palavra é<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 142


capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas,<br />

mais efêmeras das mudanças sociais.<br />

Embora a linguagem esteja sempre em trânsito, a mudança<br />

só é absorvida se for funcional e aceita pela comunidade<br />

lingüística. As alterações ocorrem com o uso quase automático<br />

dos léxicos. Os enunciados se formam no bojo das necessidades<br />

interativas do homem, gerando incontáveis alterações semânticas<br />

e, por conseguinte, semioses ilimitadas.<br />

A serviço da nomenclatura técnica, por exemplo, o grego<br />

e o latim (línguas mortas?) entram em cena. São lexias que,<br />

como a fênix renascida, ressurgem das cinzas, com aparência<br />

de novíssimas palavras. Concepção ratificada em Baccega<br />

(1995: 32-35), ao afirmar que “o novo é sempre resultado do<br />

que já era” e “[...] o novo está contido nas possibilidades do<br />

velho”.<br />

A dinâmica da renovação lexical é contínua num universo<br />

lingüística e semioticamente elaborado. Como a Semiótica<br />

é a teoria dos signos (dentre os quais está o léxico) e tem<br />

como domínio o texto, é pertinente uma relação entre Semiotica,<br />

léxico e texto.<br />

4 - Relação: Semiótica / léxico / textos<br />

A ciência semiótica – em sua corrente norteamericana<br />

– explicita os mecanismos de produção<br />

de textos, observando os signos que os constituem<br />

em três signos: a) o das qualidades, que tocam<br />

a sensibilidade e despertam a função cerebral;<br />

b) o das relações, que provocam reações<br />

sensitivas deflagradoras de associações entre experiências<br />

vividas e estratégias a desenvolver; c)<br />

o das generalizações, que possibilitam a construção<br />

de leis gerais aplicáveis em situações análogas<br />

futuras.<br />

(SIMÕES, 20<strong>07</strong>)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 143<br />

A Semiótica abre possibilidades para o estudo do léxico<br />

no texto, já que seu domínio é o texto como prática significante.<br />

A Semiótica se efetiva quando deflagra, o raciocínio, que é<br />

o depósito de vivências que esperam o apelo do indivíduo para<br />

virem à tona, seja em seu estado natural ou transformadas, de<br />

modo que possam resolver a questão instaurada. A Semiótica<br />

ensina o indivíduo a “ver” o que está no signo, no seu entorno e<br />

além de suas fronteiras por meio da assimilação e da compreensão.<br />

Orlandi (1996: 2), apud Simões (2002), afirma:<br />

Face a qualquer objeto simbólico, o Sujeito se encontra<br />

na necessidade de ‘dar’ sentido. E o que é<br />

dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios<br />

de significância (delimitar domínios), é tornar<br />

possíveis gestos de interpretação.<br />

A Semiótica pode prestar contribuições ao ensinoaprendizagem<br />

de língua, em especial no âmbito da leitura e da<br />

produção de textos. Essas atividades propiciam ao leitor ou<br />

produtor de texto sair de si para o diálogo numa dimensão para<br />

além da sintagmática e da paradigmática, posto que ele rompe<br />

com o texto, passa pelo contexto e atinge o mundo vivido e<br />

imaginado desse sujeito, onde é possível encontrar eco para<br />

suas expressões. E assim, lendo o mundo, ele compreende e<br />

produz textos com conhecimento de causa.<br />

Não há um abismo entre a atividade psíquica e a expressão,<br />

“[...] não há ruptura qualitativa de uma esfera da realidade<br />

à outra”. Há, sim, um código que permeia essa travessia.<br />

“[...] tudo que ocorre no organismo pode tornar-se material<br />

para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode<br />

adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo”<br />

(BAKHTIN, 2004: 33).<br />

Há de se convir que cada elemento tem um valor distinto.<br />

A palavra, por exemplo, é um material semiótico privilegiado<br />

que se entrecruza com outros tantos elementos semióticos<br />

de valor secundário.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 144


Se não nos voltássemos para a função semiótica<br />

do discurso interior e para todos os outros movimentos<br />

expressivos que formam o psiquismo, nós<br />

estaríamos diante de um processo fisiológico puro,<br />

desenvolvendo-se nos limites do organismo<br />

individual.<br />

(BAKHTIN, 2004: 32)<br />

Como interlocutor, o homem se apropria, muitas vezes<br />

irrefletidamente, das palavras de outrem, que antes lhe eram<br />

desconhecidas, mas que no momento da apropriação algumas<br />

lhe pareceram naturais. E assim, da tensão entre o indivíduo e a<br />

sociedade, emana o léxico, cujo uso / seleção varia de indivíduo<br />

para indivíduo, segundo vários fatores particulares, tais<br />

como: experiências lingüísticas, competência, cultura, idade,<br />

meio social, etc.<br />

Em estado de dicionário, a palavra é um campo neutro;<br />

no texto, todavia, ela assume direções. Ela incorpora tendências<br />

que não são, muitas vezes, as que o usuário pretendeu, mas<br />

que, pela inabilidade de lidar com o jogo discursivo no qual a<br />

seleção lexical é um trunfo, a comunicação / interação não se<br />

efetiva a contento.<br />

Entre um léxico e outro, nas entrelinhas do texto, o sujeito<br />

se envolve, age criando, trabalha os sentidos (segundo o<br />

apelo das mensagens), mobiliza-se em busca da satisfação de<br />

uma necessidade que lhe é inerente: expressar-se. Diante da<br />

multiplicidade não-linear dos sentidos que o texto possibilita,<br />

significados são constituídos, formando liames entre o indivíduo<br />

e a sociedade, o instituído e o instituinte, conduzindo-o à<br />

autonomia. Um conjunto de transformações lingüísticas interage<br />

no universo do enunciador levando-o a apropriar-se do léxico<br />

para estreitar relação com o outro.<br />

Um texto, portanto, é o resultado de um processo de seleção<br />

que o produtor elabora com o fim de comunicar seu intento.<br />

Para tal, organiza e sistematiza as idéias, opta por certos<br />

vocábulos em detrimento de outros, estabelece nexos lingüísti-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 145<br />

cos por meio da coesão e da coerência. Nesse empenho, a semântica<br />

tem papel de destaque, uma vez que o sentido de uma<br />

mensagem não fica por conta apenas do uso das palavras e da<br />

sintaxe, mas atravessa o texto e atinge o domínio discursivo.<br />

Não menos respeitável é a Semiótica. Para Simões (2002),<br />

Adentrar os umbrais da semiótica resulta em reeducar<br />

a percepção do mundo; redirecionar o poder<br />

de captação dos signos e significações resultantes<br />

da interação do homem com seu mundo<br />

interior e com o mundo que o cerca.<br />

No tocante ao ensino-aprendizagem, o professor pode<br />

facilitar ao aluno a aquisição de habilidades que lhe agucem a<br />

percepção e os sentidos, para experimentá-los conscientemente<br />

em várias perspectivas. Assim, essa atividade se torna mais<br />

dinâmica e até mesmo lúdica; passa a ser um jogo que trabalha<br />

com a adivinhação e com a criatividade no que tange a textos<br />

lingüísticos e não-lingüísticos, ampliando as fronteiras de dado<br />

conteúdo e possibilitando sua aplicabilidade.<br />

A opção por uma ou outra palavra revela a singularidade<br />

de cada indivíduo, fruto de um determinado sistema de valores<br />

e de suas idiossincrasias, das leituras que faz do mundo<br />

com o qual interage pela linguagem. Como ser ativo, em permanente<br />

processo, o homem, para interagir, faz do léxico o<br />

depósito de todos os signos que surgem (BASÍLIO, 2000). Esse<br />

material estocado não é usado aleatoriamente, passa por “filtros”,<br />

segundo os grupos sociais a que pertence o indivíduo:<br />

um sujeito social autônomo, mas não independente, uma vez<br />

que está articulado ao mundo, interagindo com seus pares, produzindo<br />

discursos.<br />

Para se enfrentar a questão dos discursos, temos,<br />

portanto, de considerar que a linguagem não é<br />

meramente um exercício de significações circunscritas<br />

individualmente, delimitadas “no” indivíduo.<br />

Há que se perceber o “deslocamento”<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 146


dessas significações: a produção do sentido está<br />

na sociedade, está na história.<br />

(BACCEGA, 1995: 27)<br />

Dessa forma, o léxico assume significado, ao ser inserido<br />

no contexto, no discurso, materializando o pensamento do<br />

sujeito cujo enunciado nada mais é do que uma polifonia do<br />

meio em que vive, das interlocuções de que participou / participa,<br />

seja no contato face-a-face, seja nas interações à distância,<br />

ou em seu papel de interlocutor do discurso midiático. E é<br />

assim que ele se torna mais do que um “eu”, um ser plural.<br />

A título de ponderação sobre a natureza sócio-históricoideológica<br />

da linguagem, Biderman (1996: 6) considera a força<br />

da midia (a da televisão, principalmente) maior do que a da<br />

literatura no papel de ditadora da norma lingüística, de expansão<br />

dos recursos expressivos da língua, contribuindo substancialmente<br />

para com a ampliação do vocabulário comum. A autora<br />

pontua, também, a significativa influência da midia<br />

impressa, em especial sobre a classe dominante, que serve de<br />

modelo aos demais segmentos sociais.<br />

Nesse sentido,<br />

O léxico de todas as línguas vivas é essencialmente<br />

marcado pela mobilidade; as palavras e as<br />

expressões com elas construídas surgem, desaparecem,<br />

perdem ou ganham significações, de sorte<br />

a promover o encontro marcado do falante com a<br />

realidade do mundo biossocial que o acolhe: o<br />

homem e o mundo encontram-se no signo.<br />

(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 142)<br />

Nas práticas sociais, entrecruzam-se múltiplas linguagens<br />

que, permeadas de sentidos, resultam em formas sensoriais<br />

e cognitivas diferenciadas. São combinações discursivas,<br />

gramaticais, lexicais, fonológicas, icônicas...<br />

No nível da produção do texto com ênfase na busca de<br />

compreensão, evidencia-se a articulação em dois planos, o conceitual<br />

e o lingüístico, no estabelecimento de coesão e coerên-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 147<br />

cia textuais. (VAL, 1997). Isso requer habilidade para se selecionar<br />

o léxico na organização das orações, levando-se em conta<br />

a inter-relação entre elas, de modo a sistematizar e adequar<br />

as idéias, preocupando-se com a tessitura textual a elaborar.<br />

O ângulo de visão do produtor deve estar mais atento ao<br />

emprego dos mecanismos lingüísticos, índices observáveis na<br />

superfície do texto. É óbvio que o sentido não se restringe ao<br />

uso de palavras isoladas, nem apenas às relações sintáticas,<br />

mas também ao uso da palavra no texto, dadas às relações de<br />

sentido que transbordam para além dos limítrofes espaços da<br />

superfície textual.<br />

Para Bakhtin (2004: 46), “o ser, refletido no signo, não<br />

apenas nele se reflete, mas também se refrata. [...] O signo se<br />

torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Isso significa<br />

que, se, por um lado, o signo reflete o real, por outro, ele o<br />

transforma. O indivíduo então reproduz e produz linguagem.<br />

Quando se verifica o comportamento do léxico em diversos<br />

textos, é possível observar que<br />

[...] uma das principais características da língua<br />

escrita formal é a neutralização da situação do falante<br />

em termos de individualização; daí evitarmos<br />

utilizar a primeira pessoa e procurarmos tanto<br />

as formas passiva e genérica. Num discurso em<br />

que a individualidade procura se esconder, não há<br />

lugar para expressões subjetivas claras, razão por<br />

que qualquer processo morfológico que tenha<br />

função subjetiva explícita está descartado da língua<br />

formal escrita. Como conseqüência dessa situação,<br />

vamos encontrar marcada diferença entre<br />

o léxico da língua formal escrita e o léxico da língua<br />

coloquial falada, sendo o daquela consideravelmente<br />

mais limitado do que o desta, já que não<br />

permite expressões claras de subjetividade.<br />

(BASÍLIO, 2000: 89)<br />

Pelo excerto, percebe-se que a chamada competência<br />

lexical, defendida pelos gerativistas como sendo o conhecimen-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 148


to internalizado do falante nativo sobre o léxico de sua língua,<br />

abrange itens lexicais e processos de formação que podem ser<br />

diferenciados no texto falado e no escrito. Enquanto o primeiro<br />

incorpora aos itens lexicais matizes afetivos peculiares à fala, o<br />

segundo procura dirimir subjetividades optando pela variante<br />

mais técnica.<br />

A escolha vocabular tende a expressar o ponto de vista<br />

do usuário em meio ao mundo circundante, a saber: sinônimos,<br />

hiperônimos, caracterizações que emanam dos juízos de valor<br />

(positivos / negativos) do enunciador.<br />

Enfim, o sentido do léxico está na práxis, na interação<br />

social. Como essa interação é flutuante, o sentido do léxico<br />

também o é, diferentemente das coisas que existem independentes<br />

de nós. “Quando nos inteiramos com elas, através da<br />

práxis, o que era objeto passa a produto. Já não se trata mais da<br />

coisa ‘solta’, a interação transforma o objeto em produto”.<br />

(BACCEGA, 1995: 39).<br />

O processo de construção de um texto profícuo requer<br />

uma competência léxico-gramatical, incluindo-se aí expressão<br />

e conteúdo. Saberes de ordem fonológica, morfológica, léxica e<br />

sintática, que possibilitam ao usuário: articular e identificar os<br />

sons da língua em sua seqüência; associar segmentos sonoros<br />

aos devidos significados e, por extensão, a seus sentidos no<br />

texto; não infringir as regras da língua ao combinar suas unidades;<br />

detectar construções mal-formadas em decorrência da<br />

transgressão de regras de formação de palavras.<br />

Esses saberes precisam estar articulados aos saberes da<br />

competência pragmático-textual. Nesse sentido, Azeredo<br />

(2000: 49) pondera que o usuário é capaz de manejar os recursos<br />

do componente expressivo da linguagem, tanto em seu papel<br />

de locutor como de interlocutor de enunciados; discernir os<br />

vários sentidos do enunciado: literais, figurados e contextuais<br />

atribuíveis; selecionar, empregar e interpretar palavras, expressões,<br />

construções da língua conforme as convenções de cada<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 149<br />

situação comunicativa; interpretar e elaborar textos coesos e<br />

formalmente adequados aos respectivos propósitos comunicativos<br />

e às diferentes situações discursivas.<br />

Conhecer o léxico, portanto, implica mais que o simples<br />

nomear, envolve o uso adequado de palavras, que só é alcançado<br />

por quem percebe o real com criticidade reconhecendo-o<br />

como o lugar de conflitos e consegue pela palavra articular o<br />

emocional, o volitivo e o cognitivo.<br />

A impropriedade lexical detectada em textos falados e<br />

escritos aponta para a necessidade de um outro projeto de ação<br />

no ensino-aprendizagem, que considere percepção, capacitação<br />

e reflexão sígnica. Sob essa ótica, tem-se maior visibilidade do<br />

fenômeno lexical, uma vez que os sentidos, em simbiose (contribuições<br />

da semiótica), facilitam a interpretação e o uso / seleção<br />

do léxico.<br />

O ato da secundidade move o homem a transitar do indício<br />

a descobertas mais profundas. “A representação icônica<br />

torna possível ao homem operar sobre as coisas e fenômenos,<br />

analisando-as e descrevendo-as por meio de atos de linguagem”.<br />

(SIMÕES, 2002). A semiótica, avessa a dicotomias,<br />

contribui tanto para identificar signos como para analisar imagens,<br />

esquemas, metáforas... favorecendo o raciocínio lógico,<br />

filosófico e fisiológico.<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – Ensino<br />

Médio, Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias<br />

(2002: 123) propõem “a interatividade, o diálogo, a construção<br />

de significados na, pela e com a linguagem”, visando à formação<br />

do aluno para o mundo contemporâneo, considerando a<br />

escola o ponto de encontro entre o pensar e o fazer. Essa exploração<br />

multissígnica é de base semiótica. Mais adiante (p. 126-<br />

127) se lê:<br />

Toda linguagem carrega dentro de si uma visão<br />

de mundo, prenha de significados e significações<br />

que vão além do seu aspecto formal. O estudo apenas<br />

do aspecto formal, desconsiderando a inter-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 150


elação contextual, semântica e gramatical própria<br />

da natureza e função da linguagem, desvincula o<br />

aluno do caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e<br />

social da linguagem.<br />

Fiorin (2005) esclarece:<br />

Cada ciência opera uma determinada redução,<br />

opera com um determinado objeto, e o que a Semiótica<br />

faz é ter como objeto o texto e estudar<br />

quais são os mecanismos que engendram seu sentido.<br />

A Semiótica é um campo muito amplo porque se volta<br />

para qualquer texto, qualquer manifestação de sentido, o que<br />

permite realizar múltiplas leituras, transitar no percurso figurativo<br />

do sentido, responsável pela assimilação do tema de um<br />

determinado texto.<br />

Sob o prisma semiótico (envolta em sensibilidade / reação<br />

/ raciocínio), é possível otimizar a interpretação do fenômeno<br />

simbólico constitutivo da linguagem, em cujo processo<br />

ocorrem as escolhas, momento em que se descortinam “janelas”<br />

com o propósito de alcançar os objetivos pretendidos.<br />

4 – Conclusão<br />

Pelo exposto, chega-se à conclusão de que o ato de expressar-se<br />

é, antes de tudo, marca do homem atuante, é uma<br />

forma de estar no mundo, dinamizando-o; é situar-se com outros<br />

homens; é um meio de desenvolvimento individual, de ser<br />

autêntico; enfim, é um ato de compreensão e expressão humanas,<br />

é emergir-se como sujeito, como autor, que cria mensagens<br />

e as recria, as multiplica, dá-lhes vida, dimensão. O laço<br />

entre o eu e o mundo é a o expressão; efetivá-la com mais eficiência<br />

é tornar-se mais humanizado, tornando-se, portanto,<br />

sujeito da sua própria vida.<br />

Sendo a escola o habitat formalmente responsável pela<br />

educação lingüística, não pode cercear a palavra do aluno, pois<br />

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assim ela cria obstáculos para que sua linguagem se desenvolva.<br />

Se a expressão não aflorar, o homem não sai do casulo. Por<br />

isso, é preciso diversificar os gêneros discursivos em sala de<br />

aula. Já se foi o tempo em que se dava uma série de palavras,<br />

isoladas do contexto, tão-somente com o seu significado (visto<br />

aí como absoluto) para o aluno decorar.<br />

Em sala de aula, as atividades podem ser desenvolvidas<br />

com o fim de ampliar o léxico do aluno. Por exemplo, a elaboração<br />

de paráfrases e resumos é um exercício que possibilita a<br />

percepção da escolha lexical não só por parte do texto original,<br />

mas também pelo aluno na sua prática de refacção. Para tanto,<br />

a escola deve ser o espaço de interação discursiva entre professor<br />

/ aluno, numa pedagogia que conceba o aluno como um ser<br />

fruto de uma história particular e social que se refrata na diversidade<br />

lingüística.<br />

Enquanto não houver uma conscientização do professor<br />

de português de que é preciso aderir a uma virada semiótica<br />

que se sustente em compreensão, produção e recepção de textos,<br />

as propostas do PCN de língua portuguesa continuarão a<br />

soar como vozes no deserto. Os órgãos de fomento ao estudo e<br />

à pesquisa precisam investir na formação de professores de<br />

língua portuguesa, para que finalmente ocorra a (trans)formação<br />

conscientizada do que é o ensino de língua em toda a sua<br />

extensão.<br />

O ensino do léxico a partir do texto, numa abordagem<br />

pragmática, foge ao preestabelecido. As regularidades lingüísticas<br />

dos gêneros a que se submetem os textos colocam o aluno<br />

em contato com situações distintas de uso do léxico, possibilitando-lhe<br />

conhecer determinadas regras e convenções de interação<br />

lingüística, a ponto de fazer com que ele amplie sua<br />

competência comunicativa.<br />

Por que não seguir alguns pressupostos da mídia, como<br />

o de apelar para todos os sentidos do interlocutor, que conseguem<br />

atingir tão bem seus objetivos? Hoje o progresso tecno-<br />

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lógico chegou a muitas escolas, por que não explorar seus recursos<br />

audiovisuais?<br />

É preciso entender o léxico (processo simbólico) sob o<br />

foco da semiótica, extrapolando o espectro da estrutura da linguagem<br />

verbal, isto é, na concepção da terceiridade peirceana.<br />

Hoje, a semiótica peirceana convive com outras correntes<br />

(saussuriana, hjelmsleviana, soviética, greimasiana, barthesiana...)<br />

ampliando seus campos de aplicações: literatura, artes,<br />

som, música, oralidade, televisão... Como ciência inter-, multi-<br />

e transdisciplinar, possibilita o diálogo e o intercâmbio conceitual<br />

com outras ciências: ciências sociais, psicologia, psicanálise...<br />

Por isso pode-se afirmar que a semiótica traz relevente<br />

contribuição no desenvolvimento do repertório do falante.<br />

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MADAMA SUI: MEMÓRIA E EROTICIDADE COMO<br />

FORMAS DE RESISTÊNCIA AO PODER<br />

Eliane Maria de Oliveira Giacon<br />

UEMS<br />

RESUMO:<br />

O romance Madama Sui (1995), de Augusto Roa Bastos, narra a história de<br />

Lágrima González Kuzugüe, uma das amantes de Stroessner, pela releitura<br />

de seus cadernos (memórias) e por entrevistas feitas com pessoas que a<br />

conheceram. Pretende-se trabalhar o elemento erótico demonstrando como<br />

essa tipologia textual das memórias subverte a ordem social e política vigente<br />

no Paraguai num processo de resistência, a fim de que a ideologia<br />

subversiva possa legitimar e minar os alicerces da ditadura. Assim em suas<br />

memórias apócrifas, estruturadas em um texto recheado da carnavalização<br />

com o uso do texto erótico a personagem Madama Sui resiste ao povo, ao<br />

ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois as amantes não aparecem<br />

nos livros da História Oficial. Contudo são seus cadernos (memórias),<br />

que fornecessem ao leitor uma noção histórica de sua passagem pela<br />

vida política e social do Paraguai.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Memórias, erótico, resistência.<br />

