Número 8 (jul-dez/07) - Dialogarts - Uerj
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Caderno Seminal Digital – Vol. 8 – Nº 8 – (Jul/Dez-20<strong>07</strong>). Rio de Janeiro: <strong>Dialogarts</strong>, 20<strong>07</strong>.<br />
ISSN 1806-9142<br />
Semestral<br />
1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -<br />
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />
CONSELHO CONSULTUVO<br />
André Valente (UERJ / FACHA)<br />
Clarissa Rolim Pinheiro Bastos (PUC–Rio)<br />
Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)<br />
Darcilia Simões (UERJ)<br />
Edwiges Zaccur (UFF)<br />
Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)<br />
Flora Simonetti Coelho (UERJ)<br />
José Lemos Monteiro (UFC/ UECE/ NIFOR)<br />
José Luís Jobim (UERJ / UFF)<br />
José Carlos Barcellos (UERJ / UFF)<br />
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)<br />
Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)<br />
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)<br />
Maria Leny H. de Almeida (UERJ)<br />
Maria Teresa G. Pereira (UERJ)<br />
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)<br />
Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)<br />
Sílvio Santana Júnior (UNESP)<br />
Valderez H. G. Junqueira (UNESP)<br />
Vilson José Leffa (UCPel-RS)<br />
EDITORA<br />
Darcilia Simões<br />
CO-EDITOR<br />
Flavio Garcia<br />
ASSESSOR EXECUTIVO<br />
Cláudio Cezar Henriques<br />
DIAGRAMAÇÃO<br />
Carlos Henrique de Souza Pereira (Bolsista de Extensão)<br />
Vitor Roberto de Paula Bornéo (Bolsista de Extensão)<br />
Vanessa Rodrigues Caldeira (Bolsista de Extensão)<br />
PROJETO DE CAPA<br />
Carlos Henrique de Souza Pereira ((Bolsista de Extensão)<br />
LOGOTIPO<br />
Rogério Coutinho<br />
Contato:<br />
seminal@oi.com.br<br />
dialogarts@oi.com.br<br />
publicações.dialogarts@oi.com.br
Publicações <strong>Dialogarts</strong> é um Projeto Editorial de Extensão Universitária<br />
da UERJ do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a<br />
Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O objetivo<br />
deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade,<br />
com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto<br />
sociocultural em que está inserida.<br />
O Projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela<br />
DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no<br />
momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenadores<br />
do Projeto, as produções digitais com vistas a recuperar a ritmo de suas<br />
publicações e ampliar a divulgação.<br />
Visite nossa página:<br />
http://www.dialogarts.uerj.br<br />
ÍNDICE:<br />
AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A MULHER QUE<br />
ESCREVEU A BÍBLIA............................................................................... 6<br />
ADRIANA APARECIDA DE FIGUEIREDO FIUZA - UNESP-ASSIS /<br />
UNIOESTE<br />
ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS? ............................... 21<br />
ALEXANDRE MELO DE SOUSA - UFAC<br />
A ANATOMIA DA PERDA:THE SNOW MAN, DE WALLACE<br />
STEVENS.................................................................................................. 32<br />
ANDRÉ CECHINEL - UFSC<br />
UM RELATO DE TRABALHO COM LEITURA/REDAÇÃO EM<br />
LÍNGUA PORTUGUESA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E<br />
ADULTOS (EJA)...................................................................................... 44<br />
AYTEL MARCELO TEIXEIRA DA FONSECA - UERJ<br />
REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA IMPRESSA: O<br />
APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍCIAS DE JORNAL.............. 61<br />
BRUNO DEUSDARÁ - UERJ<br />
O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO PARA A<br />
PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO............................................ 77<br />
CLÁUDIO LUIZ ABREU FONSECA - UFPA-MARABÁ / UERJ<br />
A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA ............................. 94<br />
CRISTIANO DE SALES - UFSC<br />
CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRAVÉS DA<br />
LITERATURA........................................................................................ 108<br />
DANIELLE DE PAIVA LOPES - USP
FONOLOGIA E LETRAMENTO: SUPORTE SEMIÓTICO PARA O<br />
ENSINO DA LÍNGUA MATERNA...................................................... 121<br />
DARCILIA SIMÕES - UERJ / PUC-SP<br />
MARIA SUZETT BIEMBENGUT SANTADE - FIMI / FMPFM / UERJ<br />
AIRA SUZANA RIBEIRO MARTINS - UERJ / CPII<br />
SEMIÓTICA: EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO<br />
.................................................................................................................. 134<br />
DULCE HELENA PONTES-RIBEIRO -UERJ<br />
MADAMA SUI: MEMÓRIA E EROTICIDADE COMO FORMAS DE<br />
RESISTÊNCIA AO PODER ................................................................. 156<br />
ELIANE MARIA DE OLIVEIRA GIACON - UEMS<br />
UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO ROMANCE DE<br />
ISABEL RAMOS.................................................................................... 173<br />
ELISABETE CARVALHO PEIRUQUE - UFRGS<br />
O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: O<br />
AMOR COMO SAGRADO RITUAL POÉTICO OU COMO MERO<br />
RITUAL SAGRADO.............................................................................. 184<br />
MARIA ALCIENE NEVES - UFSJ<br />
ADELAINE LA GUARDIA RESENDE - UFSJ<br />
ROMANCE DO OLHAR DANDI DE CLARICE LISPECTOR....... 201<br />
MÁRIO GUIDARINI - UNISUL<br />
DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM CARTAS AO<br />
EDITOR EM NEWSWEEK ................................................................... 210<br />
MAURÍCIO MOREIRA CARDOSO - UECE<br />
O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO............................................ 231<br />
VANILDA SALTON KÖCHE - UCS<br />
ADIANE FOGALI MARINELLO - UCS<br />
ODETE MARIA BENETTI BOFF -UCS<br />
AS INTERTEXTUALIDADES NO ROMANCE A<br />
MULHER QUE ESCREVEU A BÍBLIA<br />
Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza<br />
UNESP-Assis / UNIOESTE<br />
RESUMO:<br />
A mulher que escreveu a Bíblia está narrado em primeira pessoa, apresentando<br />
um narrador autodiegético. Conta a historia da suposta escritura da<br />
Bíblia por uma mulher extremamente feia, intercalando episódios religiosos<br />
e sexuais em um tom satírico e paródico. O objetivo deste estudo é revelar<br />
como o narrador reescreve a história da Bíblia sob o código do humor e da<br />
ironia, utilizando a intertextualidade como artifício de escritura.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Literatura Brasileira, romance contemporâneo, intertextualidade.<br />
Introdução<br />
Os livros falam sempre de outros<br />
livros e toda história conta uma<br />
história já contada.<br />
(ECO, 1985: 20)<br />
A menção a Umberto Eco possibilita o início da discussão<br />
para a compreensão do processo de intertextualidades que<br />
se estabelecem no romance A mulher que escreveu a Bíblia,<br />
publicado em 1999. Esta obra de Moacyr Scliar nada mais é do<br />
que aquilo que nos definiu Julia Kristeva (1974: 64) ao estudar<br />
a obra de Bakhtin: “um mosaico de citações” que ajudam a<br />
construir o discurso da narrativa, criando um efeito de colcha<br />
de retalhos marcado pela fragmentação e presença dos mais<br />
variados textos e discursos que se inserem no discurso da ficção.<br />
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As citações principais, como o próprio título da obra<br />
sugere, pertencem à Bíblia, possivelmente um dos livros mais<br />
importantes para a civilização ocidental no sentido de referir-se<br />
à cosmogonia e às crenças religiosas. Nas mais variadas religiões,<br />
o discurso bíblico é sempre visto como o discurso da verdade,<br />
paradigmático às condutas humanas. Talvez por esse<br />
motivo, por sua cultura judaica e pela inspiração do Livro de J.<br />
(1992) de Harold Bloom, Scliar tenha aderido à idéia de escrever<br />
um romance que pudesse contestar, sob o recurso da paródia<br />
e da carnavalização, as passagens das escrituras sagradas.<br />
O objetivo deste estudo é revelar como o narrador reescreve<br />
a história da Bíblia sob o código do humor e da ironia,<br />
utilizando a intertextualidade como artifício de escritura. O<br />
título da obra juntamente com a epígrafe, uma citação dos dois<br />
primeiros parágrafos do Livro de J., marcam o início dos ecos<br />
intertextuais no romance, que no desenrolar da narrativa expandir-se-ão<br />
a outros autores e textos.<br />
O romance como um encaixe de histórias<br />
Utilizando a técnica da mise en abyme, o romance de<br />
Scliar se encaixa no Livro de J. de Bloom que se encaixa na<br />
Bíblia, assim sendo, A mulher que escreveu a Bíblia traz referências<br />
destas obras, constituindo uma relação de intertextualidade<br />
com elas.<br />
No Livro de J., a partir da tradução de David Rosemberg<br />
do antigo hebraico para o inglês, Bloom examina os textos<br />
de J., autor das mais antigas histórias da Bíblia judaica, postulando<br />
uma identidade feminina para este autor. Para o crítico<br />
norte-americano, J é um escritor, do ponto de vista estético, da<br />
altura de Homero, Shakespeare e Tolstoi, e do ponto de vista<br />
psicológico e literário, feminino, possivelmente uma mulher da<br />
corte do rei Salomão (p. 15). A maior criação de J. é o personagem<br />
Yahweh, que Bloom caracteriza por exuberante e genio-<br />
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so, peculiaridades que podem ser encontradas também na personagem<br />
da feia de Scliar.<br />
Ao levantar a hipótese de que a primeira versão da Bíblia<br />
teria sido escrita por uma mulher, proporcionou o mote<br />
para Scliar escrever seu romance, que inverte todo o sentido<br />
das regras sociais presentes no livro sagrado, pois a escritora da<br />
ficção não estaria de acordo com a versão oficial dos textos<br />
bíblicos. Por tal razão, procurará mostrar ao leitor uma versão<br />
mais humanizada, portanto, menos mítica da história bíblica.<br />
A narrativa inicia-se relatando no tempo atual a história<br />
de uma mulher feia, que se submete a uma terapia de vidas<br />
passadas com um charlatão, ex-professor de História, para decifrar<br />
o enigma de sua solidão, concluindo que em outra encarnação,<br />
há três mil anos, ela teria escrito a primeira versão da<br />
Bíblia. Enfim, o falso terapeuta acaba por apaixonar-se pela<br />
personagem, sendo trocado por outro amante pela mesma. Para<br />
a compreensão de sua história, a feia atual deixa um livro para<br />
o historiador, que rememora suas aventuras da vida passada,<br />
quando pertencia ao harém de Salomão.<br />
Utilizando aqui também a técnica da mise en abyme, o<br />
narrador encaixa a experiência da feia atual à história da feia do<br />
passado, propiciando ao leitor um salto temporal para a época<br />
do rei bíblico. Esta segunda parte do romance é o relato da trajetória<br />
dessa personagem, filha de um pastor de cabras do deserto,<br />
que vai a Jerusalém para torna-se uma das setecentas<br />
esposas do rei Salomão. Por ser a única letrada do harém, o<br />
soberano a encarrega de escrever a história do povo judeu, ainda<br />
que para isso ela entre em choque com os circunspetos escribas<br />
oficiais da corte. Porém a personagem enfrenta um problema<br />
muito grande, sua condição de feia.<br />
O enredo, porém, supera a mera aventura amorosa da<br />
feia, com momentos de reflexão sobre a meta-narrativa presente<br />
na obra, seu sentido, razão de ser e a conflitante relação com<br />
a vida, onde se destaca a perspectiva dos marginalizados: da<br />
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mulher dos tempos bíblicos, feia e pertencente a uma tribo do<br />
deserto, representando, portanto, uma situação periférica. A<br />
obra se constrói a partir de dicotomias como a beleza e a feiúra,<br />
a sabedoria e a ignorância, o antigo e o contemporâneo, o sagrado<br />
e o profano, que vão dar o tom carnavalizado ao romance.<br />
No romance de Scliar como se pode observar são várias<br />
as relações intertextuais que se estabelecem, sendo as passagens<br />
bíblicas as que mais se sobressaem. Levantar-se-á aqui as<br />
mais relevantes para o estudo da obra.<br />
Com Vinícius de Moraes<br />
A narrativa inicia com a seguinte afirmativa: “A feiúra<br />
é fundamental, ao menos para o entendimento desta história”<br />
(SCLIAR, 2002: 19). Tal frase nos remete ao poema “Receita<br />
de mulher” de Vinícius de Moraes:<br />
Receita de mulher<br />
As muito feias que me perdoem<br />
Mas beleza é fundamental. É preciso<br />
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa<br />
de haute couture<br />
Em tudo isso (ou então<br />
Que a mulher se socialize elegantemente em azul,<br />
como na República Popular Chinesa).<br />
Não há meio-termo possível. É preciso<br />
que tudo isso seja belo. É preciso que súbito<br />
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas<br />
pousada e que um rosto<br />
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável<br />
no terceiro minuto da aurora.<br />
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se<br />
reflita e desabroche<br />
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente<br />
preciso<br />
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Que tudo seja belo e inesperado (...)<br />
A presença desta antítese de um autor contemporâneo<br />
para enfocar um texto que aparentemente abordará como tema,<br />
o livro mais antigo do mundo comprova que os grandes clássicos<br />
da humanidade, no caso a Bíblia, estão em constante enlace<br />
com os temas atuais. Além disso, demonstra logo de início o<br />
tom irônico, a inversão da beleza pela feiúra já implanta na<br />
obra um matiz paródico que estará presente em todo o romance.<br />
Diferentemente do poema de Vinícius, na narrativa a<br />
feiúra é fundamental porque ela é a porta de entrada para o<br />
conhecimento e para a tomada de consciência da personagem.<br />
A feia só aprende a ler e escrever porque o escriba de sua tribo,<br />
também medonho, sente pena da mulher que nunca se casaria e<br />
constituiria família devido à sua aparência. Então, em uma atitude<br />
transgressora, posto que as mulheres da época não eram<br />
alfabetizadas por questões culturais e sociais, como forma de<br />
oferecer-lhe outra possibilidade de viver, introduz-lhe nas letras.<br />
Esta inserção abre-lhe o caminho para um outro mundo,<br />
o do conhecimento que a retirará da solidão, visto que a leitura<br />
e a escrita proporcionarão momentos de comunhão com o sagrado,<br />
e posteriormente, sua elevação ao posto de grande escriba<br />
na corte do rei Salomão, da mulher que escreverá a história<br />
da humanidade. Nestes termos afirma a feia:<br />
Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho<br />
letra após letra, palavra após palavra, era<br />
algo que me deliciava. Não era só um texto que<br />
eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta<br />
da ordem, da harmonia. Eu descobria que<br />
uma letra atrai outra, que uma palavra atrai outra,<br />
essa afinidade organizando não apenas o texto,<br />
como a vida, o universo. O que eu via, no pergaminho,<br />
quando terminava o trabalho, era um mapa,<br />
como os mapas celestes que indicavam a po-<br />
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sição das estrelas e planetas, posição essa que não<br />
resulta do acaso, mas da composição de misteriosas<br />
forças, as mesmas que, em escala menor, guiavam<br />
minha mão quando ela deixava seus sinais<br />
sobre o pergaminho.<br />
(SCLIAR, 2002: 41)<br />
A leitura e a escrita possuem no romance um simbolismo<br />
relevante já que podem representar a comunhão com o divino<br />
e, no caso da feia, a superação de sua inferioridade em<br />
relação ao mundo. Segundo Chevalier (2002: 385), “a escrita<br />
surge a imagem de Deus, tem uma origem sagrada, depois identifica-se<br />
com o homem. É o sinal visível da atividade divina,<br />
da manifestação do Verbo. Desta forma, pode-se ressaltar a<br />
importância que o ato de ler e escrever adquire na narrativa.<br />
Para alguns estudiosos mulçumanos as letras do alfabeto<br />
são consideradas elementos constitutivos do próprio corpo<br />
de Deus (CHEVALIER, 2002: 385), o que poderia explicar os<br />
sentimentos da feia ao traçar seus primeiros esboços:<br />
Quando dei por mim, estava traçando a primeira<br />
letra do alfabeto – o alef, que é o começo de tudo.<br />
Que emoção. Deus, que emoção. Eu olhava aqueles<br />
vacilantes traços com a satisfação de um artista<br />
contemplando sua obra-prima.<br />
(SCLIAR, 2002: 39)<br />
De acordo com a tradição judaica o “alef” ou “aluf” é a<br />
primeira letra do alfabeto hebraico, possuindo três significados:<br />
mestre, professor e maravilhoso. A letra indica o início de tudo,<br />
pode ser comparada ao “alfa” do alfabeto grego. Simbolicamente<br />
na cultura hebraica significa que há um criador, Deus é o<br />
mestre do universo, o que remete à idéia de que o domínio das<br />
letras é o encontro com o sagrado, a unidade entre o homem e o<br />
universo. Por tal razão a personagem sente-se quase feliz e menos<br />
feia ao delinear suas primeiras letras:<br />
Naquele curto espaço de tempo eu mudara. Já não<br />
me sentia tão feia. Meu rosto continuava o mesmo,<br />
mas a sensação da fealdade intrínseca [...] se<br />
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atenuara consideravelmente. Eu agora era... feinha.<br />
Uma condição perfeitamente suportável e<br />
que, comparada ao que eu passara, representava<br />
até um estado de inesperado bem-estar, de felicidade,<br />
quase.<br />
(SCLIAR, 2002: 39)<br />
Aqui o narrador expressa a elevação que sofre a feia<br />
devido à sua nova condição, que a colocará em vantagem em<br />
relação às outras mulheres do harém de Salomão e até mesmo<br />
de sua irmã, considerada bela. No palácio do rei é a capacidade<br />
de narrar da feia que a põe em evidência. Salomão a considera<br />
mais que as outras mulheres, dando-lhe inclusive um quarto<br />
fora do harém, ao lado do seu nos aposentos reais, embora a<br />
paixão que a feia sentisse por ele não fosse correspondida.<br />
A beleza da irmã não se compara ao conhecimento adquirido<br />
pela personagem, pois trata-se de uma situação efêmera,<br />
a beleza perde-se com o passar do tempo enquanto a sabedoria<br />
permanece para a eternidade. Esta dicotomia está<br />
presente no texto de Scliar, sendo revelada pelo espelho, que<br />
constitui o leitmotiv da obra.<br />
O espelho, do latim speculum, segundo Chevalier<br />
(2002: 33-34), “reflete a verdade, a sinceridade, o conteúdo do<br />
coração e da consciência, é a revelação da verdade, é o instrumento<br />
da iluminação, símbolo da sabedoria e do conhecimento”.<br />
No caso da feia, o cristal revela duas realidades, a da feiúra,<br />
até então desconhecida pela personagem que nunca tinha<br />
visto sua imagem refletida, e a da sabedoria, porquanto esta<br />
transparece a partir da identificação da feiúra ancestral da mulher<br />
e de sua simbologia como elemento de iluminação do saber.<br />
É importante notar como na obra a imagem do espelho<br />
reflete também a imagem da própria estrutura do recurso da<br />
mise en abyme, na projeção de uma narrativa na outra.<br />
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Passagens bíblicas<br />
Aparecem no decorrer de toda a narrativa várias passagens<br />
do Antigo Testamento com uma roupagem “nova”, paródica,<br />
que subverte a versão oficial da Bíblia. Os episódios relatados<br />
são aqueles mais clichês, de cunho popular,<br />
principalmente os do livro de Gênesis, que narram o início da<br />
criação do mundo e da existência humana na terra e os da época<br />
de Salomão, uma vez que o tempo do romance é justamente<br />
o do período da corte do rei.<br />
Uma das primeiras alusões às escrituras sagradas referese<br />
à condução dos israelitas por Moisés à terra prometida. Na<br />
Bíblia, o livro do Êxodo, cuja autoria é dada a Moisés, relata a<br />
fuga dos israelitas do Egito, conduzidos pelo patriarca, à terra<br />
prometida, passando por muitas dificuldades, entre elas a travessia<br />
do Mar Vermelho e a peregrinação pelo deserto.<br />
Na obra, há uma menção à empreitada de Moisés, que<br />
no romance é representado pelo pai da feia. Esta quando domina<br />
a arte da escrita relata a história do próprio pai, o patriarca<br />
de sua tribo no deserto:<br />
Falava de meu pai; um homem bonito e vigoroso,<br />
um líder que conduzia sua gente pelo deserto até<br />
o oásis junto à montanha: aqui construiremos<br />
nossas casas, aqui fundaremos uma grande cidade.<br />
(SCLIAR, 2002: 41)<br />
O texto bíblico também faz referências a passagens por<br />
oásis no deserto e elucida a origem de Israel, o que possibilita<br />
estabelecer uma relação com o romance. O discurso bíblico<br />
está inserido pela voz do pai da feia “aqui construiremos nossas<br />
casas, aqui fundaremos uma grande cidade”, estas são as palavras<br />
de Moisés iluminado para encontrar o local da terra santa.<br />
É um discurso que já está no imaginário popular seja por meio<br />
da leitura da Bíblia ou pela refração destes textos no cinema.<br />
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Um outro relato que há no romance é o famoso <strong>jul</strong>gamento<br />
de Salomão a causa de duas mulheres que disputam um<br />
bebê recém nascido. Na Bíblia o episódio encontra-se no Primeiro<br />
Livro dos Reis, fragmento que narra o reinado de Salomão.<br />
A narrativa bíblica relata a história de duas prostitutas<br />
que deram à luz praticamente juntas, entretanto, uma das crianças<br />
morre porque uma das mães ao dormir junto ao filho sufoca-o<br />
sem querer. À noite, esta mulher troca o filho morto pelo<br />
filho vivo da outra mãe. Ambas comparecem ao palácio real<br />
para que Salomão, considerado o rei da sabedoria e da justiça,<br />
<strong>jul</strong>gue o caso.<br />
O desfecho é largamente conhecido, o rei manda cortar<br />
a criança ao meio, mas a verdadeira mãe roga que não se cumpra<br />
às ordens do monarca, doando o filho vivo para a outra<br />
mãe. Sabiamente, Salomão percebe aquela mulher como a verdadeira<br />
mãe, capaz de abdicar do filho para preservar seu bem<br />
estar.<br />
No romance de Scliar a mesma cena é relatada em tom<br />
paródico e mais dramático que na Bíblia. Nestes termos:<br />
Pára! – ordenou ao soldado, que se deteve, como<br />
que congelado. Dirigindo-se à mulher que havia<br />
gritado, proclamou: - És a verdadeira mãe, o grito<br />
que ouvimos foi o da tua maternidade. O filho é<br />
teu, podes pegá-lo.<br />
(SCLIAR, 2002: 61)<br />
O discurso das escrituras sagradas é visivelmente mais<br />
contido, menos afetado que o discurso do romance. Tal procedimento<br />
é explicado pela construção hiperbólica do mito de<br />
Salomão que se realiza na narrativa scliariana. Como na Bíblia,<br />
a imagem do rei é edificada sobre a égide do homem abençoado<br />
por Deus com o dom da sabedoria e da justiça, bens<br />
maiores que se pode querer na terra. Portanto, como homem<br />
sábio e justo, <strong>jul</strong>gar era uma de suas atividades prediletas, embora<br />
esta pudesse acarretar-lhe algum trabalho.<br />
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Dos episódios reconstruídos de Salomão, o que mais se<br />
destaca é a visita da Rainha de Sabá, constituindo um ponto<br />
forte de intertextualidade, uma vez que os textos do Cântico<br />
dos Cânticos estão citados literalmente no romance e a presença<br />
da rainha representa o ápice dos conflitos da narrativa, devido<br />
à sua beleza e ao interesse que despertou no rei.<br />
Na Bíblia a passagem está no Primeiro Livro dos Reis.<br />
Reconta a visita da rainha que apresenta três enigmas para<br />
comprovar a sabedoria do rei Salomão, que responde todas as<br />
perguntas sem deixar nenhuma dúvida. Como recompensa de<br />
seus conhecimentos, o monarca recebe uma doação:<br />
Presenteou o rei com cento e vinte mil talentos de<br />
ouro e grande quantidade de perfumes e pedras<br />
preciosas (...). A frota de Hirão, que trazia o ouro<br />
de Ofir, trouxe também grande quantidade de<br />
madeira de sândalo e pedras preciosas.<br />
(p. 379-80)<br />
Na obra de Scliar a personagem da Rainha de Sabá<br />
também está construída a partir do mito da beleza e da riqueza.<br />
Considerada a mulher mais bela entre todas as mil mulheres do<br />
harém, visita o rei para conhecer sua sabedoria e riqueza, ao<br />
mesmo tempo em que desfruta de suas qualidades masculinas,<br />
como a beleza, o sexo e a sabedoria para seduzir, hiperbolicamente<br />
enfatizadas no romance na criação do mito de Salomão.<br />
Nestes termos:<br />
Tratava-se da soberana de um lendário país cuja<br />
localização ninguém sabia ao certo: ficava na Arábia,<br />
segundo uns, na África, segundo outros.<br />
Era famosa, essa mulher, pela beleza e pela audácia<br />
e pela riqueza. De há muito desejava conhecer<br />
Salomão, cuja fama de sábio chegara até ela.<br />
(SCLIAR, 2002: 171)<br />
O caráter mítico da personagem está presente no discurso<br />
do narrador que não sabe precisar a localização de seu país,<br />
remontando a um espaço mítico, a uma época em que não havia<br />
registros de lugar ou do tempo. A beleza juntamente com a<br />
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riqueza proporcionam-lhe poderes suficientes para portar-se de<br />
modo transgressor para a época, viajar sozinha com uma comitiva<br />
para conhecer Salomão e render-lhe homenagens por meio<br />
de oferendas, que lhe possibilitariam momentos apaixonados<br />
com o rei de Israel.<br />
O texto do Cântico dos Cânticos escrito pelo rei de Israel<br />
é o escolhido para referir-se ao tipo de diálogo refinado que<br />
os amantes (Salomão e a Rainha de Sabá) estabeleciam durante<br />
o ato sexual. Nota-se que há uma reescritura de quase todos os<br />
fragmentos do livro bíblico, mas de forma paródica e carnavalizada.<br />
O discurso do Cântico sai do contexto das escrituras<br />
sagradas para o de uma relação sexual, subvertendo seu significado<br />
sagrado, ainda que o suposto texto de Salomão tenha um<br />
caráter visivelmente sensual e erótico, como se constata:<br />
Ah!, Beija-me com os beijos de tua boca!<br />
Porque os teus amores são mais deliciosos que o<br />
vinho,<br />
O teu nome é como um perfume derramado:<br />
Por isto amam-te as jovens.<br />
(BÍBLIA, 1989: 826)<br />
Os versos do Cântico apresentam um campo semântico<br />
(“beija”, “beijos”, “boca”, “amores”, “deliciosos”, “vinho”,<br />
“perfume”, “amam”, “jovens”) que insere o leitor em uma ambiente<br />
de voluptuosidade, contrariamente a todo o discurso da<br />
Bíblia. O leitor certamente é surpreendido quando se depara<br />
com a beleza erótica dos versos sagrados.<br />
Na obra de Scliar a mesma sensualidade e erotismo são<br />
recriados por meio da citação entre aspas de fragmentos do<br />
texto bíblico e da intervenção do narrador, que rearranja o discurso<br />
para o contexto do casal, como se comprova:<br />
Para minha surpresa, e profunda inveja, o diálogo<br />
deles era refinadíssimo – e em versos. “Tua boca<br />
cubra-me de beijos”, dizia ela, no hebraico que<br />
aprendera especialmente para a viagem, e continuava:<br />
“São mais suaves que o vinho tuas carícias<br />
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e mais aromático que perfumes é o teu nome, por<br />
isso as jovens de ti se enamoram”. (E depois ficam<br />
no harém, curtindo a raiva, acrescentaria<br />
eu.).<br />
(SCLIAR, 2002: 184)<br />
Contudo, o elemento paródico se faz presente também<br />
pelo comentário que entre parênteses estabelece a feia. Aqui o<br />
narrador mostra-se irônico ao revelar a condição de segundo<br />
plano das mulheres do harém, disputando entre si as atenções<br />
de Salomão, agravada com a chegada da nobre viajante.<br />
No romance, poder-se-ia questionar a contribuição da<br />
ironia para a manifestação da voz do autor na narrativa ao considerar-se<br />
este recurso não apenas como um tropo retórico, mas<br />
também como forma de demonstração de posicionamento ideológico,<br />
ou “uma estratégia discursiva que opera ao nível da<br />
linguagem (verbal) ou da forma (musical, visual, textual)”<br />
(HUTCHEON, 2000: 27).<br />
Ainda segundo Linda Hutcheon, tal procedimento significa<br />
que “a ironia é a transmissão intencional tanto da informação<br />
quanto da atitude avaliadora além do que é apresentado<br />
explicitamente” (2000: 28). Portanto, é por meio da ironia que<br />
se deflagra o autor implícito que <strong>jul</strong>ga as atitudes de Salomão,<br />
como se observa no seguinte fragmento:<br />
Às parelhas dos carros de faraó eu te comparo,<br />
minha amada. Graciosa é tua face, gracioso é o<br />
teu pescoço. Faremos para ti brincos de ouro,<br />
com filigranas de prata. (Ouro fornecido por ela.<br />
Prata fornecida por ela. Que cretino.)<br />
(SCLIAR, 2002: 184)<br />
Como no trecho anteriormente examinado, embora aqui<br />
sem as aspas há a inserção de fragmentos do Cântico dos cânticos:<br />
A égua dos carros do Faraó<br />
Eu te comparo, ó minha amiga;<br />
Tuas faces são graciosas entre os brincos,<br />
E o teu pescoço entre os colares de pérolas.<br />
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Faremos para ti brincos de ouro<br />
Com glóbulos de prata.<br />
(BÍBLIA, 1989: 826)<br />
Mais uma vez o narrador interroga sobre a conduta do<br />
mito por meio dos parênteses, ironicamente <strong>jul</strong>gando-o por<br />
“cretino”. É conveniente perceber como ocorre o embate entre<br />
a voz do Salomão bíblico e a do narrador, que se faz ouvir como<br />
o off do teatro. Esta intromissão proporciona a subversão<br />
do texto bíblico, ainda que a voz do narrador seja uma voz estranha<br />
ao discurso bíblico.<br />
Outras alusões às passagens bíblicas também poderiam<br />
ser exploradas no romance, como as diversas vitórias do rei<br />
Davi narradas no Primeiro Livro das Crônicas, a criação do<br />
homem, a história de Caim e Abel e o dilúvio que Deus envia<br />
como forma de castigo aos homens relatados no primeiro livro<br />
do Pentateuco. Todas estas narrativas estão recriadas dentro da<br />
narrativa que a feia se vê obrigada a escrever, contando a história<br />
da humanidade até chegar ao tempo da corte de Salomão. A<br />
princípio ela é convidada para relatar as histórias de seu povo,<br />
no entanto, é censurada por contá-las sob um outro viés, um<br />
olhar feminino que modifica a versão do texto bíblico original.<br />
Nota-se que a reescritura que a feia estabelece é contestatória,<br />
pois critica e coloca em dúvida o discurso da verdade<br />
impetrado pela Bíblia oficial, assim como toda a tradição de<br />
culpa que as escrituras sagradas postulam desde as origens com<br />
a “culpa original” de Adão e Eva até o último livro do Antigo<br />
Testamento, revogada na Bíblia cristão apenas no Novo Testamento.<br />
Desse modo:<br />
Assim, me vi, no dia seguinte, escrevendo a história<br />
tal como eles queriam. A mulher sendo fabricada<br />
a partir de uma costela de Adão. A mulher<br />
dando ouvidos à serpente. A mulher provando do<br />
fruto da árvore do Bem e do Mal. Em suma: a<br />
mulher cagando tudo. E aí vinha aquela história<br />
do Caim e do Abel, os dois filhos do casal (dois<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 18