Introdução<br />

A obra Madama Sui (1995) de Augusto Roa Bastos tem<br />

como temática a reconstrução da personagem Sui, que foi segundo<br />

Maria Olmos (2005: 8) “uma das amantes de Alfredo<br />

Stroessner” (ditador do Paraguai de 1954-1989). O texto narra<br />

a história de Lágrima González Kuzugüe, a partir da releitura<br />

de seus cadernos e da organização das entrevistas feitas por um<br />

repórter com pessoas que a conheceram. Entre elas está Ottavio<br />

Doria, tutor de Sui, que o ajuda a reconstituir parte da história<br />

dela e muitas vezes o confunde num processo ambíguo de mostrar<br />

e encobrir os fatos. Dela sabe-se algumas coisas, tais como<br />

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que foi apaixonada por Él, um colega de adolescência, por<br />

quem sempre esperou até que a história do fim trágico dos dois<br />

virou a seguinte lenda: após ele ter sido perseguido pela repressão<br />

do governo Stroessner, ele se esconde numa casa e ela vai<br />

ao seu encontro, logo depois eles morrem num incêndio. Contudo<br />

segundo o narrador nenhum corpo foi encontrado no local.<br />

Na recomposição da personagem, além das técnicas<br />

narrativas e dos processos, que serão trabalhados a seguir, há o<br />

uso do texto erótico, que predomina as entranhas da narrativa<br />

memorialista de Sui e de seus narradores. Observa-se, portanto,<br />

que o texto erótico aqui é privilegiado pela intenção metafórica<br />

dos narradores de desvendar o corpo e a eroticidade de Sui, a<br />

fim de subverter a ordem social e política vigente do Paraguai<br />

num processo de resistência, pois segundo Foucault (1979: 41)<br />

“para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder[...]<br />

que venha de baixo e se distribua estrategicamente”, no intuito<br />

de que a ideologia subversiva possa legitimar e minar os alicerces<br />

da ditadura.<br />

A personagem ficcional Madama Sui resiste ao povo,<br />

ao ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois ela<br />

pode ter existido ou não, afinal as amantes não aparecem nos<br />

livros da História Oficial, contudo são seus cadernos, suas<br />

memórias escritas ou orais, que fornecem uma noção de sua<br />

passagem pela vida política e social do Paraguai nas décadas de<br />

60 e 70 do século XX.<br />

Suas relações eróticas com os outros e consigo mesma<br />

são um tributo a sua vida, que se desenrola pela escrita, pois ela<br />

escreve; sua história é escrita por outros e seus atos eróticos<br />

são contados pela narrativa oral, na intenção de moldar um<br />

corpus das intrínsecas relações de poder de seu país durante a<br />

Ditadura Stroessner na década de 50 do século vinte Assim<br />

apesar da personagem não ser consagrada pela Historiografia<br />

Oficial, os fatos que a rodeiam como a Ditadura Peronista da<br />

Argentina e a Reconstrução Econômica do Japão no Pós-<br />

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guerra, contribuem para reconstituir uma época, na qual a personagem<br />

por força da metaficção ganha existência no romance.<br />

1 - Madama Sui<br />

Reconstruir a vida de um personagem histórico no romance<br />

histórico contemporâneo passa em via de regra pela<br />

releitura da vida desse personagem, que pode ocorrer de três<br />

formas: a primeira como releitura da vida do personagem do<br />

que poderia ter acontecido e não foi escrito; a segunda como<br />

aposta para o futuro, na qual muita coisa do que é relatado como<br />

sendo parte da vida de um personagem histórico pode estar<br />

sendo criado pelo romance, que está narrando a história e por<br />

fim o terceiro caso, no qual são as memórias apócrifas de um<br />

personagem histórica, que fornecem dados historiográficos<br />

demarcando no romance a sua existência. No primeiro caso<br />

encontram-se os romances de extração histórica, nos quais aparece<br />

como, por exemplo, o personagem histórico Lope de Aguirre<br />

na obra Lope de Aguirre, príncipe da liberdade (1988)<br />

de Miguel Otero Silva; no segundo há a personagem Evita Perón<br />

em Santa Evita (1996) de Tomás Eloy Martínez e por fim<br />

Lágrima González Kuzugüe, alcunhada de Madama Sui na<br />

obra homônima de Augusto Roa Bastos.<br />

A narrativa da obra Madama Sui reconstrói ficcionalmente<br />

a vida breve e marcante de uma das amantes de Stroessner<br />

(ditador do Paraguai entre 1955 e 1989), cujas biografia é<br />

conhecida pela organização das notas de seu diário executada<br />

por um jornalista que investiga os fatos reconstruindo a vida de<br />

Lágrima Gonzále Kuzugüe, nome verdadeiro de Sui a quem o<br />

narrador autodiegético define como sendo a criollita de fuego<br />

paraguayo-japonesa[...], alias Sui, apócope de la lechuza de<br />

nome suindá (ROA BASTOS, 1985: 48). E para organizar a<br />

vida da personagem, o narrador semelhante a uma ave noturna,<br />

em surdina, vai recolhendo dados e se confundindo proposi-<br />

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talmente ou não o leitor, num jogo, que esconde a sua identidade<br />

como se ele tivesse medo de ser descoberto.<br />

O narrador procura Ottavio Doria, tutor de Sui, que depois<br />

da morte dela se torna um ermitão, a quem comunica, que<br />

ele estava juntando material para escrever sobre Sui. Depois ele<br />

viaja para Manorá, que era tanto sua terra natal quanto de Sui.<br />

Ele esclarece, que viveu na mesma época em que Sui morou no<br />

povoado e que fora seu colega de escola. Suas frases são ambíguas<br />

e causam a impressão de que Sui estivera enamorada por<br />

ele. Como anteriormente na primeira parte da obra o narrador<br />

heterodiegético conta que Sui teve um grande amor a quem<br />

chamava de El e que por motivos políticos, ele havia ficado<br />

foragido. Na segunda parte o jornalista afirma que se distanciou<br />

de Manorá por motivos políticos. Ao citar esse fato, o narrador<br />

autodiegético dessa parte insinua, que ele poderia ser o<br />

grande amor de Sui. Contudo há a questão da morte, pois há a<br />

suposição de que El poderia ter morrido com ela num incêndio,<br />

quando ele fugira da repressão política da ditadura Stroessner.<br />

O narrador autodiegético não só extrai informações sobre<br />

Sui, mas também se põe do lado daqueles que criticam e<br />

expõem os atos do ditador Stroessner do Paraguai, recolhendo<br />

da falas que ao testemunharem sobre Sui, também fazem uma<br />

crítica direta a desestruturação dos padrões sociais do Paraguai<br />

durante a ditadura. Um dos testemunhos colhidos é o de Doria,<br />

que diz El dictador omnímodo encontrou en la prostituición de<br />

la mujer el elemento primario, el más vulnerable pero también<br />

el más eficaz, para promover la corrupción generalizada de la<br />

sociedade (ROA BASTOS, 1985: 128), levando a jovem a um<br />

envelhecimento precoce, pois o ditador aproveitou-se, segundo<br />

o narrador, da sexualidade dela que era algo natural para transformá-la<br />

em um produto de exploração.<br />

O leitor é informado paulatinamente, que Sui perdera os<br />

pais ainda criança e que Ottavio Doria tornou-se seu tutor, a<br />

quem ela incumbio de construir uma escola, na qual ela estu-<br />

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dou com seus companheiros, dos quais há a lembrança nítida<br />

de El, o seu enamorado, que por motivos políticos como já dissemos,<br />

foi embora de Manorá e de Leandro, o jovem com<br />

quem ela teve sua primeira relação sexual. Foi nessa época que<br />

ela aprendeu que os homens eram incompletos e as mulheres<br />

tinham poder sobre eles. Depois ela parte para Assunção, onde<br />

além de dedicar-se ao Balé Japonês, que dirige, ela se torna<br />

uma das amantes de Stroessner. Em seguida, Sui vai ao Japão.<br />

No retorno ao Paraguai, permanece durante algum tempo com<br />

o ditador voltando a viver em Manorá, onde é execrada por<br />

todos. Doria, nessa época, ajuda-a na construção de sua casa,<br />

na qual ela mora com Celina Blanco, uma das bailarinas do<br />

Balé Japonês. Desde a sua adolescência Sui escreve em seus<br />

diários, tanto sobre sua vida íntima como sobre seus sonhos e<br />

devaneios. Um de seus desejos é ser comparada a duas figuras<br />

ímpares da História da América Hispânica: Eva Perón e Madama<br />

Lynch. A primeira de artista de teatro tornou-se amante e<br />

depois esposa de Juan Perón, presidente da Argentina na décadas<br />

de 40 e 50 do século XX; a segunda de prostituta francesa<br />

torna-se esposa de Solano Lopes, ditador do Paraguai na décadas<br />

de 50 e 60 do século XIX.<br />

Sui é um ser exótico descrito pelos relatos orais de Doria,<br />

pelos seus vinte cadernos e por dois narradores que se intercalam,<br />

a fim de recompor um personagem diluído nos fatos<br />

de sua época.Para tanto os narradores utilizam dois artifícios: o<br />

primeiro pela metaficção das memórias da personagem Sui nos<br />

seus vinte cadernos e o segundo, pela reconstituição de sua<br />

vida no romance de forma circular, no qual os relatos de sua<br />

vida e de sua morte vão se encaixando, na intençao de formar<br />

um painel do momento político do Paraguai durante o governo<br />

de Stroessner.<br />

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2 – Memórias versus ditadura Stroessner<br />

Alfredo Stroessner conseguiu chegar ao poder após o<br />

golpe de maio de 1954 e ficou até 1989, quando é destituído<br />

por André Rodriguez em meio de um golpe de Estado.A Ditadura<br />

de Stroessner se manteve no poder por trinta e cinco devido<br />

ao uso de aparelhos de legitimação eficazes e pelo fato do<br />

governo conseguir capitais estrangeiros para promover algumas<br />

melhorias no país.<br />

O Desenvolvimento da ditadura Stroessner têm como<br />

características: a corrupção que mantém o quadro político coeso,<br />

a repressão que utilizou a tortura e os grupos pyrague ou<br />

sóplon, funcionários do Estado, que atuavam como delatores da<br />

população. Além da presença da resistência formada por grupos<br />

no campo denominados: Liga Agrária Cristiana, Hermanos<br />

Franciscanos, Comunidad Cristiana de Bases que foram derrotados<br />

pela ditadura.<br />

Ë no âmbito desse período ou parte dele entre as décadas<br />

de 60 e 70, que vive a personagem do romance Madama<br />

Sui, cujo enredo delimitado por dois narradores recompõe as<br />

suas memórias e o seu perfil com um texto que funciona como<br />

uma aposta contra a ditadura, pois há a pretensão explícita do<br />

autor de não somente montar um painel da época e da vida da<br />

personagem, mas também de demonstrar os efeitos da ditadura<br />

sobre a sociedade e a vida íntima das pessoas.<br />

Assim em consonância com Savietto (2002: 114) podese<br />

dizer que a memória adquire forma a partir das lembranças<br />

“que ressurgem desordenadamente, uma vez que elas são selecionadas<br />

segundo um critério de ordem interna e intrinsecamente<br />

relacionado com os momentos que tiveram papel relevante<br />

em nossas vidas”, os quais são expostos de acordo com a<br />

uma seleção que depende de forma subjetiva daquilo que consideramos<br />

importante.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 161<br />

No caso da personagem Sui, as suas memórias servem<br />

de mote para que os narradores da obra possam não só recompor<br />

a sua vida como também reconstituir um período crítico da<br />

vida política do Paraguai, partindo do particular, do íntimo, do<br />

sensual e do erótico como metáforas do que por forças do politicamente<br />

correto foram escondidos por baixo do “tapete” da<br />

pós-ditadura.<br />

Para tanto, a sua figura é focalizada de forma externa e<br />

interna. Externamente Doria e o narrador autodiegético recompõem<br />

de forma fragmentada do que e de quem teria sido aquela<br />

mulher, cuja vida se confundia com a história daquele período,<br />

pois segundo Doria al final de su vida: mujeres perdidas, desaparecidas<br />

em sua propia leyenda. Eso era lo que entusiasmaba<br />

a Sui. (ROA BASTOS, 1995: 125). Observa-se a idéia<br />

que agradava Sui, era a de poder se perder em sua própria lenda.<br />

E para tanto ela e seus narradores utilizam a memória, a fim<br />

de selecionar dados, que referendam sua passagem por aquele<br />

período da ditadura com elementos, que a legitimam tanto no<br />

âmbito individual como no coletivo.<br />

No individual são os cadernos, que apresentam um panorama<br />

de quem seria Sui, contudo esses cadernos apócrifos<br />

não são encontrados pelo jornalista – o narrador autodiegético.<br />

No coletivo, o único testemunho de sua existência é seu tutor<br />

Doria, que defende a sua pureza e inocência em relação à sexualidade,<br />

pois segundo ele o sexo para Sui era só pel deseo de<br />

atraer y gustar (p. 125) daqueles que estivessem a sua volta.<br />

Para reconstituir a vida de Sui, o jornalista passa por um<br />

emaranhado discursivo, que o leva tanto a refazer a história<br />

política da Ditadura Stroessner, no tocante aos danos cometidos<br />

contra a população e o povo paraguaio como a percorrer os<br />

caminhos que o levam a tentar conhecer a volúpia sexual dessa<br />

mulher.<br />

Em termos, as memórias de Sui colhidas ou relatadas<br />

pelos dois narradores representam uma forma de oposição à<br />

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ditadura, pois segundo Doria el sexo sierve a la mujer como<br />

arma de legítima defensa (p. 126), que a personagem utilizou<br />

para atingir os seus objetivos. Da mesma forma, pode-se dizer,<br />

que o texto erótico roabastiano serve de subterfúgio para analisar<br />

o discurso da resistência ao poder.<br />

3 - Carnavalização do poder via texto erótico<br />

A carnavalização é um termo que tem origem lingüística<br />

no campo semântico do carnaval, uma festa que desde a<br />

Idade Média é um momento em que as pessoas põem as máscaras,<br />

a fim de que elas possam viver uma outra realidade. No<br />

carnaval os limites de hierarquia social somem e um bobo vira<br />

rei e o rei pode andar por entre as gentes de forma oculta.<br />

Nos estudos de Bakhtin (2002) sobre Dostoievski o<br />

termo carnavalização junto a outros como dialogia, paródia e<br />

heteroglosia são propostos e discutidos como mecanismos capazes<br />

de fornecer ao texto ficcional contemporâneo um corpus<br />

lingüístico capaz de reestruturar os signos, agrupando-os de<br />

acordo com os múltiplos significados de uma obra literária.<br />

Assim o conceito de carnavalização sai do âmbito lingüístico<br />

e serve de fundamentação par um novo gênero literário<br />

– o Romance Histórico Contemporâneo, que segundo Menton,<br />

(1993: 44) possui uma característica – a carnavalização, que<br />

consiste nas “exageraciones humorísticas y el énfasis en las<br />

funciones del cuerpo desde el sexo hasta la eliminación”, que<br />

invertem a ordem textual e produzindo um estranhamento, que<br />

construí um novo quadro do mundo no lugar do que fora destruído<br />

pela junção de elementos díspares como os desejos sexuais<br />

e os elementos temporais e espaciais do cotidiano do homem.<br />

A carnavalização via discurso erótico é um traço marcante<br />

desse gênero, que Roa Bastos trabalha em algumas de<br />

suas obras, no intuito trazer à tona as relações de poder, que<br />

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estão escondidas no corpo social do Paraguai e da América<br />

Latina com seus sistemas ditatoriais, cuja história sobre essa<br />

forma de poder segundo Foucault (1979: 231) é um discurso,<br />

“que ainda está totalmente por ser feito”. E, portanto, o discurso<br />

literário ao recorrer ao artifício do texto erótico contribui<br />

como mais uma forma de penetrar nos meandros do poder via<br />

reconstrução dos mecanismos de resistência.<br />

Ao ridicularizar ou exaltar os atos eróticos, o discurso<br />

erótico, como no caso da poética roabastiana, assume diferentes<br />

funções inclusive a de ser um elemento de transgressão às<br />

ideologias de fundamentação históricas, discursivas e de resistência,<br />

que legitimam, ultrapassam e completam o poder, a fim<br />

de se alimentarem dele e nele se inserem, de tal forma, que<br />

quando mais um discurso é produzido,mais a visão dos excêntricos<br />

desmistifica, dessacraliza e contesta a historiografia<br />

formalizada e defendida por quem controla o poder.<br />

No caso específico do romance Madame Sui, o texto<br />

erótico como objeto de desejo “não é todo o erotismo, mas é<br />

atravessado por ele” (BATAILLE, 1987: 122) metaforizando a<br />

sexualidade em relação às diversas concepções de poder sacralizadas<br />

pelo discurso do ditadura, que se fundamenta na “verdade”histórica<br />

contada pelos vencedores e na ação da resistência<br />

subversiva.<br />

Quando o erótico atravessa o objeto de desejo Sui, ele<br />

cria um caleidoscópio, cujo foco de luz branca divide-se em<br />

diferentes matizes, que irão recompor em pinceladas firmes a<br />

história da personagem e a história do período da ditadura Stroessner.<br />

Para tanto o texto não demarcar datas, mas sim deixa<br />

vago, qual teria sido o período em que Sui tornou-se uma mulher<br />

tão desejada, que usava seu corpo ora ingênuo, ora corrompido,<br />

ora envelhecido, ora amado, em função das necessidades<br />

suas e dos outros. Portanto o seu corpo vivo semelhante<br />

ao corpo morto de Evita Perón se torna símbolo de uma resistência<br />

silenciosa, que somente a memória pode recuperar.<br />

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4 - Pontos de resistência das memórias de Sui<br />

Emprestemos uma citação de Marcuse (1968: 201) para<br />

focalizarmos como a resistência dos cadernos apócrifos e dos<br />

relatos evidenciam a presença de Eros na vida de Sui que se<br />

move “pela recordação protestando (grifo nosso) contra a ordem<br />

de renúncia; e usa a memória em seu esforço para devorar<br />

o tempo num mundo dominado pelo tempo”.Logo é possível<br />

dizer que a escrita desse texto funciona como uma aposta contra<br />

o tempo enfrentada pela personagem, que usa as armas da<br />

oralidade e da escrita como formas de resistência a tudo que<br />

está a sua volta, principalmente contra a domínio da ditadura.<br />

Portanto, a Sui do romance é uma metáfora da resistência contra<br />

o povo, a ditadura, a ausência de El, o tempo e a sua existência,<br />

pois esses elementos se opõem ao seu corpo a sua eroticidade.<br />

4.1 - O povo<br />

Sui desde a época da escola era capaz de atrair a atenção<br />

dos homens por seu ar exótico mestiço entre japonês/ paraguaio<br />

e pela sua sensualidade que aos poucos foi se transformando<br />

num forte apelo erótico desenhado com linhas<br />

marcantes por um discurso, no qual a personagem em seus cadernos<br />

escreve com letra miúda os seus desejos sexuais mais<br />

contidos e suas experiências sexuais tanto com os homens como<br />

com outras mulheres. Por trás de cada linha do texto há<br />

sempre uma conotação sublinhar de que o erótico se estende<br />

além do ato sexual apelando para todos os sentidos que a envolvem.<br />

Desde jovem ela possuía uma áurea de eroticidade, que<br />

a levou a alcançar todos os seus objetivos e ao mesmo tempo a<br />

fizeram se afastar das pessoas, pois seus amigos foram poucos,<br />

enquanto proliferaram as histórias sobre sua vida e suas aven-<br />

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turas sexuais, que fizeram dela um símbolo de desejo e rendição<br />

do povo paraguaio.<br />

Ao voltar à sua terra natal bem que ela tentou fazer com<br />

que as pessoas a aceitassem, convidando-os vizinhos e antigos<br />

colegas para festas em sua casa, contudo ela foi rechaçada com<br />

actitud de repulsa, de censura, de odio cerval, [...] cuya solo<br />

presença consideraban um insulto para el pueblo. (ROA<br />

BASTOS, 1995: 1<strong>07</strong>). Não se sabe, porém, se o ódio do povo<br />

contra ela referia-se aos apelos chamativos de sua eroticidade,<br />

à sua vida tida como mundana ou se era pelo fato dela ter sido<br />

amante do ditador, que era ponto de ódio das populações campesinas,<br />

que sofriam com a repressão política.<br />

Desta forma, Sui resiste ao povo na medida em que sua<br />

vida torna-se de domínio público e as pessoas são capazes de<br />

reconhecer em sua figura um ícone de uma época da História<br />

do Paraguai, que não pode ser contada, pois ainda é carregada<br />

de medo das implicações políticas, visto que os mandatários<br />

das perseguições e torturas permanecem nas rodas sociais e<br />

políticas do país do final do século XX.<br />

4.2 - A ditadura<br />

A Ditadura Stroessner consolidou-se assumindo a máxima<br />

de “Paz, Justiça e Trabalho”, contudo para atingir tais<br />

objetivos foram feitas a partir de 1955 alianças entre Colorados,<br />

Epifanista, Democráticos, Liberais e Febreristas para criar<br />

um governo populista, mas havia os “porões” desse período,<br />

cujos crimes políticos dizimaram muitos opositores ao regime.<br />

Entre os opositores estão as ligas campesinas, as universidades<br />

e a igreja católica.<br />

São dois os movimentos da obra Madama Sui em relação<br />

à ditadura semelhante ao que ocorre com as duas faces da<br />

ditadura Stroeesner. Se por um lado, a personagem Sui é segundo<br />

Doria víctima propiciadora en la estrategia de degradación<br />

del país (ROA BASTOS, 1995: 129), por outro ela inte-<br />

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gra-se ao universo da ditadura ao aceitar os meandros que a<br />

levaram a apreciar todas as experiências sexuais e sociais como<br />

o Concurso de Miss, as viagens propiciadas pelo ditador ao<br />

Balé Japonês, que a levaram ao Japão e o contato íntimo com<br />

Friné, uma das amantes do ditador.<br />

No desenrolar do romance os movimentos da personagem<br />

ora a aproximam, ora a distanciam da ditadura, semelhante<br />

a uma mariposa, que tem fascínio pela luz, que pode consumi-la,<br />

mas mesmo assim, Sui está sempre no raio da ditadura<br />

até o ponto em que para salvar El, o seu amor de infância ela<br />

ensaia um movimento de oposição,mas aí é tarde. Sobra para<br />

ela, então ir ao encontro de seu amado, sumindo com ele no<br />

meio do fogo que os consome.<br />

Passar pelo fogo para imortalizar-se foi uma das formas<br />

de resistência à ditadura encontrada pelo narrador heterodiegético<br />

para redimir a personagem, pois segundo ele una vida errada<br />

puede rescatarse cerrando su círculo a través del fuego<br />

purificador, junto a la persona amada. (ROA BASTOS, 1995:<br />

300), que fez com que Sui passasse do plano humano para se<br />

tornar uma lenda, pois não há indícios nem de sua vida, nem de<br />

sua morte, visto que são apenas os relatos orais e a suposta existência<br />

de vinte cadernos, que irão pautar os dois narradores<br />

num emaranhado discursivo, no qual um painel da personagem<br />

vai sendo traçado num jogo sensual de mostrar e encobrir.<br />

4.3 - Solidão / El<br />

Para ella había un solo y único El.<br />

(ROA BASTOS, 1995: 188)<br />

El sem nome ou sobrenome, poderia ser qualquer homem<br />

por quem Sui se apaixonou e a quem dedicou não só seu<br />

amor como também boa parte de suas memórias contida em<br />

seus cadernos. Ali se encontra quase que uma devoção religiosa<br />

a ele como se fosse um “homem-deus” ou um “deushomem”<br />

por quem a personagem suspira e mantém um culto<br />

religioso apregoado em suas escrituras.<br />

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Seus cadernos apócrifos sustentam uma forma de resistência<br />

a ausência daquele, cujo nome não poderia ser pronunciado,<br />

por dois motivos distintos: um relativo a suas convicções<br />

políticas, que o fizeram um fugitivo e outra não muito clara,<br />

mas possível de perceber nas entrelinhas do texto, que se ele<br />

fosse nomeado e substantivado, como sendo um mito criado<br />

por Sui, a fim de manter um sentido, um norte e um destino<br />

para sua vida.<br />

No final da obra, o narrador diz que nenhum corpo foi<br />

encontrado nas cinzas da casa queimada, deixando em dúvida<br />

tanto se Sui existiu como se El não passou de uma criação dela<br />

como forma de resistir a solidão, que pairou sobre sua existência.<br />

4.4 - O tempo<br />

O tempo consiste num fator determinante para o desenvolvimento<br />

da enunciação de um texto literário, que pode ser<br />

demarcado por datas, períodos históricos e por fases da natureza.<br />

Contudo Cronos é implacável com o personagem seja ele<br />

histórico ou ficcional, pois em ambos os casos eles podem desaparecer<br />

se não houver alguém que cante os seus feitos, fazendo-os<br />

reviver a cada momento nas próximas gerações.<br />

E como pode o ser humano, um simples, mortal sobreviver<br />

a esse deus, que engole tudo por onde passa? A sobrevivência<br />

de cada ser depende de como ele é capaz de escrever a<br />

sua história e deixar o registro de sua vida. Nessa tentativa de<br />

imortalizar-se e ao seu tempo o homem utiliza muitas formas<br />

desde os desenhos nas pedras até as formas mais íntimas como<br />

os diários e as memórias, escritas por ele mesmo ou pelos outros,<br />

a fim de perpetuá-lo.<br />

Uma outra forma encontrada pelo romance consiste na<br />

escrita de textos, que recuperam, reelaboram, reescrevem no<br />

âmbito da ficção as memórias de um personagem histórico ou<br />

literário, a fim de romper as barreiras do tempo, que o encerra-<br />

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am em uma época e substantivá-lo com um invólucro memorialista,<br />

no qual um personagem, como é o caso de Madama<br />

Sui atravessa as páginas de um texto contribuindo para que a<br />

obra literária seja aquella cuyo final recuerda siempre el comiezo,<br />

cerrando el círculo del relato. (ROA BASTOS, 1995:<br />

300), que é capaz de reviver a trama de um tempo, no qual Sui<br />

viveu e escreveu seus cadernos como forma de resistir ao tempo,<br />

na intenção de demonstrar a sua existência.<br />

4.5 - A existência<br />

Dar vida a um ser inanimado numa obra literária é um<br />

processo, que está presente em várias obras como as de Monteiro<br />

Lobato, as dos fabulistas e dos contistas das histórias infantis,<br />

que povoaram e povoam o imaginário de muitas gerações,<br />

mas dar vida a um personagem, cujos dados sobre sua<br />

existência histórica são duvidosos ou estão contidos em cadernos,<br />

cujas páginas não foram encontradas, consiste num trabalho<br />

de garimpo, que um narrador autodiegético da obra Madama<br />

Sui, personificando num jornalista sai a procura de pessoas<br />

e dados, que pudessem confirmar a existência de Sui a quem<br />

atribui-se na narrativa que ela seguiría inventando sua vida a<br />

casa día. (ROA BASTOS, 1995: 276), num processo de escrita,<br />

no qual os dados procurados pelo jornalista a respeito dela<br />

poderiam não existir e os fatos que lhes deram origem foram<br />

criados pela personagem, fechando-a personagem num círculo<br />

fogo, semelhante a lenda do escorpião.<br />

Diziam os egípcios, na tradição oral, que o escorpião,<br />

seguidor da deusa Isis, se fosse colocado num círculo de fogo,<br />

ele morreria vítima de seu próprio veneno, antes de ser consumido<br />

pelas chamas. A propósito, esse relato lendário ou não<br />

vem ao encontro de existência da personagem Sui, que percorre<br />

a trajetória do romance focada por dois narradores, que ora a<br />

expõem de forma explícita, ao apresentar seu corpo, sua eroticidade,<br />

suas idéias e sua existência com num discurso, que a<br />

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colocam no centro de um círculo de fogo, ora envolvem-na<br />

num halo esfumaçado, que lhe dá um ar fantasmagórico, que<br />

pode ser considerado um processo de desconstrução e construção<br />

da personagem, pois sua existência- vida e morte- advém<br />

do fato de que nada sobrou dos seus cadernos, de suas memórias,<br />

de sua casa, de seu povoado e de sua existência, visto que<br />

nadia la há visto entrar em el vientre em llamas de tarumá. Se<br />

formara la leyenda de su desaparición fantasmal. ( ROA<br />

BASTOS, 1995: 300), que passou a fazer parte do imaginário<br />

coletivo de um povo e de uma época, que o romance roabastiano,<br />

numa construção perpendicular entre memória e discurso<br />

reconstrói a vida da personagem expondo todas as amarras do<br />

texto para compor uma narrativa de extração histórica.<br />

Conclusão<br />

As técnicas aplicadas pelo autor dão ao romance algumas<br />

características, que o fazem uma obra fundamentada na<br />

construção de uma narrativa, na qual prevalece o uso das memórias<br />

sejam elas coletivas, pessoais e apócrifas sobre um determinado<br />

momento da ditadura Stroessner,quando um personagem<br />

surge das cinzas como a Phoenix, a fim de iluminar o<br />

caminho labiríntico pelo qual o leitor possa atravessar na busca<br />

de um texto que demarca no romance a sua existência, extraindo-a<br />

do universo lendário.<br />

Para tanto a abordagem roabastiana, nessa obra, em seu<br />

caráter metaficcional usa técnicas narrativas centradas nos seguintes<br />

pontos: a dualidade dos narradores, os discursos de<br />

oposição ao poder com o uso da carnavalização apoiada no<br />

texto erótico, a exaltação do corpo e do desejo em Sui como<br />

metáfora de resistência ao povo, à ditadura, ao tempo e a solidão.<br />

E por fim a presença das memórias apócrifas escritas em<br />

vinte cadernos dedicadas a cada ano de vida da personagem,<br />

nos quais a cada dia a dia, ela num ato de auto-afirmação, mol-<br />

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da-se, se inscreve e se escreve numa histórica de um tempo<br />

perdido na memória do povo paraguaio.<br />

O ato de criação da ficção roabastiana vem reafirmar a<br />

capacidade do gênero Romance Histórico Contemporâneo como<br />

um espaço singular, no qual é possível a desmarginalização<br />

tanto quanto aos temas como quanto à forma, pois o exercício<br />

de uma variedade textual possibilita o uso do texto erótico funcionando<br />

como um elemento estranhamento, que de dentro da<br />

estrutura da obra toma Eros como uma forma de transgressão<br />

das noções discursivas vigentes na intenção de dessacralizar o<br />

poder com a pretensão de dar voz ao outro, pois “a voz do outro,<br />

voz socialmente determinada, portadora de uma série de<br />

pontos de vista e apreciações” (BAKTHIN, 2002: 192), desmonta<br />

os mecanismos ideológicos legitimadores do poder.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoievski. Trad.<br />

Paulo Bezerra. 3.ed.Rio de Janeiro: Forense,2002.<br />

BATAILLE, G. O erotismo. 2.ed. Trad. Antonio Carlos Viana.<br />

Porto alegre: L& PM, 1987.<br />

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 7 ed. Trad. Fernando Tomáz.<br />

São Paulo: Bertrand Brasil, 2002.<br />

CHIAVENATO, J. C. Stroessner: Retrato de uma Ditadura. 2<br />

ed.São Paulo: Brasiliense, 1980.<br />

DURIGAN, J. A Erotismo e Literatura. 2.ed. São Paulo: Ática,<br />

1985.<br />

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 2.ed. Trad.Roberto<br />

Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979.<br />

HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria<br />

e ficção.Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1999.<br />

MARCUSE, H. Eros e civilização: uma crítica ao pensamento<br />

de Freud. 2 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar,<br />

1968.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 171<br />

MENTON, S. La nueva novela histórica: definiciones y origenes<br />

In: La nueva novela historica de la América Latina. México:<br />

FCE, 1993, p. 29-66.<br />

OLMOS, M. Tema IX: Mito, história y exílio em la narrativa<br />

de Augusto Roa Bastos. Disponível em<br />

http://www.webe.laencrucijada.com/hispanica/optativas/. Acesso<br />

10/02/2006.<br />

ROA BASTOS, A. Madama Sui. Asunción-PY: El Lector,1995.<br />

SAVIETTO, M. C. Baú de Madeleines: o intertexto proustiano<br />

nas memórias de Pedro Nava. 1 ed. São Paulo: Nankin Editorial,<br />

2002.<br />

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UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO<br />

ROMANCE DE ISABEL RAMOS<br />

Elisabete Carvalho Peiruque<br />

UFRGS<br />

RESUMO:<br />

O texto, centrado no romance Está uma noite quente de verão, de Isabel<br />

Ramos, analisa as representações literárias das relações interpessoais no<br />

mundo em transformação acelerada de nossos dias. Na perspectiva de teóricos<br />

da literatura e de sociólogos, toda a ficção fala da época de sua produção,<br />

não importando a excelência literária. O romance analisado coloca-se<br />

como discurso da cultura de massa, remetendo para a não-separação entre<br />

produção erudita e popular da pós-modernidade.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Romance, cultura de massa, pós-modernidade, relações interpessoais.<br />

O fascínio por histórias que misturam realidade e invenção<br />

faz parte de nossa aparelhagem mental. Nosso gosto<br />

pela ficção - já presente na infância quando as histórias infantis<br />

alimentaram nossos sonhos e acalmaram nossas ansiedades –<br />

constitui o gérmen do romance e da sua receptividade, estendendo-se<br />

isso pela narrativa filmada. Último dos gêneros na<br />

história da literatura, o romance é considerado por Roger Caillois<br />

(1974) e Lucien Bóia (1998) como documentos da época<br />

de sua produção, enquanto Walter Mignolo, desmentindo a<br />

categoria unicamente representacional do romance, expressa<br />

sua crença na força do mesmo. Considera ele que o romance<br />

não deve ser lido apenas como objeto de estudo, e, sim, “como<br />

produção de conhecimento teórico; não como ‘representação de<br />

algo’, sociedade, idéias, mas como reflexão à sua própria moda<br />

sobre problemas de interesse humano” (2003: 305).<br />

Partindo dos pressupostos teóricos acima mencionados,<br />

as reflexões que se seguem têm por objetivo examinar o ro-<br />

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mance da escritora portuguesa Isabel Ramos, Está uma noite<br />

quente de verão, datado de 2005, como portador de uma teoria<br />

e como o registro muito específico de um certo tempo. A perplexidade<br />

que fica no leitor, após a sua leitura, deve-se talvez<br />

ao fato de o romance – em princípio tradução da realidade de<br />

maneira estética – dizer tão pouco, parecendo bastante colado à<br />

realidade. Isabel Ramos, num aparente ‘desenredo’, conta os<br />

desacertos de Mariana com a vida, numa narrativa linear, com<br />

uma voz a falar quase sempre do presente vivido a cada momento.<br />

O mundo da personagem é o nosso mundo em processo<br />

de transformação acelerada neste tempo que se costuma chamar<br />

de pós-modernidade ou modernidade final – continuação<br />

ou oposição à modernidade (?) – e que vem sendo estudado por<br />

sociólogos como Anthony Giddens e Zygmunt Bauman. Ambos<br />

acusam como uma das suas marcas maiores a alteração das<br />

relações inter-pessoais. Zygmunt Bauman comenta o fato de<br />

que, apesar de mudanças terem sido sempre a tônica da vida,<br />

“nunca antes [elas] foram tantas nem tão profundas e o [seu]<br />

rápido aumento [em] quantidade e profundidade torna muito<br />

mais difícil a permanente tarefa humana da auto-orientação”.<br />

(2000: 147 - 148). Por sua vez, Anthony Giddens afirma que:<br />

entre todas mudanças que estão se dando no<br />

mundo, nenhuma é mais importante do que aquelas<br />

que acontecem em nossas vidas pessoais - na<br />

sexualidade, nos relacionamentos, no casamento e<br />

na família.<br />

(2000: 61)<br />

O panorama alterado do “mundo em descontrole” – para<br />

usar da expressão do mesmo Giddens – vai desaguar no romance,<br />

lembrando que o que está na vida vai para a arte, e de<br />

modo especial, para a narrativa ficcional – ainda que não de<br />

forma mimética.<br />

Não chegando a convencer como obra de ficção pelas<br />

qualidades literárias, - embora levando à reflexão pelo gosto<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 174


amargo que deixa sua leitura – o romance de Isabel Ramos,<br />

entretanto, apela para sensibilidades exacerbadas pelas mudanças<br />

constantes dessa modernidade tardia – porque possivelmente<br />

resultado delas – modernidade que nos atropela com seus<br />

valores e desvalores convivendo em pé de igualdade. Huyssens<br />

(apud HARVEY, 1992: 45) sublinha tais sensibilidades integrantes<br />

das sociedades ocidentais como resultados de “uma<br />

notável mutação” e, dir-se-ia, inegável mutação de que o romance<br />

dá conta. Mariana vive uma relação atormentada com<br />

David e, em meio a essa confusão de sentimentos, encontros e<br />

desencontos em que se droga, bebe e fuma incessantemente,<br />

relaciona-se sem preconceitos com outros homens. O romance<br />

dá a medida de uma geração para a qual não é problema o sexo<br />

promíscuo a não ser como perigo da Aids, isto é, sem problemas<br />

morais. São suas essas palavras ao fim de uma aventura:<br />

“Era um final feliz para mais uma amizade colorida” (2005:<br />

60). Atente-se no advérbio ‘mais’ como representação de uma<br />

idéia que veio criando corpo de modo a tornar-se a marca dos<br />

relacionamentos entre as últimas gerações.<br />

Mariana, nem tão jovem, pois já anda perto dos quarenta<br />

anos, representa a geração que iniciou pelos finais dos anos<br />

sessenta, início dos setenta. Sua vida é o que Bauman denomina<br />

de “coleção de experiências” dessa segunda revolução sexual<br />

que temos diante dos olhos (1998: 184). A falta de sentido<br />

da vida, os personagens como que à deriva, a banalização do<br />

uso das drogas e do sexo que constituem a narrativa são como<br />

que um retrato das pontas do iceberg oculto que está sob nossos<br />

pés e do qual ainda não sabemos a dimensão real.<br />

Espécie de reportagem da época em que vivemos – e<br />

por isso mesmo podendo parecer o já referido discurso por demais<br />

colado ao real –, o romance de Isabel Ramos coloca algumas<br />

perguntas nas entrelinhas. O que quererá dizer a escrita<br />

de uma vida aparentemente sem sentido? O que quererá dizer<br />

essa narrativa do sem-sentido ao lado da busca do amor, da<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 175<br />

experiência das amizades verdadeiras? Dentro de tal perspectiva,<br />

são significativas as opiniões de Roger Caillois e Lucien<br />

Bóia sobre a narrativa de ficção. Separados por um longo tempo<br />

nas suas reflexões, coincidem, entretanto, em suas posições<br />

sobre o valor do romance como elemento aferidor do social.<br />

Para o primeiro, o romance deve ser estudado como um fato<br />

social, fora do âmbito das letras, não importando sua qualidade<br />

literária nesse caso (1974: 161), enquanto Lucien Bóia reitera<br />

tal opinião a partir de estudos mais recentes sobre o imaginário.<br />

Para esse último, “do ponto de vista da história do imaginário,<br />

a excelência literária pouco conta; ela é de modo geral menos<br />

instrutiva que a representatividade”. Ele acrescenta então a<br />

necessidade de percorrer um sem número de obras medíocres e<br />

de qualidade duvidosa para apreender “os pensamentos e sonhos<br />

de uma época” (1998: 44). Os dois teóricos vêem os romances<br />

policiais e os folhetins, por exemplo – e, por extensão,<br />

outras obras menores em termos de valor literário –,como importantes<br />

para a decodificação de sensibilidades de um determinado<br />

tempo, lado a lado com os grandes monumentos da<br />

literatura.<br />

A personagem Mariana é uma solitária, ainda que tenha<br />

amigos e amigas. Quer encontrar o amor que está representado<br />

– e, ao mesmo tempo, não está –, em um David que vai e volta<br />

para um convívio tumultuado, para no final cindir a vida entre<br />

o relacionamento com ele e com outro. O que fica como uma<br />

leitura possível é a dissociação entre o amor e o exercício da<br />

sexualidade sem afeto, levando a pensar os valores da juventude<br />

ou, pelo menos, da primeira onda de uma modernidade tardia<br />

esboçada nos anos setenta e agora estabelecida, ao que parece,<br />

para valer, com seus códigos de comportamento sendo<br />

válidos para os filhos e netos dessa geração. Ainda, como saldo,<br />

fica uma reflexão sobre a banalização do que até não muito<br />

tempo era considerado como aspecto negativo das relações.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 176


O romance em foco remete para a cultura de massa.<br />

Não se pode esquecer que essa facilita leituras com a identificação<br />

de uma sociedade que não sabe lidar com seus problemas<br />

e projeta suas expectativas de solução nos textos literários de<br />

qualidade inferior, no cinema para circuito comercial e, evidentemente,<br />

na telenovela. Dentro de tal contexto, Bauman em<br />

Amor líquido faz referência a uma série televisiva inglesa rotulando-a<br />

como repetição por falar do que é do conhecimento<br />

geral. “Reafirmações regulares e confiáveis para a pessoa insegura:<br />

sim, esta é a sua vida, e a verdade sobre a vida dos outros<br />

como você” (2004: 42). Está uma noite quente de verão está<br />

antes incluído na categoria de arte comercial - resultado de uma<br />

pós-modernidade - do que na de um romance pós-moderno.<br />

Narrativa linear, seguindo modelos de uma literatura tradicional,<br />

foge ao que se costuma chamar romance contemporâneo<br />

pelo alto nível de complexidade que esse carrega. Contudo,<br />

confere com a falta de profundidade das obras pós-modernas<br />

apontada por Eagleton, possível conseqüência talvez da tentativa<br />

da não separação entre produção erudita e produção popular.<br />

Ele vê a produção da cultura do pós-modernismo como:<br />

(...) uma arte superficial, descentrada, infundada,<br />

auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética, pluralista<br />

que obscurece as fronteiras entre e a cultura<br />

‘elitista’ e a cultura ‘popular’.<br />

(1998: 7)<br />

Bauman, o sociólogo do mundo líquido, ressalta a falta<br />

de compromisso bem como a inconsistência que caracterizam<br />

as relações afetivas nos dias de hoje, fatos sobejamente retratados<br />

na vida da personagem de Isabel Ramos. E, dir-se-ia, relações<br />

superficiais, porque dão conta de um mundo dos afetos<br />

que assim o é. O romance é superficial, como sua personagem<br />

e, neste sentido, ainda um documento da subjetividade de uma<br />

época, para usar palavras de Vargas Llosa (1991: 19) que reiteram<br />

o pensamento de Lucien Bóia.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 177<br />

Não sendo intenção dessas reflexões entrar especificamente<br />

nas discussões sobre o que é pós-moderno, sem que,<br />

contudo, seja possível omitir as evidentes relações, a análise<br />

centrada nas personagens indicia comportamentos típicos de<br />

nossa época representados por sensibilidades para captação e<br />

para a recepção das representações do mundo líquido, em que<br />

as coisas de hoje já saciaram os consumidores porque o mundo<br />

promete outras e mais intensas experiências para um amanhã<br />

que vem logo após. Consomem-se relações como se consomem<br />

os objetos que a sociedade do capital produz sem cessar.Eis o<br />

que um dos companheiros de Mariana deixa explícito: “Posso<br />

te dizer que ela me foi muito útil, no sentido prático da questão,<br />

ou seja, através dela conheci muita gente ligada à música”<br />

(2005: 226). Nesta linha de pensamento o, o conceito de Mireille<br />

Calle-Gruber sobre o romance como espelho privilegiado<br />

do mundo (1991: 12) é altamente significativo. O romance<br />

mostra o ‘dentro’ e o ‘fora’ das personagens, e é o mundo em<br />

que tudo é mercadoria que a narrativa de ficção – seja cultura<br />

de massa ou obra de valor – traz à tona.<br />

Em nota anônima na contracapa do romance, lê-se que<br />

“esta mulher vive a vida ao seu ritmo, ciente da fragilidade e<br />

efemeridade dos sentimentos”. Isso não soa como positivo, ao<br />

ser um retrato da vida que nos vai levando para onde não sabemos.<br />

Num esgotamento de emoções, o que sobrará após a<br />

corrida pelos caminhos labirínticos da busca de realizações de<br />

tais emoções distorcidas?<br />

Mariana vive o mundo do não-pensar e do prazer avulso,-<br />

se é que pode isto pode ocorrer.<br />

A música era boa e estava muito alta.<br />

Óptimo! Não teria de ouvir meus pensamentos.<br />

Era disto que eu precisava! (...) À medida que ia<br />

bebendo já no segundo copo, sentia o corpo baixar<br />

suas defesas. (...) Levantei-me, fui à casa de<br />

banho. Fantástico, este País está a evoluir: tinha<br />

um cestinho cheio de preservativos e outros mi-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 178


mos. On ne sait jamais, e servi-me de dois, um<br />

azul e um cor-de-rosa.<br />

(2005: 11)<br />

A cena que aparece aos olhos do leitor configura o<br />

mundo em que a personagem vive. A voz narradora passa como<br />

evolução a comercialização do sexo e a sua inconseqüência<br />

afetiva, o que remete para a crítica irônica de Bauman a comentários<br />

‘brilhantes’ de consultoras de relacionamentos em<br />

periódicos atuais de grande alcance na Inglaterra:<br />

As promessas de compromisso, escreve Adrienne<br />

Burgess, são irrelevantes a longo prazo. O compromisso<br />

é uma conseqüência aleatória de outras<br />

coisas: nosso grau de satisfação com o relacionamento<br />

(...) [e] levá-lo adiante nos causaria uma<br />

perda importante em matéria de investimentos.<br />

(2004: 28)<br />

Bauman então observa: “Um relacionamento, como lhe<br />

dirá o especialista, é um investimento como todos os outros”, e<br />

a análise do sociólogo é mordaz para explicar palavras que são<br />

espelho do mundo da mercadoria e do capital, a bem dizer,<br />

palavras do vocabulário da economia “As relações de bolso,<br />

explica Catherine Jarvie, são assim chamadas porque você<br />

guarda no bolso de modo a poder lançar mão delas quando for<br />

preciso” (2004: 36). Bauman conclui que a relação de bolso<br />

que a autora da expressão diz ser doce o é porque tem curta<br />

duração. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantaneidade<br />

e da disponibilidade” (2004: 36). Mariana é a que está<br />

disponível para qualquer coisa que a tire da solidão cada vez<br />

maior a qual ela afoga na bebida, na ausência de alguém.<br />

Eu vivo como quiser, à velocidade que bem me<br />

aprouver. Sou financeiramente independente, não<br />

tenho filhos, não tenho dívidas nem sócios (...)<br />

tenho meia dúzia de bons amigos, se calhar nem<br />

tanto (...) tenho 38 anos, já passei da fase de ter<br />

de provar coisas a mim própria (...) A vida é demasiado<br />

breve para isso.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 179<br />

(2005: 15)<br />

Na seqüência dessa breve apresentação de si mesma, a<br />

personagem dá a medida de sua visão da vida em que a velocidade<br />

das transformações é claramente mencionada. É um viver,<br />

um atordoar-se na busca incessante de coisas novas nas quais<br />

as pessoas estão incluídas como objetos de troca. “Na maioria<br />

das vezes, [o sexo] é aclamado como o estágio indispensável<br />

no processo de emancipação individual” (BAUMAN, 1998:<br />

184). Viver relacionamentos coloridos significa crescimento,<br />

ao que parece. Um resto da lembrança do que era a regra ‘antiga’<br />

aparece na semi-censura da amiga que lhe pergunta:<br />

- Dormiste com ele?<br />

- É claro que sim<br />

- Mas... como pudeste? Conheceste-o ontem! Eu<br />

não era capaz!<br />

- É... nesse aspecto tens razão. Demasiado fácil,<br />

não é? Mas olha, há dias em que não estamos para<br />

jogos. Apeteceu-me e aconteceu. E digo-te que<br />

foi óptimo (...).<br />

(2005: 54)<br />

Já referido linhas atrás, é reiterado aqui o gosto amargo<br />

que fica da leitura. Por parecer um retrato fiel da realidade,<br />

sendo uma ficção que não acrescenta nada ou muito pouco e,<br />

assim, não oferece expectativas de outra coisa senão a irreversibilidade<br />

do que aí está, o romance também ratifica ao longo<br />

se sua leitura seu caráter de retrato da cultura de consumo.<br />

Bauman nos fala da verdade da arte, como ainda a concebemos,<br />

tendo por destino<br />

opor-se à realidade e, por meio dessa oposição,<br />

compensar a vida do que lhe foi despojado pela<br />

realidade e, assim, indiretamente, tornar a realidade<br />

suportável, protegendo-a contra as conseqüências<br />

de sua cegueira auto-inflingida.<br />

(1998: 158)<br />

Tal dimensão configura por contraponto a característica<br />

da cultura de massa que dá o ‘sim’ ao mundo sem questioná-lo.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 180


A narrativa da vida de Mariana constitui a aquiescência de seu<br />

tempo e que é, quer queiramos ou não, o nosso.<br />

Representação de boa parte dos comportamentos nas<br />

sociedades urbanas no mundo atual, o romance em foco permite<br />

inferir um modelo de vida que se vai tornando a regra por<br />

todo o lado e sem estranhamentos. Nele se pode ler o desencanto,<br />

o sem-sabor de uma vida mal vivida que ilustra estudos sobre<br />

sensibilidades alteradas pelo mundo da modernidade tardia.<br />

- Ah, queres drogar-te?!... – zombou o Pedro. –<br />

Olha que isso não resolve nada, muito pelo contrário.<br />

Mas está bem, apetece-te descontrair. O<br />

problema é que aqui eu não tenho nada, não há<br />

nada para ninguém. Provavelmente em casa, há<br />

por lá uma pedrinha esquecida, só procurando<br />

(...).<br />

(2005: 123)<br />

A teoria de Mignolo, deste modo, concretiza-se quando<br />

se lê por trás de uma história – até certo ponto destituída de<br />

interesse – não somente o retrato no espelho diferenciado do<br />

mundo atual (Cf CALLE-GRUBER: 1989), mas uma lição que<br />

coincide com os estudos na área da sociologia.O romance em<br />

questão remete para o mundo em descontrole em todos os sentidos.<br />

Mariana não quer compromissos, vive cada dia em busca<br />

de não sabe o quê, na verdade nem sabe bem o que quer. A<br />

angústia que se lê – angústia de quem lê e reflete nas implicações<br />

de novos modelos de vida – não se aplaca nem mesmo na<br />

passagem final quando Mariana encontra um homem que aparentemente<br />

a satisfaz, sem, no entanto, abrir mão de David.<br />

Fica no ar a indagação sobre o que significa amar no mundo da<br />

modernidade tardia. Num tom de aparente satisfação, a personagem<br />

conclui sua trajetória e a história dela.<br />

(...) meu encontro com Ioakeim, homem surpreendente<br />

e maravilhoso<br />

(...)<br />

Vivo entre Lisboa e Londres.<br />

Vivo entre o Ioakeim e o David.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 181<br />

Sim, o David, sempre o David...<br />

(2005: 253)<br />

A mera observação para o que se vê à volta parece confirmar<br />

o que os estudos sociológicos mostram como marca do<br />

tempo globalizado, onde além da exportação do capital, exportam-se<br />

maneiras de ser. Raymond Williams anota “um número<br />

de importantes e contínuas reações (...) a mudanças em nossa<br />

vida social, econômica e política”, ou seja, algo presente sob os<br />

nossos olhos, sejam eles críticos ou nem tanto. Na esteira dessa<br />

análise, afirma ele a evidente necessidade de um ‘mapa’ para se<br />

ler e compreender a natureza de tais transformações (apud<br />

HALL, 2003: 132 - 133). É, pois, possível pensar no romance<br />

de Isabel Ramos e outros que representam o mundo descontrolado<br />

como guias para sua compreensão. Está uma noite quente<br />

de verão aponta para uma realidade que vai sendo cada vez<br />

mais concebida como natural, desejável, ao mesmo tempo que<br />

os que a vivem dão mostras da insatisfação causada por ela.<br />

Neste sentido, o romance, com seu duvidoso valor literário,<br />

torna-se um documento valioso de nossa época em que amizades<br />

coloridas pela sexualidade desregrada são a tônica e o consumo<br />

de drogas é considerado prática social natural.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 2004.<br />

_______. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 2000.<br />

_______. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar Editor, 1998.<br />

BOIA, Lucien. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris:<br />

Gallimard, 1998.<br />

CAILLOIS, Roger. Approches de l’imaginaire. Paris: Gallimard,<br />

1974.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 182


CALLE-GRUBER, Mireille. L’Effet-Fiction – de l’illusion<br />

romanesque. Paris : A. –G. Nizet, 1989.<br />

EAGLETON, Terry. As ilusões da pós-modernidade. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />

GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole – o que a globalização<br />

está fazendo conosco. Rio de Janeiro: Record, 2000.<br />

HALL, Stuart. Diáspora. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />

2003.<br />

MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais. Belo<br />

Horizonte: Editora UFMG, 2003.<br />

RAMOS, Isabel. Está uma noite quente de verão. Lisboa: Editorial<br />

Presença, 2005.<br />

VARGAS LLOSA, Mario. La verité par le mensonge. Paris:<br />

Gallimard, 1991.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 183<br />

O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE<br />

ANDRADE: O AMOR COMO SAGRADO RITUAL PO-<br />

ÉTICO OU COMO MERO RITUAL SAGRADO<br />

Maria Alciene Neves<br />

UFSJ<br />

Adelaine La Guardia Resende<br />

UFSJ<br />

RESUMO:<br />

Em O Amor Natural, livro de poemas eróticos do poeta Carlos Drummond<br />

de Andrade, quatro poemas servem-nos de mote para analisarmos a tessitura<br />

erótica marcada pelo desejo masculino: “Amor – pois que é palavra essencial”,<br />

“Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, “A língua girava no céu<br />

da boca” e “Para o sexo expirar”. Observamos nesses textos que as palavras,<br />

muitas vezes, assumem um papel lúdico na representação do amor e do<br />

sexo. A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no qual o amor<br />

nos remete ao princípio do prazer. O sujeito neste processo é masculino. A<br />

mulher surge como cúmplice, mas não como enunciadora do prazer.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Erotismo, amor, ritual, poesia, Carlos Drummond de Andrade.<br />