filhos: nenhuma filha. Ou seja, não teriam chance<br />
de se reproduzir, nem por incesto). O Abel pastor<br />
(de ovelhas, não de cabras), o Caim agricultor; os<br />
dois brigam, em vez de optar por um empreendimento<br />
agropastoril conjunto, o que seria mais lógico<br />
e rendoso.<br />
(SCLIAR, 2002: 138)<br />
O narrador discorda claramente da versão oficial da criação<br />
da mulher a partir da costela de Adão, de sua fragilidade<br />
diante da serpente, da história de Caim e Abel como dois irmãos<br />
sem oportunidade de reprodução da espécie humana, ou<br />
seja, a feia parece questionar a inverossimilhança que a narrativa<br />
bíblica apresenta. Por fim, conclui de forma irônica que melhor<br />
negócio teriam feito os irmãos se tivessem optado por um<br />
“empreendimento agropastoril conjunto”, inserindo no discurso<br />
antigo das escrituras sagrados o discurso da contemporaneidade<br />
do mundo business.<br />
Considerações finais<br />
A mulher que escreveu a Bíblia é uma releitura das escrituras<br />
sagradas, ou seja, do discurso da “verdade”. O narrador<br />
questiona essa suposta “verdade”, interrogando sobre uma suposta<br />
identidade cultural cristã, ocidental, branca e masculina.<br />
Agora é uma voz feminina quem narra a história da humanidade.<br />
Esse outro olhar inverte a versão oficial das escrituras sagradas,<br />
questionando os fatos históricos narrados, como a mitificação<br />
de Salomão e da Rainha de Sabá.<br />
Além desta questão, caberia a interrogação acerca de<br />
um dos temas do romance, o da feiúra, que é enfaticamente<br />
mencionado ao longo da narrativa. No contexto atual da ditadura<br />
da beleza (juventude, magreza), onde o parecer está acima<br />
do ser, não seria a obra de Scliar uma forma de questionamento<br />
destes valores que a sociedade de consumo nos impõe, quando<br />
o conhecimento e a sabedoria perderam o valor que possuíam<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 19<br />
nas sociedades antigas? A obra de Scliar é muito simbólica<br />
neste sentido de explicitar a superioridade da feia pelo domínio<br />
da arte da escritura.<br />
Por fim, poder-se-ia avaliar que tanto a polifonia, como<br />
a carnavalização e a paródia formam um conjunto no processo<br />
de intertextualidades que se estabelecem na obra de Scliar posto<br />
que são estratégias discursivas que enriquecem o texto literário.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BÍBLIA Sagrada. Tradução dos originais mediante a versão dos<br />
Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico.<br />
67 ed. São Paulo: Claretiana, 1989.<br />
BLOOM, Harold. O livro de J. Tradução de Monique Balbuena.<br />
Rio de Janeiro: Imago, 1992.<br />
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de<br />
símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.<br />
ECO, Umberto. Pós-escrito ao Nome da rosa. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1985.<br />
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos<br />
das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro<br />
Pérez. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />
KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva,<br />
1974.<br />
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. 7ª reimpressão,<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.<br />
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ONOMATOPÉIA: FENÔMENO SUI-GENERIS?<br />
Alexandre Melo de Sousa<br />
UFAC<br />
RESUMO:<br />
Este trabalho apresenta alguns enfoques sobre a onomatopéia: fenômeno<br />
lingüístico que consiste na imitação ou reprodução aproximada de ruídos<br />
por meio dos sons da linguagem. São apresentadas algumas discussões de<br />
base teórica, a saber: a relação som – sentido, o tratamento da onomatopéia<br />
no âmbito morfológico, a manifestação onomatopaica em outras línguas, a<br />
onomatopéia como recurso estilístico, entre outras; baseadas nas quais,<br />
concluímos que a onomatopéia é melhor apreendida na esfera fonoestilística.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Onomatopéia, fonologia, formação de palavras, estilística.<br />
Considerações iniciais<br />
A onomatopéia (termo de origem grega onomatopoiía –<br />
criação de palavras – que foi transferido para o Latim onomatopoeia<br />
– invenção de palavras) tratada, simultaneamente, como<br />
um fenômeno lingüístico e uma figura da retórica, é caracterizada,<br />
comumente, como a semelhança, por meio da<br />
imitação ou da reprodução que se estabelece entre o som de<br />
uma palavra e a realidade por ele representada, seja de fenômenos<br />
naturais, seja de ruídos de animais, entre outros. Para<br />
Grammont (1971: 377), a onomatopéia é sempre uma aproximação,<br />
jamais uma reprodução exata.<br />
Este artigo, cujo escopo é a onomatopéia, tem por objetivo<br />
precípuo apresentar, panoramicamente, alguns enfoques a<br />
respeito do referido fenômeno lingüístico, com vistas a localizá-lo<br />
num dos âmbitos dos estudos da linguagem.<br />
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Embora demos maior destaque ao aspecto estilístico,<br />
mais exatamente fonoestilístico, não deixamos de salientar outros<br />
aspectos: um deles é a relacionar o referido fenômeno de<br />
imitação sonora com a noção de arbitrário do signo, para isso<br />
assinalaremos algumas considerações a respeito do liame que<br />
se estabelece entre som e sentido.<br />
Outro aspecto consiste em mostrar o tratamento do fenômeno<br />
na lingüística estrutural, mais especificamente na Morfologia,<br />
no tocante à formação de palavras.<br />
1 - A relação som – sentido<br />
Inicialmente queremos traçar uma discussão sobre o elo<br />
que se estabelece entre som e sentido. Para tanto, faz-se necessário<br />
tecer algumas importantes considerações sobre a natureza<br />
do signo lingüístico, já que este reúne em si a relação entre<br />
conteúdo e expressão: mecanismo no qual se baseia a linguagem<br />
humana.<br />
De acordo com Jakobson (1969), a relação entre conteúdo<br />
e expressão constitui, desde a Antiguidade, um constante<br />
problema para a ciência da linguagem, mas que foi retomado,<br />
após longo período de esquecimento por parte dos lingüistas,<br />
por Ferdinand de Saussure, que retomou a concepção e a terminologia<br />
da teoria apresentadas pelos estóicos:<br />
Essa doutrina considerava o signo (sêmeion) como<br />
uma entidade constituída pela relação entre o<br />
significante (sêmainon) e o significado (sêmainomenon).<br />
O primeiro era definido como "sensível"<br />
(aisthêton) e o segundo como "inteligível"<br />
(noêton), ou então, para utilizar um conceito mais<br />
familiar aos lingüistas, "traduzível”.<br />
(Jakobson, 1969: 98-9).<br />
Segundo Saussure (1995), a linguagem une a expressão<br />
ao conteúdo por convenção, não por natureza. De acordo com a<br />
teoria saussureana, o signo lingüístico não estabelece relação<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 22
entre uma coisa e uma palavra, mas entre um conceito (significado)<br />
e uma imagem acústica (significante), como explica o<br />
autor:<br />
O laço que une o significante ao significado é arbitrário<br />
ou então, visto que entendemos por signo<br />
o total resultante da associação de um significante<br />
com um significado, podemos dizer mais simplesmente:<br />
o signo lingüístico é arbitrário.<br />
Assim, a idéia de "mar" não está ligada por relação<br />
alguma interior à seqüência de sons m-a-r que<br />
lhe serve de significante; poderia ser representada<br />
igualmente bem por outra seqüência, não importa<br />
qual (...)<br />
(SAUSSURE, 1995: 81-82)<br />
De acordo com Saussure, “arbitrário” quer dizer que o<br />
significante não possui nenhum vínculo natural com a realidade.<br />
Podemos dizer, então, que o significante é "imotivado" em<br />
relação ao significado. Para o autor, tal constatação é aplicável<br />
até mesmo no caso das onomatopéias, cujas imitações aproximativas<br />
de certos ruídos naturais poderiam relacionar, equivocadamente,<br />
significante e significado. Então, apresenta os seguintes<br />
argumentos em defesa de sua posição:<br />
a) as onomatopéias, como uma "imitação aproximativa"<br />
de ruídos, são criadas a partir de sons<br />
vocais padronizados na língua, portanto, são<br />
convencionais;<br />
b) as onomatopéias tendem a adquirir características<br />
dos demais signos à medida que se integram<br />
ao léxico da língua, sofrendo, por exemplo, alterações<br />
morfológicas;<br />
c) as onomatopéias tornam-se de importância secundária,<br />
já que se apresentam um número bem<br />
reduzido na língua.<br />
A despeito das conclusões do mestre genebrino sobre a<br />
natureza das onomatopéias, não há por que demolir o caráter<br />
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convencional das mesmas, mas simplesmente relativizá-lo, na<br />
medida em que a associação som-sentido depende de fatores<br />
nitidamente culturais e não universais. Quer dizer: a relação<br />
som/sentido é “sentida” como motivada pelos falantes, mas, no<br />
contexto de uma análise científica, vemos que esta relação é<br />
puramente intuída, mas isto não garante focos de universalidade<br />
à relação sígnica. A motivação, pois, existe, mas não é tão<br />
universal que destrua o arbitrário do signo, ainda que, no seio<br />
de uma cultura, a motivação onomatopaica seja maior que para<br />
signos como mesa e cadeira.<br />
Rigorosamente, há dois tipos de subtrair:<br />
a) aqueles determinados pelo sistema, como arbitrário<br />
relativo: a exemplo dos derivados e compostos,<br />
no plano da expressão, e da metáfora e<br />
da metonímia, no plano do conteúdo<br />
(Cf. GUIRAUD, 1980);<br />
b) aqueles determinados pela relação som/ sentido,<br />
mediados pelo referente: é o caso da imitação<br />
sonora, que consiste numa aproximação dos<br />
sons físicos através de sons lingüísticos; a ilustração<br />
sonora, que consiste no aproveitamento<br />
da linha melódica para dar sugestão de que os<br />
fonemas estão expressado algo inerente à natureza<br />
do que se comunica. “Assim, a sibilante /s/<br />
participa dos exemplos de imitação sonora<br />
quando se fala dos assobios, dos sussurros. Se<br />
porém transmite um apelo de silêncio ou sua<br />
impressão de suavidade tem-se uma ilustração<br />
sonora”.<br />
(Cf. MONTEIRO, 1991: 109)<br />
Como vemos a abstração sonora está ligada às sensações<br />
naturais, táteis, visuais, excluído as auditivas. Para nos<br />
valermos de Jakobson (1969), neste caso, prepondera a função<br />
conativa da linguagem.<br />
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Do ponto de vista semântico, há que se fazer a distinção<br />
entre a onomatopéia primária, que consiste na imitação do som<br />
pelo som e a onomatopéia secundária, que evoca não uma experiência<br />
acústica, mas um movimento.<br />
Por fim, é o caso da sugestão rítmica, que resulta da<br />
tensão do relaxamento e da distensão prosódicos de que resulta<br />
o ritmo (Cf. MASSINI-CAGLIARI, 1992). Mas não vamos nos<br />
deter neste aspecto relacionado à motivação sonora. Voltemos<br />
ao nosso interesse central: a imitação sonora ou onomatopéia.<br />
2 - A onomatopéia na formação de palavras<br />
A onomatopéia ou imitação sonora é um fenômeno<br />
marginal em morfologia, porque não segue a nenhuma sistematização.<br />
Não parte de constituintes mórficos, sendo antes uma<br />
formação ex nihilo, de modo que não tem tratamento especial<br />
em morfologia, que trata dos processos regulares e sistemáticos<br />
de formação de palavras. Representativo desta concepção é<br />
Rocha (1998: 99), que caracteriza o fenômeno como assistemático<br />
e imprevisível. Reporta-se a Melo (1975: 225-6), que se<br />
refere à onomatopéia ou imitação sonora nestes termos:<br />
outros processos de formação vernácula difíceis<br />
ou impossíveis de sistematizar: obscuras analogias,<br />
"intuição poética, espírito chistoso, vivacidade<br />
de imaginação dão nascimento a novas palavras,<br />
que não se podem enquadrar nos processos clássicos,<br />
ou ao menos não obedecem aos planos e<br />
normas habituais. Quem explicará satisfatoriamente<br />
palavras como maçaroca, serelepe, bagunça,<br />
ganzepe, beldroega, bigorrilhas, desmilinguido,<br />
borocoxô, saçaricar, chinfrim, fuzarca,<br />
pilantra, ranzinza, fuzuê, esbregue, calhorda, salafrário,<br />
bisbórria, safardana, I mazorro, salabórdia,<br />
engazopar, et similia.<br />
(apud ROCHA, 1998: 99)<br />
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3 - A onomatopéia nas diversas línguas<br />
Decorrente do seu valor imitativo, mas dependente da<br />
cultura, o que torna a imitação sonora onomatopéia um fenômeno<br />
intermediário entre o arbitrário absoluto e o arbitrário<br />
relativo, há que se enfatizar o caráter relativo do fenômeno<br />
onomatopaico. Lopes (s/d) exemplifica com os seguintes verbos<br />
relativos a “miau”:<br />
Francês – miauler<br />
Inglês – mew<br />
Alemão – miauen<br />
Outros exemplos poderiam ser aduzidos aqui, mas cremos<br />
que é o suficiente para mostrar que a onomatopéia não<br />
fere o principio da arbitrariedade do signo, mas também não se<br />
circunscreve a pura comunalidade de que fala Saussure (1995).<br />
Nem é particular o suficiente para contribuir specimen de arbitrário<br />
absoluto, nem universal o suficiente para ilustrar a tese<br />
naturalista.<br />
Visto que a onomatopéia exige uma afinidade entre o<br />
nome e o sentido, seria de esperar que esses itens fossem os<br />
mesmos em todas as línguas. No entanto, como foi mostrado,<br />
cada língua convencionou a onomatopéia a seu modo. E, acrescente-se<br />
que, mesmo quando traduzidas graficamente, formações<br />
reconhecidamente onomatopaicas têm poucas semelhanças<br />
nos diferentes idiomas. Para alguns estudiosos da<br />
linguagem, o efeito onomatopaico depende da situação em que<br />
se pronuncia uma palavra, assim “uma palavra não é uma onomatopéia<br />
se não for sentida como tal (GRAMMOND, 1971:<br />
380).<br />
4 - A onomatopéia como fenômeno estilístico<br />
A nosso ver a onomatopéia, no âmbito de uma cultura<br />
de uma língua se caracteriza mormente como num fenômeno<br />
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estilístico e expressivo. Faz parte do que Troubetzkoy (1970)<br />
denominou forma expressiva, que pode ser assim definida:<br />
Ces difficultés peuvent être résolues au mieux si<br />
I'on attribue I'étude dês procedes phoniques d'expression<br />
et d'appel à une branche scientifique particuliere,<br />
à savoir Ia phonostyfistique. On pourrait<br />
Ia subdiviser d'une part em stylistique expressive<br />
et em stylistique appellative, et d'autre part em stylistique<br />
phonétique et em stylistique phonologique.<br />
Si dans Ia description phonologique d'une<br />
langue on doit étudier Ia stylistique phonologique<br />
(aussi bien au point de vue de Ia fonction expressive<br />
qu'à celui de Ia fonction d'appel), Ia tache<br />
propre de cette description doit toutefois rester<br />
I'étude phonologique du "plan représentatir. La<br />
phonologie n'a done pás à être subdívisée em<br />
phonologie expressive, appellative et représentetive.<br />
Lê nom de "phonologie" peut comme auparavant<br />
être reserve à I'étude de Ia face phonique<br />
de Ia langue, de valeur représentative, tandis que<br />
\'étude dês éléments de Ia face phonique de Ia<br />
Jangue, de valeur expressive et de valeur appellative,<br />
será faite par Ia "stylistique phonologique",<br />
qui de son cote ne serait qu'une partie de Ia "phonostylistique".<br />
(TRUBETZKOY, 1970: 29)<br />
Dessa forma, segundo o autor, apenas os elementos fônicos<br />
de caráter expressivo e apelativo têm valor para a Estilística,<br />
já que esta atenta para a manifestação expressiva da linguagem.<br />
Como Câmara Jr. (1978) observou, ao dedicar espaço<br />
à Fonoestilística, em seu estudo, Trubetzkoy pretendia, na verdade,<br />
mostrar que não deveriam ser incluídos no conceito de<br />
fonema os traços expressivos nos quais se revelam "a manifestação<br />
psíquica ou o apelo", já que o fonema está exclusivamente<br />
relacionado com a função representativa.<br />
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Como acrescenta Câmara Jr (1978: 29), a Fonoestilística<br />
aproveita traços fonéticos "que não estão sistematicamente<br />
utilizados nas oposições e nas correlações dos fonemas e dos<br />
grupos fonêmicos". Cabe a ela, portanto, destacar o valor expressivo<br />
das vogais e das consoantes, as ilustrações e os simbolismos<br />
sonoros, as sugestões rítmicas entre outros recursos sonoros.<br />
Dá-se destaque ao critério acústico a fim de detectar as<br />
impressões auditivas que despertam os fonemas.<br />
Aqui nos aproveitamos da proposta de Herculano de<br />
Carvalho (1974) a respeito da qual fala Martins (2000: 48-49) e<br />
assim que tipifica as onomatopéias:<br />
a) como sons imitativos produzidos acidentalmente<br />
pelo homem, possuem caráter momentâneo e<br />
individual; são uma imagem intencional do som<br />
natural. Têm a possibilidade de repetir-se em situação<br />
semelhante e valer como sinal (natural e<br />
intencional). As onomatopéia criadas por escritores<br />
ficam geralmente restritas a um único ou a<br />
poucos empregos.<br />
b) como objeto sonoro de configuração definida e<br />
valor significativo constante, dentro de uma determinada<br />
comunidade lingüística, constituído<br />
por uma combinação de sons correspondentes<br />
aos fonemas da língua dessa comunidade: zás,<br />
pum, pimba, dlim-dlão, tlim-tlim, tic-tac, etc. –<br />
são as onomatopéias propriamente ditas.<br />
Os dois tipos onomatopaicos, referidos anteriormente,<br />
não se integram ao sistema léxico-gramatical da língua, uma<br />
vez que não constituem verdadeiras palavras; “são sinais quase<br />
totalmente destituídos de valor denotativo próprio e representam<br />
globalmente uma situação e não desempenham função na<br />
frase”. Cada uma delas, assim como as interjeições, tem valor<br />
de toda uma frase (cf. MARTINS, 2000: 49):<br />
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Considerações finais<br />
a) como significante que desempenha um papel<br />
sintático na frase e recebe uma categoria gramatical,<br />
temos uma forma lexicalizada e não uma<br />
onomatopéia propriamente dita. É comum a onomatopéia<br />
tornar-se substantivo ou verbo. O<br />
signo onomatopaico é uma verdadeira palavra;<br />
seja qual for o seu valor conotativo, denota o<br />
objeto que significa e desempenha função na<br />
frase, como os substantivos pio, uivo, estalo, ribombo,<br />
ou verbos como tilintar, bimbalhar,<br />
zumbir, etc. “Estas palavras estão ligadas ao seu<br />
significado em razão de convenções e, independentemente<br />
de seu valor conotativo, exercem<br />
função representativa”.<br />
(MARTINS, 2000: 49)<br />
Pelo exposto, conclui-se que a onomatopéia é um fenômeno<br />
marginal em lingüística, em especial na morfologia,<br />
em que recebe o inexpressivo nome de criação ex nihilo<br />
(CARVALHO, 1984: 22).<br />
Para Lopes (1961: 20), no entanto, as onomatopéias não<br />
existem apenas para acudir à falta ou ao desconhecimento de<br />
certos termos abstratos (como, por exemplo, acontece na criação<br />
de alguns termos infantis: popó, pipi, memé). São, na verdade,<br />
um recurso expressivo para transmitir um som ou um<br />
movimento contido numa frase, a fim de torná-la mais viva,<br />
mais comunicativa, portanto, segundo a autora, trata-se de uma<br />
“palavra motivada que se mantém em relação com a realidade<br />
que exprime – ou por imitação de um som, ou por sugestão de<br />
um movimento, ou ainda por simultaneidade dos dois”.<br />
O raio de ação da onomatopéia, como vimos, é mais apreendido<br />
na estilística da expressão, tendo alcance tanto na<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 29<br />
fala cotidiana quanto na criação poética, haja vista o conhecido<br />
“Sinos de Belém”, de Manuel Bandeira e “Incêndio em Roma”,<br />
de Olavo Bilac. Em abordagem imanente-fenomenológica, do<br />
polonês Roman Ingarden, (Cf. CEIA, 2005), os itens onomatopaicos<br />
fazem parte do estrato fônico, portanto, possui tratamento<br />
mais adequado no âmbito da Fonoestilística.<br />
Contudo, por não ser universal para as línguas naturais,<br />
não fere o princípio da arbitrariedade do signo. Apenas relativiza<br />
o princípio.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
CÂMARA Jr. J. M. Contribuição à estilística portuguesa. Rio<br />
de Janeiro: Ao Livro Técnico. 1978.<br />
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MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo: fonética do português<br />
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São Paulo: Contexto, 1992.<br />
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MONTEIRO, J. L. A estilística. São Paulo: Ática, 1991.<br />
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Belo Horizonte: UFMG, 1998.<br />
SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix,<br />
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TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonofogie. Paris:<br />
Klincksieck, 1970.<br />
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A ANATOMIA DA PERDA:<br />
THE SNOW MAN, DE WALLACE STEVENS<br />
André Cechinel<br />
UFSC<br />
RESUMO:<br />
A poesia de Wallace Stevens parece assombrada pelo embate entre consciência<br />
e realidade. Em outras palavras, o poeta trabalha a distância entre<br />
percepção e realidade, com o intuito principal de expor as inevitáveis atribuições<br />
adjetivantes operadas pela mente - nunca podemos, pois, ver as coisas<br />
como elas de fato são. Em The Snow Man, entretanto, Stevens nos mostra os<br />
eventos que decorreriam de uma hipotética visualização absoluta da natureza<br />
das coisas. A presente investigação se propõe, finalmente, a investigar<br />
justamente esse momento de contato “puro”, em que a mente incide inteiramente<br />
sobre as coisas que a cercam.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Wallace Stevens; poesia; percepção; imaginação; realidade.<br />
A disputa entre consciência e realidade talvez seja o<br />
grande tema de Wallace Stevens – ao menos tanto seus ensaios<br />
literários quanto a crítica acerca de sua obra assim apontam.<br />
Em seu famoso texto intitulado “The Noble Rider and the<br />
Sound of Words” (1942), por exemplo, Stevens atesta que “it is<br />
not only that the imagination adheres to reality, but, also, that<br />
reality adheres to the imagination and that the interdependence<br />
is essential” (STEVENS, 2005: 644). Em outras palavras, longe<br />
de favorecer qualquer dualismo opositivo, o poeta demonstra<br />
que a relação entre imaginação e realidade somente pode ser<br />
compreendida a partir da interdependência dos termos, uma<br />
vez que qualquer tentativa de isolá-los resulta automaticamente<br />
na própria dissolução do par. Nesse sentido, se a consciência é<br />
por vezes produtora do real, a essência da natureza nunca pode<br />
ser inteiramente apreendida, fato que atesta a parcialidade e a<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 32
temporalidade daquilo que entendemos como verdade. Ora, por<br />
não estar em total sintonia com o que é visualizado, a consciência<br />
situa-se em movimento de perpétua ordenação do real,<br />
isto é, atribuir sentido à natureza significa, também, afastar-se<br />
dela como verdade inequívoca.<br />
As premissas acima poderiam ser facilmente acionadas<br />
através da leitura do célebre The Man with the Blue Guitar,<br />
publicado por Stevens em 1937. Em poucas palavras, o poema<br />
aborda, ao longo de 33 seções, a questão da produção do real e<br />
seu estreito envolvimento com a consciência que o concebe. A<br />
primeira seção do poema abre com a imagem de um homem<br />
curvado sobre seu violão azul: “The man bent over his guitar, /<br />
A shearsman of sorts. The day was green. / They said, ‘You<br />
have a blue guitar, / You do not play things as they are’”. Aparentemente,<br />
para os que acompanham a cena, a tarefa do músico<br />
seria a de “tocar as coisas como elas são”; no entanto, o homem<br />
que toca, consciente de sua atividade, sabe que as coisas<br />
se modificam justamente no momento em que são percebidas<br />
pelo violão, seguindo disso a impossibilidade de atender ao<br />
pedido de seu público: “The man replied, ‘things as they are /<br />
Are changed upon the blue guitar.’”. Muito mais que constatar<br />
a realidade despida de seus adornos, o músico recodifica aquilo<br />
que canta – a própria cor azul de seu instrumento assim o sugere.<br />
Resumidamente, o discurso nunca incide totalmente sobre<br />
seu objeto, ou melhor, ao selecionar canto e instrumento, o<br />
homem do violão já delimita seu escopo, transformando-o continuamente.<br />
A bem da verdade, The Man with the Blue Guitar é apenas<br />
uma das possíveis referências ao tema percepção / realidade<br />
em Stevens. Dentre outros casos, poderíamos citar Of<br />
Modern Poetry e Notes Toward a Supreme Fiction, poemas<br />
igualmente conhecidos pela auto-reflexividade de seus versos.<br />
O primeiro, presente no livro Parts of a World (1942), estabelece,<br />
como o título indica, os fundamentos que deveriam<br />
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orientar a poesia moderna, expressos de modo geral nos seguintes<br />
versos: “It has to be living, to learn the speech of the<br />
place. / It has to face the men of the time and to meet / the<br />
women of the time”. O segundo, publicado por sua vez no conjunto<br />
Transport to Summer (1947), traz novamente à tona a<br />
idéia de um código estético para a poesia, anunciado dessa vez<br />
por uma tríade fundamental: “It Must be Abstract”, “It Must<br />
Change” e, por fim, “It Must Give Pleasure”. Seja como for, o<br />
importante é notar que a discussão relativa à representação da<br />
realidade certamente permeia os dois poemas:<br />
Two things of opposite natures seem to depend<br />
On one another, as a man depends<br />
On a woman, day on night, the imagined<br />
On the real. This is the origin of change.<br />
Winter and spring, cold copulars, embrace<br />
And forth the particulars of rapture come.<br />
Conforme visto até o momento, para Stevens, o real encontra-se<br />
em um processo contínuo de constituição, ou seja,<br />
nossa percepção da realidade é sempre intermediada por uma<br />
consciência inevitavelmente participativa, e, portanto, o que<br />
tomamos por verdade está sempre preso a condições temporais.<br />
Em suma, produzimos verdades para posteriormente descartálas,<br />
atestando assim uma indispensável insuficiência que dá<br />
movimento ao par consciência e realidade. Todavia, embora<br />
cônscio do impossível alinhamento completo entre o real e a<br />
mente que o apreende, o poeta não deixa de apontar a experiência<br />
de choque que decorreria de um desnudamento absoluto<br />
do primeiro. Colocado de outra maneira, Stevens tenta representar,<br />
em alguns de seus poemas, a situação hipotética de uma<br />
visualização absoluta das coisas como ela são, ainda que, de<br />
modo geral, sua obra se mostre conhecedora dos limites da<br />
experimentação. A questão por ele proposta parece ser a seguinte:<br />
o que aconteceria se, de fato, pudéssemos obter uma<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 34
precisa equivalência entre o que vemos e as coisas tal como<br />
são?<br />
Sem adentrar as questões heideggerianas acerca da poesia<br />
de Hölderlin – questões essas que não somente influenciaram<br />
Stevens, mas que também dizem respeito ao que até aqui<br />
foi dito –, este ensaio se propõe, finalmente, a trabalhar a pergunta<br />
acima formulada a partir do poema The Snow Man, publicado<br />
pelo poeta primeiramente em 1921 e a seguir incluído<br />
em Harmonium (1923), seu primeiro livro de poesia. Em linhas<br />
gerais, The Snow Man discute mais uma vez o principal assunto<br />
eleito por Wallace Stevens, a saber, a estreita ligação entre a<br />
mente e a cena por ela percebida. Contudo, diferentemente de<br />
seus outros experimentos, esse poema tenta dar conta do exato<br />
momento em que a percepção esvazia-se por completo para<br />
ceder lugar a uma aparição “pura” do real, experiência essa que<br />
resulta inevitavelmente no aniquilamento do “eu” convergente.<br />
Diante da captação da verdade, do cenário em si, qualquer identidade<br />
fechada se desfaz, e a sensação de perda é inevitável.<br />
***<br />
A “cena primitiva” é por todos conhecida: Blanchot pede<br />
para imaginarmos uma criança por volta de sete, oito anos,<br />
abrindo uma das cortinas de sua casa e olhando através da janela.<br />
Dentre as coisas que avista, o jardim, as árvores e o muro –<br />
a princípio, um episódio corriqueiro. Após cansar-se do que<br />
observa, a criança volta seu olhar para o céu ordinário, de luz<br />
cinzenta; “le jour terne et sans lointain” (BLANCHOT, 1980:<br />
117). Eis o que se passa em seguida: esse mesmo céu cotidiano,<br />
carregado de seus significados passados, abre-se subitamente,<br />
revelando para a criança uma ausência que ela nunca<br />
antes havia sentido, como se o vidro – seu espelho diário – tivesse<br />
quebrado para lhe liberar o significado final de tudo o<br />
que existia por trás. À medida que a cena se desvenda, a sensação<br />
de destituição parece aumentar progressivamente, até que,<br />
enfim, a criança desperta em lágrimas. Procura-se consolá-la,<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 35<br />
mas ela nada diz. “Il vivra désormais dans le secret. Il ne pleurera<br />
plus” (BLANCHOT, 1980: 117). Essa visão singular, de<br />
exposição total ao que é reconhecido, funde completamente o<br />
interno e o externo, e, dessa forma, impede a identificação de<br />
um campo de imanência interior ao “eu”. Em suma, corpo e<br />
linguagem se desfazem perante a prova do real, pois só a falta<br />
ali resta.<br />
Com efeito, os versos de Stevens assemelham-se ao evento<br />
descrito por Blanchot exatamente pelo registro da reação<br />
de um corpo que, após deparar-se com a concretude do real,<br />
torna-se estranho a si mesmo. Na esteira dos preceitos imagistas<br />
expostos por Ezra Pound no ensaio-prospecto “A Retrospect”,<br />
segundo os quais a poesia deveria visar um “direct treatment<br />
of the ‘thing’ whether subjective or objective”<br />
(POUND, 2004: 84), Stevens escreve uma espécie de poema<br />
em fuga, ou melhor, dada a absoluta condensação e impessoalidade<br />
dos versos, The Snow Man se oferece como um poema<br />
que intenta, a todo instante, retirar-se da linguagem. Como dito<br />
anteriormente, o texto de Stevens pode ser lido, em poucas<br />
palavras, como um retrato momentâneo e imaginário da mente<br />
na ocasião precisa em que ela capta a natureza em sua essência.<br />
Tendo em vista a concisão do poema, cabe citá-lo integralmente:<br />
One must have a mind of winter<br />
To regard the frost and the boughs<br />
Of the pine-trees crusted with snow;<br />
And have been cold a long time<br />
To behold the junipers shagged with ice,<br />
The spruces rough in the distant glitter<br />
Of the January sun; and not to think<br />
Of any misery in the sound of the wind,<br />
In the sound of a few leaves,<br />
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Which is the sound of the land<br />
Full of the same wind<br />