1 – Introdução<br />

Drummond é um dos mais célebres poetas da literatura<br />

brasileira em virtude de sua poesia madura, de seu humor ácido,<br />

perpassado de crítica social, de uma densidade irônica singular,<br />

de uma alquimia verbal invejável. Poeta contido, sério,<br />

muitas vezes “gauche” até em seus textos poéticos. Causa escândalo<br />

literário quando publica, na revista Antropofagia, o<br />

poema “No meio do caminho tinha uma pedra”.<br />

Causam igualmente surpresa as poesias de “O amor natural”<br />

que revelam uma face do poeta que ficara por muito<br />

tempo latente e que mostram um universo poético bastante distinto<br />

daquele ao qual o leitor drummondiano estava habituado.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 184


Nessas poesias, que muitos chamaram de pornográficas e outros,<br />

apenas eróticas, revela-se-nos um Drummond destituído<br />

do estereótipo do homem tímido. As cenas eróticas desenhadas<br />

pelo poeta surgem numa linguagem sem floreios, direta, viva e<br />

lancinante, podendo causar em alguns um certo estranhamento.<br />

A linguagem do poeta passeia pelas formas eruditas e<br />

coloquiais, na medida em que ele joga com as palavras e, ao<br />

mesmo tempo, lhes impregna de “profundidade”. Para Maria<br />

de Santa-Cruz:<br />

A sua poesia erótica [Drummond] – mas nunca<br />

fescenina -, publicada em Portugal em 1993, e,<br />

mesmo no Brasil, só editada em livros anos depois<br />

de sua morte, constitui a mais bela e completa<br />

da Língua Portuguesa no gênero, hiperbolismo<br />

e hinologia do Amor, mais do que um Kamasutra<br />

em português vernáculo, ora erudito - sáfico, medievalizante,<br />

renascentista -, ora mais chão, dando<br />

nome às coisas na língua do povo, mas raramente<br />

usando a gíria vulgar.<br />

(2003: 83)<br />

Quando conclama “Oh! Sejamos pornográficos (docemente<br />

pornográficos)”, na verdade Drummond nos convida a<br />

experimentar esteticamente o erotismo através de um jogo poético<br />

ritualístico em que as palavras, muitas vezes, assumem um<br />

papel lúdico na representação do amor e do sexo. Mas não apenas<br />

lúdico, “o amor e a poesia são uma religião que, pela valorização<br />

da imagem, unem um ao outro e o humano ao divino”<br />

(PEREIRA, 1998: np.).<br />

O erótico e o pornográfico apresentam demarcações<br />

bastante tênues. Diferenciá-los, portanto, pode ser uma tarefa<br />

delicada. Isso porque pode envolver certos conceitos e preconceitos<br />

do próprio leitor. O que era considerado pornográfico há<br />

trinta anos pode ter deixado de sê-lo hoje em dia.<br />

Francesco Alberoni (1986) distingue entre um erotismo<br />

marcadamente feminino (água com açúcar) e um erotismo<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 185<br />

masculino ligado à pornografia (suceder contínuo de atos sexuais).<br />

Em sua obra, o autor delimita o que é excitante para o<br />

homem e o que o é para a mulher. Mas, ao mesmo tempo, não<br />

descarta o jogo da troca de papéis, ou seja, o que excita um<br />

homem pode também ser extremamente provocador de excitação<br />

e desejo numa mulher. Isso sem falar que a questão do erotismo<br />

(ou pornografia) pode passar (e passa) por um <strong>jul</strong>gamento<br />

de valor moral em que conceitos religiosos, por exemplo,<br />

podem servir de “pano de fundo” para determinar o limite de<br />

um e de outro. Dessa forma, não se pretende defender aqui a<br />

tese de que os textos drummondianos são pornográficos ou<br />

não, o que se considera uma discussão irrelevante para o propósito<br />

deste trabalho. Importa, sim, compreender aqui a tessitura<br />

erótica como definidora do próprio ser expresso através da<br />

linguagem. Entra em cena então a questão do desejo como motivador<br />

do processo erótico. O processo de análise envolve então<br />

aquilo que Michel Foucault aponta em sua História da Sexualidade:<br />

Analisar as práticas pelas quais os indivíduos foram<br />

levados a prestar atenção a eles próprios, a se<br />

decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos<br />

de desejo, estabelecendo de si para consigo<br />

uma certa relação que lhes permite descobrir, no<br />

desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou<br />

decaído.<br />

(FOUCAULT, 1984: 11)<br />

Interessante observar também as relações que se estabelecem<br />

entre o ser masculino e o ser feminino nesse processo.<br />

Para Georges Bataille, “o erotismo deixa entrever o avesso de<br />

uma fachada cuja aparência correta nunca deve ser desmentida...”<br />

(1986: 102), uma vez que no avesso revelam-se sentimentos,<br />

partes do corpo e maneiras de ser de que temos habitualmente<br />

vergonha. O eu lírico masculino, através desse<br />

princípio erótico (desestruturador), reúne os fragmentos da<br />

mulher que se configuram pelos elementos do seu corpo nu<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 186


(vulva, vagina, clitóris, etc.). Percebe-se, dessa forma, a construção<br />

do universo erótico masculino a partir da reificação de<br />

um “corpo feminino sem rosto”. Importante lembrar que essa<br />

construção passa pelo desejo de transcendência, busca a metafísica<br />

do ser, pois “todo erotismo é sagrado” (Cf. BATAILLE,<br />

1986), localiza-se no ponto mais elevado do espírito humano.<br />

Na teoria freudiana, a questão da sexualidade sempre<br />

predominou na estrutura instintiva. Num primeiro momento,<br />

volta-se aos pólos antagônicos instinto libidinal (sexo) e de<br />

autopreservação (ego), em seguida a teoria concentra-se no<br />

conflito entre Eros – instinto de vida – e Tanatos – instinto de<br />

morte. Depois essa concepção é substituída pela hipótese de<br />

uma libido narcisista (onipresente), desencadeadora dos poderes<br />

de Eros na medida em que a libido é liberada.<br />

Ainda precisamos destacar o lugar do princípio do Nirvana,<br />

que converge “terrivelmente” com o princípio do prazer.<br />

Para Marcuse, “se o princípio do Nirvana é a base do<br />

princípio de prazer, então a necessidade de morte aparece sob<br />

uma luz inteiramente nova. O instinto de morte é destrutividade,<br />

não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão.”<br />

(1969: 47). Entendemos aqui o princípio do Nirvana como<br />

completa gratificação do Ser, resultado do escoamento livre<br />

das quantidades de excitação, nesse sentido este princípio surge<br />

não como morte, mas como vida.<br />

Chamo de eróticos os quatro poemas selecionados para<br />

a realização deste trabalho, os quais foram recolhidos do livro<br />

O amor natural, publicado postumamente. Eróticos porque<br />

“soberanos”, ou melhor, porque nos conduzem à soberania, não<br />

masculina ou feminina, mas do Ser. O objetivo deste trabalho<br />

foi analisar os elementos que (re-)criam o mundo através da<br />

reinvenção de palavras e gestos dessa escritura que se apresenta<br />

como erótica.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 187<br />

2 - Amor: sagrado ritual poético ou mero ritual sagrado?<br />

Em “Amor – pois que é a palavra essencial”, temos uma<br />

interpelação do eu lírico ao amor para que este reúna “alma e<br />

desejo, membro e vulva”.<br />

Amor - pois que é palavra essencial<br />

comece esta canção e toda a envolva.<br />

Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,<br />

reúna alma e desejo, membro e vulva.<br />

Quem ousará dizer que ele é só alma?<br />

Quem não sente no corpo a alma expandir-se<br />

até desabrochar em puro grito<br />

de orgasmo, num instante de infinito?<br />

O corpo noutro corpo entrelaçado,<br />

fundido, dissolvido, volta à origem<br />

dos seres, que Platão viu completados:<br />

é um, perfeito em dois; são dois em um.<br />

Integração na cama ou já no cosmo?<br />

Onde termina o quarto e chega aos astros?<br />

Que força em nossos flancos nos transporta<br />

a essa extrema região, etérea, eterna?<br />

Ao delicioso toque do clitóris,<br />

já tudo se transforma, num relâmpago.<br />

Em pequenino ponto desse corpo,<br />

a fonte, o fogo, o mel se concentraram.<br />

Vai a penetração rompendo nuvens<br />

e devassando sóis tão fulgurantes<br />

que nunca a vista humana os suportara,<br />

mas, varado de luz, o coito segue.<br />

E prossegue e se espraia de tal sorte<br />

que, além de nós, além da própria vida,<br />

como ativa abstração que se faz carne,<br />

a idéia de gozar está gozando.<br />

E num sofrer de gozo entre palavras,<br />

menos que isto, sons, arquejos, ais,<br />

um só espasmo em nós atinge o clímax:<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 188


é quando o amor morre de amor, divino.<br />

Quantas vezes morremos um no outro,<br />

nu úmido subterrâneo da vagina,<br />

nessa morte mais suave do que o sono:<br />

a pausa dos sentidos, satisfeita.<br />

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,<br />

estendidos na cama, qual estátuas<br />

vestidas de suor, agradecendo<br />

o que a um deus acrescenta o amor terrestre.<br />

Em seguida, o eu lírico dilui as fronteiras entre corpo/alma,<br />

eu/outro, material/imaterial. Assim temos respectivamente<br />

“Quem não sente no corpo a alma expandir-se/ O corpo<br />

noutro corpo entrelaçado... fundido, dissolvido... / Integração<br />

na cama ou já no cosmo? / Onde termina o quarto e chega aos<br />

astros?”. É a libido a grande responsável pela conjunção dos<br />

corpos, pela sublimação do desejo, no qual o Eu e o Outro exercitam<br />

o ritual erótico: reúne-se, primeiro, sujeito (alma,<br />

membro) ao objeto (desejo, vulva); depois, funde-se o sujeito<br />

ao objeto. Aqui ocorre a diluição de fronteiras materiais (corpos)<br />

e não-materiais (almas) para, em seguida, Eros (energia<br />

sexual) encerrar-se em Tanatos (impulso da morte).<br />

Nas palavras de Terry Eagleton: “Lutamos para avançar,<br />

e somos constantemente levados para trás, buscando retornar<br />

a um estado anterior à nossa própria consciência” (1983:<br />

173). Assim, o orgasmo representa o limite entre Eros e Tanatos,<br />

depois disso “E num sofrer de gozo entre palavras”... “É<br />

quando o amor morre de amor, divino”. Em seguida, a paz é<br />

instaurada. Aqui o ego não pode ser atingido, a paz representa<br />

a bem-aventurança da morte.<br />

Já “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, o tátil<br />

e visual se congregam a fim de preceder o ritual amoroso/sexual<br />

e depois, “na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado”.<br />

Aqui, mais uma vez, a idéia do sagrado está ligada a Eros:<br />

o amor realiza-se no elemento erótico (flora pubescente):<br />

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Em teu crespo jardim,<br />

anêmonas castanhas.<br />

Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas<br />

detêm a mão ansiosa: Devagar.<br />

Cada pétala ou sépala seja lentamente<br />

acariciada, céu; e a vista pouse,<br />

beijo abstrato, antes do beijo ritual,<br />

na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.<br />

Neste poema, o eu lírico direciona o olhar do leitor para<br />

o objeto sexual, no caso, o corpo feminino representado metonimicamente,<br />

sendo o órgão genital a parte que representa o<br />

todo. Segundo Herbert Marcuse, “A finalidade erótica de sustentar<br />

todo o corpo como sujeito-objeto de prazer requer o contínuo<br />

refinamento do organismo, a intensificação de sua receptividade,<br />

o crescimento de sua sensualidade” (op.cit., p. 185).<br />

Se, por um lado, explorar o efeito de elementos corporais produz<br />

uma erotização acentuada; por outro, apresenta uma caracterização<br />

do Outro (feminino) fortemente estreita e redutora. O<br />

órgão sexual feminino é o alvo dos olhos e mãos possuidores<br />

do eu lírico masculino. O que é sagrado: o corpo feminino possuído<br />

ou a ação possuidora do sujeito que olha e toca?<br />

No poema “A língua girava no céu da boca”, por sua<br />

vez, o poeta brinca com as palavras, re(inventando-as):<br />

A língua girava no céu da boca<br />

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas<br />

bocas, no céu único.<br />

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante<br />

imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.<br />

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados,<br />

eleu. A posse não resultava de ação e doação,<br />

nem nos somava. Consumia-nos em piscina de<br />

aniquilamento. Soltos fálus e vulva no espaço<br />

cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados<br />

de nós.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 190


A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo,<br />

se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se.<br />

A vida repontou: a vida menor.<br />

“Eleu”, a comunhão perfeita entre dois seres é aquilo<br />

que, no ato sexual, os torna unos. Aqui o sexo representa a vida<br />

maior, sublimada, algo capaz de libertar os corpos “Soltos,<br />

fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em<br />

núpcia, emancipados de nós”. Em tom de prosa poética, uma<br />

vez mais, o ritual do sexo desponta. No entanto, homem e mulher,<br />

neste momento, tornam-se posse dos próprios sexos, pois<br />

que “O sexo desprende-se de sua fundação, errante imprimianos<br />

seus traços de cobre”... e “Os dois movíamos possuídos”.<br />

Durante o gozo, o instinto se apodera dos corpos, o<br />

“princípio do prazer e o princípio do Nirvana convergem então”<br />

(Marcuse, 1969: 202). Ainda para Marcuse, “O instinto da<br />

morte opera segundo o princípio do Nirvana: tende para aquele<br />

estado de gratificação constante em que não se sente tensão<br />

alguma – um estado sem carências” (1969: 202). Isso é revelado<br />

no verso: “Consumia-nos em piscina de aniquilamento...<br />

vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós”. “A<br />

restituição à consciência”, “a reintegração do sexo” e “o repontamento<br />

da vida menor” representam a volta ao princípio da<br />

realidade freudiano.<br />

Por fim, em “Para o sexo a expirar”, o orgasmo traz a<br />

explicação do mundo, é ele a via pela qual a vida, na sua plenitude,<br />

é experimentada:<br />

Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.<br />

Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.<br />

Amor, amor, amor - o braseiro radiante<br />

que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.<br />

Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,<br />

a minha se rebela ante a morte anunciada.<br />

Quero sempre invadir essa vereda estreita<br />

onde o gozo maior me propicia a amada.<br />

Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?<br />

enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 191<br />

antes que, deliciosa, a exploração acabe.<br />

Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,<br />

e assim possa eu partir, em plenitude o ser,<br />

de sêmen aljofrando o irreparável ermo.<br />

Pode-se aqui vislumbrar a questão do tempo na tecitura<br />

do jogo erótico. Tempo e morte surgem como elementos repressivos<br />

do prazer sexual, uma vez que “A intemporalidade é<br />

o ideal do prazer. O tempo não tem poder sobre o id, que é o<br />

domínio original do princípio de prazer. Mas o ego, por cujo<br />

intermédio, exclusivamente, o prazer se torna real, está em sua<br />

inteireza sujeito ao tempo.” (MARCUSE, 1969: 200)<br />

A previsão do fim aponta para a dor, o sofrimento: “Pobre<br />

carne senil, vibrando insatisfeita/ a minha se rebela ante a<br />

morte anunciada”.<br />

3 - Considerações finais<br />

A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no<br />

qual o amor nos remete ao princípio do prazer, já descrito por<br />

Freud, como o locus onde não há repressão ao prazer e à satisfação,<br />

local da morada do instinto que é a voz mais íntima do<br />

ser. O sujeito, neste processo, é masculino. A voz feminina se<br />

revela ausente na cena amorosa. A mulher surge como cúmplice,<br />

mas não como enunciadora do prazer, o que revela um discurso<br />

pautado no “sonho de uma transcendência masculina” em<br />

que o papel da mulher é de uma mera coadjuvante ou de completude<br />

passiva. Assim, segundo Brandão:<br />

Se a mulher aceita ser a ilusão da completude alheia,<br />

ela aceita um lugar que a imobiliza e mumifica,<br />

lugar de morte, enquanto impossibilidade de<br />

seguir o trajeto metonímico do seu próprio desejo.<br />

Se ela se aliena aí, ela também se petrifica, acreditando<br />

realizar um desejo que é, afinal, o desejo<br />

de um outro.<br />

(2006: 24)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 192


Aprisionada na perversão do desejo masculino, a mulher<br />

surge possuída por uma construção discursiva (naturalizada)<br />

em que acaba como coadjuvante silenciosa. Então, a partir<br />

de um ponto de vista masculino e “caleidoscópico”, os termos<br />

do duplo eixo sexo/amor passam a ser indissociáveis, recebendo<br />

uma densidade metafísica, uma vez que “O amor é o que há<br />

de imperioso na vida, é o momento luminoso na escuridão, a<br />

afirmação da vida contra a morte, a procura da eternidade no<br />

fugaz instante” (SANT’ANNA, 1993: 83).<br />

Referências Bibliográficas:<br />

ALBERONI, Francesco. O erotismo – fantasias e realidades<br />

do amor e da sedução. Élia Edel (trad.). São Paulo: Círculo do<br />

livro, 1986.<br />

ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. 2ª ed. Rio<br />

de janeiro: Record, 1993.<br />

BATAILLE. Georges. O erotismo. 2ª ed. Porto Alegre: L &<br />

PM, 1987.<br />

BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem<br />

feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />

2006.<br />

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São<br />

Paulo. Martins Fontes, 1983.<br />

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos<br />

prazeres. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.<br />

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização - Uma interpretação<br />

filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

1969.<br />

PEREIRA, Ana Santana de Souza Fontes. De anjo gauche a<br />

anjo na contramão – por uma poética do falanjo. Dissertação<br />

(Mestrado). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do<br />

Norte, 1998. (Disponível em < http:<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 193<br />

//serviços.capes.gov.br/capesdw.html?idtese>. Acesso em 23<br />

de <strong>dez</strong>embro de 2006).<br />

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O erotismo nos deixa<br />

gauche? In: ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural.<br />

Rio de janeiro: Record, 1993, p. 77-84.<br />

SANTA-CRUZ, Maria de. A oitava face do poeta: o amor natural<br />

– erotismo tardio ou alquimia do amor? Scripta, Belo<br />

Horizonte: s.n, v. 6, n. 12, jan/fev, p. 82-99, 2003.<br />

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ROMANCE DO OLHAR DANDI<br />

DE CLARICE LISPECTOR<br />

Mário Guidarini<br />

UNISUL<br />

RESUMO:<br />

Objeto desta crítica literária é invenção de Lucrécia Neves e de São Geraldo<br />

por Clarice Lispector. Quadro teórico-metodológico das três categorias<br />

fenomenológicas da Semiótica de Charles Peirce dá suporte ao ensaioresenha.<br />

Detalhes do olhar, ora difuso, ora atento, da protagonista e memória<br />

visual nomeiam coisas, objetos e animais narrados pela autora em forma<br />

de signos lingüísticos culturalmente refinados, acrescidos de nuances feminizantes.<br />

Ficção e crítica entrelaçadas. Meta reforçar presença viva de Clarice<br />

Lispector na literatura e na fortuna crítica contemporâneas.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Olhar, invenção, Semiótica.<br />

Introdução<br />

Este ensaio-resenha alterna ficção e crítica. Ensaio tomado<br />

como experiência de distanciamento crítico. Vale-se do<br />

quadro teórico-metodológico atrelado à Semiótica de Charles<br />

Sanders Peirce, instrumento de análise do discurso de Clarice<br />

Lispector. Resenha, recurso ilustrativo e prazeroso decorrente<br />

da alternância entre ficção e crítica.<br />

Descrição coloca em luz alta instância do discurso.<br />

Não-análise psicológica de dizeres e fazeres dos personagens.<br />

Narrar percepções do olhar da protagonista Lucrécia Neves em<br />

terceira pessoa pela autora, no espaço literário, implica manter<br />

distanciamento crítico frente à produção de novos significados<br />

romanescos em “A cidade sitiada”. Autora e espaço literário<br />

formatam redes semióticas ilimitadas nos corpos das doze crônicas<br />

na invenção de Lucrécia quanto da cidade São Geraldo.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 195<br />

A moça e o cavalo representavam as duas raças<br />

de construtores que iniciaram a construção da futura<br />

metrópole [...] tudo o que ela via era alguma<br />

coisa. [...] “O que se vê” – era a sua única vida interior;<br />

e o que se via tornou-se a sua vaga história<br />

[...]. E a cidade ia tomando a forma que o seu olhar<br />

revelava.<br />

(LISPECTOR, 1982: 18-19)<br />

Monólogos interiores sobre percepções de coisas pelo<br />

olhar detalhista da protagonista são subsumidos na escritura<br />

romanesca pela autora, sem estereótipos, nem jogos pirotécnicos<br />

retóricos e nem estremecimentos efêmeros. Trata-se, pois,<br />

dum romance do olhar, montado em câmara lenta e sem performances<br />

contundentes. Diálogos esporádicos. Focos narrativos<br />

de figurinos ao alcance da percepção visual e tátil da protagonista.<br />

Perceptivos, restritos às informações sensóriomotoras<br />

dos cinco sentidos. “São Geraldo era explorável apenas<br />

pelo olhar [...] ela debruçava-se sem nenhuma individualidade,<br />

procurando apenas olhar diretamente as coisas”<br />

(LISPECTOR, 1982: 20).<br />

Filigramas narrativas inesperadas e mudanças surpreendentes<br />

de representações semióticas emergem da montagem<br />

paratática do romance em doze crônicas de tamanhos e valores<br />

poéticos díspares. Sobreposições e contraposições de enfoques<br />

em terceira pessoa pela autora, alimentam verossimilhanças<br />

totêmicas entre sonhos e alucinações de Lucrécia e cavalos<br />

imaginários em prados ao redor de São Geraldo.<br />

Uma onda de poeira se erguendo ao galope de um<br />

cavalo imaginário [...] os cascos batendo, focinhos<br />

espumantes erguendo-se para o ar em ira e<br />

murmúrio [...]. O medo a tomava nas trevas do<br />

quarto, o terror de um rei, a mocinha queria responder<br />

com as gengivas à mostra.<br />

(LISPECTOR, 1982: 22)<br />

Se via diferente no espelho dos outros: entortada<br />

numa expressão passiva, monstruosa. [...] A cada<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 196


Romance do olhar<br />

parada do sonho, fixava uma rua desconhecida<br />

com novas pedras. [...] Eis que sobre a pista os<br />

cavalos diminuíam na distância.<br />

(LISPECTOR, 1982: 76)<br />

Coloca em alto relevo olhar objetos, coisas e animais<br />

designados por signos semióticos que representam algo (objeto)<br />

para alguém (interpretante) sob algum aspecto, dentro dum<br />

processo de semiose ilimitada de signos que remetem a outros<br />

signos imediatos. Interpretantes dinâmicos (mentes) por sua<br />

vez conotam fenômenos da experiência humana na consciência<br />

de intérpretes do discurso romanesco. “Fitar as coisas imóveis<br />

por um momento [...]. Um camelinho. A girafa. O elefante de<br />

tromba erguida [...] entre os vegetais carnudos de sono [...].<br />

Adormeceu desperta como uma vela” (LISPECTOR, 1982:<br />

75).<br />

“A colina se recortou com a niti<strong>dez</strong> torta de um desenho<br />

mal feito. [..] As torres arquejavam sob a lembrança de guerras<br />

e conquistas. [...] Desperta como o luar é ereto” (LISPECTOR,<br />

1982: 78).<br />

Olhar dandi e memória visual detalhista da escritora<br />

narra em terceira pessoa mantendo distanciamento crítico sem<br />

envolvimentos com trama do romance. Crônicas excelentes.<br />

Quadros literários culturalmente refinados. Nuances feminizantes.<br />

Expressões e sentimentos orquestrados. Filigramas tecidas<br />

com luci<strong>dez</strong>, entremeadas de repetições.<br />

Nem escuridão nem claridade – aurora. [...] Nem<br />

escuridão nem claridade – visibilidade. [...] Sob<br />

os estremecimentos, cambiantes da claridade até<br />

seus sinais já apareciam no rosto.<br />

(LISPECTOR, 1982: 82)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 197<br />

Analogias dizem o outrem. Metonímias formatam partes<br />

pelo todo. Ambas rompem linearidade – princípio, meio e<br />

fim – da narrativa tradicional.<br />

Lucrécia Neves não seria bela jamais. Tinha porém<br />

um excedente de beleza que não existe nas<br />

pessoas bonitas [...]. Inclinou-se de súbito para o<br />

espelho e procurou achar o modo de se ver mais<br />

bela [...] e pronta parecia um objeto, um objeto de<br />

São Geraldo.<br />

(LISPECTOR, 1982: 32-33)<br />

Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em<br />

outros momentos Lucrécia Neves precisava para<br />

se dar certo peso neste mundo. [...] No fundo<br />

mesmo, ela se <strong>jul</strong>gava uma deusa. [...] Remoendo<br />

sua dificuldade de raciocinar.<br />

(LISPECTOR, 1982: 86-87)<br />

Indícios há de Lucrécia Neves ter sido elo final das cinco<br />

mil vidas da lendária maquiavélica Lucrécia Bórgia. Mera<br />

metaficção historiográfica sem qualquer compromisso com a<br />

verdade histórica vislumbrada pela escritora?<br />

Expressão e impressão<br />

Percepções visuais de arranjos e características físicas<br />

de objetos, coisas e animais em primeiridade monádica são<br />

incorporadas pela autora em terceiridade, grau máximo de semioticidade.<br />

Lucrécia, ao sonhar ser estátua grega, sem rosto<br />

no jardim da praça de São Geraldo, auto-encena-se ícone, grau<br />

mínimo de semioticidade.<br />

E seu destino como grega então era tão inconsciente<br />

quanto agora em São Geraldo [...] e a estátua<br />

jazia nas trevas do jardim. [...] As órbitas vazias.<br />

Ela mesma endurecida num só pedaço [...] agora<br />

facilmente transportável.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 198