That is blowing in the same bare place<br />
For the listener, who listens in the snow,<br />
And, nothing himself, beholds<br />
Nothing that is not there and the nothing that is.<br />
Os versos iniciais do poema descrevem, como se pode<br />
ver, uma paisagem de inverno, ou melhor, descrevem a sensação<br />
de um espectador perante cenário dominado pela ação da<br />
neve. Na verdade, faz-se necessário aqui chamar a atenção precisamente<br />
para o fato de que a cena contemplada recebe toda<br />
uma carga avaliativa, que pode ser percebida através de imagens<br />
como spruces rough e distant glitter (“abetos ásperos” e<br />
“luz distante”). Parafraseando, a imagem do inverno que nos é<br />
retratada passa, pois, por um filtro que pretende qualificar de<br />
antemão os efeitos da neve sobre o espaço que ocupa. Esse<br />
ponto é de extrema relevância, principalmente por estar intimamente<br />
relacionado à principal proposição do poema. O primeiro<br />
verso de The Snow Man inaugura uma questão que, a<br />
bem da verdade, só será inteiramente formulada em suas linhas<br />
finais, a saber: para o observador presente no poema, apenas<br />
uma “mente de inverno” (a mind of winter) seria capaz de captar<br />
a cena em pauta tal como ela de fato é, e não como está<br />
sendo por ele representada. Ou seja, para o nosso intermediador,<br />
somente uma mente que se confunda com a própria neve<br />
pode dar conta do episódio em sua, digamos, essência. Segue<br />
disso, aliás, o título The Snow Man, alusão ao estado exigido<br />
para a apreensão da imagem em si.<br />
Isso que pode ser entendido como um paradoxo fundamental<br />
– confundir-se com o que é observado para melhor percebê-lo<br />
– constitui o centro de articulação do poema. Em oposição<br />
aos já mencionados adjetivos presentes nas estrofes<br />
iniciais, The Snow Man segue em direção a uma sorte de economia<br />
da linguagem. Em outras palavras, se aquele que adjeti-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 37<br />
va a cena não alcança uma precisão descritiva, associando-a<br />
sempre à negatividade, à “miséria ao som do vento” (misery in<br />
the sound of the wind), aqueles que ambicionam a verdade devem,<br />
por sua vez, deixar a cena falar por si, reduzir suas escolhas<br />
lexicais a um grupo meramente constatativo. Ora, as contradições<br />
aqui são, vale lembrar, absolutamente propositais; as<br />
impossibilidades afirmam-se a todo momento e, ainda assim, a<br />
“mente de inverno” insiste em se insinuar. O “homem de neve”<br />
deve falar ocultando-se, precisa anunciar retirando-se; deve,<br />
enfim, se possível, pensar pouco: “and not to think / Of any<br />
misery in the sound of the wind”. Não é casualmente que esse<br />
sujeito é referido no poema através do impessoal “one” – “One<br />
must have a mind of winter”. “One”: qualquer um, ninguém em<br />
particular.<br />
De qualquer forma, os versos finais de The Snow Man<br />
nos levam a um ponto limite, instante em que revelam o que<br />
essa “mente de inverno” captaria, então, se sua existência fosse<br />
possível. A situação que temos até aqui é a seguinte: de um<br />
lado, a descrição do cenário é feita de modo avaliativo, pois<br />
registrar significa, necessariamente, impor uma significação; de<br />
outro, a sugestão de uma improvável mind of winter que, após<br />
neutralizar-se, conquistaria o cenário, integrando-se a ele, logicamente.<br />
A questão, entretanto, parece inevitável: o que detectaria<br />
a “mente de inverno” em seu estado de pura conexão? O<br />
que lhe aconteceria? Como já suspeitávamos, equivaler espectador<br />
e cenário significa, ao mesmo tempo, sacrificar o primeiro<br />
para preservar intocadamente o segundo. Finalmente, o ouvinte<br />
que “escuta na neve” (listens in the snow), sendo nada ele<br />
mesmo (nothing himself), contempla “nada que não está lá”<br />
(nothing that is not there); logo, contempla somente o que está<br />
– percebe o “nada” que lá está (the nothing that is). Colocado<br />
de outra forma, o snow man não admira nada que não esteja lá;<br />
admira sim – e exclusivamente – o “nada” que lá está. O verbo<br />
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ehold é, aliás, bastante sugestivo para esse ponto de total percepção,<br />
tendo em vista a precisão por ele próprio sugerida.<br />
A rigor, a hipótese defendida nas linhas finais de The<br />
Snow Man vem acompanhada de uma notável autoreferencialidade,<br />
isto é, se a abertura do poema adjetiva-se para<br />
mostrar a dificuldade de uma correspondência plena entre percepção<br />
e imagem, os versos finais visam aproximar-se formalmente<br />
de uma expressão ideal do “nada”, para assim sustentar<br />
a perspectiva do “homem de neve”. Opondo-se aos efeitos visuais<br />
da abertura, as três estrofes finais do poema são marcadas<br />
por uma circularidade entediante, acentuada principalmente<br />
pela repetição dos itens lexicais. Palavras como sound, wind e<br />
nothing são reiteradas exaustivamente com o intuito de indicar<br />
o vazio constitucional do cenário perante o espectador perfeito.<br />
Com efeito, se a linguagem da natureza deve sobressair-se à<br />
presença do espectador, ou melhor, se a paisagem precisa conquistar<br />
sua independência, os versos requerem um discurso que<br />
é “pura natureza” e, portanto, as palavras necessitam permanecer<br />
no limite do inumano. Para tanto, a sonoridade ganha<br />
espaço, o barulho do vento faz-se ouvir: “Of any misery in the<br />
sound of the wind, / In the sound of a few leaves, Which is the<br />
sound of the land / That is blowing in the same bare place”.<br />
Tudo que transcende o vácuo deixado pelo vento corrompe o<br />
“nada” que ali está realmente manifesto.<br />
O ponto capital para o presente ensaio continua a ser,<br />
todavia, a consumação do encontro entre sujeito e realidade. Se<br />
em Blanchot o vidro quebrado compõe o quadro de destituição<br />
da identidade fechada, em Wallace Stevens, como visto, o processo<br />
não se dá de modo muito diferente, fato que pode ser<br />
deduzido a partir da dualidade da expressão nothing himself. A<br />
princípio, o penúltimo verso de The Snow Man poderia ser traduzido<br />
como “Sendo nada ele mesmo, contempla”, sinalizando-se<br />
dessa forma a rejeição de qualquer traço identitário. No<br />
entanto, essa tradução afasta-se de uma segunda interpretação<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 39<br />
viável, não menos relevante para a compreensão do modo como<br />
o snow man se porta frente ao cenário. Paralelamente ao<br />
“nada ele mesmo”, pode-se ler o nothing de nothing himself<br />
como um verbo, muito embora tal apreensão esteja gramaticalmente<br />
equivocada. Ao invés de um sujeito que não é nada<br />
teríamos, então, um sujeito que, na verdade, “esvazia-se” ao<br />
defrontar-se com a ari<strong>dez</strong> do real. Nothing himself – “esvaziando-se”,<br />
pois. Em poucas palavras, privilegia-se, nesse caso, a<br />
simultaneidade dos eventos; ver e perder-se são agora forças<br />
análogas.<br />
***<br />
No livro intitulado L’Intrus, Jean-Luc Nancy aborda a<br />
questão do transplante de órgãos como intrusão indelével na<br />
própria identidade do paciente. Partindo de sua experiência<br />
pessoal – transplante de coração –, o autor equipara o recebimento<br />
de um órgão “estrangeiro” à perda dos sinais que até<br />
então orientavam a vida subjetiva do sujeito. Ora, se o órgão<br />
vem de outra pessoa, pode-se facilmente pressupor toda uma<br />
articulação externa ao corpo do paciente, que dele independe e<br />
é, ao mesmo tempo, responsável pela manutenção de sua vida.<br />
Nesse sentido, dada a alienação inevitável perante essas transferências<br />
exteriores, como sustentar a idéia de um sujeito individualizado?<br />
Como acreditar na completude de um programa<br />
fisiológico que, curiosamente, depende de algo que lhe é totalmente<br />
alheio para se conservar? Esses são alguns dos pontos<br />
levantado por Nancy no livro:<br />
Dès le moment où l’on me dit qu’il fallait me<br />
greffer, tous les signes pouvaient vaciller. (...)<br />
Simplement, la sensation physique d’un vide déjà<br />
ouvert dans la poitrine, avec une sorte d’apnée où<br />
rien, strictement rien, aujourd’hui encore, ne<br />
pourrait démêler pour moi l’organique, le<br />
symbolique, l’imaginaire.<br />
(NANCY, 2000: 14–15)<br />
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Acrescenta-se a isso a angústia sentida diante de uma<br />
vida que, a rigor, teve seu decurso “natural” severamente interrompido.<br />
Como podemos inferir, sem o transplante de coração<br />
o corpo seguiria tranquilamente seu rumo em direção ao fim<br />
programado; contudo, essa suspensão imposta pela cirurgia cria<br />
um descompasso entre a idade do corpo e aquela do coração<br />
recebido, alterando significativamente, é claro, a duração da<br />
vida do paciente. Essa sobrevida estrangeira, fruto de uma intrusão,<br />
dificulta a crença de que o corpo que sofre o transplante<br />
realmente me pertence. Afinal de contas, como coloca Nancy,<br />
se meu coração me abandona, se ele sai do meu corpo para<br />
somente assim restituir a vida que se encontra ameaçada, até<br />
que ponto devo referir-me a ele como “meu” órgão? Após o<br />
transplante, aquilo que bate dentro de mim opera como um tipo<br />
de mecanismo estrangeiro, transformando-me em uma espécie<br />
de alien para mim mesmo. “C’est donc ainsi moi-même qui<br />
deviens mon intrus, de toutes ces manières accumulées et<br />
opposées” (NANCY, 2000: 36).<br />
Segundo Jean-Luc Nancy, finalmente, a força da intrusão<br />
está no fato de que, na realidade, ela não pára de ocorrer, e<br />
é por isso que nos impede de pensar em termos dicotômicos.<br />
Sendo invadido continuamente por algo que me é externo, sou<br />
também essa invasão, também aquilo que, a princípio, ainda<br />
não me pertence, que nunca dominarei por inteiro. O transito é<br />
infindável, e minha identidade sempre por vir. Sou estrangeiro<br />
porque sou a invasão que em mim se faz. Ou seja, a morte que<br />
era iminente não se apaga inteiramente após a cirurgia; pelo<br />
contrário, “différer la mort, c’est aussi l’exhiber, la souligner”<br />
(NANCY, 2000: 24). O coração transplantado é registro de<br />
uma vida excedente, muito embora solidária a um corpo que<br />
ainda está ali e lhe é anterior. “Il y a l’intrus em moi, et je<br />
deviens étranger à moi-même” (NANCY, 2000 : 36). Há em<br />
mim uma vida que, acima de tudo, aponta para uma morte que<br />
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não ocorreu; há em mim uma morte que, por sua vez, remete a<br />
uma sobrevida originária de outro lugar.<br />
A mind of winter de Wallace Stevens em The Snow<br />
Man não é senão essa intrusão que confunde os limites entre o<br />
que é interno e externo. Essa mente, que sugere a substituição<br />
gradativa da consciência adjetivante, suspende totalmente a<br />
identidade antes fechada do espectador. Como visto, esse movimento<br />
é percebido no poema através de sua progressiva circularidade,<br />
pois o encontro entre cenário e sujeito só pode ser<br />
representado pela própria isenção da linguagem. A mente<br />
“transplantada” perde seu desejo de atribuir significado, e seu<br />
estrangeirismo é notado pelo modo como o observador se ausenta<br />
para deixar o cenário falar por si. Com efeito, a imagem<br />
já não se diferencia mais daquele que a percebe, e o que ocorre<br />
é sim um processo de equivalência absoluta – dessa equivalência<br />
resta apenas o som repetitivo do vento. Em poucas palavras,<br />
o poema de Stevens parece nos dizer que, em suma, o real só<br />
pode ser captado através de uma experiência alienante. Tal<br />
como em Nancy, o sujeito se perde perante as trocas que o<br />
transcendem.<br />
Para finalizar, vale citar um poema que, publicado um<br />
ano antes da morte de Wallace Stevens, mostra um pouco mais<br />
do tipo de alienação vivida pelo “homem de neve”. Em A Clear<br />
Day and No Memories, o poeta escreve versos que se apóiam<br />
inteiramente na própria negação daquilo que apresentam, como<br />
se a voz que nos fala procurasse fugir completamente de toda e<br />
qualquer forma de memória autoconsciente. Novamente, interno<br />
e externo se confundem em decorrência de uma mente que<br />
se afasta de possíveis relações associativas. Não pertencendo a<br />
nada e também não sentindo nada, a consciência deixa de existir,<br />
dando lugar a uma percepção exata dessa idéia de ausência<br />
absoluta. Tal como em The Snow Man, a mente retira-se para<br />
se unir à imagem do vazio. Nada se conhece, exceto o nada.<br />
Nunca estivemos aqui antes, e nem agora estamos:<br />
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Referências Bibliográficas:<br />
No soldiers in the scenery,<br />
No thoughts of people now dead,<br />
As they were fifty years ago,<br />
Young and living in a live air,<br />
Young and walking in the sunshine,<br />
Bending in blue dresses to touch something,<br />
Today the mind is not part of the weather.<br />
Today the air is clear of everything.<br />
It has no knowledge except of nothingness<br />
And it flows over us without meanings,<br />
As if none of us had ever been here before<br />
And are not now: in this shallow spectacle,<br />
This invisible activity, this sense.<br />
BLANCHOT, Maurice. L’Ecriture du Désastre. Paris :<br />
Éditions Gallimard, 1980.<br />
NANCY, Jean-Luc. L’Intrus. Paris: Éditions Galilée, 2000.<br />
POUND, Ezra. “A Retrospect”, em John Cook (ed.). Poetry in<br />
Theory – an anthology. Oxford: Blackwell Publishing Ltd,<br />
2004.<br />
STEVENS, Wallace. Poemas / Wallace Stevens (Tradução e<br />
introdução de Paulo Heriques Britto). São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1987.<br />
STEVENS, Wallace. “The Noble Rider and the Sound of<br />
Words”, em Lawrence Rainey (ed.). Modernism – an anthology.<br />
Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2005.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 43<br />
UM RELATO DE TRABALHO COM<br />
LEITURA/REDAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA<br />
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS<br />
(EJA)<br />
Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca<br />
UERJ<br />
RESUMO:<br />
O presente artigo é o relato de um o trabalho com leitura / redação desenvolvido<br />
com alunos do Centro Supletivo de Ensino Fundamental e Ensino<br />
Médio (InvestUERJ). Tive como objetivo a superação de três obstáculos:<br />
dificuldade dos alunos em leitura e redação, trabalho artificial com o texto,<br />
e escassez do tempo. Para tanto, desenvolvi um curso que articulasse o<br />
“circuito do livro” com a avaliação pautada no portfólio. O “circuito do<br />
livro” caracteriza-se pela livre circulação dos livros entre os alunos. O portfólio<br />
possibilita uma avaliação individual e paulatina. Os estudantes registram<br />
as experiências com os livros. Em sala, esses relatos são trocados, o<br />
que intensifica a interação entre os sujeitos da aula.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Circuito do livro, portfólio, diálogo, trajetória de leitura.<br />
Introdução<br />
Em uma época em que o livro compete de forma desigual<br />
com outras fontes de informação e entretenimento, muito<br />
se discute sobre possíveis “estratégias” de aproximar o estudante<br />
do mundo da leitura e da escrita.<br />
Como bolsista de Iniciação à Docência, sob o auxílio<br />
dos meus coordenadores, estou tendo a chance de refletir e de<br />
pôr em prática idéias de incentivo à leitura e à produção textual.<br />
Desde março de 2006, dou aulas de Redação para turmas<br />
de EJA no Centro Supletivo de Ensino Fundamental e Ensino<br />
Médio (InvestUERJ), que é desenvolvido pela Superinten-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 44
dência de Recursos Humanos, através do Departamento de Seleção<br />
e Desenvolvimento de Pessoal, na Universidade do Estado<br />
do Rio de Janeiro.<br />
Do InvestUERJ participam docentes, que orientam e<br />
supervisionam os bolsistas na preparação das aulas; graduandos,<br />
que têm a chance de obter experiência regendo turmas de<br />
ensino fundamental e médio; e servidores, que são liberados do<br />
trabalho por três horas, de segunda a sexta, para freqüentarem<br />
as aulas.<br />
Nas páginas seguintes, pretendo explanar o trabalho<br />
com leitura e produção de texto desenvolvido por todo um período<br />
letivo, de 25 de outubro de 2006 a 08 de fevereiro de<br />
20<strong>07</strong>, com <strong>dez</strong>enove alunos do ensino médio, distribuídos em<br />
quatro fases (Fase A: 10; Fase B: 5; Fase C: 1 e Fase D: 3),<br />
tendo como principal objetivo a superação de três obstáculos:<br />
dificuldade dos alunos em leitura e redação, que, obviamente,<br />
não é exclusivo ao InvestUERJ; trabalho artificial com o texto,<br />
ainda muito presente na tradição escolar; e escassez do tempo,<br />
visto que à disciplina Redação é reservado apenas um tempo<br />
semanal de quarenta e cinco minutos.<br />
O desenvolvimento do artigo dá-se em dois momentos.<br />
No primeiro, detalho o planejamento, estabelecendo relações<br />
com os textos que me serviram de base. No segundo, relato as<br />
experiências de sala de aula. Por fim, há a conclusão, cujo título<br />
é auto-explicativo: Primeiros resultados e últimas considerações.<br />
Do planejamento<br />
Com base nos trabalhos de Fonseca e Geraldi (2004),<br />
Moulin (2001) e Villas Boas (2005), decidi organizar um curso<br />
articulando o “circuito do livro” com a avaliação pautada no<br />
portfólio.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 45<br />
Fonseca e Geraldi (2004), desde 1981, desenvolvem um<br />
projeto de leitura em parceira com 31 professores de quarta a<br />
oitava série do ensino fundamental, que atuam em 18 escolas<br />
da rede pública, em Aracaju. Os 3729 alunos assistidos têm a<br />
oportunidade de escolher, dentre os livros de narrativas longas<br />
(romances, novelas, peças teatrais) adquiridos ou retirados da<br />
biblioteca da escola, os títulos de sua preferência. A leitura não<br />
se limita ao tempo de aula, dado que os alunos podem levar a<br />
obra para casa. Adota-se o sistema de rodízio: para cada empréstimo,<br />
o professor faz um registro no caderno de controle.<br />
Sem muita burocracia, o livro circula com muita facilidade<br />
entre os alunos, formando um “circuito”.<br />
Trabalhando com números bem mais modestos, levei o<br />
“circuito do livro” para as minhas aulas de Redação, no InvestUERJ.<br />
Na verdade – diferentemente do objetivo de Fonseca e<br />
Geraldi (2004), que consistia em destinar, para as leituras de<br />
narrativas, um quinto das horas-aula (uma aula por semana) – o<br />
“circuito do livro” ocupou todo o tempo de que dispunha para<br />
o trabalho em sala de aula (um tempo semanal de 45 minutos),<br />
sendo, portanto, o centro, a base do curso.<br />
Não recorri a bibliotecas públicas para montar o acervo.<br />
Optei pela compra e pela doação. No total, reuni 41 títulos, dos<br />
quais 14 foram doados, espontaneamente, pelos estudantes.<br />
Para escolher as 27 obras restantes, baseei-me em conversas<br />
informais que travei com meus alunos no semestre anterior.<br />
Tive a preocupação de fazer uma lista bem diversificada, abarcando<br />
vários gêneros (poesia, crônica, conto, romance, ensaios,<br />
livro de auto-ajuda, peça teatral). Pensei da seguinte forma: se<br />
a obra for do interesse do aluno, se fizer parte da sua trajetória<br />
de leitor, não há “pecado”, não há “crime” em trazê-la para sala<br />
de aula. Um outro cuidado foi não dividir as leituras por séries<br />
(obra “A” para a primeira fase; obra “B” para a segunda etc.),<br />
visto que considero essa classificação de “adequado” e “inadequado”,<br />
no mínimo, dúbia e, quase sempre, injusta.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 46
No momento do planejamento, dividi o curso em três<br />
etapas. O objetivo da primeira é discutir a importância do ato<br />
de ler, considerando o “mapa de leitura” já traçado pelos alunos<br />
dentro ou fora da escola, e trabalhando composições de<br />
diversos gêneros (poesia, letra de música, conto, crônica, documentário).<br />
Trata-se da introdução do projeto.<br />
A etapa seguinte é a mais importante. Através de sinopses,<br />
críticas, adaptações, relatos informais, os livros selecionados<br />
são apresentados às turmas, para que o aluno possa escolher<br />
os de sua preferência. Nesse segundo momento, as<br />
“regras” são detalhadas: não há tempo máximo para a leitura,<br />
respeitando-se a caminhada do leitor; caso o livro não agrade, é<br />
possível interromper a leitura e partir para outro; o único controle<br />
é uma lista, atualizada semanalmente e exposta no mural,<br />
com os nomes dos alunos e dos textos que estão lendo.<br />
A aula, nessa perspectiva, passa a ser um espaço tanto<br />
para a troca de opiniões, impressões sobre os livros, quanto<br />
para o trabalho específico com determinado texto – momento<br />
de se explanar o conteúdo programático da ementa (centrado<br />
nos três modos textuais básicos: narração e descrição para as<br />
fases A e B, e dissertação para as fases C e D).<br />
Ressalto apenas que o destaque é para os relatos de leitura,<br />
para o circuito. As aulas expositivas são conseqüência do<br />
diálogo, da troca de experiências entre os alunos. Essa constante<br />
discussão em sala de aula, por seu turno, leva à produção<br />
textual, que é ponto de partida para análises lingüísticas. Enfatizo,<br />
assim, a idéia da leitura ser o centro, a base do curso, o<br />
elemento que desencadeia todo o trabalho com o texto.<br />
A última etapa é a apresentação de algum trabalho produzido<br />
pelos alunos no decorrer do curso. Pode ser uma encenação,<br />
um sarau, um círculo de leitura – a decisão cabe a eles.<br />
Como a leitura é essencialmente interdisciplinar, outros professores<br />
podem participar do evento de culminância.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 47<br />
O trabalho planejado, portanto, baseia-se em três partes<br />
indissociáveis: leitura, produção de texto e análise lingüística.<br />
Acredito que tenha ficado bem claro o caráter dialógico<br />
do trabalho planejado. Isso porque<br />
É próprio da linguagem seu caráter interlocutivo.<br />
A língua, como se sabe, é o meio privilegiado de<br />
interação entre os homens. Em todas as circunstâncias<br />
em que se fala ou se escreve há um interlocutor.<br />
(BRITTO, 2004: 118)<br />
O interlocutor, por sua vez, interfere diretamente na<br />
construção do texto. O autor, ao fazer escolhas, tomar decisões,<br />
baseia-se na imagem que tem do seu ouvinte/leitor. Na escola,<br />
no entanto, a forte presença do interlocutor torna-se um obstáculo<br />
à produção de texto, visto que, quase sempre, escreve-se<br />
para um leitor exclusivo: o professor, que com a caneta vermelha<br />
em punho, não deixa passar um erro sequer. Tal onipresença<br />
do interlocutor acaba por artificializar o ato comunicativo<br />
intencionado pela escola (Cf. BRITTO, 2004).<br />
Na proposta de produção de texto planejada, o leitor<br />
não é apenas o professor, dado que tanto os relatos orais, quanto<br />
os registros por escrito das experiências de leitura são compartilhados<br />
por todos da turma, sendo um fomentador do diálogo.<br />
Na interação, o texto, antes visto como “acabado”, é<br />
reformulado, revisado, repensado, tornando-se, de certa forma,<br />
uma produção coletiva.<br />
Após decidir pelo trabalho com o “circuito”, selecionar<br />
os livros, dividir o curso em três etapas, indaguei-me: como<br />
avaliar? A resposta partiu da pedagoga Márcia Taborda, excoordenadora<br />
do InvestUERJ, que, após ler a primeira versão<br />
do Plano de Curso, sugeriu-me o uso do portfólio, processo de<br />
avaliação continuada, o qual:<br />
consiste na sua essência de uma pasta individual,<br />
onde são colecionados os trabalhos realizados pelos<br />
alunos, no decorrer dos seus estudos de uma<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 48
disciplina, de um curso, ou mesmo durante alguns<br />
anos, como ao longo de um ciclo de estudos.<br />
(MOULIN, 2001: 01)<br />
Moulin (2001), além de enfatizar a adequação do portfólio<br />
aos propósitos do Ensino a Distância (EAD), cujas características<br />
são a aprendizagem independente e a auto-avaliação,<br />
relata o uso do portfólio na disciplina “Avaliação e Educação a<br />
Distância”, do curso de especialização em avaliação educacional,<br />
promovido pela UERJ e UFRJ. Os alunos, após a leitura de<br />
um texto, discutiram e definiram um roteiro para a elaboração<br />
da coletânea de documentos. Destaca-se, pois, o caráter participativo<br />
do processo.<br />
Dos pontos positivos, Moulin (2001) ressalta a possibilidade<br />
de se traçar, a partir do registro diário que o aluno faz na<br />
pasta, o seu perfil, que será o principal instrumento para o professor<br />
refletir, em parceria com os discentes, sobre o ritmo do<br />
aprendizado, o andamento do curso, as maiores dificuldades e<br />
inseguranças, os temas mais interessantes para as próximas<br />
aulas, etc. Adotar o portfólio significa, então, trazer o aluno<br />
para o centro do processo avaliativo.<br />
Outro trabalho no qual me baseei foi o de Villas Boas<br />
(2005). A professora apresenta os resultados de uma pesquisa<br />
realizada durante o ano de 2003, no Curso de Pedagogia para<br />
professores em exercício no início da escolarização (PIE), da<br />
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).<br />
Participaram do projeto 2000 professores diplomados no Curso<br />
de Magistério em nível médio, que vivenciaram a experiência –<br />
vista, no início, com certa insegurança – de construírem seus<br />
portfólios. O resultado foi muito positivo: o portfólio passou a<br />
ser o eixo organizador de todo o trabalho.<br />
Moulin (2001) e Villas Boas (2005): duas professoras,<br />
duas experiências bem distintas com o portfólio. Pensei em<br />
contribuir também: optei pela adoção da avaliação continuada<br />
na Educação de Jovens e Adultos, um público muito diferente<br />
dos assistidos pelos dois trabalhos supracitados.<br />
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A questão passou a ser: como articular portfólio ao<br />
“circuito do livro”? Não foi difícil achar respostas. Como a<br />
construção da trajetória de leitura é paulatina, constante e individual,<br />
a avaliação deve seguir o mesmo ritmo e ser igualmente<br />
particular. Surgiu, então, a idéia da pasta Diário de Leitura: um<br />
espaço para o estudante registrar explicações dadas pelo professor;<br />
o grau de interesse pelo assunto estudado; dúvidas, desejos<br />
e sugestões; impressões sobre o livro; trechos que lhe<br />
chamaram a atenção nos livros; textos de sua própria autoria;<br />
opiniões sobre o andamento do curso e sobre a forma de trabalhar<br />
do professor etc.<br />
Um ponto muito importante: não tira maior nota o aluno<br />
que ler mais livros. Não se trata de uma avaliação quantitativa,<br />
o que está em jogo não é o número, mas sim a qualidade, a<br />
profundidade da leitura. Mas como avaliar a qualidade, a profundidade<br />
da leitura? Através da troca de experiência em sala<br />
de aula e do registro no diário, deixando-se de lado questionários<br />
padronizados que, dentre tantos equívocos, ignoram que a<br />
leitura é tanto mais multifacetada quanto mais numerosos e<br />
diferentes os leitores.<br />
Se há o Diário de Leitura, nada mais justo em existir um<br />
diário do professor, nomeado Relatos de Aula, para o registro<br />
de minhas autocríticas, interpretações das respostas dos alunos<br />
dadas às aulas, receios quanto ao planejamento das aulas, ao<br />
andamento do curso etc.<br />
Vários pontos de vista sobre a mesma realidade: a aula.<br />
Os alunos, com toda a diferença de opiniões, crenças, expectativas,<br />
redigem o diário. O professor, que exerce um outro papel<br />
social na escola, escreve seus relatos. Inevitável é a troca: educandos<br />
e educador compartilham experiências. Com dia marcado,<br />
os diários e os relatos viram o assunto da aula.<br />
O curso, portanto, como ficou evidente, é uma articulação<br />
– e não justaposição – do “circuito do livro” com o portfólio.<br />
Não é nem um, nem outro; são os dois, interpenetrados.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 50
Acredito também estar contribuindo ao reuni-los em um curso<br />
cujo público-alvo difere-se das crianças e adolescentes do ensino<br />
fundamental, do trabalho de Fonseca e Geraldi (2004), e dos<br />
professores-aluno, com nível médio ou superior, da pesquisa de<br />
Moulin (2001) e de Villas Boas (2005).<br />
É da natureza do planejamento certa idealização (o que,<br />
no entanto, não tira sua importância). Por isso, no tópico a seguir,<br />
vamos sair da teoria e entrar na prática; ver o quanto o<br />
planejamento se modificou quando confrontado com o dia-adia<br />
da sala de aula; saber se os objetivos lançados na introdução<br />
foram atingidos.<br />
Do trabalho em sala de aula<br />
As maiores alterações no planejamento foram conseqüências<br />
da escassez de tempo e não da falta de interesse dos<br />
alunos, que aceitaram, sem restrições, o desafio de estudar a<br />
disciplina Redação de uma forma que lhes era totalmente desconhecida.<br />
A primeira etapa do projeto, que consistia na discussão<br />
da importância do ato de ler, foi muito reduzida. Dos gêneros<br />
previstos no planejamento (poesia, letra de música, crônica,<br />
reportagem, conto e documentário), analisamos apenas dois:<br />
assistimos a um documentário e lemos uma reportagem sobre a<br />
trajetória de Evando dos Santos (fundador da biblioteca comunitária<br />
Tobias Barreto, no Rio de Janeiro), que, gentilmente,<br />
aceitou meu convite para visitar o InvestUERJ e compartilhar<br />
com os alunos sua paixão pelos livro.<br />
A apresentação dos livros (a segunda etapa) deu-se da<br />
seguinte forma: espalhei as obras na mesa e solicitei aos estudantes<br />
que escolhessem o título que mais lhes interessassem.<br />
Logo em seguida, discutimos os possíveis motivos de escolher<br />
um livro e não outro. Muitos confessaram que a quantidade de<br />
páginas foi o primeiro critério; outros disseram que o título e o<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 51<br />
desenho da capa tiveram maior importância. Uma aluna, ao<br />
explicar os motivos da opção por determinado livro, fez um<br />
relato, emocionada, sobre a perda – creio que recente – de pessoas<br />
próximas e sobre outros problemas familiares que estava<br />
enfrentando no momento.<br />
Outras conversas pouco freqüentes nas escolas (mas<br />
nem por isso irrelevantes) foram motivadas pela leitura, pelos<br />
livros. Um outro livro despertou uma discussão sobre adultério,<br />
o que não estava previsto no plano de aula. Na medida do possível,<br />
tentei mediar o debate.<br />
Se por um lado, essa “fuga” do planejamento é um ponto<br />
positivo, já que se trata de uma contribuição do aluno para a<br />
aula; por outro, pode ser motivo de crítica. Um estudante, no<br />
nosso terceiro encontro, perguntou-me quando iriam começar<br />
as aulas de Redação.<br />
A terceira etapa do curso, que consistia na promoção de<br />
um evento de culminância interdisciplinar, não foi posta em<br />
prática. Com o tempo era reduzido, priorizei o relato de experiências<br />
e o estudo do conteúdo da ementa. Mais uma alteração,<br />
portanto, no planejamento.<br />
Quanto à minha experiência com os Relatos de Aula,<br />
confesso que, no início, achei tudo muito superficial, forçado,<br />
piegas até; mas, com o desenrolar do projeto, percebi o quanto<br />
são importantes minhas anotações auto-avaliativas sobre as<br />
aulas, dado que, mesmo após o término do curso, tenho informações<br />
precisas para redigir o presente artigo.<br />
A seguir, para dar uma dimensão maior do curso e exemplificar<br />
a dinâmica das aulas, transcrevo e comento trechos<br />
retirados dos diários dos alunos.<br />
Os autores dos diários permitiram a transcrição dos textos,<br />
que não foram alterados em momento algum. A identificação<br />
será feita pelas inicias dos dois primeiros nomes. Além<br />
disso, informarei a qual das quatro fases do ensino médio o<br />
estudante pertence.<br />
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As primeiras anotações no diário confirmam a hipótese<br />
de que grande parte dos discentes tem pouco ou nenhum contato<br />
com os livros, preferindo os meios de comunicação em massa,<br />
como a televisão:<br />
De um modo geral, eu não lia com freqüência.<br />
Hoje tenho lido nos ônibus, no trajeto de casa para<br />
o serviço ou escola pois tenho alguns trabalhos<br />
em casa e de um modo geral eu prefiro televisão e<br />
rádio.<br />
(V.S., Fase D)<br />
Não costumo ler com freqüência porque minha<br />
mente não se desenvolve com leitura e sim através<br />
de explicações. Tenho facilidade de entender<br />
através de rádio, televisão, fitas de vídeo, figuras<br />
ou manifestações.<br />
(A.N., Fase A)<br />
Outros motivos apontados pelos estudantes para o distanciamento<br />
da leitura estão relacionados a possíveis problemas<br />
de saúde ou ainda à falta de referência na família:<br />
Espero que no futuro venha a gostar de ler intensamente<br />
porque no momento minha vista não ajuda<br />
minha saúde não ajuda.<br />
(W.S., Fase A)<br />
Gostaria de poder ler mais, só que o sistema nervoso<br />
não ajuda, mas eu faço na medida do possível.<br />
(A.N., Fase A)<br />
A leitura, acho eu, que vai muito das oportunidades<br />
e da criação, pois na juventude eu lia gibi de<br />
super-heróis, brasileiro, mas não tive oportunidade<br />
de ler grandes livros ou até livros instrutivos.<br />
Meus pais não tinham costumes com a leitura<br />
nem jornais quando liam jornais era só a parte<br />
criminal. Por isso, eu espero muito deste curso<br />
para soltar a minha escrita e me acostumar com a<br />
leitura “sadia”.<br />
(V.S., Fase D)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 53<br />
Quando comentava o planejamento, insisti nas expressões<br />
“trajetória do leitor” e “mapa de leitura”, diretamente ligadas<br />
às escolhas feitas pelos alunos-leitores. Como exemplo<br />
de trajetória, veremos os registros da aluna V.L., da Fase B:<br />
Hoje apanhei o livro “Venha ver o pôr-do-sol”<br />
são vários contos mas eu só consegui ler o primeiro.<br />
Falei com o professor se eu poderia ler um<br />
livro que não era da coleção que estamos lendo, e<br />
ele respondeu que sim aproveitei o feriadão e estou<br />
lendo “O Imperador da Ursa Maior”.<br />
A aluna V.L. foi a primeira a perguntar se era permitido<br />
trazer outros livros para o curso, o que fez com insistência e<br />
com algum remorso.<br />
V.L., depois de ler o primeiro livro, fez novas tentativas:<br />
Eu peguei o livro “Memórias de um sargento de<br />
milícias”, comecei a ler mas não consegui dar<br />
prosseguimento a minha leitura pois me dava sono<br />
fiquei cansada e parei de ler. O clássico da literatura<br />
não é um livro ruim eu é que não tenho o<br />
hábito de ler, do mesmo clássico comecei a ler “A<br />
escrava Isaura” sem sucesso pois não continuei a<br />
ler.<br />
Eu estou lendo “Dom Casmurro” mais parei na<br />
página 27 pois não consegui ler mais, eu espero<br />
voltar a lê-lo pois a história é interessante eu é<br />
que sou um pouco preguiçosa, e só deixo de ganhar<br />
só perco deixando de ler bons livros.<br />
Nesses relatos, fica evidente a dificuldade da aluna em<br />
ler as “melhores” obras, os “clássicos”. Mesmo insistindo, não<br />
conseguia chegar ao final. Nos momentos de interação em sala<br />
de aula, eu dizia-lhe que deveria ler o que mais lhe interessasse,<br />
por mais que precisasse iniciar, sem terminar, várias leituras.<br />
Influenciada por Evando dos Santos, V.L., menos presa<br />
à obrigação de ler determinados títulos, obteve êxito:<br />
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Hoje eu apanhei o livro “O triste fim de Policarpo<br />
Quaresma” e que foi citado no encontro com Evando,<br />
o pedreiro, apanhei também o livro de poemas<br />
“Arca de Noé”, que são poemas infantis de<br />
Vinícius de Moraes.<br />
Eu gostei muito de ler os poemas sei que tenho<br />
que ler outros livros mais no momento estou querendo<br />
ler poesia pois não estou conseguindo ir até<br />
o final das histórias que leio.<br />
Consegui terminar de ler o livro de Policarpo<br />
Quaresma foi até o fim. Estamos no mês de fevereiro<br />
e eu estou lendo o livro “O Fantástico mistério<br />
de Feiurinha”, sei que é história de crianças<br />
mais eu estou gostando de ler e estou chegando<br />
ao final.<br />
Cheguei ao final de feiurinha, história de Pedro<br />
Bandeira.<br />
A trajetória de V.L é um ótimo exemplo para validar a<br />
idéia de que quanto mais a escola exige, limita, mais difícil é o<br />
cumprimento da tarefa pelo aluno. Em muitos programas de<br />
Língua Portuguesa/ Redação/ Literatura, o professor limita a<br />
leitura de todo o ano letivo a pouquíssimos títulos, excluindo<br />
do discente a possibilidade de escolher. A conseqüência, quase<br />
sempre, é o afastamento do aluno da leitura, que passa a ser<br />
uma obrigação, uma tarefa indispensável para não tirar uma<br />
nota baixa.<br />
No relato de V.L., o peso da tradição escolar fica evidente.<br />
No último registro do diário, não obstante minha conduta<br />
de não impor leituras, o que se destaca é o remorso:<br />
Professor me desculpe pois eu não consegui ler os<br />
livros que o senhor com maior boa vontade nos<br />
cedeu, mais agora tenho a certeza que poderei ler<br />
com mais atenção e prazer um bom livro.<br />
A aluna, após fracassos e êxitos em leituras que ela<br />
própria escolheu, sem minha interferência direta, parece – ba-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 55<br />
seando-me em suas palavras – ter aprovado o trabalho com o<br />
“circuito do livro” associado ao portfólio.<br />
Um outro aspecto muito positivo do registro diário foi a<br />
aproximação do trabalho feito no InvestUERJ com o cotidiano<br />
do estudante, com a sua vida fora da escola, o que contribuiu<br />
para dar mais sentido ao nosso trabalho:<br />
Eu neste fim de semana não pude ler o livro porque<br />
teve muita gente em casa no sábado e domingo<br />
até a noite porque foi o aniversário da minha<br />
filha então não pude ler, mais vou começar tudo<br />
de novo ler no final de semana.<br />
(M.A., Fase C)<br />
Houve também espaço para reflexões sobre fatos da atualidade<br />
que muito incomodaram os estudantes, como os sucessivos<br />
ataques violentos no final do ano passado, no Rio de<br />
Janeiro:<br />
Estou muito triste com o que aconteceu no final<br />
do ano, a tragédia que se deu aqui no Rio. Eu<br />
pensei assim com meus botões: “se todos esses<br />
baderneiros tirassem uma duas ou três horas por<br />
dia sentassem para ler eles não fariam esta coisa<br />
muito triste matando gente inocente que não tem<br />
nada a ver com o que eles fazem”.<br />
(M.A., Fase C)<br />
No entanto, nem todos os alunos compreenderam a proposta<br />
do registro diário. Um aluno apenas transcreveu, ininteligivelmente,<br />
trechos de livros:<br />
João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos,<br />
empregado de um vendeiro que enriqueceu entre<br />
as quatro paredes de uma suja e obscura taverna<br />
nos refolhos do bairro Botafogo.<br />
(J.Q., Fase B)<br />
Apesar de falhas como essa, as últimas anotações nos<br />
diários comprovaram a superação de obstáculos, apontados<br />
pelos alunos na primeira aula:<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 56
Aprendi a gostar de ler todo lugar que estou tenho<br />
um livro na mão e sempre leio tudo que está ao<br />
meu redor. Anoto todas as dicas sobre leitura para<br />
cada vez melhorar ainda mais.<br />
(W.S., Fase A)<br />
Gostaria de afirmar que, ao ler o livro “A MPB na<br />
Era do Rádio”, notei que através da leitura a mente<br />
humana se desenvolve de uma tal maneira capaz<br />
de quebrar qualquer obstáculo que impede a<br />
leitura. Confesso que, essa barreira, eu já quebrei<br />
e estou pronto para desafios. Pretendo ler mais livros!<br />
(A. N., Fase A)<br />
Tal avaliação comparativa – ao final do trabalho, resgata-se<br />
o início para se notar o progresso – é uma das principais<br />
características do portfólio.<br />
Com a intenção de revisar os objetivos lançados no planejamento<br />
e enumerados na introdução, faço uma autoavaliação<br />
de todo o trabalho desenvolvido no período letivo.<br />
Dentre os pontos positivos, destaco: incentivo à leitura<br />
e à produção de texto, constante interação entre alunos e entre<br />
aluno e professor, avaliação continuada e otimização do tempo.<br />
Dos pontos que exigem revisão, menciono: ausência de<br />
um trabalho mais profundo com o conteúdo programático,<br />
pouco uso das variadas mídias (filmes, músicas, documentários<br />
etc), ausência de uma correção intensa dos textos do diário e<br />
poucos momentos de interação entre Diários de Leitura e Relatos<br />
de Aula (não digo que não houve diálogo, apenas afirmo<br />
que os relatos escritos não tiveram o mesmo peso que os orais).<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 57<br />
Primeiros resultados e últimas considerações<br />
O curso abrangeu o período de 25 de outubro de 2006 a<br />
08 de fevereiro de 20<strong>07</strong>. Para definir o número de alunos participantes,<br />
usei o critério da freqüência: entraram na pesquisa os<br />
estudantes que compareceram a, pelo menos, 50% das aulas. O<br />
número final foram 19 discentes.<br />
Ao término do curso, os alunos preencheram uma ficha,<br />
em que eram solicitados os livros lidos parcial ou integralmente.<br />
A partir desses dados, foram feitas as estatísticas detalhadas<br />
a seguir.<br />
No total, registrei 53 empréstimos. Os títulos mais procurados:<br />
O Alienista, de Machado de Assis; A importância do<br />
ato de ler, de Paulo Freire; Memórias de um sargento de milícias,<br />
de Manuel Antônio de Almeida; Meu livro de cordel, de<br />
Cora Coralina; Para gostar de ler: crônicas, de vários autores; e<br />
Proezas do João Grilo, de João Ferreira de Lima.<br />
Dentre os livros que não foram solicitados, menciono:<br />
Assassinato no campo de golfe, de Agatha Christie; Livro de<br />
ocorrências, de Rubem Fonseca; e Reinações de Narizinho, de<br />
Monteiro Lobato (o livro com o maior número de páginas e em<br />
pior estado de conservação).<br />
Esse resultado desfez um preconceito: leitores iniciantes<br />
preferem obras simples, tidas como integrantes da subliteratura.<br />
Títulos como Bianca: uma garota especial, de Dorian Kelly,<br />
e Sabrina: razão ou paixão, de Caroline Clemmons, nem de<br />
longe, figuraram entre os mais procurados.<br />
Outros números: 30% dos alunos leram dois livros,<br />
20% leram três e 15% leram quatro; o número máximo de leituras<br />
foi oito. Vale dizer que considerei tanto as leituras integrais<br />
quanto as parciais.<br />
Por fim, resta informar que a média foi de 2,78 livros<br />
por aluno, incluindo as leituras parciais, que corresponderam a<br />
40% do total.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 58
Considero um ótimo resultado, visto que quase todos os<br />
alunos tinham uma trajetória de leitura incipiente; outros tantos<br />
ficaram, por anos, longe das salas de aula.<br />
Não podemos supervalorizar as estatísticas, como se<br />
fossem as únicas evidências do êxito do projeto. Mais importantes<br />
que os números foram os relatos, nos diários e em aula,<br />
da satisfação ao abrir um livro e lê-lo até a última página.<br />
Sem muita pretensão, deixo claro que, da mesma forma<br />
que os trabalhos já mencionados me motivaram a planejar o<br />
curso de leitura / redação concretizado no InvestUERJ, espero<br />
que esse meu relato contribua para a elaboração de outros tantos<br />
projetos, com diferentes metodologias. Isso porque vejo o<br />
professor como um sujeito ativo, que faz da sua prática não<br />
somente um espaço para a aplicação de conhecimentos já construídos,<br />
mas, antes de tudo, um espaço para a produção de novos<br />
saberes, mais próximos à sua realidade. Em síntese, compartilho<br />
da opinião de que “o professor desenvolve e produz<br />
teoria da sua própria ação” (Cf. TARDIF apud VILLAS<br />
BOAS, 2005: 294).<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BRITTO, Luiz Percival Leme. Em terra de surdos-mudos (um<br />
estudo sobre as condições de produção de textos escolares). In:<br />
João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São<br />
Paulo: Ática, 2004.<br />
FONSECA, Maria Nilma e GERALDI, João Wanderley. O<br />
circuito do livro e a escola. In: João Wanderley Geraldi (Org.).<br />
O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2004.<br />
GERALDI, João Wanderley. Prática de leitura na escola. In:<br />
João Wanderley Geraldi (Org.). O texto na sala de aula. São<br />
Paulo: Ática, 2004.<br />
MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1999.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 59<br />
MOULIN, Nelly. A utilização de portfólio na avaliação do<br />
ensino a distância. Trabalho apresentado no VIII Congresso de<br />
Educação a Distância da ABED. Brasília, Agosto,<br />
2001(disponível no site www.abed.org.br/congresso2001).<br />
VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. O portfólio no curso<br />
de pedagogia: ampliando o diálogo entre professor e aluno.<br />
Educ. Soc. Campinas, vol. 26, n. 90, Jan./Abr. 2005.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 60
REFLEXÕES SOBRE A OBJETIVIDADE NA MÍDIA<br />
IMPRESSA: O APAGAMENTO DA FONTE EM NOTÍ-<br />
CIAS DE JORNAL<br />
Bruno Deusdará<br />
UERJ<br />
RESUMO:<br />
Discutimos a questão da heterogeneidade na linguagem, com enfoque para<br />
o discurso relatado como forma de apreensão da alteridade. Tais contribuições<br />
fundamentam-se na idéia de que a linguagem é polifônica por constituição<br />
(Bakhtin, 2000). Acrescentam-se discussões em torno do discurso<br />
relatado (Authier-Revuz, 1990; Maingueneau, 2001). Ressaltamos ainda a<br />
categoria de discurso narrativizado, elaborada por Sant´Anna (2002), que<br />
possibilita acesso às formas mais apagadas de atribuição de um dizer a outro.<br />
As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar os efeitos de<br />
sentido que se produzem a partir das diferentes formas de apresentar outras<br />
vozes.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Análise do discurso, enunciação, notícia de jornal, discurso relatado.<br />
1 - Considerações iniciais<br />
Neste artigo, pretendemos discutir as contribuições oferecidas<br />
pelos estudos enunciativos à temática da heterogeneidade<br />
na linguagem, com enfoque para o discurso relatado como<br />
forma de apreensão da alteridade. Tais contribuições fundamentam-se<br />
na perspectiva assumida pelos estudos enunciativos<br />
segundo a qual as práticas de linguagem assumem um caráter<br />
polifônico por constituição (Bakhtin, 2000). Nesse sentido,<br />
deve-se ressaltar que as formas da alteridade que se mostram<br />
como tais – o discurso relatado entre elas – produzem como<br />
efeito de sentido a ilusão de que a heterogeneidade lingüística<br />
se mantém restrita a essas formas, pretendendo apagar a dimensão<br />
heterogênea que a integra. Ou seja, ao apresentar a voz<br />
do outro através de certas estratégias que parecem distanciá-la<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 61<br />
da voz do enunciador, produz-se como resultado a impressão<br />
de que a alteridade se restringe a essa ocorrência de discurso<br />
relatado.<br />
Nosso foco de análise aqui recai sobre essa dimensão<br />
“mostrada” da heterogeneidade, para fazer referência às reflexões<br />
de Authier-Revuz (1990), por meio das marcas que se<br />
imprimem nos enunciados. Para tanto, faremos inicialmente<br />
uma caracterização do gênero notícia de jornal, privilegiando<br />
alguns dos seus aspectos que melhor se relacionam com o debate<br />
concernente ao discurso relatado. Em seguida, retomaremos<br />
os elementos fundamentais das reflexões sobre discurso<br />
relatado, fazendo referência especialmente aos trabalhos de<br />
Authier-Revuz (1990) e Maingueneau (2001). Para as nossas<br />
análises, privilegiaremos a categoria de discurso narrativizado,<br />
elaborada por Sant’Anna (2004), considerando as contribuições<br />
que a delimitação da referida categoria pode oferecer à discussão<br />
relativo ao funcionamento discursivo do gênero notícia de<br />
jornal. Optamos ainda por demonstrar alguns exemplos de possibilidade<br />
de articulação do discurso narrativizado com outras<br />
formas de relato, procurando evidenciar, no plano enunciativo,<br />
a construção da objetividade em notícias de jornal não como<br />
uma característica própria a esse gênero, mas como efeito de<br />
sentido relacionado a certos procedimentos.<br />
2 - Tensão entre informar e opinar: caracterizando o gênero<br />
notícia de jornal<br />
Neste item, pretendemos oferecer ao leitor uma caracterização<br />
da notícia de jornal como gênero discursivo. Com o<br />
intuito de nos mantermos nos limites propostos para este texto,<br />
evidenciaremos alguns aspectos que definem a notícia de jornal<br />
a partir de uma perspectiva própria às teorias da enunciação,<br />
com ênfase para as diferentes formas de apropriação da voz do<br />
outro. Nesse sentido, ressaltaremos dois aspectos que nos pare-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 62
cem mais relevantes para uma posterior compreensão do funcionamento<br />
discursivo do referido gênero: (i) a suposta atividade<br />
de transmissão de informação não seria uma característica<br />
inerente aos textos midiáticos, mas sim um efeito de sentido<br />
garantido por certos mecanismos lingüístico-discursivos; (ii)<br />
em decorrência disso, a produção de sentido desses textos e da<br />
notícia, em particular, se constitui a partir da tensão entre informar<br />
e / ou opinar.<br />
Veríamos nos aspectos explicitados anteriormente possibilidades<br />
de enfoque para uma análise necessária da relação<br />
entre mídia e sociedade. A esse respeito, Sant’Anna (2004)<br />
afirma o seguinte:<br />
Aprimorar as relações entre mídia e sociedade<br />
envolve o entendimento de que compreender o<br />
que se lê articula-se no cotejo entre textos e na<br />
capacidade de produzir comentários, e de que os<br />
discursos se constroem em cenas institucionais<br />
complexas, marcadas pela assimetria, empírica e<br />
discursivamente considerada, entre os que detêm<br />
o conhecimento e a informação – os quais, portanto,<br />
escolhem o que e como passar esse conhecimento<br />
a quem não o detém. É bem verdade que<br />
a imprensa deseja diminuir ao máximo tal assimetria,<br />
pois radicalizá-la significa criar maior dificuldade<br />
na venda dos seus produtos informativos,<br />
que se diferenciam de outros da cadeia de consumo,<br />
já que a imprensa escrita tem papel relevante<br />
na (re)criação e na divulgação de valores sociais,<br />
bem como na produção de identidades. Mas, ao<br />
mesmo tempo, um jornal não é somente um produto,<br />
como também permite a venda de um público<br />
aos anunciantes. Essa forma de constituição<br />
abre a imprensa escrita a estudos das transformações<br />
socioculturais e também das relações entre<br />
produção discursiva e formas genéricas de expressá-las.<br />
(Sant’Anna, 2004: 119)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 63<br />
Não é difícil encontrarmos propagandas de jornais e revistas<br />
de grande circulação reafirmando que o periódico anunciado<br />
apresenta-se mais imparcial e, portanto, confiável que os<br />
demais. Vemos nesse tipo de material as pistas que nos apontam<br />
para o fato de que o projeto de imparcialidade mostra-se<br />
explicitamente como um objetivo a ser alcançado pelos jornais<br />
e revistas na atualidade e, por conseqüência, apagam-se as dimensões<br />
sociais, econômicas e culturais que constituem a relação<br />
mídia e sociedade. Desse modo, entendemos que seja através<br />
desse projeto de imparcialidade que jornais e revistas<br />
pretendem instituir lugares para si e para seus leitores.<br />
Do ponto de vista discursivo, se considerarmos que os<br />
sentidos são sempre parciais e provisórios, porque inseridos na<br />
dinâmica da história, podemos afirmar que a suposta imparcialidade<br />
não seria uma qualidade a ser atingida por um dado periódico,<br />
antes se trataria de um efeito de sentido que se produz<br />
a partir de procedimentos muito diversificados.<br />
A título de ilustração do que estamos sustentando acerca<br />
da constituição de uma “vontade de imparcialidade” na mídia<br />
brasileira, colocaríamos lado a lado as notícias, os editoriais<br />
e as colunas assinadas, redigidas por colaboradores dos jornais.<br />
Nessas colunas, a presença da assinatura cria um efeito de afastamento<br />
da opinião expressa naquele texto frente à linha editorial<br />
do jornal, como se se tratasse de uma grande citação em<br />
discurso direto. No editorial, a autoria expressa, embora não<br />
explícita, também parece nos indicar que se trata de um texto<br />
em que uma opinião está sendo posta em questão. Em contraposição<br />
aos textos em que haveria uma autoria expressa, a notícia<br />
parece reivindicar o estatuto de texto não opinativo, tão<br />
desejado pela mídia, como é possível perceber através de seus<br />
manuais de redação.<br />
Assim, podemos afirmar que, hoje, na sistemática<br />
de organização de um jornal diário que pretende<br />
atingir um grande público, existe a preocupação<br />
de apresentar textos não opinativos – nos quais a<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 64
informação é recriada discursivamente, mas pretende-se<br />
apresentada como relato do fato tal como<br />
ocorreu – e textos opinativos, nos quais o leitor<br />
sabe que encontrará pontos de vista, que tanto ele<br />
poderá identificar com os do jornal, ou seja, o<br />
editorial, quanto os de alguém devidamente autorizado<br />
a se identificar, a saber, o artigo.<br />
(Sant’Anna, 2004: 144)<br />
Ao discutir as formas de apropriação do empírico pela<br />
imprensa escrita, Sant’Anna (2004) destaca a existência de<br />
tensão entre informar e/ou opinar, o que levaria a um cruzamento<br />
dos atos de fala que a integram. Por outro lado, ao tratar<br />
o jornal como suporte, é possível notar diferentes posições enunciativas<br />
sendo assumidas, o que, do ponto de vista macro,<br />
se caracterizaria como marca de heterogeneidade (Sant’Anna,<br />
2004).<br />
A autora passa, a partir dos aspectos levantados anteriormente,<br />
a procurar diferenciar o jornal de outras práticas linguageiras.<br />
Para isso, chama a atenção para a discussão de definição<br />
do jornal como gênero ou não.<br />
As restrições que a empiria impõe na caracterização<br />
do enunciador, do público-genérico, das formas<br />
de circulação, do suporte – bem como da distribuição<br />
interna que o organiza, definindo a<br />
paginação, os temas, os recursos verbais e nãoverbais<br />
–, fazem-nos retornar à questão anterior,<br />
de saber se o jornal é um gênero.<br />
(Sant’Anna, 2004: 134)<br />
Essa discussão acerca da existência de um gênero jornalístico<br />
leva à consideração de que, quando se pretende informar<br />
ou opinar, esse gênero se atualiza de forma independente. A<br />
autora considera ser possível identificar as coerções genéricas<br />
em dois planos:<br />
• as características do suporte, que determinam uma<br />
certa organização de qualquer elemento que venha a<br />
ser atualizado num determinado veículo, e que estariam<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 65<br />
ligadas a um nível superior de discurso jornalístico, no<br />
qual se constata uma separação muito clara entre informar<br />
e opinar;<br />
• o plano dos textos em estudo, os gêneros notícia, editorial<br />
e artigo –, isto é, as atualizações efetuadas, por<br />
meio do suporte, como a forma concreta de operacionalizar<br />
as coerções da ordem abstratas do nível superior,<br />
nas quais se constata que a separação entre opinar<br />
e informar não se dá de modo tão óbvio como se poderia<br />
esperar.<br />
(Sant’Anna, 2004: 135)<br />
É interessante notar, portanto, que a referida autora irá<br />
definir notícia em contraposição ao artigo e ao editorial, como<br />
“textos informativos em sentido lato (...), que não se pretendem<br />
opinativos, podendo ter ou não autoria definida” (Sant’Anna,<br />
2004: 147).<br />
3 - O relato em notícias de jornal: a heterogeneidade enunciativa<br />
em questão<br />
No item anterior, discutimos uma caracterização da notícia<br />
como um gênero discursivo, a partir de uma perspectiva<br />
enunciativa. Tecemos considerações acerca do projeto de<br />
transmissão de informações, tão reivindicado na atualidade<br />
pela mídia na tentativa de mostrar-se como imparcial e, por<br />
conseqüência, confiável. Dissemos então que a imparcialidade<br />
não é uma qualidade de um jornal que pudesse ser medida de<br />
modo a assegurar que um fosse mais ou menos imparcial que<br />
outro. A partir da perspectiva aqui adotada, preferimos considerar<br />
que essa “vontade de imparcialidade” seria antes um efeito<br />
de sentido a ser garantido por certos procedimentos.<br />
Neste item, discutiremos um desses procedimentos: o<br />
discurso relatado. A citação de um discurso por outro será entendida<br />
aqui não em termos de tentar compreender qual seria a<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 66
forma mais fiel às palavras do outro ou a menos fiel, como tentaram<br />
mostrar as gramáticas tradicionais. Trata-se de problematizar<br />
as relações de embates que se manifestam nos diferentes<br />
modos de introdução da voz do outro, compreendendo os efeitos<br />
de sentido dela decorrentes.<br />
Inicialmente, explicitaremos o lugar do discurso relatado<br />
nas reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa, bem como<br />
os critérios para sua identificação. Em seguida, faremos<br />
uma discussão acerca dos efeitos de sentido criados por algumas<br />
das formas de relato.<br />
A discussão em torno do discurso relatado como forma<br />
de apreensão da alteridade integra um conjunto de reflexões<br />
acerca do caráter heterogêneo da linguagem. A esse respeito,<br />
poderíamos fazer menção aos trabalhos de Authier-Revuz<br />
(1990), em que a autora apresenta tais reflexões como forma de<br />
problematizar a questão do sujeito na linguagem.<br />
Segundo Authier-Revuz (1990), o sentido de um enunciado<br />
se produz não apenas a partir das palavras efetivamente<br />
ditas, mas remete sempre a outras palavras. Na linearidade da<br />
cadeia, imprimem-se marcas que nos deixam entrever esse diálogo.<br />
O esforço da análise residiria exatamente em buscar nessas<br />
marcas indícios da remissão inconclusa a outros discursos.<br />
Operacionalizando as reflexões a respeito da alteridade<br />
na linguagem, Authier-Reuvz (1990) propõe dois planos da<br />
heterogeneidade enunciativa: a heterogeneidade constitutiva,<br />
que remete ao princípio teórico do dialogismo bakhtiniano,<br />
segundo o qual as práticas de linguagem são, por constituição,<br />
heterogêneas, e a heterogeneidade mostrada, que aponta para<br />
as materialidades apreensíveis da heterogeneidade, criando a<br />
ilusão de que a presença do outro se restringe a essas entradas.<br />
O discurso relatado integra essas entradas.<br />
De acordo com tal ponto de vista, podemos dizer que<br />
haveria um embate constante entre essas duas dimensões da<br />
heterogeneidade, a que faríamos menção citando as notícias<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 67<br />
como exemplo. Ao lermos uma notícia, as diversas posições<br />
enunciativas que ela abrange explicitam-se de diferentes modos,<br />
entre eles o discurso relatado. No entanto, ao marcar a<br />
presença de uma outra voz através do relato, o que se cria como<br />
efeito é a ilusão de que as outras vozes trazidas pela notícia<br />
restringem-se àquelas que se encontram marcadas. Teríamos<br />
então a impressão de que todo o restante é atribuído à voz do<br />
EU que enuncia tal texto, supostamente eliminando a dimensão<br />
constitutiva da heterogeneidade.<br />
Tradicionalmente, os estudos sobre língua compreenderam<br />
o discurso relatado (DR) deixando-se convencer por aqueles<br />
que seriam seus efeitos de sentidos, não fazendo menção ao<br />
DR como forma de inscrição da alteridade e, portanto, como<br />
modo de produção de sentido.<br />
Tal equívoco levou a que se pensasse que a distinção<br />
entre o discurso direto e o discurso indireto seria a do acesso<br />
mais ou menos fiel à voz do outro. A esse respeito, Authier-<br />
Revuz (2001) afirma que a insuficiência dessa interpretação<br />
tradicional do DR, por ela denominada “vulgata”, teria o inconveniente<br />
de afirmar que o DD é a representação mais objetiva<br />
e séria das palavras do outro. A referida autora argumenta<br />
dizendo que “reproduzir a materialidade exata de um enunciado<br />
não significa restituir o ato de enunciação – do qual o enunciado<br />
é (apenas) o ‘núcleo” (Authier-Revuz, 2001, p. 134).<br />
A respeito da escolha do DD e dos efeitos de sentido<br />
correlatos, Maingueneau (2001) afirma:<br />
Mesmo quando o DD relata falas consideradas<br />
como realmente proferidas, trata-se apenas de<br />
uma encenação visando criar um efeito de autenticidade:<br />
eis as palavras exatas que foram ditas,<br />
parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se<br />
com efeito pelo fato de supostamente indicar as<br />
próprias palavras de enunciador citado: diz-se que<br />
ele faz menção de tais palavras.<br />
(Maingueneau, 2001: 141)<br />
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4 - Apagamento do relato: o discurso narrativizado<br />
No item que segue, discutiremos algumas formas de apropriação<br />
do relato nas notícias de jornal, com ênfase para<br />
uma categoria de DR que parece pôr em análise o apagamento<br />
de vozes em relato, o discurso narrativizado (DN)<br />
A categoria DN deve sua elaboração inicial ao trabalho<br />
de Sant’Anna, em que a autora problematiza a constituição de<br />
sentidos do trabalho em notícias sobre o Mercosul. No referido<br />
trabalho, que corresponde à publicação inspirada na tese de<br />
doutorado da autora, defendida no LAEL/PUC-SP, em 2000,<br />
ao observar o funcionamento do intertexto como DR, a referida<br />
autora compreende a necessidade de pressupor um conjunto de<br />
implicações, como o contato do jornalista diretamente com os<br />
textos citados, ou indiretamente, através de outras pessoas, que<br />
forneceriam as informações necessárias. Nesse contexto de<br />