E assim a tinham pousado. De cabeça para baixo<br />

e pés juntos para cima.<br />

(LISPECTOR, 1982: 80-81)<br />

Percepção sensório-motora capacita-a encenar figurinos<br />

no ambiente urbano de São Geraldo e fazenda de origem, onde<br />

impressão é expressão.<br />

Moças riam difíceis de se comportar [...]. Ela pisando<br />

com os cascos na pedra escorregadia [...].<br />

A moça e o cavalo representavam as duas raças<br />

de construtores da futura metrópole [...] tudo o<br />

que ela via era alguma coisa. Nela e no cavalo a<br />

impressão era a expressão.<br />

(LISPECTOR, 1982: 18-19)<br />

Clarice revitalizou figurinos sob forma de signos na invenção<br />

da protagonista “olhando estúpida em volta, com dificuldade<br />

de pensamento que a falta de sensualidade lhe trazia”<br />

(LISPECTOR, 1982: 34).<br />

Análises discursivas pelo viés da semiose ilimitada<br />

permitem ao leitor crítico formular juízos perceptivos sobre<br />

versões não críticas da protagonista impregnadas de indistinções<br />

entre sujeito e objeto, realidade e ficção, sonho e vigília,<br />

protagonista e coisa.<br />

Aos poucos ela não saberia se olhava a imagem<br />

ou se a imagem a fitava porque assim sempre tinham<br />

sido as coisas e não se saberia se uma cidade<br />

tinha sido feita para as pessoas ou as pessoas<br />

para a cidade – ela olhava.<br />

(LISPECTOR, 1982: 48)<br />

Ver-se como outrem<br />

Monólogos interiores de Lucrécia, narrados por Clarice<br />

sob forma de juízos perceptivos, abordam características físicas<br />

dos figurantes em ambientes fechados (quarto, sala, sobrado) e<br />

abertos (rua, praça, sítio) sem recorrer a questionamentos reflexivos.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 199<br />

Assim como nunca precisava da inteligência,<br />

nunca precisava da verdade [...]. Lucrécia Neves<br />

tanto vivia se mostrando que algumas vezes chegava<br />

mesmo a se ver.<br />

Só que se via como um bicho veria uma casa: nenhum<br />

pensamento ultrapassando a casa.<br />

(LISPECTOR, 1982: 71-72)<br />

Autora quanto protagonista são construtos do romance.<br />

Pinta alegoricamente seu duplo Lucrécia. Narrar imagens não<br />

conscientes, sob algum aspecto para alguém, desencadeia semioses<br />

ilimitadas de verossimilhanças inesperadas entre ficção<br />

e realidade, sonho e vigília, olhar difuso e ver atento, aparência<br />

e realidade. “Formigas, ratos, vespas, rosados morcegos, manadas<br />

de éguas saíram sonâmbulas dos esgotos” (LISPECTOR,<br />

1982: 76).<br />

“De que era feita a flor senão da própria flor”.<br />

(LISPECTOR, 1982: 62)<br />

Oh, mas as coisas não eram jamais vistas: as pessoas<br />

é que viam. [...] Que diria se pudesse passar<br />

de ver os objetos a dizê-los... [...]<br />

O difícil é que a aparência era a realidade. [...] De<br />

que era feita a flor senão da própria flor.<br />

(LISPECTOR, 1982: 63)<br />

Sonhos e alucinações<br />

Passado de São Geraldo, década do após primeira guerra<br />

mundial, diz o presente duma metrópole em progresso após<br />

segunda guerra mundial. “Lá estava a cidade. [...] Se ao menos<br />

estivesse fora dos muros. Mas não havia como sitiá-la. Lucrécia<br />

Neves estava dentro da cidade” (LISPECTOR, 1982: 63-<br />

64).<br />

“Sob o sonho os motores do subúrbio não paravam,<br />

não paravam, a saliva escorria de sua boca aberta. Adormeceu<br />

enfim mais profundamente” (LISPECTOR, 1982: 78).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 200


No jardim, quinta crônica, autora encena um dos sonhos<br />

da protagonista valendo-se de sobreposições, contraposições e<br />

condensações de imagens não-verbais. “Da barca soterrada na<br />

areia só aparecia a proa. E, na porta mutilada, velava a cabeça<br />

de um galo” (LISPECTOR, 1982: 61).<br />

Felicidade possível que poderia ter acontecido, não aconteceu<br />

ao se casar com forasteiro empreendedor Mateus.<br />

Transmutou-se em melancolia após enterro do esposo. Obrigou-a<br />

a retornar à casa materna, agora ambas viúvas. “Seria<br />

esta a história de uma vida vazia? [...] Tudo o que possuíra de<br />

mais precioso estava fora dela [...] recebeu a carta da mãe chamando-a<br />

para a fazenda” (LISPECTOR, 1982: 173).<br />

Imagens intertextuais e interdiscursivas<br />

Signos romanescos recriam autora, personagens e interpretantes<br />

dentro de processos de semioses ilimitadas de signos<br />

entre si e noeses ilimitadas de pensamentos entre si e idéias<br />

entre idéias. Enunciações semióticas dependem de interlocutores<br />

intertextuais e interdiscursivos. Semiótica peirceana acopla<br />

dimensão imediata à dimensão dinâmica da experiência literária.<br />

Autora imbrica percepções sensório-motoras da protagonista,<br />

grau mínimo de semioticidade ao grau máximo de significados<br />

literários. Interpretantes imediatos (livros, artigos) e<br />

interpretantes dinâmicos (mentes, leitores) desvelam imagens<br />

plásticas não-verbais de sonhos nos interdiscursos das doze<br />

crônicas (Cf. PIERCE, 1999: 71-76).<br />

A vigília da senhora de preto se alongava em<br />

sombra [...]. A fruta de ouro (no espelho) oscilava<br />

plena [...]. Deveria apanhá-la com a sua própria<br />

perturbação [...] com a escuridão cheia de abelhas<br />

de mel [...] ser apenas a mancha escura no espelho<br />

[...] até alcançar a atenção universal e sofredora<br />

de um cão [...] não era o cão, era ela que vi-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 201<br />

giava a casa [...]. Tal a sua gran<strong>dez</strong>a, tal a sua miséria.<br />

(LISPECTOR, 1982: 160)<br />

Produções da literatura brasileira, somadas às demais literaturas<br />

em português, jamais esgotarão potencialidades inerentes<br />

à língua. Romance sobrevive nos dizeres e fazeres dos<br />

personagens, constelações e criações seminais de estilo pessoal,<br />

polissemias, palavras, frases e tessituras prenhes de jogos<br />

metafóricos, metonímicos e alegóricos, filigramas feminizantes<br />

de críticas sutis ao medo de Lucrécia ultrapassar barreira sensório-motora.<br />

Quando uma coisa não pensava, a forma que possuía<br />

era o seu pensamento. O Peixe era o único<br />

pensamento do peixe. [...] O segredo das coisas<br />

estava em que, manifestando-se, se manifestavam<br />

iguais a elas mesmas.<br />

(LISPECTOR, 1982: 61)<br />

Crítica literária<br />

Autora em “A cidade sitiada” fragmenta linearidade<br />

discursiva do romance tradicional (princípio, meio, fim) valendo-se<br />

das novas técnicas de montagem, herdadas, salvo melhor<br />

juízo, do novo romance francês, responsável pela revitalização<br />

e sobrevivência de novos significados literários.<br />

Crítica literária implica campo teórico-metodológico,<br />

regras de formação e transformação na construção de textos<br />

críticos sobre textos de ficção. Autores de criações literárias e<br />

artísticas não-verbais não se atêm a normas pré-fixadas por<br />

teóricos e teorias de literalidade. Encenação da protagonista de<br />

si e para si própria testemunha veredito.<br />

Ela era um objeto da sala: os pés apoiavam-se no<br />

assoalho, o corpo se revelava no sexo e na forma.<br />

[...] Seria o momento de alguém olhá-la e vê-la.<br />

[...] Lucrécia Neves sorria em mistério e estupi<strong>dez</strong>.<br />

[...]<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 202


Sorrindo, bonitinha, olhando a mão direita onde<br />

queria ver em breve um anel de compromisso [...]<br />

de aliança.<br />

(LISPECTOR, 1982: 103)<br />

Significância romanesca constrói, desloca, decodifica e<br />

atrela jogos de imagens não conscientes a novos significados<br />

pertinentes. Autora encena sentimentos conflitantes de expressões<br />

e sensibilidades femininas. “Um modo de fazer doçura<br />

que não estava mais na doçura” (LISPECTOR, 1982: 153).<br />

Silhuetas estilísticas<br />

Estilo romanesco tradicional localizava-se entre invenção<br />

e linguagem, expressão e conteúdo, forma e fundo, som e<br />

sentido, imagem e mensagem sincronizados. Na contemporaneidade,<br />

estilo instala-se igualmente entre língua e discurso,<br />

código e mensagem, escritura e liberdades poéticas.<br />

Monólogos interiores, pré-sígnicos, inacabados e fractais<br />

da protagonista fluem da memória visual e ímpar da escritora<br />

dandi.<br />

O que não se sabe pensar, se vê! [...] Sala é o lugar<br />

onde estão as coisas. [...] As flores do jarro.<br />

Uma era vermelha. Tinha o talo fraco. Uma era<br />

cor-de-rosa. Era pequena. [...] O bibelô estendia a<br />

flauta. [...] O canto da sala era escuro. A parede<br />

[...]. O teto [...]. A estante. A porta. O chão. [...] O<br />

relógio. Flor, jarros, teto, chão, veneziana.<br />

(LISPECTOR, 1982: 93)<br />

Gostava de ficar na própria coisa: é alegre o sorriso<br />

alegre, é grande a cidade grande, é bonita a cara<br />

bonita – e era assim que se provava ser claro<br />

apenas o seu modo de ver [...] a cidade é a cidade.<br />

(LISPECTOR, 1982: 88)<br />

Linguagem incorpora memórias e experiências pessoais<br />

e culturais nos corpos das crônicas, cada qual como parte pelo<br />

todo, sem ter que somá-las para obtenção duma compreensão<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 203<br />

satisfatória do romance. Lembram exposição de quadros pintados<br />

com palavras, frases e sentimentos poéticos dentro duma<br />

luci<strong>dez</strong> erudita sobre o medo de Lucrécia ultrapassar percepções<br />

visuais.<br />

Estava bruta, de pé, uma besta de carga ao sol.<br />

Essa era a espécie mais profunda de meditação de<br />

que era capaz [...] o olho sonolento como modo<br />

aberto de ver as coisas. Apenas o modo, não a<br />

posse [...].<br />

Podia-se pensar tudo contanto que não se soubesse.<br />

[...]<br />

Mesmo o erro era uma descoberta. Errar fazia-a<br />

encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o<br />

lado empoeirado.<br />

(LISPECTOR, 1982: 90).<br />

“Seu medo era o de ultrapassar o que via. [...] No espelho<br />

flutuava o conhecimento de toda a sala” (LISPECTOR,<br />

1982: 91).<br />

Doze enunciações cíclicas expressam crítica sutil e débil<br />

dum olhar dandi sobre crescimento desmesurado de São<br />

Geraldo, sempre mais poluída por agressões ao meio ambiente<br />

e desconforto de moradores.<br />

Também a cidade deveria ser espiada por uma seteira.<br />

Assim quem espiasse se defenderia, como a<br />

coisa espiada. Ambos fora do alcance.[...]<br />

Tudo o que via se tornava real [...] o horizonte<br />

cortado de chaminés e telhados [...] a aparência<br />

era a realidade. Sua dificuldade de ver era como<br />

se pintasse.<br />

(LISPECTOR, 1982: 89).<br />

Indícios de lesbianismo<br />

Ana e filha Lucrécia, ambas viúvas, inventam-se personagens<br />

dum faz-de-conta lésbico.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 204


Dois personagens que elas jamais saberiam descrever<br />

mas que podiam imitar, apenas inventando-se.<br />

[...]<br />

De outras vezes, quando a filha a tocava, Ana se<br />

sobressaltava e ainda tentava trotar entre as coisas.<br />

Mas hoje arfava ligeiramente [...] deu uma<br />

expressão de amor tão luminoso que se alguém a<br />

visse teria visto o amor.<br />

(LISPECTOR, 1982: 57-58).<br />

Gestos e ações de auto-invenção entre personagens do<br />

mesmo sangue conotam instintos genesíacos fulminantes impostos<br />

pela natureza. Pulsões do inconsciente coletivo simulam<br />

concomitantemente prazer e dor, atração e repulsa. Incestos<br />

rompem interditos éticos e políticos sob forma de jogos cênicos<br />

de ódio-amor, traição-fidelidade, ficção-ilusão entre mãe e filha<br />

no âmago do espaço literário. Conspurcam pacto coletivo imemorial<br />

do ethos mitológico.<br />

Olhou com alguma piedade aquela moça à sua<br />

frente, cheia de estúpida juventude, a quem jamais<br />

se poderia ensinar a... a... bondade? Que<br />

bondade? A moça então respondeu que se morresse<br />

– afinal que importava? A mãe não choraria<br />

sequer [...] mas já não precisavam de grandes<br />

preparativos para entrar nos dois personagens.<br />

(LISPECTOR, 1982: 58)<br />

Perfil do olhar dandi de Lucrecia<br />

O olhar não era descrito, eram descritivas as posições<br />

das coisas. [...]<br />

As coisas pareciam só desejar aparecer [...] era<br />

apenas o que se podia dizer. [...] Olhando agora<br />

pelo buraco da fechadura. Como as coisas pareciam<br />

grandes vistas pelo orifício. Adquiriam volume,<br />

sombra e claridade: elas apareciam.<br />

(LISPECTOR, 1982: 89)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 205<br />

Protagonista vislumbra posições efêmeras de coisas e<br />

objetos de seu difuso parecer ser coisa entre coisas. Lispector<br />

dandi narra olhar de Lucrécia conferindo-lhe duradoura beleza<br />

poética. Constelações de semioses ilimitadas de coisas feitas de<br />

coisas. Espiar dispensa pensar.<br />

Espiando [...] alguma coisa não existiria senão<br />

sob intensa atenção; olhando fazia com que ela<br />

não buscasse a causa das coisas, mas a coisa apenas<br />

que está ali [...]. Seu medo era o de ultrapassar<br />

o que via.<br />

(LISPECTOR, 1982: 91)<br />

A sala envelhecia com os bibelôs gelados [...].<br />

Lucrécia não os entendia [...]. Essas coisas feitas<br />

das próprias coisas [...]. Uma emprestada à outra<br />

emprestada à outra [...].<br />

O que não se sabe pensar, se vê!<br />

(LISPECTOR, 1982: 93-94)<br />

Pantomima de si para si<br />

Caíra numa arte antiga de corpo e este procurava<br />

a si mesmo tateando ignorância [...]. Exprimindo<br />

pelo gesto da mão sobre o único pé, e entortado<br />

com graça em oferenda, o único rosto sacudindose<br />

em pantomima, eis, eis toda ela terrivelmente<br />

física, um dos objetos. Assim permaneceu até que<br />

[...] perdera enfim o dom da fala. Porque era assim<br />

que uma estátua pertencia a uma cidade [...].<br />

Tudo isso foi uma brincadeira sabe “disse-se com<br />

pudor”.<br />

(LISPECTOR, 1982: 68-70)<br />

Sonho, enigma em fulgurações. Encena, condensa,<br />

transpõe e desloca imagens não-verbais para burlar interditos<br />

vigentes nos estados de vigília de Lucrécia. Objetos, coisas e<br />

medos assumem papéis de figurantes no sonho. Importa significância<br />

dessas imagens e fulgurações não conscientes pinçadas<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 206


pelo olhar dândi da escritora. Imagens não-verbais fabuladas<br />

no romance caracterizam-se pré-signos de outra natureza que a<br />

da língua e signos semióticos intencionais.<br />

Sonhar ser grega era a única maneira de [...] explicar<br />

seu segredo em forma de segredo; conhecer-se<br />

de outro modo seria o medo.<br />

Ela era antes dos gregos pensarem, ainda tão perigoso<br />

seria pensar. [...] E seu destino como grega<br />

então era tão inconsciente quanto agora em São<br />

Geraldo.<br />

(LISPECTOR, 1982: 80)<br />

Inconsciente coletivo retoma ciclos abissais das cinco<br />

mil vidas de Lucrécia Neves, agora estátua grega sem rosto nas<br />

trevas do jardim de São Geraldo.<br />

Paródias risíveis<br />

Vivia na rua em correrias mas sempre calmo e elegante.<br />

[...] Banho durante uma hora [...]. Cabelos<br />

grisalhos perfumados [...]. No bolso do paletó<br />

um lenço cheiroso. E ela sendo mulher, o servia.<br />

Enxugava-lhe o suor, alisava-lhe os músculos.<br />

Aviltava-a [...]. Estendendo camisas [...]. Ou alimentando-o.<br />

(LISPECTOR, 1982: 111)<br />

Mateus e Lucrécia, personagens fixos e acabados, atrelados<br />

a contextos localizados e a estereótipos de época, incorporam<br />

estigmas do entre duas guerras e status social datado.<br />

Ambos esgotam metas perecíveis no bojo do romance. Protagonista<br />

rompe finalmente cordão umbilical de esposa dócil e<br />

submissa.<br />

Um deles precisaria ser expulso, agora que Lucrécia<br />

recuperara o antigo poder [...]. Achava-se a<br />

criatura mais inteligente do mundo e fazia questão<br />

de demonstrá-lo a Mateus [...] Mateuzinho –<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 2<strong>07</strong><br />

perna fina e ria rumorosamente de frieza [...]. Ela<br />

lhe dizia como se falasse de uma terceira pessoa:<br />

– Ele não entende nada de roupas! [...]<br />

Era preciso manter a hilaridade para disfarçar a<br />

palavra [...]: o estúpido.<br />

(LISPECTOR, 1982: 129)<br />

Elementos hilariantes esboçados pela protagonista provocam<br />

risos reflexivos sobre procedimentos de esposas submissas<br />

em casamentos típicos de época. Ironias do olhar feminino<br />

de esposa rebaixada à condição de cozinheira e servente<br />

afastam sentimentalismos de complacência no desfecho infeliz.<br />

Enigmática, evoca seu passado maquiavélico.<br />

Cinco mil vidas<br />

“Na verdade cinco mil vidas não bastariam sequer para<br />

que nela chegasse à perfeição sua primeira vida real. Ela já<br />

começara porém o trabalho das cinco mil vidas” (LISPECTOR,<br />

1982: 147). “E na inocência de Lucrécia estava o mal [...]<br />

quem não vira nas noites sem vento como as flores de prata<br />

eram cruéis e assassinas?” (LISPECTOR, 1982: 146).<br />

Lucrécia Neves seria derradeiro elo das cinco mil vidas<br />

da sósia Lucrécia Bórgia? Metaficção historiográfica sem<br />

qualquer compromisso com verdades históricas? Haveria, sob<br />

algum aspecto, elo comum entre Lucrécia Bórgia renascentista,<br />

satirizada pelo personagem Filofila de Victor Hugo, e Lucrécia<br />

Neves, “tupiniquim”, a quem a escritora deu-lhe voz, rosto e<br />

olhar dandi? Beleza física e intelectual de Bórgia estimulou, na<br />

cultura ocidental, boatos e lendas sobre incestos, envenenamentos,<br />

casamentos não consumados, freira e assassina.<br />

Dotes de Neves afloram em confronto com Mateus propiciando-lhe<br />

salto qualitativo e status de sósia de Bórgia.<br />

Nunca fomos amigos – respirou com prazer –<br />

somos inimigos, meu amor, para sempre [...].<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 208


Mas Lucrécia [...] estava doce e cruel [...] de que<br />

passado perverso ela emergira. Freira ou assassina,<br />

ela descobria por um momento a nu<strong>dez</strong> de seu<br />

espírito. Nua, coberta de culpa como de perdão –<br />

e era daí que o mundo se tornava o limiar de um<br />

salto.<br />

(LISPECTOR, 1982: 148-150)<br />

Narrativa de estrutura complexa. Trata-se duma metaficção<br />

historiográfica romanesca da autora na produção de novas<br />

instâncias narrativas evocadas nos espaços ficcionais de<br />

vigília e sonhos da protagonista.<br />

Conclusão<br />

Invenção de Lucrécia Neves e São Geraldo acontece<br />

nas instâncias narrativas de doze crônicas experimentais. Olhares<br />

dandi da protagonista e da autora enfocam sentimentos opostos,<br />

características opacas de objetos, coisas e animais. Clarice<br />

narra na condição de produtora de novos significados<br />

literários. Lucrécia vê-se coisa entre artefatos. Estágio anterior<br />

à compreensão racional. Autora deu-lhe voz, rosto e sentimentos<br />

dentro dum processo de semiose ilimitada de palavras, frases<br />

e expressões culturalmente refinadas, feminizantes, acrescidas<br />

de nuances e silhuetas dignas duma fortuna crítica<br />

contemporânea e celebração condizente com os trinta anos de<br />

falecimento.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 5. ed. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1982.<br />

PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,<br />

1999.<br />

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DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM<br />

CARTAS AO EDITOR EM NEWSWEEK<br />

Maurício Moreira Cardoso<br />

UECE<br />

RESUMO:<br />

Este artigo é uma análise de duas formas de intertextualidade, a pressuposição<br />

e a ironia, no corpus de 122 cartas ao editor extraídas da revista Newsweek.<br />

A fim de levar a termo a análise, buscamos suporte nas teorias de<br />

Bakthin (1986, 2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau<br />

(1997, 2001). Analisamos quantitativamente e qualitativamente 122 cartas<br />

endereçadas à revista no período entre <strong>jul</strong>ho e <strong>dez</strong>embro de 2002. Em relação<br />

a esse aspecto, observamos que as formas de intertextualidade referentes<br />

ao artigo ou reportagem têm uma conexão direta com o desenvolvimento<br />

da argumentação. As formas de intertextualidade são ligadas à linha argumentativa<br />

do texto, embora, algumas vezes, os limites dessas formas não<br />

possuam limites facilmente observáveis.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Discurso, cartas ao editor, intertextualidade, pressuposição, ironia<br />

1 – Introdução<br />

Este artigo é parte de nossa dissertação de Mestrado<br />

(CARDOSO, 2005) que teve por objetivo analisar as cartas ao<br />

editor coletadas da revista Newsweek no período compreendido<br />

entre <strong>jul</strong>ho a <strong>dez</strong>embro de 2002, com o fim de verificar como o<br />

jogo sócio-interacional entre leitor e editor se acha refletido nas<br />

estratégias discursivas comuns a esse gênero discursivo. Para<br />

este fim, baseando-nos principalmente em Bakthin (1986,<br />

2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau (1997,<br />

2001) buscamos suporte teórico na área do conhecimento da<br />

Análise do Discurso, que considera um texto necessariamente<br />

ligado aos propósitos determinados pelos eventos humanos e<br />

destinado a produzir significações, não alheias à prática social.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 210


Analisamos, qualitativa e quantitativamente, 122 cartas da referida<br />

revista no período compreendido entre <strong>jul</strong>ho e <strong>dez</strong>embro<br />

de 2002, detendo-nos em basicamente três aspectos: (a) características<br />

contextuais do gênero carta ao editor; (b) formas de<br />

heterogeneidade mostrada usadas como forma de remissão ao<br />

texto-base; e (c) relevância discursiva da identificação do leitor.<br />

As cartas ao leitor constituem, como sabemos um espaço<br />

que, em jornais e revistas, é destinado à manifestação dos<br />

leitores. São, assim, um importante instrumento da afirmação<br />

do princípio da democracia burguesa e da cidadania. E é notadamente<br />

a existência desse espaço criado para a manifestação<br />

do leitor, o ponto irradiador e, ao mesmo tempo, convergente<br />

de inúmeros fenômenos estudados através da Análise do Discurso<br />

e da Lingüística Textual. Desse modo, a superestrutura<br />

da forma de poder (o poder da comunicação escrita), que é a<br />

imprensa, é compartilhada por todos os indivíduos possuidores<br />

das competências necessárias para tanto. Por esse motivo, as<br />

cartas endereçadas aos editores de jornais e revistas constituem,<br />

a nosso ver, uma importante fonte de leitura e interpretação<br />

de determinado grupo social, mesmo que tal grupo não se caracterize<br />

por compartilhar o mesmo espaço geográfico, como é<br />

o caso de leitores de jornais e revistas cuja circulação é mundial,<br />

como, por exemplo, a revista que selecionamos.<br />

2 - A Ironia e a pressuposição<br />

Nos parágrafos seguintes, analisaremos duas formas de<br />

intertextualidade, remissivas ao texto-base, encontradas em<br />

nossa pesquisa: a pressuposição e a ironia. A escolha dessas<br />

duas formas de remissão ao texto-base se justifica pelos dados<br />

estatísticos que levantamos. As referidas formas de remissão se<br />

configuram como a mais e a menos utilizada, respectivamente.<br />

Estabelecida essa relação, queremos problematizar em torno da<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 211<br />

escolha feita pelos leitores missivistas da forma de remissão<br />

mais adequada aos seus objetivos argumentativos, bem como<br />

dos aspectos sócio-culturais que podem estar envolvidos nessas<br />

escolhas. No desenvolvimento de nossa pesquisa, detectamos<br />

as seguintes formas de remissão ao texto-base, feitas pelos leitores-missivistas<br />

do referido corpus: pressuposição, negação,<br />

ironia, referência ao título, alusão ao tema, paráfrase e excerto<br />

(correspondente a palavras entre aspas, nas obras citadas).<br />

Para uma vista panorâmica da heterogeneidade no corpus<br />

escolhido, vejamos a tabela abaixo que indica a porcentagem<br />

das caracterizações da intertextualidade encontradas nas<br />

revistas em estudo:<br />

Tabela: intertextualidade com texto original<br />

tipo de intertextualidade<br />

paráfrase<br />

referência ao título<br />

excerto<br />

alusão ao tema<br />

negação<br />

pressuposição<br />

ironia<br />

Total<br />

N° %<br />

23 18,9<br />

19 15,6<br />

20 16,4<br />

12 9,8<br />

13 10,7<br />

33 27,0<br />

2 1,6<br />

122 100,0<br />

Como podemos observar, a forma mais comum de remissão<br />

com o texto-base é a pressuposição (33/122 ou 27,0%),<br />

seguida pela paráfrase (23/122 ou 18,9%). A forma de heterogeneidade<br />

menos utilizada é a ironia (2/122 ou 1,6%). Para<br />

efeito desta análise, conforme explicamos acima, selecionamos<br />

apenas a ironia e a pressuposição.<br />

3 - A Heterogeneidade e o dialogismo<br />

Para a análise das formas de intertextualidade remissivas<br />

ao texto que originou a carta ao editor nas cartas da revista<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 212