reconfiguração de critérios para o DR, Sant’Anna identifica a<br />
abertura para a elaboração de uma outra categoria de DN, aquela<br />
que corresponde à “forma mais apagada de atribuição do<br />
discurso a outro e, ao confundir-se com a idéia de ‘informar<br />
objetivamente’, corresponde a uma forma narrativizada máxima<br />
de um possível discurso indireto” (Sant’Anna, 2004: 180).<br />
Nessa obra, teríamos a seguinte definição de DN: “enunciados<br />
cuja existência é apresentada pelo enunciadorjornalista<br />
como um dizer que este capta e transforma, apagando<br />
a fonte do relato de forma decisiva” (Sant’Anna, 2004:<br />
181).<br />
Explicitaremos agora alguns fragmentos para análise,<br />
que nos permitam, em um primeiro momento, compreender de<br />
que modo o relato em DN se articula, nas notícias de jornal,<br />
com as demais formas de citar um discurso em outro discurso.<br />
Vejamos o seguinte fragmento, extraído de uma notícia<br />
que tematiza o Nova Escola, programa de gratificação aos pro-<br />
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fissionais de educação do estado do Rio de Janeiro, instituído<br />
desde 2000.<br />
O diretor se preocupa com o provão. Ano passado,<br />
78% dos alunos da unidade alcançaram pontuação<br />
satisfatória. ‘Foi um ótimo resultado, mas<br />
é claro que, com questões de Ciências e outras<br />
matérias, a prova ficará mais difícil. Não houve<br />
preparação, nem tivemos acesso às provas passadas’,<br />
comenta.<br />
No fragmento anterior, as aspas constituem-se como<br />
marcas tipográficas que apontam para a existência de DR. Há<br />
outras pistas como a quebra na estrutura sintática e ainda a presença<br />
de um verbo que indica ter havido um ato de fala. Nesse<br />
caso, o verbo comentar. A voz trazida é a de um diretor de escola<br />
da rede pública estadual do Rio de Janeiro, comentando o<br />
resultado e algumas das dificuldades encontradas para a realização<br />
de uma prova promovida pela Secretaria de Estado de<br />
Educação do Rio de Janeiro. Tal prova é parte dos critérios<br />
para o pagamento da gratificação prevista pelo Programa Nova<br />
Escola.<br />
Gostaríamos, no entanto, de chamar a atenção do leitor<br />
para o seguinte trecho do fragmento anterior: “O diretor se preocupa<br />
com o provão.”<br />
A partir desse trecho, seria possível questionar: como o<br />
jornalista teria tido acesso à preocupação do diretor? Teria sido<br />
o próprio diretor o responsável por essa declaração ou outra<br />
pessoa, por exemplo, no momento da apresentação do diretor<br />
ao jornalista? Poderíamos considerar ainda um conjunto de<br />
outras hipóteses, como imaginar que essa preocupação não<br />
tenha sido dita, mas sim interpretada pelo jornalista.<br />
Diríamos assim que no trecho anterior há um relato que<br />
não ganha visibilidade como tal, seja através de marcas tipográficas,<br />
seja pela introdução de um verbo dicendi. Estaríamos<br />
assim no terreno das ocorrências de DN, cujos critérios de i-<br />
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dentificação apresentamos a seguir, tal como aparece em Deusdará<br />
e Sant’Anna (20<strong>07</strong>):<br />
i) apagamento da fonte: este critério remete à definição<br />
de DN elaborada por Sant’Anna (2004), apresentada<br />
anteriormente. No DN, o relato caracteriza-se pela ausência<br />
de marcas que nos permitissem atribuir o dito<br />
em questão a outro enunciador que não seja o próprio<br />
jornalista;<br />
ii) encadeamento das situações de enunciação: o relato<br />
em DN implica, além da situação em que o enunciadorjornalista<br />
se dirige ao leitor do jornal, duas outras:<br />
uma, a situação de enunciação original, aquela em que<br />
o dito relatado é originalmente proferido, outra, a situação<br />
de enunciação intermediária, aquela em que alguém<br />
relata o dito da situação original ao jornalista.<br />
Esse critério fora estipulado, como desdobramento dos<br />
trabalhos de Sant’Anna (2004), por Arias (2003).<br />
iii) Concepção não restrita do elemento dicendi: para<br />
identificação do relato em DN, é preciso ultrapassar a<br />
concepção tradicional de verbo dicendi, de modo que<br />
se possam compreender as situações em que uma outra<br />
voz emerge, considerando tanto elementos introdutórios<br />
de natureza verbal, quanto de natureza nominal.<br />
Tal critério remete igualmente ao trabalho de Arias<br />
(2003);<br />
iv) Grupos de elemento dicendi: em consonância com os<br />
critérios ii e iii, trabalhamos em nossa dissertação de<br />
Mestrado (Deusdará, 2006) no intuito de colaborar na<br />
operacionalização do elemento dicendi. Percebemos<br />
assim ser possível organizá-los em três grupos que abrangeriam<br />
os verbos e locuções verbais, verbos associados<br />
a grupos nominais, ou ainda grupos nominais<br />
apenas.<br />
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A partir dos critérios explicitados anteriormente, optamos<br />
por constituir o seguinte quadro, que colabora no sentido<br />
de dar visibilidade ao encadeamento de situações de enunciação<br />
como elemento fundamental para o reconhecimento do<br />
relato.<br />
Vejamos o quadro:<br />
Quadro 1 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do<br />
exemplo 1<br />
Ocorrência:<br />
O diretor se preocupa com o provão.<br />
Situação de enunciação atual<br />
• enunciador: jornalista<br />
• co-enunciador: leitor<br />
• tempo: data do jornal<br />
• marca lingüística: se preocupa<br />
Situação de enunciação intermediária<br />
• enunciador: fonte desconhecida<br />
• tempo: anterior à situação de enunciação<br />
atual<br />
• conteúdo do dito: preocupação com a<br />
prova do Programa Nova Escola<br />
Situação de enunciação original<br />
• enunciador: diretor<br />
• tempo: anterior à situação de enunciação<br />
atual<br />
• tipo do dito que poderá ser emitido:<br />
conversa informal ou entrevista<br />
• co-enunciador: jornalista<br />
• co-enunciador: indefinido<br />
Com o intuito de prosseguir com as análises que vimos<br />
realizando, traremos um outro fragmento:<br />
Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito<br />
máximo a ser obtido por essas escolas: ‘No fórum<br />
de diretores, houve a contraproposta de uma avaliação<br />
especial. Resolvi acatar.<br />
Nesse fragmento, à semelhança do que vimos no anterior,<br />
a ocorrência de um relato em DD, sendo antecedida de um<br />
DN. A voz trazida em DD é a do então secretário de Educação<br />
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do Rio de Janeiro, um dos responsáveis pelas políticas de gratificação,<br />
que tem, desde então, aprofundado a precarização das<br />
condições de trabalho dos profissionais da rede pública estadual.<br />
Se atentarmos para o trecho “Mendonça pensou em baixar<br />
para 3 o conceito máximo a ser obtido por essas escolas”,<br />
poderemos fazer questionamentos semelhantes aos que fizemos<br />
nas análises do fragmento anterior: como o jornalista teve acesso<br />
ao que o secretário teria pensado?<br />
A partir desse fragmento, compusemos o seguinte quadro:<br />
Quadro 2 – Encadeamento de situações de enunciação a partir do<br />
exemplo 2<br />
Ocorrência:<br />
Mendonça pensou em baixar para 3 o conceito máximo a ser obtido por<br />
essas escolas: “No fórum de diretores, houve a contraproposta de uma<br />
avaliação especial. Resolvi acatar”.<br />
Situação de enunciação atual<br />
• enunciador: jornalista<br />
• co-enunciador: leitor<br />
• tempo: data do jornal<br />
• marca lingüística: pensou<br />
Situação de enunciação intermediária<br />
• enunciador: fonte desconhecida<br />
• tempo: anterior à situação atual de<br />
enunciação<br />
• conteúdo do dito: redução do<br />
conceito máximo de algumas escolas,<br />
na avaliação do Programa Nova<br />
Escola<br />
Situação de enunciação original<br />
• enunciador: Cláudio Mendonça<br />
• tempo: momento de realização do<br />
fórum<br />
• tipo do dito que poderá ser emitido:<br />
proposta levada ao fórum de<br />
diretores<br />
•co-enunciador: jornalista<br />
• co-enunciador: provavelmente,<br />
os presentes no fórum de diretores<br />
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A partir dos dois fragmentos analisados, é possível<br />
compreender um dado funcionamento discursivo do relato em<br />
DN, nas notícias de jornal. Considerando que se trata de uma<br />
forma apagada de acesso a outras vozes, o relato em DN articula-se<br />
de maneira particular com outras formas de DR. Nos dois<br />
fragmentos analisados, a seqüência que apresenta um relato em<br />
DD precedido de um outro em DN parece evidenciar uma articulação<br />
sobre a qual caberia uma reflexão mais detida.<br />
Ao afirmar que “o diretor se preocupa com o provão”,<br />
sem explicitar a fonte, ou seja, a partir de que relato, em que<br />
circunstâncias, alguém teria feito referência à preocupação do<br />
diretor, tal relato apresenta-se de um determinado modo que o<br />
aproxima de uma “informação objetiva”. O relato em DD evidenciado<br />
em seguida parece constituir-se em um comentário à<br />
informação anterior.<br />
A partir dessa articulação dos relatos em DN e DD, o<br />
apagamento da fonte no primeiro caso e sua explicitação no<br />
segundo parece conferir estatuto diferenciado a ambas as ocorrências,<br />
construindo assim a objetividade como efeito dessa<br />
articulação.<br />
5- Considerações finais<br />
Oferecemos ao leitor, ao longo deste texto, algumas<br />
discussões relativas à heterogeneidade enunciativa, privilegiando<br />
o discurso relatado como entrada para análise. Ao optar<br />
pela notícia de jornal como material de análise, centramos a<br />
caracterização do referido gênero do discurso questionando a<br />
pretensa tarefa de transmitir informações não como algo que se<br />
efetivaria, mas sim como um dos aspectos que comporiam seu<br />
“projeto de dizer”.<br />
Assim sendo, vimos sustentando neste texto a idéia de<br />
que a objetividade não poderia corresponder a uma característica<br />
atribuída à mídia. Não caberia assim procurar identificar que<br />
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jornal seria mais ou menos objetivo. A nosso ver, é preciso<br />
considerar a objetividade como uma construção que vai se<br />
dando a partir de certos procedimentos que passam a integrar o<br />
funcionamento discursivo.<br />
Entre os aspectos aqui discutidos, ressaltaríamos as análises<br />
efetuadas acerca das articulações possíveis entre as diferentes<br />
formas de relato. Vimos então que o apagamento da fonte<br />
ou sua explicitação conferem estatuto distintos a cada uma<br />
dessas ocorrências, oferecendo como leitura possível a idéia de<br />
que os relatos em DN mais se aproximariam das “informações<br />
objetivas”, enquanto as formas que explicitam a fonte, como o<br />
DD, apareceriam como comentários a essas “informações”.<br />
As reflexões aqui propostas nos têm permitido analisar<br />
os efeitos de sentido que se produzem a partir das diferentes<br />
formas de apresentar outras vozes, bem como mapear, através<br />
da categoria do discurso relatado, o funcionamento enunciativo<br />
do gênero notícia de jornal e os efeitos da suposta neutralidade<br />
que esse gênero pretende instituir.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
ARIAS, Sandra di L. A enunciação do espanhol como língua<br />
estrangeira: vozes da notícia. Dissertação de Mestrado, Rio de<br />
Janeiro: UERJ, 2003.<br />
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas: as nãocoincidências<br />
do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.<br />
_______. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Caderno de Estudos<br />
Lingüísticos 19. Campinas: Unicamp, <strong>jul</strong>ho-<strong>dez</strong>embro,<br />
1990.<br />
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:<br />
Martins Fontes, 2000.<br />
DEUSDARÁ, Bruno; SANT’ANNA, Vera. Narrando para não<br />
explicar: mídia e sentido do trabalho dos profissionais de educação.<br />
In: SANT’ANNA, Vera; DEUSDARÁ, Bruno (orgs).<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 75<br />
Trajetórias em Enunciação e Discurso: conceitos e práticas.<br />
São Carlos: Claraluz, 20<strong>07</strong>.<br />
DEUSDARÁ, Bruno. Imagens da Alteridade no Trabalho Docente:<br />
enunciação e produção de subjetividade. Dissertação de<br />
Mestrado, Rio de Janeiro: UERJ, 2006.<br />
MAINGUENEAU, Dominique. A gênese dos discursos. Curitiba:<br />
Criar Edições, 2005.<br />
_______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez,<br />
2001.<br />
SANT’ANNA, Vera Lúcia de Albuquerque. O Trabalho em<br />
notícias sobre o Mercosul: heterogeneidade enunciativa e noção<br />
de objetividade. São Paulo: Educ, 2004.<br />
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O MISTÉRIO DA LIBÉLULA OU UM PERCURSO<br />
PARA A PROGRESSÃO COGNITIVA DO SIGNO<br />
Cláudio Luiz Abreu Fonseca<br />
UFPA-Marabá / UERJ<br />
RESUMO:<br />
O presente artigo tem por objetivo empreender uma análise semióticodiscursiva<br />
de um texto fílmico, O mistério da libélula (2002), a fim de que<br />
se possa compreender como se desenvolve a progressão cognitiva do signo,<br />
segundo os postulados peirceanos sobre a aplicação da teoria geral dos<br />
signos (SANTAELLA, 2005). Para tanto, tomar-se-á o texto fílmico como<br />
um investimento metateórico para uma compreensão de como se processa a<br />
semiose, mediante o trabalho de leitura. Considerar-se-á, nesse sentido, o<br />
filme como um discurso sobre o processamento da significação, que se<br />
inscreve no escopo da interação verbal (BAKHTIN / VOLOCHINOV,<br />
1992).<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Signo, texto, discurso, significação, leitura.<br />
Introdução<br />
A fim de compreender os postulados básicos que devem<br />
nortear a análise semiótica peirciana, propõe-se proceder à leitura<br />
de um texto fílmico (O mistério da libélula), a partir do<br />
qual se pretende refletir sobre a natureza do processo cognitivo<br />
de apreensão do signo e do texto-discurso, consoante o caminho<br />
percorrido pela personagem principal da trama para a sua<br />
interpretação.<br />
Em princípio, pode se dizer que O mistério da libélula<br />
reitera um tema clássico não só da literatura mundial como<br />
também das artes em geral, da filosofia, cujo signo mais famoso<br />
tenha sido estampado na célebre frase de Hamlet: “Há mais<br />
coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” ou<br />
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em sua citação, entre nós, em “A cartomante”, de Machado de<br />
Assis.<br />
Em uma palavra, o tema da (in)credulidade tem sido<br />
objeto de reflexão em muitas obras, pois a dialética de que resulta<br />
esse tema ou isotopia, gnosticismo vs. ceticismo ou sensitividade<br />
vs. racionalidade, provoca no ser humano desde sempre<br />
o questionamento sobre aquilo que não se pode explicar<br />
através da razão, da legibilidade convencional dos signos do<br />
campo da ciência.<br />
Procura-se fazer aqui, contudo, uma leitura que busque<br />
apreender não a reiteração de uma temática universal que assombra<br />
igualmente ainda o homem comum ou o artista, mas<br />
uma leitura circunscrita a um investimento teórico, cujo resultado<br />
é uma compreensão da própria teoria geral dos signos e do<br />
processamento da semiose do texto-discurso, de que resultam<br />
temas ou isotopias possíveis.<br />
Nesse sentido, propõe-se considerar o texto em análise<br />
como um objeto metateórico que leve o analista-espectador a<br />
compreender como se processa cognitivamente a significação<br />
do texto-discurso e dos signos verbais e não-verbais que o<br />
compõem, de acordo com a perspectiva da semiótica peirciana,<br />
bem como dos postulados relativos a tema e significação, de<br />
base bakhtiniana.<br />
1 - O percurso teórico<br />
A partir de uma concepção fenomenológica de mundo e<br />
de conhecimento, Peirce concebe a linguagem como representação<br />
da realidade, em que os signos constituem a maneira pela<br />
qual a penetramos e a compreendemos. (Cf. SANTAELLA,<br />
2005)<br />
Nesse sentido, os fenômenos são percebidos em sua<br />
configuração sígnica, por meio do que nos sugerem, indicam e<br />
simbolizam. Esses três aspectos que orientam a nossa percep-<br />
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ção cognitiva dos signos estão ligados à concepção triádica de<br />
signo e os seus modos de representação: como ícone, índice e<br />
símbolo.<br />
Os ícones se caracterizam pelas qualidades que sugerem<br />
e evocam, pelas similitudes que entretêm com os objetos a que<br />
remetem. Os índices indicam a sua existência, apontando para<br />
os objetos que lhes conferem sua concretude. Os símbolos são<br />
de natureza mais complexa, geral e abstrata e são apreendidos<br />
pela lei que ensejam, fruto das convenções sociais.<br />
No processo de apreensão do signo, intervêm as operações<br />
de significação, objetivação e interpretação, consoante a<br />
sua natureza triádica: signo, objeto e interpretante.<br />
A interpretação do signo pressupõe um percurso que vai<br />
da sua configuração mais concreta, em relação ao objeto a que<br />
se refere ou evoca, à sua natureza mais abstrata e geral, decorrente<br />
de sua legitimação social como signo, dado o contexto de<br />
sua produção.<br />
A nossa hipótese é a de que o processo cognitivo de<br />
percepção do signo, consoante a teoria semiótica, passa pelas<br />
suas qualidades, evocadas pelo objeto, transformando-se em<br />
indício que remete à sua própria existência, para se configurar,<br />
por fim, como um símbolo que se legitima em virtude, seja das<br />
convenções sócio-culturais que o integram ao seu quadro de<br />
referências, seja das mudanças dessas convenções que reorganizam<br />
e ressignificam as concepções internalizadas, mediante o<br />
processo interpretativo.<br />
Nesse sentido, por ser uma teoria muito abstrata, a semiótica<br />
permite apreender, pois, as linguagens nos seus aspectos<br />
mais gerais, o que impõe um diálogo com outras teorias<br />
mais específicas, ligadas ao objeto de investigação. (Cf.<br />
SANTAELLA, 2005)<br />
Não se trata aqui de mobilizar, contudo, uma teoria sobre<br />
a linguagem cinematográfica, já que concebemos o objeto<br />
de nossa análise como um texto-discurso, seja ele verbal e/ou<br />
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não-verbal, que se realiza num dado contexto de interação, tanto<br />
o imediato como o mais amplo, em virtude do qual se processa<br />
a significação.<br />
Aliás, o problema da significação tem sido abordado, no<br />
âmbito da pesquisa semântica e lingüística, ou como um fenômeno<br />
circunscrito à imanência do sistema formal de uma língua<br />
e, nesse caso, ligado à tradição estruturalista, ou como um<br />
fenômeno relacionado à natureza enunciativo-discursiva da<br />
linguagem, dos sujeitos e do contexto que a atualizam, configurando-se,<br />
pois, o estudo da significação em duas perspectivas,<br />
ou como asseveram Bakhtin/Volochinov:<br />
A investigação da significação de um ou outro elemento<br />
lingüístico pode (...) orientar-se para duas<br />
direções: para o estágio superior, o tema; neste<br />
caso tratar-se-ia da investigação da significação<br />
contextual de uma dada palavra nas condições de<br />
uma enunciação concreta. Ou então ela pode tender<br />
para o estágio inferior, o da significação: neste<br />
caso será a investigação da significação da palavra<br />
no sistema da língua, ou em outros termos a<br />
investigação da palavra dicionarizada.<br />
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992: 131)<br />
Neste trabalho, nos limitaremos, pois, a tratar da progressão<br />
cognitiva do signo fílmico, de caráter inter-semiótico,<br />
já que atravessado tanto pela linguagem verbal como pela nãoverbal,<br />
vinculada ao problema da compreensão da totalidade do<br />
texto e, portanto, integrada à enunciação concreta, do seu processamento<br />
pelo leitor, que em um dado contexto de interação,<br />
mobiliza uma série de conhecimentos lingüísticos, textuais,<br />
semânticos, pragmáticos e discursivos, que lhes permite apreender<br />
o(s) tema(s) ou a(s) isotopia(s) do texto-discurso, em<br />
relação com outros discursos com os quais dialoga.<br />
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2 - Desvendando a progressão cognitiva da significação: do<br />
signo ao texto<br />
A leitura de O mistério da libélula pode levar o espectador<br />
a fazer uma interpretação ancorada em estereótipos já<br />
consagrados, uma vez que sua produção faz emergir significados<br />
com os quais o espectador de massa se identifica, reiterando<br />
uma perspectiva cultural ligada à lógica do mercado cinematográfico,<br />
de fácil assimilação. Trata-se da construção de<br />
imagens que referendam a percepção do sobrenatural, consoante<br />
um efeito de suspense, que reitera uma visão saturada e banalizada<br />
do morto que reaparece na imagem do reflexo da janela<br />
ou da movimentação espontânea de objetos, que<br />
condicionam a expectativa do espectador para o esperado, não<br />
causando, pois, o estranhamento pelo inesperado e, assim, não<br />
modificando a percepção consagrada do fenômeno.<br />
Ainda que a história se oriente pela reiteração de estereótipos,<br />
o filme de Tom Shadyac pode se prestar a uma leitura<br />
que se norteie pela trajetória percorrida pelo protagonista na<br />
busca de interpretar a semiose produzida pelos signos verbais e<br />
não-verbais, que lhe querem transmitir uma mensagem.<br />
Joe Darrow (Kevin Costner) é um médico norteamericano<br />
que perde sua mulher grávida, Emily Darrow (Susanna<br />
Thompson), num acidente de ônibus na amazônia venezuelana,<br />
em que fora desenvolver um trabalho humanitário<br />
junto à uma tribo Yanomami. A partir daí, o protagonista começa<br />
a se ver diante de uma série de acontecimentos que sua<br />
razão médica não consegue explicar.<br />
Interessa aqui, o percurso que o protagonista percorre, e<br />
a que o espectador é também convidado a trilhar, para decifrar<br />
os signos de uma quase mensagem, cujo autor é em princípio<br />
desconhecido.<br />
Este percurso de apreensão cognitiva dos signos se divide,<br />
segundo nossa leitura, em três fases interdependentes e<br />
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que levam à construção da semiose do texto: uma fase em que<br />
os signos sugerem, outra em que indicam e, por fim, uma em<br />
que os signos simbolizam.<br />
Em princípio, uma cruz torta, desenhada por pacientes<br />
da ala de oncologia em que sua mulher trabalhara, constitui um<br />
possível signo a ser desvendado pelo protagonista. Esses pacientes<br />
teriam vivenciado uma experiência de quase-morte, dada<br />
a interrupção momentânea de suas vidas, e no retorno ao estado<br />
de consciência relataram ter encontrado de alguma forma com<br />
a doutora Emily, que lhes comunicou a necessidade de interagir<br />
com Joe. Esses relatos, somados aos desenhos da cruz torta,<br />
que insistentemente povoam as paredes dos quartos desses pacientes,<br />
desencadeiam no protagonista a necessidade de interpretá-los.<br />
Talvez haja algo a ser comunicado pela mulher, que<br />
estaria, afinal, morta ou viva? Aquelas duas linhas onduladas,<br />
entrecruzadas na vertical e horizontal, só poderiam evocar naquele<br />
momento uma cruz, ainda que estranha, devido às semelhanças<br />
icônico-pictóricas com o símbolo cristão, ou com outras<br />
referências que não faziam parte do acervo cultural de Joe.<br />
Diante de um signo, cujo objeto que evoca é insondável, o protagonista<br />
só pode contar com os pacientes, que funcionam como<br />
mediadores de uma interação quase impossível, para quem<br />
está imerso no mundo da razão cartesiana.<br />
As possibilidades de comunicação com uma interlocutora<br />
que presumivelmente está morta, pois os rituais sociais,<br />
religioso e jurídico, assim sentenciaram, levam o protagonista a<br />
supor que talvez a sua mulher ainda estivesse viva, já que se<br />
realizara uma cerimônia fúnebre em que o corpo estava ausente.<br />
Tal hipótese, plantada como pista falsa para a interpretação<br />
seja do texto fílmico, seja do texto fragmentado que o protagonista<br />
tem diante de si, constituirá temporariamente uma explicação<br />
plausível para uma interação que teima em ser efetivada,<br />
ainda que contrariando o mundo social que cerca o protagonista<br />
e, porque não alguns espectadores, cujas referências se coa-<br />
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dunam com a razão cética. Para o protagonista, pois, alimentar<br />
uma esperança dessa natureza condiz melhor com as suas convicções,<br />
que são explicitadas, por exemplo, na recusa ao atendimento<br />
de uma vítima de tentativa de suicídio. O diálogo que<br />
trava com a personagem reitera suas convicções sobre haver<br />
somente vida quando se está vivo ou na asserção dirigida à<br />
vítima: “(...) por pior que isto aqui seja, é só o que existe”.<br />
A montagem do texto a ser decifrado cabe ao protagonista,<br />
cuja autoria desconhece ou presume ser uma comunicação<br />
de alguém que ainda está vivo. Não há em seu círculo social<br />
pessoas com quem possa dividir suas inquietações diante de<br />
novas peças de um quebra-cabeça, que vão abalando pouco a<br />
pouco suas crenças. Quando o faz, é tomado como louco. Razão<br />
e loucura, aliás, constituem fronteiras muito nítidas para o<br />
seu círculo familiar, de amizades e de trabalho. A cada novo<br />
evento que se vai acrescentando à comunicação que se pretende<br />
efetivar, Joe o relata ao seu círculo ou age de modo intempestivo,<br />
movido que é pelo desejo de desvelar os sentidos da mensagem.<br />
Avaliado como tendo um comportamento incompatível<br />
com sua função social de médico, é desacreditado por todos<br />
que o rodeiam.<br />
O texto que se vai forjando aos poucos, diante dos olhos<br />
incrédulos do protagonista, mediante o trabalho cognitivo que<br />
realiza, orienta-se ora pelo descarte de hipóteses interpretativas<br />
ora por sua assunção, em relação aos signos que constituem a<br />
tessitura dos eventos. Para van Dijk, as hipóteses interpretativas,<br />
“dada uma estrutura textual e contextual, permitem suposições<br />
sobre possíveis significados e intenções mesmo que sejam<br />
rejeitadas depois” (DIJK, 1996: 81).<br />
A cruz torta poderia ser, pois, um ícone que remeteria<br />
aos atributos da libélula, marca corpórea de identidade de sua<br />
mulher, já que as enunciações subseqüentes referendariam provisoriamente<br />
tal sentido. O recebimento de um pacote postal,<br />
decorrente de uma compra feita por sua mulher pela internet,<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 83<br />
contendo um móbile de libélulas, para ser montado no quarto<br />
da filha que estava para nascer, e o peso de papel transparente<br />
contendo uma representação de libélula em seu interior, guardariam<br />
semelhanças com o possível ícone desenhado pelas<br />
crianças do setor de oncologia. Essa hipótese, no entanto, é<br />
descartada seja em função da explicação dada por um dos pacientes,<br />
para quem a cruz seria um índice, a representação de um<br />
lugar, no qual haveria um arco-íris, seja em relação à pesquisa<br />
que o protagonista realiza em dicionário de símbolos não encontrar<br />
similar com as representações de cruz de outras referências<br />
culturais.<br />
Na verdade, esses signos só começam a fazer sentido,<br />
na medida em que participam de acontecimentos, que lhes dão<br />
origem. Quando ainda se espraiam como signos isolados e estáticos,<br />
descolados e não articulados a um contexto, funcionam<br />
como signos desorientadores do processo cognitivo de construção<br />
da semiose.<br />
Nesse sentido, as inferências construídas pelo protagonista,<br />
decorrentes dos acontecimentos que se sucedem, em que<br />
os signos ganham um encadeamento sintáxico-semântico em<br />
processos enunciativos inusitados, passam a possibilitar uma<br />
progressão de sentido coerente. No processo de interação, em<br />
que se vai configurando o texto, Joe se define como coprodutor<br />
de sentido em relação à enunciação realizada por sua<br />
mulher, ainda que em outra instância de enunciação. Para Bakhtin/Volochinov,<br />
“compreender a enunciação de outrem significa<br />
orientar-se em direção a ela, encontrar o seu lugar no contexto<br />
correspondente.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992:<br />
131-132).<br />
Como se trata de comunicação, cuja efetivação depende<br />
do contato de duas dimensões, normalmente incomunicáveis,<br />
as interações entre Joe e Emily se processaram, de início, no<br />
plano material, por assim dizer.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 84
A casa do casal constitui espaço privilegiado para algumas<br />
das enunciações, de que participam os signos, cujos<br />
objetos que os representam, manifestam-se como se alguém ou<br />
uma força os fizessem se movimentar, já que sua materialidade<br />
e sua condição de inanimados os definissem pelo princípio da<br />
inércia. Esse movimento, no entanto, como o do peso de papel,<br />
encadeia-se com a lembrança do protagonista, de que a mulher<br />
tinha cravado em seu dorso um ícone, cujos traços evocavam<br />
uma libélula, forma escolhida por Emily para retornar, depois<br />
de morta, numa outra vida. A historicidade do discurso do casal,<br />
presentificada através de flash backs e recuperada pelo<br />
protagonista, possibilita que se articule, consoante a sintaxe<br />
fílmica, seus nexos com as manifestações da libélula, seja no<br />
móbile, no peso de papel, no dorso da mulher, seja em sua aparição<br />
como ser vivente diante da janela da casa, como símbolo<br />
da companheira desaparecida.<br />
Se o signo libélula indica e mesmo simboliza uma locutora<br />
que efetivamente quer comunicar alguma coisa, faltava, no<br />
entanto, decifrar ou, mais precisamente, identificar o que significaria<br />
a cruz torta, a fim de que o quadro textual pudesse ter<br />
mais uma de suas peças colocada, agora por um índice, que<br />
levaria o protagonista ao contexto de interação com Emily.<br />
As manifestações que se seguem são cruciais para que<br />
se opere no protagonista as mudanças necessárias, para que de<br />
fato acredite na possibilidade de interagir com sua mulher. No<br />
entanto, Joe ainda oscila entre credulidade e incredulidade,<br />
diante da imagem da mulher, no reflexo da janela, ou da tentativa<br />
de comunicação de um homem com morte cerebral, usado<br />
presumivelmente por Emily para tentar uma interação, no entanto,<br />
mal sucedida.<br />
Se o seu círculo social não o ajuda a resolver o dilema,<br />
que o faz oscilar entre uma pretensa loucura e uma razão coercitiva,<br />
o protagonista apela para uma freira, cujas investigações<br />
sobre os casos de quase-morte, conferem-lhe um saber, ainda<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 85<br />
que não-científico, sobre graus profundos da consciência humana<br />
poderem operar uma descendência a dimensões quase<br />
inescrutáveis, saber este que o levaria a prosseguir na busca de<br />
decifrar o enigma da cruz torta, malgrado as tentativas de seu<br />
círculo de dissuadi-lo a fazê-lo.<br />
No entanto, as convicções do protagonista são ainda suficientemente<br />
fortes para resistir aos fatos. Depois de ser convencido<br />
por seu círculo a vender sua casa e sair em viagem<br />
para recobrar a consciência e bom senso, o protagonista se vê<br />
diante de acontecimentos que lhe fazem retomar a sua busca. O<br />
retorno espontâneo das roupas da mulher ao armário, do peso<br />
de papel à mesinha de cabeceira, depois de empacotados, as<br />
luzes que se queimam espontaneamente, fazem com que o protagonista<br />
irrompa para fora da casa, da qual se preparava para<br />
mudar, e vislumbre do lado de fora, que as respostas que procurava<br />
se encontrariam em seu interior. Depara, então, com a<br />
cruz torta em um mapa de viagem. Não uma, muitas! Descobre,<br />
ao consultar o amigo que o acompanharia em viagem por<br />
um rio com corredeiras, que se tratava de um símbolo indicativo<br />
de cachoeira, legível aos olhos de quem sabe interpretar a<br />
linguagem de um mapa. Bastava, pois, articular esse dado, com<br />
uma fotografia, em que Emily aparece em primeiro plano, uma<br />
cachoeira ao fundo, bordada por arco-íris.<br />
É importante observar que os signos que o levariam enfim<br />
ao encontro com Emily, reúnem dados significativos para<br />
que tome a decisão de fazer uma outra viagem, não aquela recomendada<br />
por seu círculo, para que recobrasse a razão perdida,<br />
mas aquela que o levaria ao lugar indicado pela foto, que o<br />
transportaria também para as profun<strong>dez</strong>as de sua consciência.<br />
Viajar, pois, para a amazônia venezuelana, a fim de localizar<br />
os objetos a que os signos indiciais remetiam, significaria<br />
para o protagonista fazer uma outra viagem, interior, ao<br />
mundo da consciência insondável.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 86
No local em que acontecera o acidente que vitimou sua<br />
esposa, Joe localiza a cachoeira, referência da cruz torta, reiterada<br />
pelo símbolo cartográfico. Dirige-se para lá, parecendo<br />
ainda acreditar que sua esposa estaria viva, pois um dos dois<br />
índios, que o recebera juntamente com o piloto do avião, que o<br />
transportara para a área indígena, reconhecera sua mulher na<br />
foto que lhes mostrara, como “a doutora da Cruz Vermelha”.<br />
Num impulso, depois de avistar o ônibus, que transportara sua<br />
mulher no dia do acidente que a vitimou, semi-imerso nas águas<br />
do rio onde caíra, atira-se do alto da cachoeira, num mergulho<br />
que o levaria para o interior do ônibus, no afã talvez de<br />
verificar com os próprios olhos as possíveis pistas deixadas por<br />
sua companheira.<br />
O fluxo intenso das águas, somado ao movimento do<br />
protagonista no interior do ônibus, levam o veículo a se deslocar<br />
abruptamente, ocasionando a prisão de um de seus pés nas<br />
ferragens do ônibus. Imerso totalmente nas águas que tomam o<br />
interior do ônibus, o protagonista como que desiste de lutar<br />
para se desprender.<br />
É, pois, no meio aquático que se vai operar a interação<br />
entre Joe e Emily, mediante o contato entre as duas dimensões<br />
em que se localizam. O entrelaçamento das mãos do casal possibilita<br />
que a comunicação se processe, consoante imagens que<br />
recobram as circunstâncias que envolveram o acidente, bem<br />
como o rumo que tomara o corpo de Emily pelas águas, em<br />
direção à aldeia dos Yanomamis, que o resgataram. Trazido à<br />
tona pelas mãos do piloto, o protagonista recobra a consciência<br />
e se dirige à aldeia, a fim de completar a mensagem tecida por<br />
sua mulher.<br />
A comunicação que se dá entre o protagonista e os índios<br />
é mediada pela foto de Emily, cuja imagem é reconhecida<br />
pelos membros da aldeia. Uma velha índia, depois de dizer ao<br />
protagonista que a alma de sua mulher sobrevivera, toma-lhe<br />
pelas mãos e o conduz a uma tenda, onde lhe entrega uma me-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 87<br />
nina, a que se refere metonimicamente como Libélula, cuja<br />
marca de nascença, tatuada em seu tornozelo, justifica a denominação.<br />
Naturalmente, o enigma da libélula se resolve a partir<br />
do entrelaçamento dos signos icônicos e indiciais, cujos sentidos<br />
são recuperados, quando se completa o quadro interacional<br />
e enunciativo, por meio do qual é possível compreender a significação<br />
do texto como um todo. Para tanto, o protagonista,<br />
bem como o leitor, que assimila sua trajetória interpretativa,<br />
são levados a compreender a significação dos signos verbais e<br />
não-verbais, por meio de um processo cognitivo, que mobiliza<br />
mecanismos inferenciais, referências culturais e de mundo,<br />
cujas hipóteses interpretativas, quando válidas, são referendadas<br />
pelo contexto interacional, que as legitimou, ou como entendem<br />
Simões e Dutra que,<br />
Na consideração dos conhecimentos prévios de<br />
mundo e histórico-social necessários para se resgatar<br />
o sentido do texto (...) a identificação de ícones<br />
e índices na superfície dos textos depende<br />
não só do repertório do leitor, mas também de seu<br />
conhecimento enciclopédico.<br />
(SIMÕES e DUTRA, 2002: 4)<br />
3 - O diálogo interdiscursivo entre temas ou isotopias<br />
Tal como propusemos de início, a leitura que estamos<br />
empreendendo toma o texto fílmico como um discurso sobre<br />
como se processa a significação. No tópico anterior, tentamos<br />
demonstrar que a trajetória percorrida pelo protagonista para a<br />
interpretação dos signos verbais e não-verbais, a que o espectador<br />
também é convidado a percorrer, condiciona-se às hipóteses<br />
válidas que constrói para o processamento da significação<br />
da totalidade do texto.<br />
Nesse sentido, O Mistério da libélula pode ser concebido<br />
como um metatexto, cuja reflexão nos permite compreender<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 88
que a significação dos signos só se efetiva em ligação estreita<br />
com o contexto imediato e mais amplo de interação, no qual a<br />
enunciação completa se constitui. É nessa dimensão da linguagem<br />
que os conhecimentos lingüísticos, experienciais e de<br />
mundo vão ser mobilizados pelo leitor, a fim de que coproduza<br />
os sentidos de uma mensagem forjada por um autor,<br />
em uma dada instância de enunciação.<br />
Assim, o metatexto configura-se como um investimento<br />
metateórico, por meio do qual é possível compreender os postulados<br />
básicos da teoria semiótica peirceana, bem como relacioná-los<br />
a uma concepção de significação, inscrita na interação<br />
verbal, concebida como realidade fundamental da língua e<br />
do discurso. (Cf. BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992)<br />
Em vista disso, é que propusemos, neste trabalho, proceder<br />
a uma análise semiótico-discursiva, com intuito de compreender<br />
como se dá o processamento cognitivo do signo.<br />
Importa, pois, conceber o signo na sua dimensão textual-discursiva,<br />
consoante o paradigma dialógico bakhtiniano, em<br />
que os discursos são entendidos como resultantes de um processo<br />
histórico-social, em virtude do qual se confrontam ou<br />
convergem em direção a tema(s) ou isotopia(s), que a análise<br />
do signo textual possibilita.<br />
Nesse sentido, pode-se perceber, mediante a leitura que<br />
vimos propondo, um confronto entre dois discursos, o científico<br />
e o religioso, que coexistem, de início, como vozes dissonantes<br />
no interior de uma mesma formação social, a que pertence<br />
o protagonista. Charaudeau e Maingueneau entendem<br />
formação social dentro do quadro teórico do marxismo althusseriano,<br />
caracterizando-a como investida de “uma certa relação<br />
entre as classes sociais”, o que implica a coexistência de posições<br />
políticas e ideológicas, “que mantêm entre si relações de<br />
antagonismo, de aliança ou de dominação”, tendo em vista diferentes<br />
formações discursivas (Cf. CHARAUDEAU e<br />
MAINGUENEAU, 2004: 241).<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 89<br />
Na verdade, como dissemos, o conflito interior e exterior<br />
que vive o protagonista, em relação às crenças e valores que<br />
o identificam e, posteriormente, o diferenciam de seu círculo<br />
social, resultam de uma mesma formação discursiva, uma vez<br />
que<br />
Uma formação discursiva não é um espaço estrutural<br />
fechado, já que ela é constitutivamente ‘invadida’<br />
por elementos provenientes de outros lugares<br />
(i.e., de outras formações discursivas) que<br />
nela se repetem, fornecendo-lhe suas evidências<br />
discursivas fundamentais.<br />
(Pêcheux apud CHARAUDEAU e<br />
MAINGUENEAU, 2004: 241)<br />
O discurso científico, pois, que referenda as convicções<br />
racionalistas do médico, legitimado por seu círculo social, é<br />
atravessado por “elementos provenientes de outros lugares”,<br />
cujos signos e os eventos que lhes dão origem se ligam ao<br />
mundo religioso e espiritual. A experiência de quase-morte,<br />
vivenciada no espaço da medicina de tradição ocidental, materializada<br />
pelo hospital, requer uma explicação, um discurso,<br />
oriundo de um outro lugar, não propriamente do discurso religioso<br />
oficial, mas de uma instância discursiva que está à margem<br />
deste, mas que com ele encontra convergências, entre as<br />
quais a de que existe vida após a morte, evidência que, no entanto,<br />
não constitui um objeto de investigação canônico. A aceitação<br />
de uma crença não implica necessariamente para o<br />
mundo mítico-religioso uma explicação científica sobre as evidências<br />
que tornam essa crença possível. Pelo contrário, uma<br />
tal convicção é assumida muitas vezes como dogma que não<br />
pode ser refutado, porque investido de um discurso que não<br />
deve ser objeto de indagação e questionamento. Nesse sentido,<br />
o discurso da freira, ainda que marginal aos postulados oficiais<br />
da igreja, como que constrói uma ponte entre uma convicção<br />
inquestionável e a pesquisa científica que empreende sobre os<br />
casos de quase-morte, cujos signos referendam a crença tradi-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 90
cional, bem como permitem que a razão médica redimensione<br />
suas convicções.<br />
Não se trata, pois, de opor absolutamente o mundo científico<br />
e religioso, mas de perceber que coexistem nessas formações<br />
discursivas confrontos e convergências, que fazem com<br />
que as convicções da razão médica, materializadas pelo itinerário<br />
percorrido pelo protagonista, sejam ressignificadas, permitindo<br />
que o protagonista afirme em off, ao final do filme, que<br />
sua esposa, além de ensinar-lhe em vida, a ter fé e a sempre<br />
acreditar, também lhe ensinou na morte a mesma lição, que “só<br />
acreditando chegamos lá”.<br />
Diante disso, pode-se afirmar que o interdiscurso, compreendido<br />
como “um conjunto de dizeres já ditos e esquecidos<br />
que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2005: 59), evidencia-se<br />
pelas inter-relações entre o mundo científico e o religioso,<br />
conferindo ao texto-discurso analisado uma atualidade,<br />
na medida em que o diálogo entre os temas ou isotopias de<br />
cientificidade e religiosidade, ainda constituem objeto de debate<br />
e não deixaram de sê-lo no decurso da história.<br />
Ao propor o tratamento do tema da (in)credulidade, por<br />
meio do discurso fílmico, o diretor Shadyac se conforma a uma<br />
visão de que ciência e religião devem interpenetrar-se numa<br />
espécie de casamento, em que uma não exclua a outra, mas que<br />
sirvam aos mesmos propósitos, quais sejam, o de compreender<br />
e admitir a existência dos fenômenos que transcendem a realidade<br />
ou na atribuição simbólica que confere a Joe e Emily, em<br />
que esta representaria a emoção, este a razão, formando um<br />
casamento perfeito.<br />
Considerações quase finais<br />
Não se trata aqui de fechar a discussão sobre a progressão<br />
cognitiva do signo, em virtude da qual a semiose se constrói,<br />
mas antes admitir que o estudo parcial que empreendemos<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 91<br />
sobre o processamento da significação do texto-discurso, possibilitou-nos<br />
refletir sobre alguns dos postulados da análise<br />
semiótico-discursiva, que intervêm na construção do significado<br />
do texto como um todo. Esse fato nos permitiu pensar também<br />
sobre alguns dos conhecimentos lingüísticos, textuais,<br />
semânticos, pragmáticos e discursivos que são mobilizados no<br />
processo de leitura de textos, sejam verbais e/ou não-verbais,<br />
por meio dos quais a interpretação do texto-discurso se evidencia<br />
como atividade verdadeiramente complexa.<br />
Resta, pois, apostar que a reflexão que realizamos sobre<br />
a progressão cognitiva do signo, dentre outras possíveis, possa<br />
contribuir com o debate em torno da questão da leitura no âmbito<br />
do ensino de língua materna, já que se inscreve numa concepção<br />
de significação, que considera a heterogeneidade como<br />
constitutiva da linguagem e do discurso, o que implica que a<br />
leitura de textos se realiza em confronto ou em convergência<br />
com outros textos, com os quais dialoga. Isso se aplica também<br />
aos discursos sobre a leitura, cujo debate se faz necessário para<br />
a qualificação do ensino de língua materna.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BAKHTIN, M. e VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia<br />
da linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992.<br />
CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D. Dicionário de<br />
análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.<br />
DIJK, T. A. van. “Contexto e cognição”, in: Cognição, discurso<br />
e interação. São Paulo: Contexto, 1996.<br />
ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação de<br />
sentidos. 2 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.<br />
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira<br />
Thomson Learning, 2005.<br />
SHADYAC, T. O mistério da libélula (Dragonfly). EUA,<br />
2002.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 92
SIMÕES, D. M. P. e DUTRA, V. L. R. “La iconicidad en la<br />
unidad textual: un análisis”. Escritos 27 Revista Del Centro de<br />
Ciencias Del Lenguaje Puebla México, Univ.Aut.de Puebla -<br />
México, v. 27, p. 91-104, 2003.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 93<br />
A ARTE E O REAL DE PASSAGEM, O CINEMA<br />
Cristiano de Sales<br />
UFSC<br />
RESUMO:<br />
A crítica cinematográfica se ocupa da imagem em movimento a partir de<br />
diferentes métodos: ora se desenvolvem análises numa perspectiva psicológica,<br />
ora sob o prisma do formalismo, ou ainda os argumentos procuram<br />
relacionar essa prática artística a alguma intervenção política. Por sua vez, o<br />
ensaio apresentado aqui sugere um olhar sobre essa prática, que é acima de<br />
tudo estética, a partir da fenomenologia, mais precisamente da fenomenologia<br />
de Merleau-Ponty. O recurso a este filósofo se dá pela necessidade de se<br />
pensar o que há de real nessa linguagem artística que aparentemente é a arte<br />
da realidade por excelência.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Cinema, fenomenologia, real.<br />
1 - Uma chave de leitura<br />
A noção de Real é algo de que vem se ocupando significativamente<br />
a crítica das diferentes artes no ambiente acadêmico.<br />
Em se tratando, porém, de pensar um conceito (ou apenas<br />
uma noção) e os diferentes campos epistemológicos dos<br />
quais se ocupa a estética, quem estaria mais autorizado a conduzir<br />
a discussão que não a filosofia?<br />
No entanto, levando-se em conta que o campo epistemológico-estético<br />
enfocado aqui para pensar o Real é o cinema,<br />
resistamos um pouco antes de entregarmos a responsabilidade<br />
do assunto à filosofia. Pois, tendo-se em mente os três<br />
séculos e meio em que a ciência do pensamento vem se ocupando<br />
explicitamente da estética, ou – sejamos mais radicais –<br />
tendo-se em mente que a filosofia já se ocupa dessas discussões<br />
desde os escritos de Platão, e considerando, enfim, a pouca<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 94
idade dessa que é a sétima das artes, atribuamos essa responsabilidade,<br />
ao menos nesse primeiro momento, aos críticos cinematográficos.<br />
Em A Experiência do Cinema, uma antologia organizada<br />
por Ismail Xavier, em que se encontram ensaios críticos de<br />
cinema numa perspectiva do olhar, da poesia e da psicanálise,<br />
nota-se um esboço daquilo que Deleuze reivindicava numa<br />
entrevista de 1985: conversa em que o filósofo fala de uma<br />
necessidade de se teorizar o cinema, e não apenas descrevê-lo.<br />
O cinema precisa, segundo ele, de seus próprios conceitos, e<br />
estes não se reduzem à linguagem técnica cinematográfica, mas<br />
sim devem se constituir a partir de suas próprias linguagem e<br />
capacidade de revelar limites. Ou seja, a crítica cinematográfica<br />
deve, pensa o filósofo, elaborar sua própria episteme, para<br />
então revelar suas próprias incompreensões, pois “a técnica não<br />
é nada se não serve a fins que ela supõe e que ela não explica”<br />
(DELEUZE, 1992: 76).<br />
Voltemos, porém, ao livro organizado por Ismail Xavier.<br />
Nele encontramos ensaios que exercitam sim a crítica descritiva<br />
apontada por Deleuze (é o caso explícito de Pudovkin,<br />
que ensina como montar um filme, ou até mesmo o caso de<br />
Eisenstein, que, embora subordine a descrição das técnicas à<br />
criação de efeitos, não deixa de situar o argumento no nível dos<br />
aparatos técnicos, que é o nível da composição tratando-se de<br />
cinema); mas encontramos também algumas entradas no campo<br />
reivindicado pelo filósofo do virtual: é o caso de Balázs, que<br />
reflete acerca da linguagem gestual antes de seu olhar focar a<br />
câmera, bem como o caso de Bazin, que reflete sobre o potencial<br />
de retenção da imagem e libertação do artista proporcionadas<br />
pela fotografia, ou ainda o caso de Metz que esboça uma<br />
reflexão sobre o discurso trazendo à baila a psicanálise.<br />
Entretanto, diferente de Deleuze, este artigo não entende<br />
essa recorrência das descrições técnicas como algo que possa<br />
estagnar a crítica cinematográfica (se pensadas, claro, à ma-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 95<br />
neira eisensteiniana, em que se ultrapassa a técnica rumo ao<br />
efeito), pois veremos adiante que na impossibilidade de se apreender<br />
alguma verdade, ou realidade, seja no cinema ou em<br />
qualquer outra linguagem, um caminho possível para a compreensão<br />
de algo é nos ocuparmos do ‘como’ e não do ‘o que<br />
é’ esse algo que nos escapa ao mesmo tempo que nos prende, e<br />
que chamamos de Real.<br />
Façamos então um recuo epistemológico a fim de compreendermos<br />
melhor esse exercício de pensar o Real a partir do<br />
cinema. Tentemos não nos lançar imediatamente ao encontro<br />
das críticas cinematográficas já ensaiadas desde o início do<br />
século para evitarmos, ao menos de início, o risco de não fazermos<br />
mais que metacrítica (No sentido que Compagnon empregou<br />
o termo em O Demônio da Teoria).<br />
Partindo-se da hipótese que a sétima arte é uma linguagem<br />
– embora cientes de que Pasolini e Deleuze não concordariam<br />
com isso, haja vista o capítulo 2 de A Imagem-Tempo –<br />
pensemos nas demais linguagens artísticas para começarmos a<br />
responder as seguintes perguntas: qual a dificuldade do cinema,<br />
quando comparado às demais artes, em fazer perceber o Real?<br />
E que Real é esse?<br />
Deixemos claro que não estamos nos opondo a Deleuze,<br />
pois não acreditamos numa linguagem cinematográfica de acordo<br />
com a perspectiva lingüística, dado que se assim procedêssemos<br />
cairíamos na lógica imagem-enunciado; estamos<br />
apenas pensando que há uma linguagem própria do cinema,<br />
que é da ordem da própria forma de manifestação artística, assim<br />
como as cores para o pintor trazem seu próprio ser e não<br />
devem ser reduzidas a enunciados propostos por alguma análise<br />
lingüística.<br />
Se estivéssemos pensando nas correntes realistas, poderíamos<br />
começar respondendo as perguntas acima de forma bastante<br />
objetiva: quando comparado às demais artes, o cinema<br />
tem a grande vantagem de evocar a realidade, ou seja, de re-<br />
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produzir fielmente, por meio da retenção da fotografia, os objetos<br />
da vida real. Assim sendo, o cinema seria por excelência a<br />
linguagem artística da realidade.<br />
No entanto, estamos lidando com uma linguagem que<br />
se consolida por meio de uma experiência estética, por isso,<br />
apostar numa leitura realista não consiste, no nosso entender,<br />
numa boa chave de leitura. Aceitar a idéia de apreensão da realidade,<br />
tratando-se de uma linguagem que, mais explicitamente<br />
que qualquer outra, só existe na passagem, consiste numa negação<br />
do próprio cinema como campo epistemológico possível<br />
(e passível) de diferentes teorias – conforme pedia Deleuze.<br />
Sendo assim, que Real é esse que poderíamos pensar a<br />
partir do cinema?<br />
O recuo sugerido acima tem por preocupação nos desarmarmos<br />
o máximo possível dos conceitos já estabelecidos<br />
acerca do assunto antes de escolhermos o que chamamos de<br />
chave de leitura. Seria o momento, talvez, de fazermos como<br />
Barthes em Ao sair do cinema (texto em que ele reflete a partir<br />
do próprio gesto de ir ao cinema e assistir a filmes), ou apenas<br />
de aceitarmos a idéia de que o cinema enquanto efeito estético<br />
só existe lá, na sala escura enquanto os rolos projetam as imagens<br />
na tela grande. Todo o artesanato empenhado na composição<br />
de um filme, que ocupa predominantemente o conteúdo da<br />
crítica cinematográfica, é meticulosamente arquitetado para<br />
que no momento da projeção algo aconteça. E é somente nesse<br />
acontecimento que podemos ser tocados por algo que nos pareça<br />
Real. Diferente de artes como a do pintor, a do escritor e até<br />
mesmo a do músico, o cineasta não é surpreendido no momento<br />
do acontecimento, pois ele trabalhou minuciosamente na<br />
criação daquele efeito, ao passo que, mesmo munido de toda a<br />
técnica, o pintor, o escritor e o músico podem muito bem ser<br />
surpreendidos enquanto compõem, seja numa pincelada inesperada,<br />
num verso sem ritmo que tenha imposto sua própria música,<br />
ou na execução de uma nota expressiva. Isso evidencia o<br />
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quanto o trabalho do artista que propõe significações pela linguagem<br />
cinematográfica se distancia do trabalho dos demais<br />
artistas. Não estamos aqui ignorando o trabalho de Antonioni,<br />
que se deixava surpreender com a atuação dos corpos para depois<br />
partir para as montagens cinematográficas, estamos apenas<br />
afirmando que essa surpresa não toma o artista (cineasta) no<br />
momento da exibição do filme, no nosso entender, momento<br />
em que o filme se faz arte. Eis mais um motivo para abdicarmos,<br />
o quanto possível, da crítica pré-concebida.<br />
Não sejamos, porém, negligentes a ponto de propormos<br />
uma falta de atenção à crítica cinematográfica, pois, já mencionamos<br />
acima, encontramos em Bazin, Balázs, Eisenstein, Metz<br />
e outros uma reflexão crítica que ultrapassa as descrições do<br />
artesanato. E mesmo não pensando nesses autores não poderíamos,<br />
da mesma maneira, acusar Pudovkin e outros de reduzirem<br />
a crítica à descrição, pois, como já antecipamos, a busca<br />
por um Real que não se pode apreender está mais próxima da<br />
descrição (como é) que da definição (o que é).<br />
Mas não adiemos mais a escolha da chave de leitura<br />
deste ensaio (numa linguagem científica, provavelmente, estaríamos<br />
falando de metodologia). Comprometamo-nos de uma<br />
vez com o Real no cinema.<br />
Alain Badiou propôs em seu Pequeno Manual de Inestética<br />
que a verdade da arte deve ser buscada não a partir de<br />
conceitos pressupostos de Real e de arte, mas sim a partir do<br />
próprio objeto artístico. E podemos pensar que se há uma verdade<br />
a ser buscada, a sugestão feita por Badiou pode bem servir<br />
ao que chamamos de chave de leitura. Porém, essa postura,<br />
sugerida pelo crítico inesteta, diante da experiência artística,<br />
não se trata, bem sabemos, de novidade pelo menos desde a<br />
crítica literária pós-estruturalista: haja vista textos como A morte<br />
do autor e Da obra ao texto, de Roland Barthes, bem como<br />
todo o argumento acerca da escritura (Derrida) e do discurso<br />
(Foucault). Porém, a referência mais explícita de Badiou nos<br />
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parece ser Deleuze, com suas inspirações leibnizianas, pois o<br />
exercício de buscar a verdade na arte nos leva a acreditar na<br />
imanência e no desdobramento da obra. Enfim, o autor do Pequeno<br />
Manual de Inestética tentou com seu livro organizar<br />
idéias (leia-se aqui vários ensaios e vários autores publicados)<br />
tributárias de uma mesma necessidade de se livrar do subjetivismo<br />
que tende a reduzir as reflexões estéticas a uma função<br />
intencional e consciente.<br />
Não desmereçamos, entretanto, o trabalho de Alain Badiou<br />
por não se revelar um tratado absolutamente original, pois<br />
seu texto viabiliza entradas efetivas para uma crítica que reconheça<br />
a necessidade de reavaliação conceitual. Um dos capítulos<br />
do Manual está dedicado a exercitar a postura inesteta nos<br />
limites do cinema. Porém, nossa entrada nessa discussão (Real/arte)<br />
não se dará por meio dessa intervenção do autor junto<br />
ao cinema, muito embora este último também seja nosso foco.<br />
Interessa-nos como chave de leitura um outro capítulo desse<br />
Manual, em que somos levados a Fernando Pessoa.<br />
O recurso, porém, a esse capítulo do livro de Badiou<br />
não entrelaça nosso argumento às noções de antiplatonismo<br />
dissertadas pelo filósofo acerca da obra de Fernando Pessoa<br />
(nessa empreitada Álvaro de Campos parece atender mais ao<br />
argumento de Badiou, dado que esse é o heterônimo com um<br />
projeto metafísico mais explícito), mas se deve apenas ao fato<br />
de reconhecermos em outro heterônimo de Pessoa a nossa chave<br />
de leitura: Alberto Caeiro:<br />
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la<br />
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.<br />
Por isso quando num dia de calor<br />
Me sinto triste de gozá-lo tanto,<br />
E me deito ao comprido na erva,<br />
E fecho os olhos quentes,<br />
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,<br />
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Sei a verdade e sou feliz.<br />
(Trecho do poema IX de O Guardador de Rebanhos)<br />
Assim nos postaremos diante dessa questão que nos faz<br />
ir atrás de uma verdade na arte: abdicando de todo um aparato<br />
prévio que nos determine os passos a serem dados no concernente<br />
à realidade e ao cinema. Deitemos o corpo no cinema.<br />
Desarmemo-nos.<br />
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!)<br />
Isso exige um estudo profundo,<br />
Uma aprendizagem de desaprender<br />
E uma seqüestração na liberdade daquele convento<br />
De que os poetas dizem que as estrelas são as<br />
freiras eternas<br />
E as flores as penitentes convictas de um só dia,<br />
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas<br />
Nem as flores senão flores,<br />
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.<br />
(Trecho do poema XXIV de O Guardador de Rebanhos)<br />
2 - real em minúscula<br />
Definida a maneira como pensaremos realidade no<br />
cinema, a saber, uma maneira que já dispensa o real<br />
grafado com letra maiúscula (que nos remeteria<br />
mais ao Realismo), voltemos a uma das discussões<br />
iniciais deste artigo: filósofos ou críticos cinematográficos?<br />
Deleuze já falava, na série de entrevistas mencionada<br />
anteriormente, que críticos cinematográficos como Bazin já<br />
assumem posturas filosóficas ante as experimentações práticas<br />
e teóricas com/no cinema, ou seja, uma escolha não exclui a<br />
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outra. E nessa esteira onde críticos cinematográficos e filósofos<br />
podem ser entrelaçados para uma melhor compreensão dos<br />
limites do cinema (leia-se epistemologia), aceitemos o conselho<br />
que Ismail Xavier nos faz na Introdução da primeira parte<br />
d’A Experiência do Cinema. Neste texto introdutório o autor<br />
fala numa possível aproximação entre Hugo Munsterberg e<br />
Merleau-Ponty, referindo-se aos ensaios do psicólogo alemão<br />
editados em A Experiência do Cinema e à conferência O Cinema<br />
e a Nova Psicologia, do fenomenólogo da percepção. Entretanto,<br />
nosso interesse pela aproximação apontada por Xavier<br />
provém de outro ensaio de Merleau-Ponty, intitulado O Olho e<br />
o Espírito, com os mesmos ensaios de Munsterberg sugeridos<br />
na introdução citada.<br />
Os motivos? Vejamos alguns.<br />
Para a chave de leitura que estabelecemos como norteadora<br />
de nosso argumento <strong>jul</strong>gamos mais coerente confiar num<br />
filósofo que se encarrega de pensar a filosofia a partir da arte e<br />
não submeter a segunda às necessidades de comprovação da<br />
primeira; sem dizer que estamos nos referindo ao filósofo que<br />
estabelece o corpo como fundação das significações do mundo<br />
(à maneira de Merleau-Ponty, acreditamos no corpo próprio<br />
como elemento determinante da percepção das experiências<br />
vividas diante de uma tela de cinema. Portanto, se há uma verdade<br />
a ser alcançada, isso somente ocorrerá por meio do corpo,<br />
no caso, do espectador). Além disso, acreditamos que em O<br />
Olho e o Espírito Merleau-Ponty problematiza as questões ambicionadas<br />
por Alain Badiou num nível mais complexo tratando-se<br />
de experiências estéticas. Enfim, no nosso entendimento,<br />
o filósofo das (in)visibilidades se presta melhor do que o inesteta<br />
ao que Caeiro chamou de “aprendizagem de desaprender”.<br />
Do outro lado (ou do mesmo?), não se deitando ao<br />
comprido na erva, como fez Caeiro, mas acomodando-se bem<br />
na poltrona do cinema, como sugeriu Barthes, Musnterberg foi<br />
preciso na observação das atenções exigidas para se experien-<br />
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ciar a arte na tela de cinema. Contrastando as atenções exigidas<br />
no cinema com as do teatro, o psicólogo alemão foi perspicaz<br />
ao nos fazer entender (já em 1916, numa época em que Saussure<br />
ainda não era lido e o cinema ainda não falava) que a arte<br />
feita para a tela impõe muito mais os movimentos de atenção<br />
do espectador do que se fazia no teatro. Ou seja, evidenciava-se<br />
uma diferença de linguagem que passaria de forma definitiva<br />
pela reconfiguração do espectador enquanto percebedor da obra.<br />
Aos tipos de atenção Munsterberg chamou voluntária e<br />
involuntária: por atenção voluntária se entende aquela em que<br />
o espectador determina seu foco de atenção (um espectador de<br />
teatro com binóculos, por exemplo); por atenção involuntária<br />
se entende aquela que atrai o espectador para determinado elemento<br />
sem que o mesmo premedite seu foco de atenção para<br />
aquele elemento. Assim, o cinema estaria mais carregado de<br />
atenção involuntária que o teatro. Além dessas definições propostas<br />
pelo cineasta-psicólogo, outros elementos de seus ensaios<br />