Newsweek é central entender não só como o leitor-missivista<br />

faz remissão ao texto a que sua carta se refere, mas também o<br />

porquê da forma de remissão escolhida. Neste sentido, apesar<br />

de o caráter intertextual e o dialógico fazerem parte de qualquer<br />

enunciado (Bakhtin, 2000; Maingueneau, 1997), pretendemos<br />

estudá-los em suas formas de manifestação mais específicas<br />

– a heterogeneidade mostrada e o dialogismo<br />

circunscritos à relação direta entre o texto-base (artigo, reportagem<br />

da revista) e a carta a ele correspondente.<br />

Nesse sentido, interessa, em particular, investigar a interação<br />

leitor/editor, tomando como base a obra de Bakhtin<br />

(2000), quanto à sua noção de intertextualidade e dialogismo.<br />

Um aspecto não necessariamente intrínseco aos gêneros do<br />

discurso, mas aos textos em geral, é a noção de intertextualidade.<br />

Os textos mantêm relações com outros textos que lhes são<br />

externos, exteriores a ele, todavia, por algum viés, trazidos para<br />

dentro dele.<br />

Para começarmos a discorrer sobre a noção de intertextualidade,<br />

não podemos deixar de mencionar o pensamento de<br />

Bakhtin (2000). Na linha de pensamento deste autor, uma noção<br />

fundamental é a de dialogismo. Sobre essa noção, assevera<br />

Bakhtin:<br />

o diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a<br />

forma clássica da comunicação verbal. Cada réplica,<br />

por mais breve e fragmentária que seja,<br />

possui um acabamento específico que expressa a<br />

posição do locutor, sendo possível responder,<br />

sendo possível tomar, com relação a essa réplica,<br />

uma posição responsiva.<br />

(BAKHTIN, 2000: 294)<br />

Ora, para o autor, não existe enunciado que tenha partido<br />

do nada, tendo necessariamente que se configurar como<br />

uma resposta a outro enunciado, pois o que caracteriza o diálogo<br />

é a alternância de sujeitos falantes. Neste sentido, um dado<br />

texto nasce sempre de outro texto, direta ou indiretamente. Em<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 213<br />

outras palavras, qualquer texto traz sempre elementos de outro,<br />

ou de outros textos. Cabe aqui, mais uma vez, citar Bakhtin<br />

(2000: 317) que acrescenta o seguinte à noção de enunciado:<br />

a expressividade de um enunciado é sempre, em<br />

menor ou maior grau, uma resposta, em outras<br />

palavras: manifesta não só sua própria relação<br />

com relação ao objeto enunciado, mas também a<br />

relação do locutor com os enunciados do outro.<br />

(BAKHTIN, 2000: 317)<br />

Assim, os textos que constantemente se instauram são a<br />

materialização das necessidades comunicativas entre sujeitos.<br />

O sentido mais usual com que apreendemos este entrelace de<br />

textos é concernente às citações, “a presença de elementos reais<br />

de outros textos em um dado texto” (Fairclough, 2001: 39).<br />

Todavia as relações intertextuais nem sempre são tão explícitas<br />

quanto nas citações. Existem outros modos menos claros e menos<br />

diretos de incorporar elementos de outros textos. Fairclough<br />

ilustra com o discurso reportado, em que é possível não apenas<br />

citar o que fora dito, mas também resumir, fazer<br />

paráfrases, de modo que o texto original de algum modo se<br />

retextualiza. Assevera o autor:<br />

o discurso relatado, escrito ou pensado, atribui<br />

aquilo que é citado ou sumarizado às pessoas que<br />

o proferiram, escreveram ou o pensaram. Mas elementos<br />

de outros textos podem ser incorporados<br />

sem atribuição. Assim, a intertextualidade cobre<br />

uma ampla gama de possibilidades.<br />

(FAIRCLOUGH, 2001: 40) [tradução nossa]<br />

Em outras palavras, é muito difícil tipificar a intertextualidade.<br />

O fenômeno cobre desde citações literais, passando<br />

por discursos indiretos até o extremo em que a apropriação<br />

discursiva só pode ser reconhecida mediante o conhecimento<br />

prévio do leitor. A orientação para a diferença leva-nos às formas<br />

dialógicas nos textos. Neste particular, Fairclough segue<br />

de perto Bakhtin, para o qual uma palavra, um discurso, uma<br />

língua ou uma cultura trazem subjacente o dialogismo. Qual-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 214


quer enunciado, como dito anteriormente, é um vínculo numa<br />

complexa cadeia organizada de outros enunciados.<br />

No entanto, Bakhtin ressalta que:<br />

o estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto,<br />

uma investigação mais profunda das formas<br />

usadas na citação do discurso, uma vez que essas<br />

formas refletem tendências básicas e constantes<br />

da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa<br />

recepção, afinal, que é fundamental também para<br />

o diálogo.<br />

(BAKHTIN, 1986: 147)<br />

Mas, como, afinal, o discurso de outrem é apreendido<br />

pelo locutor? O mencionado lingüista russo sustenta que é exatamente<br />

nas formas do discurso citado que podemos encontrar<br />

um documento objetivo que esclarece o problema. Esse documento,<br />

observa Bakhtin, fornece indicações sobre as tendências<br />

sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso<br />

de outrem que se manifestam nas formas da língua, pois é na<br />

sociedade que se situa o mecanismo do processo da intertextualidade.<br />

A sociedade<br />

escolhe e gramaticaliza apenas os elementos da<br />

apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de outrem<br />

que são socialmente pertinentes e constantes<br />

e que, por conseqüência, têm seu fundamento na<br />

existência econômica de uma comunidade lingüística<br />

dada.<br />

(Bakhtin, 1986: 146)<br />

A isso devemos acrescentar o fato de que na transmissão<br />

sob forma escrita da enunciação de outrem deve ser levada<br />

em consideração a pessoa a quem está sendo transmitida tal<br />

enunciação, pois a orientação para uma terceira pessoa reforça<br />

a influências das forças sociais organizadas sobre o modo de<br />

apreensão do discurso. Nesse sentido, é curioso observar como<br />

numa situação real de diálogo, ao respondermos a um interlocutor,<br />

habitualmente não retomamos no nosso enunciado o enunciado,<br />

ou parte do enunciado, de nosso interlocutor.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 215<br />

Para Bakhtin, “as condições de transmissão e suas finalidades<br />

apenas contribuem para a realização daquilo que já está<br />

inscrito nas tendências da apreensão ativa, no quadro do discurso<br />

interior” (1986: 146). Tais tendências, aprofunda o autor,<br />

só podem desenvolver-se obedecendo aos limites das formas<br />

existentes numa determinada língua para a transmissão do discurso.<br />

O citado autor esclarece que as formas de transmissão<br />

do discurso de outrem, uma vez cristalizadas, exercem uma<br />

influência reguladora, estimulante ou inibidora, no desenvolvimento<br />

das tendências de apreensão apreciativa, cujo campo<br />

de ação é justamente definido por essas formas. Essa informação<br />

é importante no sentido de responder a indagação feita acerca<br />

da preferência sobre determinadas formas em dado gênero,<br />

enquanto outras tendem para o desuso.<br />

Contudo, Bakhtin observa que “toda a essência da apreensão<br />

apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser<br />

ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso<br />

interior” (1986: 147), pois o enunciado alheio sofre, no interior<br />

do indivíduo que o apreende, uma re-elaboração que acontece<br />

em termos do seu background cultural, de sua formação como<br />

ser social. Assim, é que o enunciado citado só pode ser corretamente<br />

entendido, quando estudado no interior do discurso<br />

que o cita. Em outras palavras, o discurso citado não pode ser<br />

divorciado do seu contexto narrativo, pois a interação dinâmica<br />

das duas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve<br />

para transmiti-lo, é fundamental para quem deseja entender o<br />

fenômeno da intertextualidade. Essa interação dinâmica, por<br />

sua vez, é reflexo da dinâmica da inter-relação social dos indivíduos<br />

na comunidade ideológica verbal (Bakhtin: 1986). Cabe<br />

lembrar, ainda fazendo referência ao eminente lingüista russo,<br />

que “a língua elabora meios sutis e mais versáteis para permitir<br />

ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso<br />

de outrem” (1986: 150).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 216


O referido autor observa ainda que um discurso a ser<br />

transmitido obedece a uma hierarquia social de valores. Dessa<br />

forma, “quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica<br />

na enunciação de outrem, mais claramente definidas<br />

serão suas fronteiras (...)” (Bakhtin, 1986: 153).<br />

No que diz respeito a essa discussão, Maingueneau<br />

(1997), apoiado em Authier-Revuz (apud Charaudeau & Maingueneau,<br />

2004), mostra uma distinção que na prática se revela<br />

bastante útil. Trata-se da distinção entre heterogeneidade mostrada<br />

e heterogeneidade constitutiva.<br />

Maingueneau começa por dizer que a noção de heterogeneidade<br />

é, antes de tudo, fundamental para o entendimento<br />

da relação do interior do discurso com seu exterior. Para o entendimento<br />

do que é heterogeneidade, importante se faz entender<br />

a noção de polifonia em Ducrot (1987). Este autor estabelece<br />

uma associação entre polifonia e o nível do enunciado. Em<br />

sua perspectiva, só há polifonia quando é possível distinguir<br />

em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores<br />

e os locutores, o que significa que outros pontos de vista além<br />

daqueles do emissor e do receptor podem ser veiculados através<br />

do enunciado.<br />

Maingueneau (1997: 76) esclarece que locutor é “um<br />

ser que no enunciado é apresentado como seu responsável. Trata-se<br />

de uma ficção discursiva que não coincide necessariamente<br />

com o produtor físico do enunciado”. No que se refere ao<br />

enunciador, Maingueneau explica:<br />

o enunciador representa, de certa forma, frente ao<br />

‘locutor’ o que o personagem representa para o<br />

autor em uma ficção. Os ‘enunciadores’ são seres<br />

cujas vozes estão presentes na enunciação sem<br />

que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras<br />

precisas; efetivamente, eles não falam, mas a enunciação<br />

permite expressar seu ponto de vista.<br />

Ou seja, o ‘locutor’ pode pôr em cena, em seu<br />

próprio enunciado, posições diferentes da sua.<br />

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(MAINGUENEAU, 1997: 77)<br />

O fenômeno da heterogeneidade se desdobra em algumas<br />

formas de ocorrências, que são as seguintes: pressuposição;<br />

negação; discurso relatado; palavras entre aspas; metadiscurso<br />

do locutor; parafrasagem; discurso indireto livre, ironia;<br />

autoridade, provérbio e slogan; pastiche.<br />

Alguns envolvem considerável complexidade, como é o<br />

caso da noção de pressuposição, que tem importância considerável<br />

para a análise do discurso. Segundo Ducrot (1987), a<br />

pressuposição se constitui através de um processo que apresenta<br />

dois ‘enunciadores’, E1 e E2; o primeiro é responsável pelo<br />

pressuposto, e o segundo, pelo posto.<br />

Exercendo um contraste com o discurso indireto livre,<br />

que institui um jogo fronteiriço entre o discurso citado e o discurso<br />

que cita, a ironia, de acordo com Maingueneau (1997),<br />

configura-se como uma subversão entre o que é assumido e o<br />

que não o é pelo locutor. O “locutor” coloca em cena um “enunciador”<br />

que adota uma posição absurda e cuja alocução não<br />

pode assumir, marcando esse distanciamento com diferentes<br />

índices: lingüísticos, gestuais, situacionais. É da essência da<br />

ironia suscitar a ambigüidade, fazendo que, com freqüência, a<br />

interpretação não consiga resolvê-la. Sendo sempre dirigida a<br />

um destinatário, não pode ser considerada uma atividade lúdica<br />

desinteressada.<br />

2.1 - O caráter intertextual do gênero carta ao editor<br />

A concepção tripartida do discurso – texto, prática discursiva<br />

e prática social, Fairclough (2001) – leva o analista do<br />

discurso a contemplar um texto além da camada meramente<br />

estrutural, pois um texto é também prática discursiva e, como<br />

tal, abrange produção, distribuição e consumo. É na esfera da<br />

prática discursiva, mais notadamente na esfera da produção do<br />

texto, que se inscreve a intertextualidade, concretizada no intertexto.<br />

A esse propósito, o referido teórico afirma que “gêneros<br />

particulares são associados com ‘modos particulares de inter-<br />

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textualidade’ (manifesta)” (2001: 164). Essa concepção de Fairclough<br />

mostra-se verdadeira pelo menos no que diz respeito<br />

ao gênero carta ao editor.<br />

A intertextualidade no corpus de nossa pesquisa revelase<br />

bastante particular, fazendo-nos pensar que em seu conjunto,<br />

as formas de remissão, configuram-se como característica marcante<br />

do gênero em foco. Mas só podemos entender o fenômeno<br />

da intertextualidade em carta ao editor se considerarmos que<br />

o referido gênero possui um caráter eminentemente dialógico<br />

(cf. Bakhtin, 2000), quer dizer, uma carta ao editor nasce como<br />

resposta direta a outro texto da mesma cadeia de gênero. Todas<br />

as cartas publicadas pela revista estão necessariamente atreladas<br />

a um artigo, reportagem, entrevista, entre outros, publicados<br />

em edições anteriores. Assim, a carta ao editor estabelece<br />

um diálogo com o texto a que se refere, e esse diálogo é marcado<br />

por formas de intertextualidade particulares, o que chamamos<br />

de formas de remissão.<br />

Na análise do corpus adotado, encontramos as seguintes<br />

formas de remissão ao texto-base: pressuposição, negação, ironia,<br />

alusão ao tema, referência ao título, excerto e paráfrase. No<br />

que diz respeito ao fenômeno da intertextualidade, argumentamos,<br />

apoiando-nos em Fairclough (2001), que as formas de<br />

remissão supracitadas ajudam a delimitar o gênero cartas ao<br />

editor – na dimensão da prática discursiva – se vistas em composição<br />

com os outros aspectos. Fazemos a ressalva de que as<br />

referidas formas de remissão só ajudam nessa delimitação se<br />

foram tomadas em seu conjunto. Por exemplo, a paráfrase é<br />

uma forma de remissão encontrada em outros gêneros, assim<br />

como o excerto, pelo que não elucida nada quanto ao gênero<br />

cartas ao editor se tomada isoladamente. Dito isto, podemos<br />

falar mais pormenorizadamente sobre a relação da intertextualidade<br />

com o gênero carta ao editor.<br />

A despeito de fato de que todo texto é possuidor do caráter<br />

dialógico (cf. Bakhtin, 2000), o gênero cartas ao editor se<br />

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caracteriza por ter o referido traço como um de seus elementos<br />

fundamentais, pois qualquer carta enviada à redação da revista<br />

Newsweek, a fim de ser publicada na seção Letters, constitui-se<br />

em uma resposta direta a um texto anterior, publicado na mesma<br />

revista. Podemos perceber que o enunciado de um poema,<br />

por exemplo, ainda que tenha sua gênese em outro enunciado,<br />

não possui, necessariamente, essa relação direta com um texto<br />

determinado. Na carta ao editor, diferentemente, percebemos<br />

claramente o referido traço responsivo, pois, além de tudo, configura-se<br />

como resposta a outro texto da mesma cadeia de gênero,<br />

ou seja, um texto jornalístico. Além disso, as cartas enviadas<br />

à redação configuram a possibilidade de quebra da<br />

unilateralidade da referida cadeia, pois, como sabemos, elas, ao<br />

mesmo tempo que elogiam, criticam, corrigem, também têm a<br />

função de oferecer à publicação uma espécie de feedback do<br />

comportamento adotado perante seu público leitor, pois, como<br />

sabemos, órgãos da comunicação escrita e televisionada são<br />

formadores de opinião. Sendo assim, as mencionadas cartas<br />

funcionam como fator de equilíbrio. Por outro lado, dado o<br />

pequeno espaço destinado às cartas, podemos inferir que esse<br />

equilíbrio fica, de antemão, comprometido, uma vez que o restante<br />

do suporte é reservado à publicação.<br />

Aqui, chamamos a atenção para a afirmação de Swales<br />

(1990), que diz ser a nomenclatura para gêneros de uma determinada<br />

comunidade de discurso uma fonte importante de percepção.<br />

Assim, o nome “carta ao editor” tem muita a revelar<br />

sobre o gênero que denomina. Em primeiro lugar, literalmente,<br />

trata-se de uma carta enviada ao editor de uma revista ou jornal,<br />

o que aponta para seu traço dialógico. Vale dizer ainda, a<br />

carta é enviada ao editor, e não especificamente ao indivíduo<br />

que ocupada o referido cargo. O editor de uma publicação tem,<br />

entre outras, a função de coordenar os trabalhos e de selecionar<br />

o que deve ser publicado, de acordo com a linha editorial da<br />

publicação. Nesse sentido, podemos dizer que, em última aná-<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 220


lise, é de sua responsabilidade a tarefa de evitar matérias que<br />

possam comprometer o nome da publicação, o que justifica que<br />

os leitores escrevam para ele não só para apontar algum equívoco<br />

cometido, criticando, mas também para dizer que a publicação<br />

está seguindo o caminho correto, elogiando, portanto.<br />

Mas a interpelação feita pelo leitor-missivista, a priori,<br />

dirigida ao editor, acontece através de alguma forma de intertexto,<br />

ainda que tal intertexto não possa ser imediatamente identificado<br />

na carta. As modalidades de remissão ao texto-base<br />

por parte do leitor-missivista são por nós chamadas de formas<br />

de remissão. Queremos crer que tais formas de remissão, em<br />

seu conjunto, imprimem ao gênero carta ao editor um caráter<br />

particular. Mas é preciso observar que, conforme expressa Bakhtin<br />

(1986: 148), “o erro fundamental dos pesquisadores que<br />

já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de<br />

outrem, é tê-lo sistematicamente divorciado do contexto narrativo”.<br />

Neste sentido, só é possível entender a intertextualidade<br />

como componente revelador das feições do gênero carta ao<br />

editor, se procurarmos entender como a recepção consciente<br />

dos enunciados se processa nas cartas.<br />

Apoiando-nos nas concepções do citado lingüista russo,<br />

podemos dizer que a intertextualidade em carta ao editor deve<br />

se articular com todos os outros elementos compreendidos dentro<br />

da concepção tridimensional do discurso trazida à tona por<br />

Fairclough (2001): texto, prática discursiva e prática social.<br />

Assim, no que se refere à esfera da prática discursiva,<br />

podemos entender a heterogeneidade mostrada (para Fairclough,<br />

intertextualidade manifesta) como o intertexto que, tendo<br />

sido incorporado dentro de um enunciado, provoca uma reorganização<br />

deste, de modo que esse enunciado se retextualiza a<br />

fim de acomodar o discurso alheio. No gênero carta ao editor,<br />

essa retextualização é fruto de uma acomodação em vários níveis;<br />

no entanto, por razões já expressas, focalizaremos apenas<br />

o nível da prática discursiva. Assim, queremos nos reportar à<br />

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forma como o gênero em tela se articula dentro da cadeia de<br />

gênero em que se insere – o texto jornalístico. Dentro dessa<br />

perspectiva, a intertextualidade existente no gênero e sua conseqüente<br />

acomodação dentro do enunciado obedecem a fatores<br />

como: o suporte, o canal, o enunciador (sua posição social e<br />

seus propósitos comunicativos), o co-enunciador (sua posição<br />

social), a cadeia de gênero em que se insere o gênero, de forma<br />

que o estudo das implicações da intertextualidade dentro de<br />

dado gênero se torna bastante complexa.<br />

Em linhas gerais, podemos dizer que, no que se refere<br />

ao fenômeno da intertextualidade e do dialogismo, a carta ao<br />

editor apresenta características que não são compartilhadas em<br />

sua totalidade com outros gêneros, inclusive com os que pertencem<br />

à mesma cadeia de gênero. Como exemplo, podemos<br />

citar a relação direta entre o texto-base (artigo, entrevista, reportagem)<br />

e a carta ao editor (elaborada como resposta ao texto-base).<br />

Pois, no primeiro caso, a manifestação da intertextualidade<br />

se dá diferentemente do segundo, muito embora<br />

pertençam à mesma cadeia de gênero.<br />

3 - Formas de remissão nas cartas ao editor de Newsweek: a<br />

pressuposição e a ironia<br />

3.1 - A pressuposição<br />

Para Ducrot (1987), as pressuposições correspondem a<br />

realidades supostas já conhecidas do destinatário; não podem<br />

ser afetadas pela negação ou interrogação; e, em princípio, não<br />

podem ser anuladas. No corpus da presente seção, a pressuposição<br />

é a forma de remissão mais utilizada pelos leitoresmissivistas,<br />

seguida da parafrasagem.<br />

Elegemos a carta de número 36, transcrita abaixo, para<br />

efeito de exemplificação e análise desse fenômeno de heterogeneidade<br />

mostrada. Conforme esclarecido em nossa fundamentação<br />

teórica, ao fenômeno da pressuposição está subjacen-<br />

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te a idéia de que, dentro do enunciado em que existe pressuposição,<br />

há sempre o que é pressuposto e o que é posto. Conseqüentemente,<br />

há sempre a presença de dois enunciadores.<br />

(36) to attack when necessary is bad enough, but<br />

to go to war on an if, a might and a maybe leaves<br />

me speechless. And now, eloquent speech writers<br />

will make something noble out of this macho<br />

militancy.<br />

MICHAEL G. DRIVER ICHIHARA, JAPAN<br />

O leitor-missivista dessa carta a inicia com uma avaliação<br />

sobre a possibilidade de uma guerra entre Estados Unidos e<br />

Iraque. Segundo sua avaliação, atacar quando necessário já é<br />

suficientemente ruim, porém algo pior acontece quando as razões<br />

para fazer a guerra estão marcadas pelo “se”, pelo “talvez”<br />

e pelo “pode ser” (if, might, maybe), o que em outras palavras<br />

significa dizer: sem razões confiáveis. Aqui a forma de remissão<br />

é feita pelo posto, que remete ao pressuposto, pois o autor<br />

não fornece informações detalhadas sobre o artigo que deu origem<br />

a essa missiva. O autor faz referência clara a uma enunciação<br />

que não autoriza pela menção na carta do “se”, do “talvez”<br />

e do “pode ser”, cujo caráter intertextual, nesse caso, é<br />

dado pela substantivação (an if, a might, a maybe), levando o<br />

leitor da missiva a procurar reconstruir o texto, pressupondo<br />

que os argumentos (pressupostamente em favor da guerra) do<br />

texto-base se constroem em torno de possibilidades, dúvidas e<br />

condições.<br />

Pela forma genérica com que o autor da carta, através<br />

dessa forma de heterogeneidade mostrada, refere-se ao texto<br />

base, podemos classificar a aludida forma de remissão como<br />

uma abordagem generalizante da temática. Isto pode ser constatado<br />

na progressão do texto em análise. O leitor-missivista<br />

conclui seu texto dizendo que os redatores de discurso tratarão<br />

de tornar o comportamento reprovável (de fazer guerra) em<br />

algo que venha a ser aceito como “nobre” (heróico).<br />

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Pela leitura dessa missiva, podemos perceber que ela<br />

compreende o posto, enquanto que os pressupostos podem ser<br />

recuperáveis através dos elementos textuais fornecidos pelo<br />

autor. O primeiro pressuposto, marcado pela oração “atacar<br />

quando necessário já é suficientemente ruim” (to attack when<br />

necessary is bad enough), é: existem preparativos para uma<br />

guerra, pois contextualmente o leitor “deve ter conhecimento”<br />

que até a data da publicação da carta, a guerra a que o leitormissivista<br />

se referia não havia sido deflagrada. O segundo é: os<br />

argumentos que justificam o fazer a guerra são construídos em<br />

torno de possibilidades, de suposições, e de condições, evidenciados<br />

textualmente pelo uso do “se”, do “talvez”, e do “pode<br />

ser”.<br />

A última sentença dessa carta remete o leitor a pensar<br />

sobre algo que não foi veiculado em nenhum dos dois enunciados<br />

em que foi estabelecido o fio dialógico. O leitor-missivista<br />

chama a atenção para a possibilidade de que, no futuro, manipuladores<br />

do discurso venham a encontrar meios de fazer com<br />

que a situação real (da guerra injustificada) seja revertida para<br />

algo aceitável por parte da população, notadamente a população<br />

americana.<br />

Sendo a pressuposição a forma de remissão mais utilizada<br />

em nosso corpus, devemos tentar entender, buscando suporte<br />

em Bakhtin (1986), qual o significado de seu uso nas<br />

cartas enviadas ao editor da Newsweek. A princípio podemos<br />

dizer que essa forma de remissão tem o respaldo social necessário<br />

que faz com que os leitores queiram utilizá-las. Mas o<br />

elemento social por si só não diz tudo. Devemos entender que o<br />

seu uso harmoniza-se com as feições de um gênero que possui<br />

características muito próprias, ainda que tentemos entendê-lo<br />

com base em aspectos meramente contextuais. Ao usar a referida<br />

forma de remissão o leitor-missivista pressupõe que seu<br />

leitor tenha lido o artigo a que se refere. Por outro lado, a mencionada<br />

forma de remissão aponta para um apagamento, ainda<br />

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muito maior que a paráfrase, dos limites do intertexto dentro do<br />