justificam sua escolha para o nosso argumento: é o caso da<br />
profundidade e do movimento. Embora o autor tenha preferido<br />
não problematizar essas questões tal como fez com as atenções<br />
voluntária e involuntária, essas duas noções interessam muito<br />
ao nosso ensaio, dado que em O Olho e o Espírito Merleau-<br />
Ponty lapida seus conceitos de visível e invisível a partir justamente<br />
da noção de profundidade e, em certa medida, a partir<br />
também da noção de movimento.<br />
Pois bem, justificadas as presenças de um e de outro<br />
pensemos no cinema.<br />
Dissemos acima que o cinema numa perspectiva realista<br />
seria por excelência a linguagem artística da realidade. Mas<br />
reformulemos esse pensamento: o cinema, com todo seu potencial<br />
de demonstração do movimento, está, em certa medida,<br />
condenado à realidade. O movimento na imagem cinematográfica<br />
não é sugerido ou elaborado de tal maneira que exija do<br />
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percebedor a continuidade da obra. Por um fenômeno físico e<br />
incontornável a geração de <strong>dez</strong>enas de fotos por segundos impõe<br />
ao espectador de cinema a percepção do movimento. Esse<br />
mesmo movimento só será obtido em pintura, ou em escultura,<br />
devido a um deslocamento de quem percebe a obra; pensemos<br />
em obras como Noiva de Duchamp e Homem andando de Rodin.<br />
Para a primeira, percebe-se que aquela espécie de armadura<br />
se articula propondo um deslocamento; “está aqui e<br />
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está ali, magicamente, mas não vai daqui até ali” (Merleau-<br />
Ponty, 2004, p. 41).<br />
Para a escultura de Rodin, percebemos o movimento ao<br />
nos anteciparmos a própria visibilidade que o bronze propõe, o<br />
movimento está exatamente no corte da passada, na paralisação<br />
do movimento, o movimento está no que não está posto, está<br />
no instante seguinte, está na frente do homem de bronze. Por<br />
isso acreditamos que o esforço da pintura e da escultura para<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 104
evocar as coisas do mundo que nos envolve e que percebemos<br />
(talvez seja essa a busca, talvez seja esse o real) não deveria<br />
perturbar tanto o autor de cinema.<br />
Porém, seria bastante reducionista da nossa parte tomarmos<br />
o movimento como único problema a ser resolvido<br />
para evocar a realidade, pois se assim fosse o teatro já estaria<br />
muito adiantado em relação à pintura e à escultura. Bem sabemos<br />
que não se trata apenas de trazer à tona o movimento, mas,<br />
principalmente, de suscitar a partir dele percepções comparadas<br />
às da realidade. Assim sendo, Meliès se atira às folhinhas que<br />
aparecem ao fundo no filme em que o bebê come papinha, imaginando<br />
que aquela evidência de realidade (folhas que balançam<br />
num galho de árvore) seria o potencial que o cinema<br />
teria para explorar. No entanto, aquela imagem que afetou<br />
Meliès provocando nele a sensação de realidade só existiu no<br />
momento da percepção. No instante seguinte, aquele em que o<br />
futuro pai do cinema tenta estabelecer com as folhinhas que<br />
balançam alguma relação de contigüidade do real, a sua percepção<br />
já afetou seu corpo e aquele instante de realidade já foi<br />
para a memória (se quiséssemos falar com Bergson), ou para as<br />
experiências do corpo habitual (se preferíssemos Merleau-<br />
Ponty), ou, simplesmente, foi para algo que já é passado.<br />
A realidade escapou a Meliès como tem escapado sempre<br />
à arte e às linguagens. Entretanto, no cinema, esse constante<br />
escapar da realidade ganha potencia devido à linguagem cinematográfica<br />
que está fadada ao movimento. Mais que em<br />
qualquer outra linguagem artística o real no cinema está somente<br />
na passagem, pois o próprio cinema só fala algo na passagem.<br />
Esse real que passa e que escapa deixa rastros que por<br />
se tratarem de marcas de algo que já passou não têm o poder de<br />
evocar a realidade. Então o que fazemos nada mais é do que<br />
nos apropriarmos dessas marcas que evocaram, no instante da<br />
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percepção, algo a que possamos chamar de real, para a partir<br />
delas descrevermos quiçá o efeito de real.<br />
Nos agarramos às marcas em busca do efeito como<br />
quem se agarra ao visível em busca do invisível. Sugerimos,<br />
assim, que se entenda aquilo que Munsterberg chamou de profundidade<br />
e movimento de acordo com as noções que Merleau-<br />
Ponty chamou de visível e invisível. Isso nos permitiria dizer<br />
que a profundidade – seja na vida ou na tentativa de evocação<br />
da vida pela arte – é o que viabiliza a percepção do movimento<br />
e sua contigüidade, e estes por sua vez alimentam no espectador<br />
o constante desejo de tocar a profundidade, de tocar o que<br />
está além. O que buscamos ao percebermos uma imagem visível<br />
não é o que está contido entre os traços que a limitam, mas<br />
justamente o que está ao fundo dessa contigüidade. Partimos<br />
em busca do invisível e nosso caminho rumo a esse objetivo<br />
vai sendo lapidado pelos contornos precisos daquilo que nos<br />
separa, a saber, o visível. Contrário do que se poderia pensar, o<br />
visível não se opõe ao invisível, ele apenas alimenta em nós o<br />
desejo de alcançarmos essa profundidade inalcançável. O visível<br />
inaugura o invisível da mesma forma que a folhinha balançando<br />
na árvore inaugurou o real para Meliès, porém, no instante<br />
mesmo em que o cineasta esticou a mão para alcançá-la<br />
no galho e sentir sua aspereza o vento já a havia soprado pra<br />
outro lugar.<br />
Assim sendo, tudo que poderíamos afirmar acerca do<br />
real no cinema é que o poder dessa linguagem está na diferente<br />
forma de tentar buscar essa folhinha que insiste em voar pelas<br />
visibilidades possíveis, inaugurando a cada instante diferentes<br />
realidades.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. Tradução:<br />
Marina Appenzeller, São Paulo: Estação Liberdade, 2002.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 106
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação<br />
do corpo com o espírito. Tradução: Paulo Neves, São Paulo:<br />
Martins Fontes, 1999.<br />
DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. Tradução: Eloísa de Araújo<br />
Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 2005.<br />
_______. Conversações. Tradução: Peter Pál Pelbart, Rio de<br />
Janeiro: Ed 34, 1992.<br />
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. Tradução:<br />
Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira, São<br />
Paulo: Cosac & Naif, 2004.<br />
_______. O Visível e o Invisível. Tradução: José Artur Gianotti<br />
e Armando Mora d’Oliveira, São Paulo: Perspectiva, 2005.<br />
PESSOA, Fernando; CAEIRO, Alberto. O Guardador de rebanhos:<br />
seguido de o pastor amoroso. São Paulo: princípios,<br />
1997.<br />
XAVIER, Ismail. (org). A experiência do Cinema: antologia.<br />
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.<br />
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CIBERMÃE: UMA VIAGEM TECNOLÓGICA ATRA-<br />
VÉS DA LITERATURA<br />
Danielle de Paiva Lopes<br />
USP<br />
RESUMO:<br />
Este trabalho propõe discutir as contribuições tecnológicas para a literatura<br />
e as relações intersemióticas entre letra e imagem no livro juvenil Cibermãe,<br />
de Alexandre Jardin. São abordadas algumas questões como linguagem<br />
verbal e não-verbal e analfabetismo visual. O impacto da imagem para<br />
o texto literário é investigado no livro, já que facilita alguns conceitos da<br />
área tecnológica para o leitor. A fundamentação teórica parte de alguns<br />
estudiosos como Donis A. Dondis, Lúcia Pimentel Góes e Lúcia Santaella.<br />
PALAVRAS CHAVE:<br />
Literatura para a juventude, Cibernética, semiótica.<br />
1 - O Ciberespaço<br />
O livro de Alexandre Jardin é uma viagem pelos clássicos,<br />
tendo a tecnologia como suporte. Antes de discutir a viagem<br />
das personagens, vale ressaltar a importância que o espaço<br />
virtual ganha em Cibermãe. Ao analisar o próprio título, observamos<br />
que esse neologismo (ciber + mãe) carrega em si tanto a<br />
questão principal do enredo (o desaparecimento da mãe) quanto<br />
a presença de um espaço virtual. O prefixo ciber- é oriundo<br />
da palavra Cibernética (ing. Cybernetcs), “a ciência que estuda<br />
as comunicações e o sistema de controle nos organismos<br />
vivos e também nas máquinas” (FERREIRA, 2006: 233). Em<br />
outras palavras, trata, por exemplo, da relação entre o cérebro e<br />
qualquer dispositivo eletrônico, que substitua membros humanos.<br />
Há dois espaços no livro: o virtual e o não-virtual. Neste,<br />
há uma família, composta pelo viúvo Arthur e os três filhos:<br />
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Lili, Felix e César. O pai resolve armazenar na memória do<br />
computador tudo o que guarda da esposa falecida (Lúcia): fotos,<br />
vídeos, fitas. Ao acreditar fielmente no poder de armazenamento<br />
da máquina, ele desfaz-se do material, já que este vinha<br />
se deteriorando pelo tempo. Segundo um vizinho e amigo,<br />
Zeig, as fotos não sofreriam quaisquer danos no novo espaço,<br />
por este ser atemporal.<br />
No espaço virtual, ou Ciberespaço, as personagens entram<br />
num universo novo. Nele, elas livram-se do peso carnal,<br />
penetrando na máquina através do cérebro. Dessa forma, coexistem<br />
junto aos outros seres virtuais. Nesse novo espaço tudo<br />
é possível, inclusive o armazenamento da memória da mãe. No<br />
entanto, as informações não estão totalmente protegidas, já<br />
que, não há totalidade sem fissuras (SANTAELLA, 2004:<br />
126). É, assim como o organismo vivo, passível de falhas, devendo<br />
o ser humano atentar para isso.<br />
Ao entrarem literalmente na máquina, as crianças enfrentam<br />
obstáculos próprios desse mundo, como um hacker.<br />
Jones, uma espécie de cibervilão, apaixonado pela falecida<br />
Lúcia, rouba os arquivos da mãe das crianças. Por conta disso,<br />
essas personagens embarcam numa viagem extraordinária, enfrentando<br />
uma importante prova: a de coexistirem nos dois<br />
universos do livro, para resgatarem a memória da mãe.<br />
Não se deseja criticar esses dois espaços, mas mostrar,<br />
com na Cibernética, a existência de uma comunhão entre o<br />
virtual e o não-virtual, pois um contribui de forma a auxiliar o<br />
outro na narrativa. Na verdade, isso já é possível, por exemplo,<br />
através da internet. A máquina troca informações entre as pessoas,<br />
que estão do outro lado da tela do computador. Nota-se a<br />
comunicação entre o organismo vivo (o pai e o vizinho Zeig) e<br />
a máquina (o computador Ulisses), para reaver essas informações<br />
perdidas.<br />
No livro, nota-se a reunião, num único espaço, de milhares<br />
de informações, como ocorre, por exemplo, com Cd’s ou<br />
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Dvd’s atualmente. Em relação a Cibermãe, o pai Arthur, na<br />
ilusão de que o Ciberespaço guarda informações de forma<br />
segura, desfaz-se de todos os materiais da mulher. De fato, a<br />
máquina encadeia o problema, perdendo os arquivos. No entanto,<br />
no final da história, ela ajuda as crianças a retornarem ao<br />
mundo não-virtual. Assim, a proposta do livro é mostrar a utilidade<br />
do espaço virtual para o ser humano, desde que caiba ao<br />
homem a consciência de a máquina ser algo falível.<br />
2 - A linguagem das representações verbais e não-verbais:<br />
imagens em Cibermãe<br />
Como estudar o que nós já conhecemos? A resposta<br />
a essa pergunta encontra-se numa definição<br />
do alfabetismo visual como algo além do simples<br />
enxergar, como algo além da simples criação de<br />
mensagens visuais. O alfabetismo visual implica<br />
compreensão, e meios de ver e compartilhar o<br />
significado a um certo nível de universalidade.<br />
(DONIS, 1997: 227)<br />
Cibermãe é um espaço híbrido. A reunião de representações<br />
verbais e não-verbais levam o leitor a interagir com a<br />
história, de forma inteiramente nova, fazendo referência aos<br />
clássicos da literatura universal. Segundo Maria Auxiliadora<br />
Baseio, há<br />
seguramente a explosão de imagens que solicitam<br />
a atenção do leitor em Cibermãe, cores, formas,<br />
aparatos virtuais, intertextos diversos, podem tirar<br />
o leitor de dentro de si mesmo, mas, por outro lado,<br />
também podem levar ao verdadeiro encontro,<br />
ao tecer com os múltiplos fios, a rede de seu autoconhecimento,<br />
retirando do caos uma nova ordem.<br />
(BASEIO, 2000: 99)<br />
Desde os primórdios, o homem serve-se dos utensílios<br />
para suas necessidades, não apenas vitais, mas também artísti-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 110
cas. As diversas formas de expressão (verbal ou não-verbal)<br />
mostram o aflorar da sensibilidade, em relação a tudo o que<br />
rodeia o homem.<br />
O homem vem adquirindo essa nova forma de perceber<br />
o meio em que vive com a imagem e a escultura. Através delas,<br />
os seres humanos criam diferentes formas de manifestação. É,<br />
pois, um exemplo de olhar, distante de paradigmas impostos,<br />
aberto ao novo, ao movimento de criar em ação. “A informação<br />
visual é o mais antigo registro da história humana” (DONDIS,<br />
1997: 7) e é através do olhar que a juventude desperta para a<br />
leitura das imagens nos livros. Atualmente, a linguagem verbal<br />
é constantemente enriquecida com contribuições dos meios<br />
eletrônicos. Dessa forma, apre(e)nde-se a realidade, em que os<br />
seres humanos vivem, de modo novo, como a (re)descoberta do<br />
ato de ler.<br />
Em Cibermãe, texto e imagem podem ser grandes aliados<br />
da aprendizagem tecnológica das crianças e (por que não?)<br />
dos adultos. Através do olhar, o leitor percebe o grande panorama<br />
de signos, como imagens fotográficas e os textosimagem,<br />
compondo uma imensa explosão híbrida de ícones.<br />
A linguagem visual é um processo multidimensional e<br />
simultâneo. Numa grande velocidade, a visão transmite ao cérebro<br />
milhares de informações, num contato direto com o exterior,<br />
sem mediações. No entanto, a eficácia da comunicação<br />
visual só pode ser alcançada através de estudo, e não por meio<br />
da intuição e do acaso. De acordo com a imagologia, a imagem<br />
não é mais o que o olhar apreende, mas qualquer segmento da<br />
vida.<br />
Para haver aprendizado com a linguagem visual, os seres<br />
humanos devem considerar inúmeros componentes, como<br />
“o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a cor, a textura, a<br />
dimensão, a escala e o movimento” (DONDIS, 1997: 51). Ler<br />
requer considerar o global. Todavia, hoje, nota-se a dificuldade,<br />
sentida pelos alunos, na leitura de uma imagem, embora a<br />
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linguagem visual esteja presente em toda parte. Segundo Lúcia<br />
Pimentel Góes, falta-lhes o “olhar de descoberta” (GÓES,<br />
2003: 19), a capacidade de apre(e)nder e devolver as informações<br />
de uma forma inteiramente nova.<br />
Segundo a autora, a leitura é “operação que faz surgir<br />
sentidos no texto, sendo o leitor co-produtor ou co-autor do<br />
texto, visto ser ele quem concretiza esses sentidos e deles se<br />
apossa” (GÓES, 2003: 20). Em Cibermãe, saber ler, percebendo<br />
todas as nuances verbais e não-verbais, faz brotar infinitos<br />
significados no livro, concretizados pelo próprio leitor na prática<br />
do “olhar de descoberta”.<br />
Neste trabalho, vamos discutir o fato de que tanto a linguagem<br />
verbal quanto a não-verbal serem consideradas imagens,<br />
com as quais podemos construir informações. Para isso, o<br />
tema Analfabetismo Visual é uma questão fundamental para<br />
este estudo.<br />
Do latim tardio analphabētus (CUNHA, 2005: 43), a<br />
palavra analfabetismo significa muitas vezes alguém que não<br />
domina a modalidade de leitura e escrita da língua. Nesse trabalho,<br />
a palavra analfabetizado ganha uma roupagem nova,<br />
referindo-se tanto ao verbal quanto ao visual. Assim, o analfabeto<br />
visual é o indivíduo que não domina a leitura de texto e de<br />
imagem.<br />
O alfabetismo significa participação, e transforma<br />
todos que o alcançaram em observadores menos<br />
passivos.(...) o alfabetismo visual (...) eleva nossa<br />
capacidade de avaliar acima da aceitação (ou recusa)<br />
meramente intuitiva de uma manifestação<br />
visual qualquer.<br />
(DONIS, 1997: 231)<br />
Segundo Dondis, cabe à alfabetização visual “construir<br />
um sistema básico para aprendizagem, a identificação, a criação<br />
e a compreensão de mensagens visuais que sejam acessíveis<br />
a todas as pessoas” (DONIS, 1997: 231), de forma nãohierárquica.<br />
Ler uma imagem não significa apenas passar os<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 112
olhos nas figuras, mas compreender alguns pormenores, sugeridos<br />
pelo pintor ou pelo fotógrafo.<br />
O primeiro capítulo do livro Sintaxe da Linguagem Visual<br />
começa com a pergunta: “Quantos de nós vêem?” (Op.cit:<br />
5). Na verdade, muitos são os jovens que lêem, mas poucos são<br />
os que compreendem a leitura. O mesmo processo ocorre com<br />
a imagem. Em Cibermãe, a imagem não aparece como mero<br />
auxiliador da linguagem verbal. Elas falam por si através de<br />
mecanismos próprios para transmitir a mensagem, pois “ver<br />
passou a significar compreender” (DONDIS, 1997: 13):<br />
Expandir nossa capacidade de ver significa expandir<br />
nossa capacidade de entender uma mensagem<br />
visual. A visão envolve algo mais do que o<br />
mero fato de ver ou de que algo nos seja mostrado.<br />
É parte integrante do processo de comunicação,<br />
que abrange todas as considerações relativas<br />
às belas-artes, às artes aplicadas, à expressão subjetiva<br />
e à resposta a um objetivo funcional.<br />
(DONIS, 1997: 13)<br />
Em geral, nos textos impressos, a linguagem verbal adquire<br />
importância maior do que a não-verbal. Já “nos modernos<br />
meios de comunicação acontece exatamente o contrário. O visual<br />
predomina, o verbal tem a função de acréscimo”<br />
(DONDIS, 1997: 12). No entanto, esse pensamento não considera<br />
o sentido de ambos serem polissêmicos e percorrerem<br />
caminhos de descoberta e espaços de escolha. Dessa forma,<br />
percebe-se que a intertextualidade está presente tanto nos meios<br />
eletrônicos quanto no papel impresso.<br />
Em Cibermãe, as linguagens (verbal ou não-verbal) não<br />
se sobrepõem uma a outra. Ambas trabalham para compôr<br />
harmoniosamente cada página do livro. A representação das<br />
palavras transmite uma informação, assim como as imagens<br />
fotográficas. Ambas significam muito mais do que se complementarem,<br />
pois são a própria mensagem.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 113<br />
Segundo Dondis, entendemos a imagem através da representação,<br />
do simbolismo e da abstração. A representação de<br />
uma imagem seria o ícone, formada por elementos básicos elementares.<br />
Já “a abstração voltada para o simbolismo requer<br />
uma simplificação radical, ou seja, a redução do detalhe visual<br />
a seu mínimo irredutível. Para ser eficaz, um símbolo não deve<br />
ser apenas visto e reconhecido: deve ser lembrado, e mesmo<br />
reproduzido”. (DONDIS, 1997: 91)<br />
Para Santaella, o mundo das imagens abrange as representações<br />
visuais e mentais. A primeira refere-se aos “desenhos<br />
pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas,<br />
televisivas, holo e infográficas” (SANTAELLA, 2005: 15). Já<br />
na segunda, “as imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações,<br />
esquemas, modelos ou em geral como representações<br />
mentais”. (SANTAELLA, 2005: 15)<br />
Em Cibermãe, o autor brinca com essas duas formas de<br />
representação. A primeira explora a parte gráfica das palavras,<br />
com negrito, itálico, cores e tamanhos. Além do lado gráfico,<br />
há o predomínio da fotografia no livro, que possui “uma característica<br />
que não compartilha com nenhuma arte visual—a credibilidade”<br />
(DONDIS, 1997: 216), ainda que não consiga reproduzir<br />
a ampla visão periférica do olho.<br />
A fotografia é dominada pelo elemento visual em<br />
que interagem o tom e a cor, ainda que dela participem<br />
a forma, a textura e a escala. (...) Em conjunto,<br />
os elementos visuais essenciais da fotografia<br />
reproduzem o ambiente e qualquer coisa, com<br />
enorme poder de persuasão.<br />
(DONIS, 1997: 215)<br />
A forma com que o livro foi produzido remete-nos a<br />
uma espécie de fotonovela cibernética. Considerada como um<br />
subgênero da literatura, a fotonovela é produzida para consumo<br />
rápido, sem maior preocupação artística. Segundo Isabel Galucho,<br />
“têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos,<br />
morais e sociais concordantes com o sistema de valores da ide-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 114
ologia dominante através da integração da mulher na sociedade<br />
urbana” (GALUCHO). Seus planos e enquadramentos são quase<br />
sempre retirados do cinema. No entanto, Cibermãe foge à<br />
regra, pois sua produção é notadamente brilhante, tanto pelo<br />
cuidado com a linguagem verbal quanto com a não-verbal, como<br />
já foi comentado anteriormente.<br />
Segundo Santaella, a segunda forma de representação é<br />
a mental. Além das diversas formas de se trabalhar o visual no<br />
livro, Cibermãe também discute imagens mentais da nossa infância,<br />
rememoradas através do enredo, questões a serem tratadas<br />
no próximo item. Dessa forma, o livro propõe ao leitor o<br />
exercício da alfabetização, tanto verbal quanto não-verbal, no<br />
aprofundamento da leitura.<br />
3 - A viagem pela literatura<br />
Embora os antigos contos de fadas de nossa infância<br />
continuem a pronunciar suas palavras mágicas,<br />
é fato que a forma como são contados tende<br />
a mudar, refletindo o contexto cultural em que se<br />
inserem.<br />
(BASIEO, 2000: 89)<br />
Os clássicos da literatura universal desde sempre são retomados<br />
através de novas formas narrativas. Em todas as narrativas,<br />
o fascínio, sentido pelo leitor, permanece. Em Cibermãe,<br />
podemos perceber vários contos, inseridos na história. O livro é<br />
uma grande viagem pela tecnologia, pela arte e pela literatura.<br />
Através do recurso das fotografia, a história remete-nos a vários<br />
clássicos da literatura universal, como A bela adormecida,<br />
Odisséia, Viagem ao centro da terra e Alice no país das maravilhas.<br />
A proposta desse trabalho é apontar, de forma sucinta,<br />
algumas viagens por esses clássicos, pois não é nosso intuito<br />
esgotar possibilidades de análise de Cibermãe.<br />
Neste livro, rememora-se a história da menina Alice na<br />
cena em que as personagens escapam dos anti-vírus pelo bura-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 115<br />
co da pia: “Só deu tempo de agarrarem a imagem do bichinho e<br />
fugirem pelo buraco do cano; já se ouviam os gritos dos antivírus”<br />
(JARDIN, 1998: 27), no livro, algumas pontes entre o<br />
mundo virtual e o não-virtual, como os “propulsores virtuais”<br />
ou a cena em que descem pelo modem do computador.<br />
César, Lili e félix se preparavam para a grande<br />
viagem descendo pelo velho modem de Ulisses, o<br />
aparelho que permite a circulação de informações<br />
por meio dos fios telefônicos. O momento favorecia<br />
o sentimentalismo. Ao despedir-se dos visitantes<br />
inesperados, Ulisses sentiu um certo tremor<br />
na voz que o surpreendeu. Mas as crianças nem<br />
tiveram tempo de mostrar sua emoção.<br />
(JARDIM, 1998: 58)<br />
O ambiente em que os três penetraram remete-nos à história<br />
de Júlio Verne, escritor clássico de ficção científica. Assim<br />
como em seu livro Viagem ao centro da terra, três personagens<br />
exploram um novo ambiente de forma extraordinária.<br />
Em Cibermãe, contudo, essa viagem ocorre no centro do computador,<br />
Ulisses: “No fim do túnel, o trio descobriu de repente<br />
o coração da máquina, uma enorme depressão na qual palpitava<br />
a alma de Ulisses” (JARDIM, 1998: 26). O texto recebe a contribuição<br />
da fotografia, que retrata todo aparato de uma máquina<br />
antiga.<br />
Bruscamente, a temperatura começou a subir.<br />
O ar ficou carregado de vapor e fumaça. Assustados,<br />
eles correram para o avesso da tela, procurando<br />
sair da máquina, cuja temperatura continuava<br />
subindo.<br />
(JARDIM, 1998: 28)<br />
No livro de Alexandre Jardin, uma da partes do computador<br />
é marcada pela imagem de um círculo coicidentemente<br />
no centro do livro. Assemelha-se à uma roda ou olho gigante,<br />
que irradia luz. Na verdade, é uma parte fundamental do computador<br />
Ulisses, para conectar-se à rede Internet.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 116
Ulisses resfriou ligeiramente seus chips e contou<br />
aos meninos, surpresos, que os computadores conectados<br />
à rede internet fazem parte da grande<br />
comunidade eletrônica do ciberespaço, onde<br />
vigora uma nova fraternidade universal. Quando<br />
um modesto micro precisa ampliar sua capacidade<br />
ou pedir socorro a um programa especial, os<br />
mais potentes, em Paris, Tóquio ou Chicago, não<br />
deixam de ceder sua potência disponível ou sua<br />
competência!<br />
(JARDIM, 1998: 31)<br />
As personagens seguem à procura pela mãe, agora no<br />
Ciberespaço. Com a digitalização, as crianças entram num site,<br />
onde recuperam “a sensação de si próprios, o raciocínio, assim<br />
como a faculdade de sentir. Nada havia mudado”.(JARDIM,<br />
1998: 31) O reencontro com a imagem da mãe está cada vez<br />
mais próximo. Nessa altura da narrativa, o livro rememora a<br />
Bela adormecida através da imagem de Lúcia. A imagem da<br />
mãe é guardada por Jones, sobre uma espécie de “sarcófago<br />
eletrônico” (JARDIM, 1998: 56). Lúcia, então, transfigurou-se<br />
virtualmente na princesa e os filhos, no príncipe encantado.<br />
Nesse momento, a aparição da mãe eliminou a sensação de<br />
solidão e desamparo, sentida pelas crianças. O beijo, em Cibermãe,<br />
é retratado pela voz, que tem a finalidade de despertar<br />
Lúcia da hibernação.<br />
Ao som de sua voz, o arquivo se abriu e a imagem<br />
virtual da mãe apareceu. Lili perdeu o fôlego.<br />
César ficou boquiaberto. Felix mais ainda.<br />
Lúcia sorriu para eles. Certos momentos no ciberespaço<br />
se parecem com a vida real – e aquele pareceu<br />
o mais real de todos.<br />
(JARDIM, 1998: 58)<br />
Outra história a que o livro faz referência é Odisséia,<br />
pois também ambas retratam uma viagem extraordinária, em<br />
que os heróis deparam-se com muitos obstáculos. Em Cibermãe,<br />
deseja-se reencontrar Lúcia, transfiguração da Penélope<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 117<br />
homérica. Assim, as crianças buscam a imagem da mulher e<br />
seu lado materno, acolhedor, de onde provém cor e vitalidade.<br />
O reencontro das crianças com a mãe ao final da narrativa significa<br />
o retorno à infância, ao início de tudo.<br />
As crianças então perceberam que nunca mais estariam<br />
sozinhas, que sempre seriam ouvidas,<br />
mesmo que não falassem. Era possível, naquele<br />
universo virtual, voltar à vida. Nada neles ficaria<br />
morto. Ao encontrar de novo a mãe, era a própria<br />
infância que estavam reencontrando.<br />
(JARDIM, 1998: 58)<br />
Benedito Nunes considera a criança como um retorno<br />
ao passado, às origens, mas também como “um prenúncio de<br />
um novo ser” (JARDIN, 1998: 58). As personagens, em Cibermãe,<br />
percorrem caminhos que as impulsionam a novas descobertas.<br />
Por outro lado, esse caminhar também significa retornar<br />
à literatura clássica, pois há cenas no livro que se<br />
assemelham muito a algumas situações ocorridas nos contos<br />
clássicos, como a questão da Mãe-Bela adormecida ou a viagem<br />
fantástica.<br />
Essa consciência só é possível, porque o leitor possui<br />
representações mentais de alguns contos, por permearem desde<br />
sempre nosso imaginário. Isso é positivo na medida em que<br />
lança novas formas de desenvolver a potencialidade das personagens<br />
e do próprio leitor.<br />
Conclusão<br />
A proposta de Cibermãe é viajar pela literatura, rememorando<br />
lugares, acontecimentos, também presentes nos clássicos<br />
da literatura universal. Para tanto, utiliza a tecnologia<br />
tanto como um avanço para a sociedade, quanto um progresso<br />
que muitas vezes significa retorno, ao que é primordial.<br />
No entanto, tal retorno não deve ser entendido de forma<br />
nostálgica, mas como semente para novas possibilidades de<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 118
crescimento das personagens na história. O Ciberespaço, então,<br />
serve para fortalecer as relações entre seres virtuais e nãovirtuais,<br />
de forma positiva, desde que o internauta tome as<br />
devidas precauções, já que no espaço virtual, as informações<br />
não estão totalmente seguras.<br />
Cibermãe permite que a literatura seja um meio de viajar<br />
pelas diversas formas de representação verbal e não-verbal,<br />
contribuindo, assim, para a alfabetização verbal e visual. Esses<br />
dois espaços co-existem de forma harmônica no livro, trabalhando<br />
o exercício de um novo olhar.<br />
Esse exercício mostra a necessidade de o leitor buscar o<br />
“olhar de descoberta”. A cada nova percepção visual dos signos<br />
e suas combinações, apre(e)ndemos melhor o mundo. Além<br />
disso, é possível desfrutar o prazer de rememorar alguns<br />
clássicos da literatura universal. Dessa forma, Cibermãe é um<br />
convite ao exercício diferentes formas de leitura de imagens<br />
verbais e não-verbais, fazendo com que o leitor “quebre o que<br />
lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde o ler circula”.<br />
(LLANSOL, 1990: 25)<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BASEIO, Maria Auxiliadora Fontana. No vaivém,da lançadeira:<br />
o retorno do sagrado na literatura infantil/juvenil. São<br />
Paulo, USP, 2000. (Dissertação de Mestrado)<br />
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimolígico Nova<br />
fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,<br />
2005.<br />
DONDIS, A Donis. Sintaxe da linguagem visual. [Trad. Jefferson<br />
Luiz Camargo]. São Paulo, Martins Fontes, 1997.<br />
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. MiniAurélio: o dicionário<br />
da língua portuguesa. Curitiba, Positivo, 2006.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 119<br />
GALUCHO, Isabel. Fotonovela.> (último acesso,<br />
30/05/20<strong>07</strong>)<br />
GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de descoberta: proposta analítica<br />
de livros que concentram várias linguagens. São Paulo,<br />
Paulinas, 2003.<br />
JARDIN, Alexandre. Cibermãe: uma viagem extraordinária<br />
dentro do computador. Trad. Estela dos santos Abreu. São Paulo,<br />
Moderna, 1998.<br />
LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa,<br />
ed. Rolim, 1990.<br />
NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo, Perspectiva,<br />
1976.<br />
SANTAELLA, Lúcia. A percepção: uma teoria semiótica. São<br />
Paulo, Experimento, 1993.<br />
_______. Navegar no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2004<br />
_______ & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica,<br />
mídia. São Paulo, Iluminuras, 2005.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 120