enunciado que o incorpora. Podemos ver o intertexto apenas<br />

através da análise feita sobre ele pelo autor da missiva, o que<br />

aponta para o quão a temática por ele abordada deve ser familiar<br />

aos interlocutores.<br />

3.2 - A ironia<br />

A forma de intertextualidade chamada ironia se caracteriza<br />

pela presença de um enunciado que não é assumido pelo<br />

enunciador, em parte ou em sua totalidade, no momento da<br />

enunciação. Neste caso o enunciador procura criar um efeito de<br />

surpreender seu interlocutor, pois o enunciado se apresenta<br />

como um ponto de vista insustentável e atribuível a uma outra<br />

personagem. Trata-se de uma forma de heterogeneidade mostrada<br />

bastante complexa que vem sendo alvo de reflexão desde<br />

a origem da Filosofia (cf. Maingueneau & Charaudeau, 2004).<br />

A primeira carta em que reconhecemos a presença da ironia<br />

como forma de remissão é a carta de número 39 (de nosso corpus),<br />

transcrita a seguir:<br />

(39) THE UNITED STATES IS TOTALLY JUSTIFIED in<br />

targeting a rogue Middle Eastern country that has<br />

weapons of mass destruction, invades its<br />

neighbors, defies U.N. resolutions and international<br />

laws, and oppresses and terrorizes minorities<br />

and opponents to its regime. The country I'm<br />

thinking of is Israel: it has nuclear weapons, has<br />

invaded Egypt, Syria, Jordan and Lebanon, has<br />

consistently defied all U.N. resolutions pertaining<br />

to it and inflicts the worst kinds of terror on its<br />

Arab population. We should go and effect a regime<br />

change in Israel whether it accepts weapons<br />

inspectors or not.<br />

Ali Mili newark, new jersey.<br />

Nessa carta o leitor-missivista diz que “os Estados Unidos<br />

estão corretos em invadir um país vagabundo do Oriente<br />

Médio que tem armas de destruição em massa, invade os seus<br />

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vizinhos, desafia as leis das Nações Unidas, oprime e aterroriza<br />

as minorias e oponentes do seu regime”, para depois dizer que<br />

o país a que está se referindo é Israel. A ironia aqui está no fato<br />

de utilizar todos os atributos que os Estados Unidos utilizam<br />

para definir o Iraque. Depois, o autor da carta quebra a expectativa<br />

do leitor dizendo que se refere a Israel.<br />

A decisão de utilizar a ironia como forma de remissão<br />

alcança aqui um efeito um tanto incomum, demonstrando ser<br />

um meio eficiente de argumentação. Considerando que o espaço<br />

destinado ao leitor-missivista é bastante pequeno, comparado<br />

com o espaço de que dispõe o articulista, a referida forma<br />

de remissão cumpre mais de um papel: 1) utilizar um mínimo<br />

de espaço com o máximo de eficiência, ao demonstrar que Israel<br />

se enquadra perfeitamente dentro dos atributos e argumentos<br />

utilizados pelos Estados Unidos para invadir o Iraque; 2)<br />

mostrar a contradição e a parcialidade dos argumentos americanos<br />

para justificar a invasão ao Iraque.<br />

Chamamos a atenção para o modo como a estratégia<br />

remissiva utilizada se mostra eficiente no sentido de criar no<br />

leitor certa expectativa, para depois quebrá-la de uma forma<br />

surpreendente. Se, no início, o leitor não percebe a contradição,<br />

a tomada de consciência do contra-senso ocorre de forma quase<br />

que imediata, pois as primeiras frases da carta o levam a pensar<br />

que o seu autor se posiciona a favor dos critérios de <strong>jul</strong>gamento<br />

americanos, para depois mostrar, implicitamente, que esses<br />

critérios não estão sendo aplicados a Israel. É importante destacar<br />

que, na missiva, o leitor não diz que o Iraque não se enquadra<br />

nos referidos atributos, querendo, talvez, mostrar que os<br />

Estados Unidos não aplicam os mesmos critérios de avaliação a<br />

todos, o que leva a concluir que as razões verdadeiras para a<br />

invasão do Iraque são outras.<br />

O principal argumento utilizado para justificar a invasão<br />

dos Estados Unidos ao Iraque – ter armas de destruição em<br />

massa – provou ser falso, hoje sabemos. Paralelamente, Israel é<br />

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o país mais fortemente armado do Oriente Médio, o que prova<br />

a força da argumentação do leitor-missivista da carta 39.<br />

É interessante observar que não nos sentimos autorizados<br />

a usar a ironia em situações formais de interação social em<br />

que se estabelece uma relação de confiança e respeito mútuo<br />

entre, pelo menos, dois interlocutores. No entanto, o uso da<br />

ironia está associado a situações em que possivelmente essa<br />

relação de confiança e de respeito foi quebrada. A lei da sinceridade<br />

não está sendo cumprida e para demonstrar isso, o interlocutor,<br />

irônico, passa a usar da mesma insinceridade, ao mesmo<br />

tempo em que deixa claro que não está sendo sincero, pelo<br />

“absurdo” do que diz, muitas vezes utilizando-se de recursos<br />

supra-segmentais reconhecidamente reveladores do comportamento<br />

irônico. Na carta em análise, como sabemos, o seu autor<br />

não pode lançar mão desses recursos. Consegue ser irônico ao<br />

incorporar o discurso do seu interlocutor para depois aplicá-lo<br />

ao objeto “errado”. Talvez por apontar de uma forma tão contundente<br />

para o interlocutor como descumpridor da lei da sinceridade<br />

é que a ironia seja um recurso pouco utilizado em gêneros<br />

cujas características estejam ligadas à noção de<br />

democracia e liberdade de expressão, como é o caso de carta ao<br />

editor, pois ao ser irônico, o enunciador mostra que na verdade<br />

o seu interlocutor não quer ouvi-lo, indicando, conseqüentemente,<br />

o quão anti-democrático é o discurso do outro, especialmente<br />

quando o outro se arvora de democrático. Adotando<br />

um comportamento irônico, o locutor da carta aponta para o<br />

fato de que o seu co-enunciador não merece crédito.<br />

A carta de número 71 também apresenta a ironia como<br />

forma de remissão, embora a referida forma de heterogeneidade<br />

mostrada se realize de maneira diferente da carta 39. Na<br />

carta 71, a remissão irônica aparece somente no final, pois todo<br />

o restante do conteúdo da missiva se refere às características<br />

negativas do governo de Saddan Hussein. Ao longo de quase<br />

toda a exposição dessas características negativas, o missivista<br />

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dá a entender que se alinha com a abordagem política de Bush,<br />

para no final mostrar que o presidente americano não tem razão<br />

para condenar o governo iraquiano, uma vez que ambos compartilham<br />

características similares. O que há de irônico na carta<br />

é a forma como o leitor missivista mostra essas similaridades<br />

com o uso da palavra so nas duas últimas sentenças: Leiamos a<br />

carta:<br />

(71) since saddam seized power without any democratic<br />

mandate, his nation has suffered economic<br />

decline and become contemptible in the<br />

eyes of the world due to his bellicosity and unilateralist<br />

disdain for environment and the United<br />

Nations. At the same time, his weapons of mass<br />

destruction strike fear in our hearts. And he and<br />

his cronies have grown rich by corrupt dealings in<br />

oil and other industries. Why does Bush hate him<br />

so? They have so much in common.<br />

DAVID IRBY DINGLE, IRELAND<br />

Nesse caso, o locutor assume o conteúdo da enunciação,<br />

mas há uma discordância da atitude esperada para essa situação,<br />

o que provoca um efeito de choque sobre o leitor comum,<br />

especialmente sobre aqueles que se mostram a favor das atitudes<br />

do chefe do Estado americano.<br />

4 - Considerações finais<br />

Se pensarmos em termos de propósitos a serem atingidos,<br />

podemos observar feições relativas ao gênero em questão.<br />

O caso da ironia se configura como proveitoso exemplo para<br />

esse tipo de análise. Nos dois casos analisados, podemos perceber<br />

o quão o efeito criado exerce um papel importante, pois<br />

gera uma espécie de epifania no leitor comum, que passa a perceber,<br />

se ainda não percebia, implicações de atitudes e posicionamentos<br />

teóricos que de outra forma demandaria uma longa<br />

argumentação.<br />

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Já a pressuposição remete para a questão da familiaridade<br />

e do conhecimento que o leitor comum tem com o assunto<br />

abordado no texto-base. Neste sentido, a revista presta auxílio a<br />

esse leitor, colocando ao lado das cartas a gravura relacionada<br />

ao texto referido pelas cartas publicadas naquela edição. A<br />

pressuposição vem ao encontro às intuições das Bronckart<br />

(2003), que afirma que a realização de um gênero depende de<br />

elementos circunstanciais.<br />

As formas de heterogeneidade mostrada abordadas aqui<br />

denunciam o caráter fortemente dialógico do gênero do discurso<br />

carta ao editor, ao mesmo tempo em que se articulam com<br />

os propósitos comunicativos e com os efeitos almejados pelos<br />

leitores-missivistas, que, por sua vez, devem possuir a competência<br />

genérica necessária a fim de que suas escolhas enunciativas<br />

surtam o desejado efeito. A esse propósito, a pressuposição,<br />

como a forma de remissão mais utilizada nas cartas,<br />

polariza uma tensão entre o uso da uma argumentação tendente<br />

ao subjetivo – ancorada em formas de intertextualidade cujas<br />

delimitações não são imediatamente identificáveis na superfície<br />

do texto –, e o uso de formas de argumentação ancoradas em<br />

intertextos cujas delimitações são mais facilmente identificáveis<br />

na superfície textual. Em todo caso, seguindo de perto<br />

Bakhtin (1986), não podemos esquecer que as formas de intertextualidade<br />

aqui analisadas devem ser respaldadas pelo meio<br />

social em que são utilizadas. Uma prova disso é que o uso da<br />

pressuposição se destaca visivelmente na preferência dos leitores-missivistas,<br />

pelo menos no corpus que estudamos.<br />

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CARDOSO, Maurício Moreira. O Gênero Carta ao Editor em<br />

Newsweek: aspectos discursivos e sócio-interacionais. Dissertação<br />

de Mestrado apresentada na Universidade Estadual do<br />

Ceará, 2005, que teve como orientadora a Drª Maria Irandé<br />

Costa Antunes<br />

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O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO<br />

Vanilda Salton Köche<br />

UCS<br />

Adiane Fogali Marinello<br />

UCS<br />

Odete Maria Benetti Boff<br />

UCS<br />

RESUMO:<br />

Este artigo aborda o texto explicativo como um gênero textual que apresenta<br />

soluções para um problema da ordem do saber. Seu estudo centra-se na<br />

necessidade de desenvolver habilidades de recepção e produção textual. O<br />

trabalho faz parte da pesquisa-ensino denominada Leitura e produção de<br />

textos na perspectiva dos gêneros textuais, realizada na Universidade de<br />

Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos. O artigo<br />

apresenta subsídios teóricos relacionados com os gêneros textuais e sua<br />

aplicação no ensino, em seguida, mostra os aspectos que caracterizam o<br />

texto explicativo, após apresenta uma análise ilustrativa e, finalmente, sugere<br />

atividades de leitura e escrita.<br />

PALAVRAS-CHAVE:<br />

Texto explicativo, gênero textual, ensino.<br />

Introdução<br />

As questões referentes à leitura e produção de textos na<br />

perspectiva dos gêneros textuais tornaram-se mais enfáticas<br />

com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em<br />

1999. É consenso entre os teóricos que, no ensino tradicional,<br />

geralmente o professor trabalha o ensino da escrita a partir das<br />

tipologias textuais, principalmente a narração, a descrição e a<br />

dissertação. Não se pode ignorar a importância das tipologias,<br />

no entanto, elas por si só não dão conta da complexidade da<br />

escrita utilizada nas diversas situações de interação, por isso, é<br />

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preciso ir além, e avançar num trabalho de leitura e produção<br />

calcado nos gêneros textuais.<br />

Este artigo pretende analisar o texto explicativo, uma<br />

vez que, de certa forma, é negligenciado, principalmente no<br />

Ensino Fundamental e Médio. No entanto, o aluno convive<br />

com ele diariamente, quer através das leituras, dos livros didáticos,<br />

de artigos, entre outros. Mas, apesar de não ter seu lugar<br />

de destaque e os alunos ignorarem as especificidades desse<br />

gênero, sua escrita lhes é exigida, desde uma simples resposta a<br />

uma questão de prova a trabalhos mais complexos, desenvolvidos<br />

no decorrer das disciplinas. Assim, é imprescindível que se<br />

trabalhe sistematicamente com a leitura e a escrita deste texto<br />

para facilitar a prática quotidiana do aluno, dispondo subsídios<br />

teóricos que embasam o gênero. O estudo faz parte da pesquisa-ensino,<br />

intitulada Leitura e produção de textos na perspectiva<br />

dos gêneros textuais, desenvolvida na Universidade de Caxias<br />

do Sul - Campus Universitário da região dos Vinhedos.<br />

Fundamentam o trabalho os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

(1999), Bakthin (1992), Coltier (1987), Charolles (1988) e<br />

Cristóvão e Nascimento (2005).<br />

1 - A dinamicidade da linguagem e o ensino dos gêneros<br />

textuais<br />

Todas as manifestações verbais humanas ocorrem mediante<br />

a produção de discursos, e não como elementos lingüísticos<br />

isolados. Tanto na oralidade quanto na escrita, os enunciados<br />

não são atos solitários, mas estão circunscritos a alguma<br />

instância da atividade humana socialmente organizada. Os gêneros<br />

textuais permitem desenvolver competências e habilidades<br />

para domínio da língua, visto serem determinados historicamente.<br />

Segundo Bakthin, os gêneros do discurso são tipos<br />

relativamente estáveis de enunciados produzidos pelas mais<br />

diversas esferas da atividade humana (1992: 127). Enquanto os<br />

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gêneros são até certo ponto estáveis, os textos que os materializam<br />

são variados e maleáveis. Por sua vez, Bronckart coloca<br />

que os textos são produto da linguagem em funcionamento<br />

permanente nas formações sociais. Em função de seus objetivos,<br />

interesses e questões específicas, essas formações elaboram<br />

diferentes espécies de textos; apresentam características<br />

relativamente constantes e ficam disponíveis no intertexto como<br />

modelos indexados para os contemporâneos e as gerações<br />

posteriores (1999: 137). Nesse sentido, são caracterizados especialmente<br />

por um conteúdo temático, uma estrutura particular<br />

e um estilo, que variam conforme a situação comunicativa.<br />

A tendência da lingüística textual e da teoria do discurso<br />

de valorizar as situações específicas de produção da comunicação<br />

influenciou a recomendação do estudo de gêneros nos<br />

Parâmetros Curriculares Nacionais (1999). Estes ressaltam que<br />

o ensino de língua portuguesa deve partir dos gêneros e se organizar<br />

em torno deles, visto estes serem identificados e caracterizados<br />

pelas funções específicas de comunicação que exercem<br />

na sociedade. Nesse sentido, afirmam que todo texto<br />

pertence a um determinado gênero, ou seja, a um conjunto heterogêneo<br />

de textos que compartilha características comuns<br />

(1999: 26).<br />

Com base nas quatro competências e habilidades fundamentais<br />

(falar, escutar, ler e escrever) que devem nortear a<br />

educação, os PCNs (1999) concebem a língua como atividade<br />

sócio-interativa, cognitiva e histórica. Conforme Marcuschi<br />

(2005), a atividade pedagógica necessita estar centrada nos<br />

gêneros que circulam na vida cotidiana. Eles devem ser tratados<br />

como entidades plásticas e observados em seu fluxo sóciointerativo<br />

e histórico, e não em suas fronteiras formais nem nas<br />

suas propriedades tipicamente lingüísticas do ponto de vista<br />

sentencial.<br />

Assim, é fundamental explorar os gêneros textuais enquanto<br />

objetos de reflexão nas situações de interação e com<br />

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propósitos definidos, e não somente sob o ponto de vista da<br />

materialidade da língua. Segundo os PCNs (1999), deve-se<br />

privilegiar a cultura do pensar e do produzir idéias, consolidando<br />

práticas de ensino de língua portuguesa que tenham como<br />

ponto de partida e chegada o uso da linguagem. Para isso, assinalam<br />

que a justificativa das propostas de leitura, escrita e uso<br />

da fala é a compreensão e a interlocução efetivas (1998: 21).<br />

Como a escrita é uma atividade interativa de expressão,<br />

os gêneros possibilitam que os indivíduos se organizem em<br />

sociedade na medida em que favorecem a comunicação. Assim,<br />

faz-se necessário criar materiais didáticos que favoreçam esse<br />

contato. Cristóvão e Nascimento afirmam que “a exploração<br />

das características do modelo didático do gênero é uma preciosa<br />

fonte de informações, material didático fundamental para<br />

que, a partir dele, o professor possa fazer as adaptações necessárias<br />

a uma 'transposição didática' de gênero” (2005: 57). Na<br />

organização desses materiais, deve-se considerar os objetivos<br />

de ensino, os diversos conhecimentos existentes sobre gêneros<br />

textuais e as capacidades dos aprendizes.<br />

2 - O ensino dos gêneros textuais na implementação das<br />

aulas de língua portuguesa<br />

A análise da língua, a partir de seu caráter interacionista,<br />

é um processo recente. Acreditamos ser imprescindível contribuir<br />

para a sua aplicabilidade, tendo em vista a influência das<br />

atuais reflexões no ensino e na elaboração dos materiais didáticos.<br />

A relevância pedagógica e social do estudo sobre o gênero<br />

textual reside no fato deste ser envolto essencialmente pela<br />

linguagem e a comunicação só ser possível por meio de algum<br />

gênero.<br />

Bakhtin assevera para o fato de que não é o indivíduo<br />

falante que cria os gêneros porque eles não deixam de ter um<br />

valor normativo. Segundo o autor, “se não existissem os gêne-<br />

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os do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de<br />

criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos<br />

que construir cada um de nossos enunciados, a comunicação<br />

verbal seria quase impossível” (1992: 302). Nessa perspectiva,<br />

os gêneros não podem ser considerados como produtos acabados<br />

à disposição dos falantes, pois possuem uma estruturação<br />

relativamente estável. Bakthin (1992: 301-301) afirma que:<br />

Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros de<br />

uma forma padrão e relativamente estável de estruturação<br />

de um todo. Possuímos um rico repertório<br />

de gêneros do discurso orais (e escritos). Na<br />

prática, usamo-los com segurança e destreza, mas<br />

podemos ignorar totalmente sua existência teórica.<br />

(...) Aprender a falar é aprender a estruturar<br />

enunciados (porque falamos por enunciados e não<br />

por orações isoladas). Os gêneros do discurso organizam<br />

nossa fala da mesma maneira que a organizam<br />

as formas gramaticais (sintáticas).<br />

Desse modo, sob essa ótica, a atividade pedagógica de<br />

ensino de língua portuguesa embasa-se numa concepção de<br />

linguagem que reconhece a língua como eminentemente funcional<br />

e contextualizada, e que visa ao desenvolvimento da<br />

competência discursiva, também entendida como capacidade<br />

reflexiva, crítica e criativa. Como fenômenos lingüísticos, os<br />

gêneros variam e multiplicam-se, e estão presentes no tempo e<br />

na realidade para auxiliar as relações na sociedade. Segundo<br />

Marcuschi, “devem ser vistos como as práticas sociais, os aspectos<br />

cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias,<br />

as atividades discursivas e no interior da cultura. Eles<br />

mudam, fundem-se, misturam-se para manter sua identidade<br />

funcional como inovação organizacional” (2005: 19).<br />

É relevante explorar a forma composicional e os estilos<br />

dos gêneros para desenvolver práticas sociais e ampliar as possibilidades<br />

comunicativas das situações específicas de interlocução:<br />

os participantes da interação e suas relações sociais; as<br />

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temáticas; a intenção enunciativa e o estilo; o campo de atividade<br />

e seu tempo e lugar históricos; os impactos e sentidos<br />

produzidos pelas diversas modalidades de linguagem e mídias.<br />

Cabe à escola apresentar ao aluno diferentes gêneros textuais,<br />

usados em situações distintas e com objetivos diversos, de modo<br />

a ampliar sua competência comunicativa. Isso significa afirmar<br />

que, na sua prática docente, o professor desenvolve no<br />

aluno a capacidade de reconhecer que a pluralidade de discursos<br />

contribui para o desenvolvimento da sua auto-estima, seu<br />

sentido de cidadania e seu papel social.<br />

É evidente, portanto, a importância da leitura, produção<br />

e análise de diferentes gêneros textuais no ensino. Entretanto,<br />

pode-se afirmar que isso ainda não acontece como deveria ser,<br />

talvez, porque os cursos de Licenciatura não contemplem em<br />

sua totalidade um aprofundamento desta abordagem. Desse<br />

modo, tornam-se extremamente importantes as iniciativas de<br />

estudo e produção de material didático voltado ao ensino da<br />

leitura e da escrita na perspectiva dos gêneros textuais para<br />

auxiliará no trabalho pedagógico e facilitar o desenvolvimento<br />

das habilidades e das competências comunicativas dos alunos<br />

de diferentes níveis.<br />

3 - O texto explicativo<br />

O texto explicativo consiste em um gênero textual que<br />

faz compreender um problema da ordem do saber. A partir do<br />

problema apresentado, um sujeito comunica a seu interlocutor<br />

a solução, modificando-lhe a percepção anterior.<br />

Segundo Coltier (1987), diante de um problema relacionado<br />

com o saber, o texto explicativo questiona o real em<br />

duas circunstâncias. A primeira refere-se à existência de um<br />

paradoxo, que causa um certo estranhamento com o sistema<br />

estabelecido de explicação de mundo; faz aparecer uma incongruência.<br />

A autora exemplifica: na questão por que o Sol pare-<br />

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ce ser do mesmo tamanho da lua? ressalta a contradição que<br />

existe entre o que se sabe sobre o tamanho real do sol (400 vezes<br />

maior do que a lua) e sobre as leis da ótica (entre dois objetos,<br />

o mais volumoso é o que aparece como sendo o maior), e o<br />

fato constatado: o tamanho aparente do Sol não é superior ao<br />

da Lua. Para a referida autora, o procedimento pode ser esquematizado<br />

pela pergunta: sendo dado A (os saberes admitidos) e<br />

B (o fenômeno) não deveria existir, mas ele se produz. Como<br />

ou por que isso ocorre? A explicação deste problema vai decorrer<br />

do fato de que o sol é 400 vezes maior do que a lua e<br />

encontra-se a uma distância 400 vezes maior, por isso, parece<br />

ser do mesmo tamanho.<br />

A segunda circunstância em que o texto explicativo<br />

questiona o real, conforme a citada autora, ocorre na investigação<br />

de uma evidência, que consiste em um questionamento<br />

sobre um fenômeno normal que se torna objeto de investigação,<br />

sem que haja contradição. Exemplifica: Todos os seres<br />

vivos têm necessidade de se alimentar para fornecer a energia<br />

necessária para a atividade das células, para seu crescimento,<br />

para seu sustento (...). Como fazem as plantas para se alimentar?<br />

No exemplo, há um fato conhecido: as plantas se alimentam.<br />

Ele é problematizado pelo texto como uma explicação a<br />

ser dada, necessitando, para isso, maiores informações a respeito<br />

do fenômeno. Neste caso, o procedimento interrogativo pode<br />

ser esquematizado pelo seguinte questionamento: o fenômeno<br />

B existe conforme deve ser. Quais são as causas da existência<br />

de B?<br />

Nos dois casos apresentados, tanto na existência de um<br />

paradoxo, quanto na investigação de uma evidência, esse gênero<br />

constrói enigmas a serem explicados a um interlocutor, mediante<br />

um raciocínio lógico, conduzindo a uma conclusão. O<br />

problema deixa de existir, e torna-se um fenômeno normal. Por<br />

meio da explicação, todos os conhecimentos anteriores podem<br />

ser modificados no todo ou em parte.<br />

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A função social do gênero explicativo é transmitir e<br />

construir conhecimentos, o que o torna pertencente à ordem do<br />

expor. Segundo Bronckart (1999: 229), o raciocínio explicativo<br />

apresenta as seguintes fases:<br />

a constatação inicial - introduz um fenômeno<br />

não contestável;<br />

a problematização - explicita uma questão da<br />

ordem do porquê ou do como;<br />

a resolução - responde à questão colocada;<br />

a conclusão-avaliação - formula e completa a<br />

constatação inicial.<br />

Segundo Coltier (1987), no texto explicativo, normalmente,<br />

os enunciados são compostos por três categorias: os<br />

enunciados descritivos, os explicativos e os balizados. Os enunciados<br />

descritivos apresentam o fenômeno a ser explicado.<br />

O enunciador, como mero observador, registra os fatos de modo<br />

objetivo. Os verbos normalmente estão no presente ou no<br />

imperfeito do indicativo. Há a ausência dos pronomes em primeira<br />

e segunda pessoa. Os enunciados explicativos oferecem<br />

uma solução. A escolha dos tempos verbais dependerá do modo<br />

como se processa a explicação. Em caso de antecipação de<br />

hipóteses, ou da retomada de certas explicações, ocorre freqüentemente<br />

o emprego do futuro do pretérito (poderia, ocasionaria).<br />

Quando se vai para a solução, o enunciado compreende<br />

uma seqüência de asserções no presente do indicativo<br />

(ocasiona, resulta). Por sua vez, os enunciados balizados comentam<br />

o desenvolvimento do texto, assinalando as diversas<br />

etapas. Pode haver o emprego dos pronomes (eu, nós, se); de<br />

fórmulas imperativas (observe-se, analisemos); de verbos no<br />

futuro do presente (começaremos por, analisaremos) e por expressões<br />

que orientam o leitor (primeiramente, agora, em segundo<br />

lugar, depois, finalmente).<br />

No texto explicativo, a progressão das idéias é fundamental<br />

para a solução da questão. Segundo Charolles, “para<br />

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que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente<br />

coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento<br />

uma contribuição semântica constantemente renovada” (1988:<br />

57). Ou seja, para que um texto seja coerente não pode repetir<br />

indefinidamente seu assunto, numa circularidade temática, mas<br />

deve ser renovado progressivamente, numa progressão semântica<br />

(ou remática). Em torno de um tema devem se incorporar<br />

remas, trazendo novidades semânticas indispensáveis; há o<br />

equilíbrio entre a continuidade do texto e a progressão semântica.<br />

Para a resolução de um problema, esse gênero faz uso<br />

de substituições nominais, nas quais o enunciador seleciona<br />

certos traços do objeto, manifesta seu ponto de vista e orienta a<br />

representação do enunciatário, impondo a colocação do objeto<br />

numa perspectiva particular (sol - bola de gás em fusão, bola de<br />

fogo, ou massa de hidrogênio). Por sua vez, as nominalizações<br />

são muito importantes na medida em que dão um nome ao que<br />

foi dito, sintetizando um conceito (Quando os animais e as<br />

plantas morrem, seu corpo apodrece e acaba por desaparecer na<br />

terra. O apodrecimento é provocado por organismos tais como<br />

as bactérias ou os fungos, que são chamados decomponentes).<br />

Também as orações relativas são freqüentemente empregadas,<br />

pois elas possibilitam operar restrições no campo das<br />

representações (O sol, que é um astro, ilumina a terra.). A seu<br />

turno, o emprego de construções parafrásticas possibilitam esclarecer<br />

conceitos e favorecer a compreensão do enunciatário.<br />

Os operadores argumentativos são indispensáveis na<br />

organização lógica da explicação. Eles articulam as partes do<br />

discurso e auxiliam o raciocínio para se chegar à solução do<br />

problema. Citamos alguns exemplos: adição (e, ainda, também);<br />

oposição (porém, contudo, no entanto); causalidade<br />

(porque, já que, devido a); conclusão (logo, portanto). Os advérbios<br />

também têm a função de indicar a unidade da seqüên-<br />

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cia textual (inicialmente, em primeiro lugar, em segundo lugar,<br />

a seguir, finalmente).<br />

O texto explicativo sempre tem em mente quem é o seu<br />

interlocutor, qual o seu nível sócio-cultural, qual é a sua idade,<br />

quais são os seus interesses, entre outros, o que determinará as<br />

escolhas lexicais e o grau de abstração. Se a explicação for<br />

dirigida para um especialista de determinada área, a linguagem<br />

será mais complexa; se for para um interlocutor comum, o vocabulário<br />

será fácil e a sintaxe, simples. Normalmente, as interrogações<br />

são diretas, mas as indiretas também são empregadas<br />

ao propor uma questão. Pode também haver a presença de tabelas,<br />

gráficos, ilustrações para servir de complementação. Os<br />

recursos visuais complementam o texto e lhes conferem uma<br />

maior concretude.<br />

4 - Uma análise ilustrativa<br />

O QUE SÃO ALIMENTOS FUNCIONAIS?<br />

Rafael Tonon<br />

Alguns alimentos são indispensáveis para a conservação<br />

de nossa saúde, como os alimentos funcionais ou nutracêuticos.<br />

O que são alimentos funcionais?<br />

Os alimentos funcionais são aqueles que colaboram para<br />

melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde. Ou<br />

pelo menos deveriam ser assim: os cientistas já reconhecem as<br />

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propriedades funcionais de muitos desses alimentos, porém os<br />

estudos ainda não são conclusivos. “A ciência ainda não consegue<br />

determinar uma dieta diária de alimentos funcionais que<br />

atenda a todas as necessidades do organismo”, explica Valdemiro<br />

Sgarbieri, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da<br />

Unicamp.<br />

Essas substâncias não são novidade, como às vezes prega<br />

a indústria de alimentos. As isoflavonas, por exemplo, compostos<br />

que ajudam na redução do colesterol ruim, fazem parte<br />

da alimentação humana desde que a soja foi descoberta pelos<br />

chineses, há mais de 5 000 anos.<br />

O que vem acontecendo é um aprofundamento nos conhecimentos<br />

da natureza química das substâncias funcionais e<br />

das suas funções no organismo. Com isso, os laboratórios e a<br />

indústria alimentícia passaram a produzir, em larga escala, alimentos<br />

funcionais formulados ou “artificiais”, como leites fermentados,<br />

biscoitos vitaminados e cereais matinais ricos em<br />

fibras.<br />

Para chegarem ao mercado, a Agência Nacional de Vigilância<br />

Sanitária exige que o fabricante apresente provas científicas<br />

das propriedades funcionais alegadas na embalagem.<br />

Mas não se entusiasme demais com os rótulos: 1 litro de leite<br />

com ômega 3, por exemplo, oferece menos desse ácido graxo<br />

que uma posta de salmão.<br />

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SUBSTÂNCIAS COM SUSTANÇA<br />

Conheça alguns alimentos funcionais.<br />

Betacaroteno<br />

O que faz: ajuda a<br />

diminuir o risco de<br />

câncer.<br />

Como age: quando<br />

ingerimos gorduras<br />

e proteínas, o betacaroteno<br />

se converte<br />

em vitamina A, protegendo<br />

as células<br />

do envelhecimento.<br />

Onde encontrar:<br />

abóbora, cenoura,<br />

mamão, manga,<br />

damasco, espinafre,<br />

couve.<br />

Isoflavonas<br />

O que fazem: atenuam<br />

os sintomas da<br />

menopausa.<br />

Como agem: por ter<br />

uma estrutura química<br />

semelhante ao<br />

estrógeno (hormônio<br />

feminino), alivia os<br />

efeitos de calor e<br />

cansaço da menopausa<br />

e da tensão<br />

pré-menstrual.<br />

Onde encontrar:<br />

soja e seus derivados.<br />

Licopeno<br />

O que faz: está relacionado<br />

à diminuição<br />

do risco de câncer<br />

de próstata.<br />

Como age: evita e<br />

repara os danos dos<br />

radicais livres que<br />

alteram o DNA das<br />

células e desencadeiam<br />

o câncer.<br />

Onde encontrar:<br />

tomate e seus derivados,<br />

além de beterraba<br />

e pimentão.<br />

Ômega 3<br />

O que faz: diminui o<br />

risco de doenças<br />

cardiovasculares.<br />

Como age: reduz os<br />

níveis de triglicerídeos<br />

e do colesterol<br />

total do sangue, sem<br />

acumulá-lo nos vasos<br />

sangüíneos do<br />

coração.<br />

Onde encontrar:<br />

peixes de água fria,<br />

como salmão e truta,<br />

e óleo de peixes.<br />

Flavonóides<br />

O que fazem: diminuem<br />

o risco de<br />

câncer e atuam comoantiinflamatórios.<br />

Como agem: anulam<br />

a dioxina, substância<br />

altamente tóxica<br />

usada em agrotóxicos.<br />

Onde encontrar:<br />

suco natural de uva<br />

e vinho tinto, além<br />

de alimentos como<br />

café, chá verde,<br />

chocolate e própolis.<br />

Probióticos<br />

O que fazem: são<br />

microorganismos<br />

vivos que ajudam no<br />

equilíbrio da flora<br />

intestinal.<br />

Como agem: impedem<br />

que bactérias e<br />

outros microorganismos<br />

patogênicos<br />

se proliferem no<br />

intestino.<br />

Onde encontrar:<br />

iogurtes e leite fermentado.<br />

(TONON, Rafael. O que são alimentos funcionais. Revista Superinteressante.<br />

São Paulo, ed. 239, p. 46, mai 20<strong>07</strong>. Adaptação.)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 242


Esse texto foi publicado na Revista Superinteressante,<br />

no mês de maio de 20<strong>07</strong>, inserido na seção Superrespostas e<br />

está assinado pelo jornalista Rafael Tonon. Trata-se de um texto<br />

explicativo, pois apresenta ao interlocutor uma questão da<br />

ordem do saber. Propõe um enigma a ser elucidado, a partir de<br />

um raciocínio coerente e organizado, explica o que não se<br />

compreendia e encaminha para uma conclusão.<br />

O gênero apresenta a seguinte macroestrutura (Bronckart,<br />

1999): a constatação inicial, a problematização, a resolução<br />

e a conclusão-avaliação. Na constatação inicial, há uma<br />

evidência não contestável: Alguns alimentos são indispensáveis<br />

para a conservação de nossa saúde. A problematização coloca<br />

uma questão acerca da realidade para solucionar, da ordem do<br />

porquê: O que são alimentos funcionais?<br />

A fase da resolução propõe uma solução para o enigma,<br />

definindo alimentos funcionais: são aqueles que colaboram<br />

para melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde.<br />

Explicita o conceito, através de um exemplo, as isoflavonas,<br />

que contribuem para a redução do colesterol ruim, e são usadas<br />

na alimentação humana há mais de 5000 anos.<br />

A conclusão-avaliação formula e completa a constatação<br />

inicial. O autor destaca que há um aprofundamento dos<br />

conhecimentos da natureza química das substâncias funcionais<br />

e das suas funções. Coloca, ainda, que se constata o aumento<br />

da produção de alimentos funcionais formulados ou artificiais,<br />

como leites fermentados, biscoitos vitaminados e cereais matinais<br />

ricos em fibras.<br />

Nesse texto, prevalecem os enunciados descritivos e<br />

explicativos. Nas linhas 1-4, o texto emprega seqüências descritivas<br />

para apresentar as propriedades dos alimentos funcionais:<br />

são aqueles que colaboram para melhorar o metabolismo<br />

e prevenir problemas de saúde. Utiliza predominantemente os<br />

verbos no presente do indicativo e os pronomes em terceira<br />

pessoa (são, colaboram).<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 243<br />

A seguir, o gênero vale-se de enunciados explicativos, a<br />

fim de esclarecer que os estudos acerca desses alimentos ainda<br />

não são conclusivos. Para fundamentar essa afirmação, apresenta<br />

uma voz de autoridade, Valdemiro Sgarbieri, da Faculdade<br />

de Engenharia de Alimentos da Unicamp. O professor afirma<br />

que a ciência ainda não determinou uma dieta diária de<br />

alimentos funcionais capaz de atender a todas as necessidades<br />

do organismo. Nesses enunciados, predominam os verbos no<br />

presente do indicativo (atenda, explica, são, prega, ajudam).<br />

Para articular o discurso, de modo lógico e coerente,<br />

constata-se no texto o uso de operadores argumentativos: ou<br />

pelo menos (alternativo); a ciência ainda não consegue (adição);<br />

como às vezes prega (conformidade); com isso, os laboratórios<br />

(conclusão); para chegarem ao mercado (finalidade);<br />

mas não se entusiasme (oposição). Há o emprego de uma linguagem<br />

comum, com uma sintaxe acessível ao leitor.<br />

Observa-se no texto explicativo a ilustração de um alimento<br />

funcional, o tomate, acompanhada de uma legenda, que<br />

ressalta a principal propriedade do tomate, a de evitar o câncer<br />

de próstata. Também há uma tabela, ao lado do texto, que destaca<br />

substâncias presentes em alguns alimentos funcionais, o<br />

que fazem, como agem e onde encontrar.<br />

5 - Sugestão de atividades<br />

I) Leia o texto que segue e resolva as questões<br />

QUANTO VOCÊ CONTRIBUI PARA O AQUECIMENTO<br />

GLOBAL?<br />

Cada habitante da terra libera em média 7 toneladas/ano<br />

de gás carbônico. Para compensar os efeitos<br />

dessa emissão, seria preciso plantar 38,9 árvores.<br />

(Tiago Cordeiro)<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 244


Sabemos que há muitos fatores que contribuem para o<br />

aquecimento global do planeta. Quanto o homem contribui<br />

para esse aquecimento?<br />

Não são apenas as chaminés industriais que provocam o<br />

aquecimento global. Todos os anos, cada "pessoa física" do<br />

planeta produz, em média, 7 toneladas de gás carbônico. A<br />

estimativa, feita pela ONU, não inclui fábricas e usinas, só a<br />

soma de todas as emissões que as pessoas provocam ao ligar o<br />

carro, acender o fogão ou comer carne. Somadas, elas são responsáveis<br />

por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais de gás carbônico<br />

que a humanidade joga na atmosfera (número semelhante à<br />

emissão de fenômenos naturais, como vulcões e incêndios florestais).<br />

"O impacto pessoal na formação do efeito estufa é<br />

muito grande. Quanto mais prejudicamos o clima, fica mais<br />

urgente ainda tomar uma atitude", diz Osvaldo Martins, da ong<br />

Iniciativa Verde.<br />

Não há mais muita dúvida de que o homem é responsável<br />

pelas alterações que o clima do planeta sofreu nos últimos<br />

50 anos. De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 20<strong>07</strong>,<br />

as chances são de mais de 90% (leia mais sobre o relatório na<br />

página 23). "Mesmo que as emissões de gases na atmosfera<br />

fossem reduzidas em 60% a fim de que o planeta recuperasse o<br />

equilíbrio, já experimentaremos um aumento de 0,1ºC na temperatura<br />

a cada década durante os próximos 100 anos", diz Carlos<br />

Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais<br />

(INPE). A melhor atitude a se tomar é diminuir a emissão pessoal<br />

de gás carbônico.<br />

CORDEIRO, Tiago. Quanto você contribui para<br />

o aquecimento global? Revista Superinteressante.<br />

São Paulo, ed. 237, mar. 20<strong>07</strong>. (Disponível em:<br />

http://super.abril.com.br/revista/conteudo_215100<br />

.shtml) – Adaptação<br />

a) Por que o texto Quanto o homem contribui para o<br />

aquecimento global? é caracterizado como explicativo?<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 245<br />

b) O texto explicativo estrutura-se em constatação inicial,<br />

problematização, resolução e conclusão-avaliação. Aponte<br />

essas partes.<br />

c) O autor afirma que não são apenas as chaminés industriais<br />

que provocam o aquecimento global. Quais os dados<br />

estatísticos que ele apresenta para fundamentar essa declaração?<br />

d) Como se caracteriza a linguagem presente no texto<br />

(comum, cuidada, oratória, familiar, popular)? Justifique sua<br />

resposta.<br />

e) Qual o tempo verbal que predomina nesse texto explicativo?<br />

Por que isso ocorre?<br />

f) Verifica-se no texto o uso de operadores argumentativos<br />

a fim de articular o discurso, de modo lógico e coerente.<br />

Substitua os seguintes operadores por outros do mesmo sentido.<br />

Especifique a relação estabelecida:<br />

• para (parágrafo 2):<br />

• apenas (parágrafo 3):<br />

• só (parágrafo 3):<br />

• de acordo (parágrafo 4):<br />

• a fim de (parágrafo 4):<br />

II) A partir de diferentes assuntos, podemos observar fatos e<br />

fazer questionamentos em relação a eles. Veja o exemplo:<br />

Assunto: Porta inteligente<br />

Constatação: Quando um ser humano se aproxima de<br />

uma porta inteligente, ela abre.<br />

Questionamento: Como uma porta inteligente é capaz<br />

de se abrir, sem ter alguém que a toque?<br />

Escolha um assunto, destaque uma constatação que pode<br />

ser feita, e formule uma questão a partir dessa constatação:<br />

forno microondas, automóveis, tendinite, neblina.<br />

III) Que pergunta o pesquisador fez para chegar a essa resposta?<br />

Formule uma pergunta para o texto explicativo.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 246


Porque não havia motivos que justificassem os riscos e<br />

os custos de se mandar pessoas à Lua - o programa Apollo, que<br />

pôs 12 homens na superfície lunar entre 1969 e 1972, custou a<br />

bagatela de 19,5 bilhões de dólares. Quando gastou esse dinheiro,<br />

o governo americano estava querendo provar sua superioridade<br />

em relação à União Soviética - e, conseqüentemente,<br />

a supremacia do capitalismo. Vencida a corrida espacial, não<br />

havia mais por que ir à Lua. "É um problema de orçamento. Na<br />

época, foi dada prioridade aos ônibus espaciais e à estação espacial",<br />

afirma Steven J. Dick, chefe da divisão de história da<br />

Nasa.<br />

Agora, a nova política espacial do presidente George<br />

W. Bush, anunciada em 2004, voltou novamente as atenções<br />

para a Lua, com a justificativa de que a retomada das viagens<br />

possibilitará o desenvolvimento de tecnologias para que o homem<br />

possa ficar por um longo período no espaço (e assim explorar<br />

mais o sistema solar). Também poderiam ser investigados<br />

in loco os dados trazidos por sondas espaciais, como a<br />

possibilidade da existência de gelo nos pólos lunares. Faz parte<br />

da nova política espacial a construção de uma base lunar que<br />

servirá como apoio nas viagens a Marte.<br />

Para essas missões tripuladas, está sendo desenvolvido<br />

um novo veículo espacial, com uma enorme diferença em relação<br />

às naves Apollo: a tripulação e o módulo lunar viajam em<br />

foguetes distintos, que se acoplam na órbita terrestre. Ao chegar<br />

à órbita da Lua, os astronautas se transferem para o módulo<br />

lunar, que pousa enquanto o resto da nave aguarda o seu retorno.<br />

Os críticos afirmam que a missão é desnecessária. "Se<br />

quisermos descobrir algo mais, podemos fazer melhor com<br />

naves automatizadas do que mandando pessoas", diz o historiador<br />

Alex Roland, da Universidade Duke, ex-funcionário da<br />

Nasa.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 247<br />

IV) Produção do gênero<br />

Revista Superinteressante. São Paulo, ed. 230,<br />

set. 2006. Seção Superrespostas. (Disponível em:<br />

http://super.abril.com.br/superarquivo/<br />

2006/conteudo_165014.shtml)<br />

a) Procure em livros e revistas informações para responder<br />

a questão: Por que as folhas das árvores caem no outono?<br />

Produza um texto explicativo para ser socializado com os<br />

colegas.<br />

b) Produza um texto explicativo, para ser lido aos colegas,<br />

respondendo a seguinte questão: As frutas são essenciais à<br />

nossa saúde. Quais são os benefícios da maçã? (Dar o nome de<br />

uma fruta para cada aluno).<br />

c) A partir do levantamento realizado pelo jornal Zero<br />

Hora, de Porto Alegre, e publicado na edição de 15 de <strong>jul</strong>ho de<br />

20<strong>07</strong>, faça a leitura do gráfico e produza um texto explicativo.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 248


Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 249<br />

6 - Considerações finais<br />

O domínio dos diversos gêneros textuais pode auxiliar o<br />

aluno a ser o legítimo autor de seu dizer e levar o estudante a<br />

ocupar, com maior consciência, os diferentes lugares na sociedade<br />

a partir dos quais pode interagir. Além disso, o trabalho<br />

com gêneros permitirá tanto a sua produção quanto a sua recriação<br />

por meio do exercício de práticas de linguagem significativas<br />

na/pela escola, durante as atividades de ensinoaprendizagem<br />

de Língua Portuguesa.<br />

Assim, o trabalho com o texto explicativo torna-se significativo<br />

na medida em que o aluno amplia habilidades e<br />

competências de leitura e escrita.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da<br />

criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e<br />

discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:<br />

EDUC, 1999.<br />

CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas de coerência<br />

dos textos. GALVES, C.; ORLANDI, E. P. ; OTONI, P. O<br />

texto, leitura e escrita. Campinas: Pontes, 1988.<br />

COLTIER, Danielle. Approches du text explicatf. Pratiques,<br />

metz (51): 3-22, sep. 1986. Trad. de Ignácio Antônio Neis. Porto<br />

Alegre: PUC/RS.<br />

CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes e NASCIMENTO, Elvira<br />

Lopes. Gêneros textuais e ensino: contribuições do interacionismo<br />

sócio-discursivo. In: KARWOSKI, Acir Mário,<br />

GAYDECZKA, Beatriz e BRITO, Karim Siebeneicher. Gêneros<br />

textuais: reflexões e ensino. União da Vitória, PR: Kaygangue,<br />

2005, p.35-77.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 250


MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e<br />

funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO,<br />

Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). Gêneros<br />

textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36.<br />

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Ensino<br />

Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 251<br />

ANEXO<br />

POSSÍVEIS RESPOSTAS<br />

I)<br />

a) Trata-se de um texto explicativo, pois apresenta ao interlocutor<br />

um enigma a ser elucidado: Quanto o homem contribui<br />

para o aquecimento global? Propõe uma questão da ordem do<br />

saber e, a partir de um raciocínio coerente e organizado, explica<br />

o que não se compreendia e encaminha para uma conclusão.<br />

b) As partes são as seguintes:<br />

Constatação inicial : Sabemos que há muitos fatores que<br />

contribuem para o aquecimento global do planeta.<br />

Problematização: Quanto o homem contribui para o aquecimento<br />

global?<br />

Resolução: O autor afirma que não são apenas as chaminés<br />

industriais que provocam o aquecimento global,<br />

pois todos os anos, cada "pessoa física" do planeta produz,<br />

em média, 7 toneladas de gás carbônico. Na seqüência,<br />

fundamenta essa declaração.<br />

Conclusão-avaliação: Não há mais muita dúvida de que<br />

o homem é responsável pelas alterações que o clima do<br />

planeta sofreu nos últimos 50 anos.<br />

c) Os dados estatísticos são os seguintes:<br />

Todos os anos, cada “pessoa física” do planeta produz,<br />

em média, 7 toneladas de gás carbônico.<br />

A soma de todas as emissões que as pessoas provocam<br />

são responsáveis por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais<br />

de gás carbônico que a humanidade joga na atmosfera.<br />

De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 20<strong>07</strong>,<br />

as chances são de mais de 90% de que o homem seja<br />

responsável pelas alterações que o clima do planeta sofreu<br />

nos últimos 50 anos.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 252


d) Há o emprego de uma linguagem comum, com um vocabulários<br />

simples e uma sintaxe acessível ao leitor.<br />

e) Predominam os verbos no presente do indicativo (pensa,<br />

falam, provocam, prejudicamos, é, são), pois a questão da ordem<br />

do saber que o texto elucida refere-se a um fenômeno atual<br />

e do qual o leitor também é co-participante.<br />

f) As substituições e as relações podem ser:<br />

• para (parágrafo 2): a fim de, com o intuito de, com o objetivo<br />

de,... - finalidade<br />

• apenas (parágrafo 3): somente, só, ... - exclusão<br />

• só (parágrafo 3): somente, apenas, ... - exclusão<br />

• de acordo (parágrafo 4): conforme, segundo, consoante, ...<br />

- conformidade<br />

• a fim de (parágrafo 4): para, com o intuito de, com o objetivo<br />

de,... - finalidade<br />

II) Pessoal<br />

III) Título original: Por que o homem parou de viajar à Lua?<br />

IV) Produção do gênero<br />

a) Pessoal<br />

b) Pessoal<br />

c) Esperara-se que os alunos leiam, no mínimo, as informações<br />

que seguem.<br />

O gráfico apresenta dados acerca dos acidentes de motocicletas<br />

com óbito ocorridos de 1º de janeiro a 30 de junho de<br />

20<strong>07</strong>, no Rio Grande do Sul. O levantamento, realizado pelo<br />

jornal Zero Hora, de Porto Alegre, mostra que aconteceram,<br />

nesse período, 131 acidentes com motos, dos quais resultaram<br />

142 óbitos. Desse total, a grande maioria dos mortos eram motociclistas<br />

(75,3%). Os caroneiros representam apenas 14,8%<br />

dos óbitos.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 253<br />

O gráfico evidencia ainda que a maior parte dos acidentes<br />

fatais ocorre no horário das 18h às 24h, e com maior incidência<br />

na segunda feira. Além disso, a maioria dos motociclistas<br />

envolvidos eram jovens, não tinham 30 anos, num<br />

percentual de 58,8%.<br />

Dos 131 condutores envolvidos em acidentes com mortes,<br />

70,2% não havia sofrido acidente anterior e 45,8% dos casos<br />

foram registrados na cidade.<br />

Dos pilotos que provocaram mortes, 16,8% haviam passado<br />

por exames de direção há menos de um ano. Os motociclistas<br />

com mais de 5 anos de carteira de habilitação representam<br />

32% dos envolvidos. Já os condutores clandestinos estão<br />

envolvidos em quase um quarto dos acidentes que misturam<br />

motos e óbito. Em 30 dos 131 acidentes fatais registrados por<br />

ZH - 22,9% do total das ocorrências -, os motociclistas não<br />

tinham a carteira de habilitação de categoria A, documento<br />

obrigatório para guiar motos.<br />

Portanto, a partir dos dados analisados, é necessário<br />

muita cautela por parte dos motociclistas, principalmente, na<br />

cidade e rodovias estaduais, na sexta e segunda-feira, no horário<br />

das 18h às 24h, mesmo para aqueles que nunca sofreram<br />

acidentes.<br />

Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 254

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