FONOLOGIA E LETRAMENTO:<br />
SUPORTE SEMIÓTICO PARA O ENSINO<br />
DA LÍNGUA MATERNA<br />
Darcilia Simões<br />
UERJ / PUC-SP<br />
Maria Suzett Biembengut Santade<br />
FIMI / FMPFM / UERJ<br />
Aira Suzana Ribeiro Martins<br />
UERJ / CPII<br />
RESUMO:<br />
O texto objetiva-se na pesquisa metodológica voltada para o letramento e<br />
subsidiada por aportes fonológicos de base mattoseana combinados com a<br />
teoria da iconicidade peirceana. A intenção do estudo é subsidiar os professores<br />
alfabetizadores no acompanhamento do processo de aquisição da<br />
escrita, tendo em conta as interferências da fala e sua variação na construção<br />
de um padrão gráfico anterior e intermediário ao domínio da ortografia.<br />
O componente semiótico opera sobre fonemas e grafemas, tirando proveito<br />
das qualidades sonoras e visuais, respectivamente, e deduzindo as regras<br />
produzidas experimentalmente pelos aprendizes na tentativa de grafar sua<br />
fala. Nessa linha de raciocínio, busca-se reconhecer na escrita a competência<br />
fono-ortográfica dos aprendizes de modo a conduzir o processo de ensino-aprendizagem<br />
de forma imagética mais espontânea.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Letramento, fonemas, grafemas, iconicidade.<br />
0 – Preliminares<br />
Aproveitamos o ensejo do II Seminário Internacional de<br />
Fonologia (UFRGS, 20<strong>07</strong>) para tratar das dificuldades no processo<br />
de aquisição da escrita têm sido objeto de muitas e valiosas<br />
pesquisas. Contudo, supomos que em função do nãoinvestimento<br />
na atualização docente, as práticas didáticas nesse<br />
âmbito apresentam problemas variados. Ora surgem modismos<br />
desavisados de condução do processo de ensino-aprendizagem<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 121<br />
que confundem teorias psicológicas com metodologia de ensino<br />
ora entrega-se o processo de aquisição à própria sorte, entre<br />
outras “saídas” extravagantes.<br />
Em nossa prática, temos buscado observar as estratégias<br />
espontâneas dos aprendizes e interpretá-las à luz da descrição<br />
fonológica proposta por Câmara (1953) e da teoria da iconicidade<br />
(C. S. Peirce -1839-1914).<br />
A partir do suporte mattosiano, discutimos a estruturação<br />
silábica em confronto com as soluções práticas produzidas<br />
pelos falantes-aprendizes (mesmo os não-escolarizados) na fala<br />
e na escrita. Com base na iconicidade, observamos a construção<br />
de hipóteses fono-ortográficas que orientam a escrita dos<br />
principiantes.<br />
Como nosso trabalho sempre se realizou por meio do<br />
contato direto com os aprendizes, pudemos acompanhar a evolução<br />
de suas conclusões fono-ortográficas na construção da<br />
escrita, bem como suas conseqüências na leitura oral.<br />
Preocupamo-nos com o aperfeiçoamento da metodologia<br />
de ensino da língua materna como primeira língua (L1) e<br />
temos podido ministrar cursos em níveis diversos (desde a atualização<br />
docente até disciplinas regulares na pós-graduação lato<br />
e stricto sensu em Língua Portuguesa). Nesses cursos, buscamos<br />
discutir as dificuldades experimentadas pelos docentes e,<br />
com eles, decifrar a fala e a escrita dos aprendizes, com vistas a<br />
assessorar-lhes o processo de letramento (aqui entendido como<br />
aquisição do código escrito para fins de leitura e expressão sem<br />
compromisso imediato com o uso padrão). Em outras palavras,<br />
propomos uma metodologia que entende que o letramento básico<br />
deve considerar a variação lingüística para poder interpretar<br />
mais adequadamente as realizações fono-ortográficas dos<br />
neo-letrantes (como denominamos os aprendizes em fase de<br />
aquisição da escrita).<br />
Nessa perspectiva, vimos analisando produções escritas<br />
de neo-letrantes com uma intenção precipuamente pedagógica<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 122
e voltada para a minimização de problemas oriundos da política<br />
do certo&errado pautada na exclusão das variedades nãopadrão<br />
durante o processo de letramento. Entendemos que a<br />
semiótica pode operar como lente para o entendimento das diferenças<br />
diatópicas e diastráticas projetadas nas formas gráficas<br />
construídas pelos neo-letrantes. Isso porque tais formas seriam<br />
interpretadas como índices ou ícones do contexto original do<br />
falante e orientariam o entendimento da forma, suas deduções<br />
hipotéticas e a condução do processo de ensino-aprendizagem<br />
dirigida à aquisição da ortografia do uso padrão sem negar ou<br />
desprezar formas gráficas possíveis em usos não-padrão ou<br />
encontráveis em textos literários.<br />
1 – Desenvolvimento<br />
Neste texto discutiremos algumas impropriedades de<br />
escrita encontradas em produções textuais de estudantes de 6º<br />
ano (antiga 5ª série) do Ensino Fundamental. Além das marcas<br />
de oralidade, identificamos outros aspectos a serem destacados,<br />
próprios do processo de aquisição da escrita, como problemas<br />
de juntura intervocabular e segmentação de palavras, modificação<br />
morfológica dos vocábulos, supressão, troca e uso indevido<br />
de letras.<br />
É importante destacar que, de um modo geral, não observamos<br />
distorções do ponto de vista da coesão e da coerência<br />
textual. Podemos dizer que os textos são ricos em informatividade,<br />
além de serem bastante criativos.<br />
Nosso cuidado, nessa fase de escolaridade, está em eliminar<br />
os problemas fono-ortográficos sem afastar a criança da<br />
vivência da linguagem. Para isso, é importante evitar propostas<br />
de tarefas artificiais e alienadoras, buscando sempre a realização<br />
de atividades contextualizadas, compatíveis com o desenvolvimento<br />
cognitivo do aluno e com as motivações próprias<br />
da faixa etária em que se encontram.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 123<br />
De acordo com Labov (in Neves, 2006), a criança no<br />
processo de aquisição da leitura e da escrita, apesar de já ter o<br />
domínio de uma gramática básica, não tem a capacidade de<br />
variar de estilo, ou seja, ela reproduz o registro de seu grupo<br />
sem qualquer tipo de avaliação social das características dessa<br />
fala. A escola, por sua vez, tenta promover uma mudança de<br />
dialetos, conforme observa Neves (2006), fixando-se nos “erros”<br />
desse registro estigmatizado. Segundo Simões (2006), a<br />
conquista das formas gráficas é algo paulatino e decorrente,<br />
logo, espera-se que a escola assegure ao aluno o domínio satisfatório<br />
da variedade padrão da língua; sem, contudo, deixar de<br />
estimular sua produção lingüística, criando situações que o<br />
levem a expressar-se tanto na oralidade como na escrita de<br />
forma livre e criativa.<br />
Os textos elaborados pelos estudantes, sujeitos a aperfeiçoamento<br />
por meio da reescritura, devem ser respeitados e<br />
valorizados. Dessa forma, eles se sentirão motivados a executar<br />
as tarefas de forma espontânea. Essas produções textuais dos<br />
estudantes oferecem valiosas informações o professor. A partir<br />
de um levantamento das dificuldades ortográficas presentes nos<br />
escritos discentes, é possível elaborar estratégias metodológicas<br />
que visem à resolução dos problemas de forma objetiva e<br />
satisfatória, preferencialmente desenvolvidas com atitude científica:<br />
observando, discutindo, testando e validando ou não o<br />
modelo experimentado.<br />
As primeiras produções textuais do grupo de estudantes<br />
aos quais nos referimos neste artigo nos forneceram importantes<br />
informações sobre suas reais necessidades no plano da escrita.<br />
Veremos nas próximas seções do texto os principais problemas<br />
fono-ortográficos detectados nos textos analisados.<br />
1.1 - Juntura intervocabular<br />
Destacamos os principais exemplos de juntura intervocabular<br />
nas produções textuais observadas:<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 124
Vejamos:<br />
porenquanto porcausa<br />
porexemplo derrepente<br />
agente oque<br />
mecinto<br />
Esses exemplos são vestígios da escrita em cordão, em<br />
que o escrevente transpõe para o espaço gráfico a ausência de<br />
silêncio na cadência frasal, ligando palavras. Vemos vocábulos<br />
fonológicos formados a partir de preposições, pronomes e artigo,<br />
sem força expiratória no contexto em que se encontravam,<br />
unidos a substantivos, pronome e verbo. Como podemos ver, o<br />
aprendiz, nessa etapa do letramento, esporadicamente, ainda<br />
transpõe para a escrita o vocábulo fonológico, subordinando os<br />
espaços em branco às pausas entre as palavras e não entre os<br />
vocábulos formais.<br />
Existe também a possibilidade de o aluno ter a noção<br />
equivocada de que essas construções constituam um único vocábulo<br />
formal. É importante que o professor reserve um período<br />
de sua aula para dar esclarecimentos acerca do problema,<br />
seguido de atividades, tais como isolar os vocábulos e mostrar<br />
aos alunos pequenos textos em que tais palavras apareçam em<br />
outros sintagmas (ou ambientes fonológicos distintos daqueles<br />
com que lidaram).<br />
Ilustrando:<br />
porenquanto por<br />
enquanto<br />
derrepente de<br />
repente<br />
agente a<br />
gente<br />
Oque o<br />
que<br />
Mecinto me<br />
sinto<br />
cinto<br />
O menino não saiu por estar chovendo<br />
O menino não saiu enquanto não<br />
parou de chover.<br />
De manhã ele estava em casa.<br />
Saiu em um repente.<br />
A casa é de Pedro.<br />
Pedro é gente.<br />
O menino não saiu por estar chovendo<br />
O menino que saiu é o Pedro.<br />
Ele me chamou.<br />
Sinto fome.<br />
O cinto está largo.<br />
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O exercício de derivar outras palavras a partir dos vocábulos<br />
lexicais também pode ser uma excelente estratégia para<br />
os estudantes fixarem a imagem dos signos.<br />
Exemplificando:<br />
TerraA Terreno Terraço Aterro<br />
Pedra Pedrada Pedreiro Empedrar<br />
Bola Bolada Bolinha Embolado<br />
Introduzir outros nomes entre o vocábulo átono e o tônico<br />
ou fazer o deslocamento de um dos elementos da expressão<br />
podem ser também estratégias de levar o aluno a perceber a<br />
existência de dois vocábulos formais e a necessidade de separá-<br />
los por meio de espaços em branco:<br />
Sinto-me fraco.<br />
Eu me acidentei e sinto do-<br />
Levou um tombo por ler<br />
jornal enquanto caminhava.<br />
res.<br />
A boa gente nordestina é Ele gosta de ouvir repente.<br />
hospitaleira.<br />
Aprendi a admirá-lo por este O povo luta por esta impor-<br />
exemplo de honestidade. tante causa.<br />
A leitura dos verbetes relativos às palavras que compõem<br />
a locução adverbial pode ser oportuna para que se conheçam<br />
os elementos formadores das expressões.<br />
Exemplificando:<br />
Derrepente: sintagma formado pela preposição de<br />
e pelo substantivo repente.<br />
de. prep. 1. relaciona palavras por subordinação e<br />
expressa os sentidos: 1.1.procedência, ponto de<br />
partida, origem (chegou de Minas Gerais) (...)<br />
1.2. lugar onde está o agente da ação ( do alto avista-se<br />
a cidade) (...)<br />
(Houaiss, 2001: 913)<br />
repente. s. m. 1. ação repentina, dito repentino e<br />
impensado 2 qualquer improviso ou verso improvisado<br />
2.1B sextilha 3. MÚS. canto (melodia com<br />
versos improvisados. De r. de súbito; repentinamente<br />
2 B US. Para indicar possibilidade ou dú-<br />
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vida; talvez (não gosto disso, mas de r., até aceito).<br />
ter bons r. dizer bons improvisos; ter ditos de<br />
espírito. ter repentes ter ímpetos de mau gênio;<br />
ser inconsiderado no momento. ETIM lat. Repente,<br />
de súbito, de repente.<br />
(Houaiss, 2001: 2430)<br />
É muito importante que o aprendiz tenha a noção de<br />
“palavra” como unidade escrita para o estabelecimento da ortografia.<br />
Acreditamos que a identificação das palavras seja o<br />
primeiro passo para se trabalhar com ortografia.<br />
O professor poderá pedir a reescritura do trecho em que<br />
se verifica uma impropriedade ortográfica como derrepente,<br />
após a leitura com os alunos dos verbetes de e repente, extraídos<br />
do dicionário. Essa leitura será oportuna para a formação<br />
de palavras cognatas do substantivo repente. É ainda interessante<br />
que o aluno observe a palavra em questão contextualizada.<br />
Vejamos um pequeno texto no qual foi empregada uma<br />
palavra cognata de repente:<br />
“(...) Na semana que antecede a Missa do Vaqueiro,<br />
o município de Serrita vive um clima de euforia<br />
e festa folclórica, com vaquejada banda de pífaros,<br />
cantorias, repentistas, aboiadores, além da<br />
Feira de Artesanato. (...)<br />
(Jornal da Feira, março de 20<strong>07</strong>: 2) (grifo nosso)<br />
A elaboração, junto com a turma, de pequenos textos<br />
com o objetivo de empregar as outras expressões que aparecem<br />
no verbete, contextualizadas, como o excerto do periódico, no<br />
qual se observa o emprego da palavra repentista, derivado de<br />
repente (ter repentes, de repente, ter bons repentes, repente,<br />
repentinamente...) é também uma tarefa interessante. Dessa<br />
forma, o aluno ver-se-á obrigado a fazer uso das expressões<br />
trabalhadas em aula, em situações contextualizadas, como a<br />
criação de um diálogo ou uma pequena cena dramatizada.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 127<br />
1.2 - Segmentação das palavras<br />
Foram observadas as seguintes ocorrências de segmentação<br />
de palavras nas redações em análise:<br />
Com migo Falar-mos<br />
a-miga Des-de<br />
De acordo com Cagliari (2002), a segmentação vocabular<br />
incorreta pode ocorrer devido à acentuação tônica das palavras.<br />
Nos primeiros exemplos, com migo, falar-mos, vemos<br />
que o escrevente teve a exata noção dos seus constituintes.<br />
Temos notícias de que, num determinado estágio da língua (cf.<br />
Coutinho, 1974) a preposição com se juntou ao pronome pessoal<br />
migo (com+ migo= comigo). Em falar-mos foi destacada a<br />
desinência número-pessoal da forma verbal infinitiva, onde se<br />
encontra a sílaba tônica da palavra.<br />
A forma a-miga pode estar associada a com migo, em<br />
que migo /miga seriam formas livres que se formariam as construções<br />
a-miga e com migo. A construção des-de pode ser justificada<br />
pelo fato de a vogal da sílaba inicial ser alongada na<br />
emissão verbal. Encontramos uma variação da preposição desde,<br />
a forma des-do, em que o artigo determinante do próximo<br />
substantivo se contraiu com a vogal final da preposição. Essas<br />
regularidades poderiam justificar essas formas encontradas nos<br />
textos, já que a formação de regras é uma tendência natural da<br />
criança.<br />
Essas construções devem ser evidenciadas e trabalhadas<br />
com discussões, e reescritura, pois é importante que a imagem<br />
gráfica das formas fixadas pela escrita ortográfica seja contextualizada<br />
em um texto coerente e coeso.<br />
1.3 - Alteração morfológica<br />
Depreendemos também nos textos analisados alterações<br />
morfológicas das seguintes palavras:<br />
Maitá<br />
(Humaitá)<br />
Doque Lobo<br />
(Haddock Lobo)<br />
Tá<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 128
Percebe-se que tais construções se dão pelo fato de retratarem<br />
a variedade dialetal do escrevente. Logo, é necessário<br />
trabalhar não só a escrita como também a oralidade m sala de<br />
aula. Percebemos também que os dois substantivos são nomes<br />
próprios estranhos ao universo lingüístico do aluno, pois são<br />
topônimos de regiões fora de sua área de movimentação.<br />
1.4 - As transcrições fonéticas<br />
Foram destacados também do grupo das redações analisadas<br />
exemplos de pseudo-transcrições fonéticas.<br />
Vejamos:<br />
fasem familha<br />
salcicha repitir<br />
muintos praneta<br />
pásqua framengo<br />
pessoua enrrita<br />
A pseudo-transcrição fonética foi o tipo de inadequação<br />
de escrita mais encontrada nas produções textuais analisadas.<br />
Tal ocorrência se deve ao fato de o escrevente tentar representar<br />
graficamente a própria fala.<br />
De acordo com Ferreiro e Teberosky (1985), essas incorreções<br />
nos textos mostram um estágio de raciocínio avançado<br />
em relação à escrita. Segundo essas autoras, ao chegar ao<br />
estágio da escrita alfabética, depois de ter passado pelos estágios<br />
da escrita pré-silábica e silábica, a criança percebe que a<br />
escrita tem relações com a fala. A partir de então, ela começa a<br />
tentar descobrir quais são as regras do sistema, representando<br />
os fonemas. No entanto, essa tentativa é feita de modo que o<br />
signo grafado reproduza fielmente o fonema emitido, fazendo<br />
uma correspondência biunívoca, o que nem sempre acontece, já<br />
que oralidade e escrita são dois sistemas semióticos distintos. A<br />
escrita é marcada por regras próprias, muitas vezes, desconhecidas<br />
por aprendizes nas fases intermediárias do letramento.<br />
Os exemplos destacados mostram que os estudantes fazem<br />
o reconhecimento dos fonemas, no entanto, por desconhe-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 129<br />
cerem as convenções ortográficas, resolvem sua dificuldade<br />
estabelecendo que cada letra é símbolo de um som e cada som<br />
é simbolizado por um signo.<br />
As convenções ortográficas que uniformizam, na escrita,<br />
as diferenças observadas na fala são gradualmente incorporadas<br />
pelo estudante ao longo do processo de aquisição da escrita,<br />
num trabalho sistemático, planejado pelo professor.<br />
Diversos estudiosos das questões de alfabetização, entre<br />
eles Nunes (1992), Cagliari (1995), Alvarenga (1981), acreditam<br />
que a consciência fonológica ou o conhecimento dos sons<br />
da língua são itens de grande importância para a correção das<br />
impropriedades ortográficas. Porém, apenas esse conhecimento<br />
não é suficiente para uma grafia satisfatória. É necessário que<br />
os alunos conheçam os motivos dos erros na grafia, conhecendo<br />
os princípios do sistema ortográfico. Como as crianças têm<br />
a tendência a formular regras, poderíamos aproveitar essa característica<br />
natural e, de forma gradativa, levá-los a formular as<br />
regras existentes no sistema ortográfico por meio da observação<br />
das regularidades.<br />
Tomemos um tipo de incorreção como exemplo. As<br />
formas praneta, e Framengo, são variantes desprestigiadas,<br />
refletindo o grupo social a que o usuário da língua pertence.<br />
Conforme observa Simões (2006), o rotacismo que ocorreu<br />
nesse ambiente, isto é, a evolução na fala dos grupos pl- e fl-<br />
para pr- e fr-, é uma tendência fonética natural da língua, já que<br />
na passagem do latim vulgar falado para o português houve<br />
esse fenômeno nos grupos consonânticos bl- cl- fl- gl-. De acordo<br />
com Mollica (1998), essas formas são estigmatizadas<br />
pela variante de prestígio. Logo, caso o indivíduo queira ascender<br />
socialmente, deve eliminar esse estilo de fala e de escrita,<br />
e à escola será delegada a tarefa de promover a correção em<br />
favor da variante de prestígio. Com base nisso, o estudante não<br />
pode desconhecer o fato de que a ocorrência de tais variantes<br />
em sua fala e escrita será um dos motivos pelos quais pode não<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 130
se dar a sua mobilização na escala social. A mudança de registro<br />
tanto na fala como na escrita é, portanto, necessária.<br />
É preciso, para que a mudança ocorra, que o professor<br />
trabalhe não só com a escrita dos alunos como também com a<br />
expressão oral, pois se não houver mudanças na fala, a modalidade<br />
escrita da língua continuará apresentando inadequações.<br />
Leitura em voz alta, elaboração de esquetes para dramatização<br />
com a inclusão e destaque das expressões cujas imagens gráficas<br />
necessitem de fixação, uso de dicionário e ainda material<br />
didático elaborado pelo professor podem são recursos bastante<br />
proveitosos.<br />
2 - Considerações finais<br />
Os estudos sociolingüísticos trouxeram uma imensa<br />
contribuição para que se opere, por parte da escola, uma mudança<br />
no que tange ao tratamento dispensado às variantes dialetais.<br />
Não é mais possível sustentar a ingênua postura de considerar<br />
a homogeneidade da língua, legitimando uma variante<br />
lingüística, no caso, a variante de prestígio. A variação e a mudança<br />
são vistas como propriedades constitutivas da linguagem.<br />
Nas séries iniciais do letramento, é natural que a criança,<br />
na atividade de produção de textos escritos, elabore seu<br />
texto do mesmo modo como elabora um texto oral. Como sabemos,<br />
é dever da escola gerenciar a aquisição da escrita na<br />
variante padrão da língua, porém vemos que essa passagem é<br />
feita de modo traumático, pois toda a bagagem cultural que a<br />
criança traz para a escola é desconsiderada e esta se vê obrigada<br />
a se expressar numa variante lingüística estranha à sua vivência.<br />
Assim, a instituição escolar contribui para tirar toda a<br />
espontaneidade do aprendiz levando-a a escrever de uma forma<br />
artificial e alienante.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 131<br />
Não podemos negar que uma das tarefas da escola é levar<br />
o aluno a ter o domínio da língua na variedade-padrão, tanto<br />
na escrita quando na fala. Entretanto, muitas vezes há uma<br />
grande distância entre o estilo lingüístico com o qual se trabalha<br />
na escola e o estilo que o aluno traz de seu meio social.<br />
Acreditamos que o conhecimento dos aspectos fônicos<br />
da língua seja de extrema importância para o professor trabalhar<br />
com as primeiras séries do ensino fundamental. Esse suporte<br />
dará subsídios ao professor não só de compreender os<br />
“erros” cometidos pelos alunos, como também será de grande<br />
auxílio na busca de soluções dos problemas de ortografia verificados<br />
nas produções textuais.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
ALVARENGA. Leitura e escrita: dois processos distintos.<br />
Educação em Revista. Belo Horizonte: Faculdade de Educação<br />
da UFMG, 1981.<br />
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. São Paulo:<br />
Moderna, 2002.<br />
_______ Leitura e escrita na vida e na escola. In Revista Leitura.<br />
Teoria e Prática,1995.<br />
CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Para o estudo da fonêmica<br />
portuguesa. Rio de Janeiro: Simões, 1953. / Rio de Janeiro:<br />
Padrão, 1977.<br />
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de<br />
Janeiro: Livraria Acadêmica, 1974.<br />
FERREIRO, Emília e TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da<br />
língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.<br />
HOUAISS, Antônio. Dicionário de língua portuguesa. Rio de<br />
Janeiro: Editora Objetiva, 2001.<br />
MOLLICA, Maria Cecília. Influência da fala na alfabetização.<br />
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 132
NUNES, T. In: ALENCAR, E. Novas contribuições da psicologia<br />
aos processos Leitura e escrita:processos em desenvolvimento.<br />
de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez.<br />
NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática ensinar na<br />
escola? São Paulo: Contexto, 2006.<br />
SIMÕES, Darcilia. Considerações sobre a fala e a escrita.<br />
Fonologia em nova chave. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 133<br />
SEMIÓTICA:<br />
EXTRAPOLANDO AS FRONTEIRAS DO LÉXICO<br />
Dulce Helena Pontes-Ribeiro<br />
UERJ<br />
RESUMO:<br />
O estudo em tela aborda a aquisição e o emprego apropriado do léxico, sob<br />
o viés da semiótica. Para tanto, investigou-se a origem da semiótica e o<br />
dinamismo do léxico, relacionando-os à noção de texto. Está fundamentado<br />
em teóricos do léxico e da semiótica, tais como Baccega (1995), Basílio<br />
(2000), Barcellos da Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin<br />
(2005; 20<strong>07</strong>), Santaella (1983), Simões (2002; 20<strong>07</strong>), entre outros. O artigo<br />
aponta para a vantagem de um entendimento do léxico através das lentes da<br />
semiótica, uma vez que, por ser uma ciência inter-, multi- e transdisciplinar,<br />
favorece o diálogo e o intercâmbio conceitual entre os muitos saberes.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Signo, palavra, discurso, texto.<br />
1 – Introdução<br />
O homem é um ser de linguagem. Agindo nela e por ela,<br />
constitui-se como sujeito na ação do discurso em determinado<br />
tempo e espaço, e se forma na prática social e histórica. A<br />
palavra estabelece uma distinção entre o homem e os brutos.<br />
Pela palavra o homem manifesta seus pensamentos e produz<br />
efeitos de sentido. O cerne do entendimento da realidade, das<br />
ações, é, portanto, a palavra. Esta, no discurso, é vida: cria,<br />
recria e desfaz mundos. Imerso na realidade, o homem é levado<br />
a buscar, no fascínio da palavra, o alento às inquietações e necessidades<br />
básicas de expressão.<br />
A palavra torna-se, então, utensílio necessário para o estar-no-mundo.<br />
Parte-se, aqui, do princípio de que os usuários<br />
de uma língua natural precisam ser cônscios das possibilidades<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 134
dos variados registros. Por essa razão, é de se esperar que o<br />
ensino de língua materna capacite os alunos a se apropriarem<br />
do léxico como um recurso facilitador do projeto de dizer.<br />
Acredita-se que o usuário da língua, muitas vezes, não<br />
realiza de forma eficaz o papel de monitor das combinações e<br />
seleções lexicais, impossibilitando a si próprio atingir com plenitude<br />
o nível de produtividade lexical na justa medida de seu<br />
intento comunicativo. Seu discurso deixa de ser instrumento de<br />
interação, tornando-se obstáculo no jogo comunicativo que se<br />
trava entre locutor / interlocutor.<br />
Há, decerto, urgência de entendimento das várias etapas<br />
do trânsito entre o pensamento e a expressão. Nesse sentido,<br />
torna-se premente a busca de possíveis respostas para o problema:<br />
em que medida a semiótica peirceana contribui para<br />
facilitar a aquisição e a melhor seleção do léxico, a fim de tornar<br />
mais eficaz a expressão comunicativa?<br />
Tal indagação aponta para o seguinte objetivo geral:<br />
compreender a relevância da leitura semiótica para o perscrutar<br />
dos vários sentidos dos signos verbais em textos. No intuito de<br />
operacionalizar a diretriz mencionada, os objetivos específicos<br />
foram assim hierarquizados: investigar a origem da semiótica;<br />
apresentar o léxico e seu dinamismo; demonstrar a relação possível<br />
entre conceitos semióticos e o estudo do léxico nos textos.<br />
Entre os autores consultados, busca-se fundamentação,<br />
sobretudo, em Baccega (1995), Basílio (2000), Barcellos da<br />
Silva (2000), Biderman (1996), Bakhtin (2004), Fiorin (2005;<br />
20<strong>07</strong>), Santaella (1983), Simões (2002; 20<strong>07</strong>) entre outros,<br />
pelo estudo que realizam acerca do léxico e da semiótica, em<br />
diferentes níveis de profundidade e abordagem. Propõe-se uma<br />
reflexão sobre o enriquecimento das possibilidades lingüísticas<br />
dos utentes do léxico, de modo a aprimorar sua expressão a<br />
partir do entendimento do léxico em seu aspecto semiótico.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 135<br />
2 - Origens da Semiótica<br />
Semiótica (do grego semiotiké, a arte dos sinais) é a ciência<br />
dos signos e da semiose. Trata dos fenômenos culturais<br />
como sistemas sígnicos. Tem como foco a significação ou a<br />
representação do conceito, na natureza e na cultura. Seu objeto<br />
é qualquer sistema sígnico. Extrapola o estudo lingüístico que<br />
se atém ao signo da linguagem verbal, para abarcar artes visuais,<br />
fotografia, cinema, música, etc.<br />
Segundo Santaella (1983: 13),<br />
[...] a Semiótica é a ciência que tem por objeto de<br />
investigação todas as linguagens possíveis, ou seja,<br />
que tem por objetivo o exame dos modos de<br />
constituição de todo e qualquer fenômeno de produção<br />
de significação e de sentido.<br />
O primeiro ato de semiose (processo de engendramento<br />
de significado e sentido) remonta a Gênesis, 2; 19-20 (1997:<br />
50):<br />
Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos<br />
os animais dos campos, e todas as aves dos<br />
céus, levou-os ao homem, para ver como ele os<br />
havia de chamar; e todo o nome que os homens<br />
pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro<br />
nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a<br />
todas as aves dos céus e a todos os animais dos<br />
campos [...].<br />
Só no início do século XX, porém, a semiótica adquire<br />
o status de ciência, graças aos trabalhos paralelos de Ferdinand<br />
Saussure e de Charles Sanders Pierce.<br />
Na verdade,<br />
A semiótica propriamente dita teve seu início<br />
com filósofos como John Locke (1632-1704) que,<br />
no seu Essay on human understanding, de 1690,<br />
postulou uma "doutrina dos signos" com o nome<br />
de Semeiotiké, ou com Johann Heinrich Lambert<br />
(1728-1777) que, em 1764, foi um dos primeiros<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 136
filósofos a escrever um tratado específico intitulado<br />
Semiotik.<br />
(NÖTH: 1995: 18)<br />
Saussure foi o criador da designação Semiologia, estudo<br />
dos signos e das leis que os regem. Para ele, o signo é uma entidade<br />
psíquica de relação dicotômica: conceito (significado) e<br />
imagem acústica (significante). Para Santaella (1983: 58),<br />
“Signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto.<br />
Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de<br />
representar, substituir uma outra coisa diferente dele”.<br />
Na esteira de Saussure (Semiótica estruturalista ou Semiologia,<br />
cujo foco são os signos verbais), também estão Lévi-<br />
Strauss, Barthes e Greimas.<br />
A semiologia saussureana trata dos sinais na vida social,<br />
envolvendo tanto a psicologia social quanto a psicologia<br />
geral; distingue o mundo de representação do mundo real. Para<br />
o autor, o signo é sempre imotivado, salvo as onomatopéias,<br />
que são relativamente motivadas. Saussure aponta para dois<br />
tipos de relações de signo: sintagmáticas e paradigmáticas.<br />
a) sintagmáticas – eixo horizontal em que se dá a linguagem,<br />
a fala; relação que o signo mantém com o que está<br />
antes e com o que está depois dele; é o que está em presença.<br />
b) paradigmáticas – eixo vertical; são as relações associativas;<br />
é o que está em ausência. Na frase O pombo passeia<br />
na praça, associa-se o conceito de paz à palavra pombo.<br />
A semiologia, cujo objeto se restringe à fala e à linguagem<br />
humana, passa a ser uma parte da semiótica. Louis<br />
Hjelmslev torna mais complexos os conceitos de signos saussureanos.<br />
Chama de expressão o significante e de conteúdo o<br />
significado. Conteúdo e expressão remetem-se a dois níveis:<br />
forma e substância. É a denominada Semiótica russa ou Semiótica<br />
da cultura, que tem como foco linguagem, literatura e outros<br />
fenômenos culturais, como a comunicação não-verbal e<br />
visual, mito, religião. Nessa perspectiva, estão também Jakobson<br />
e Lotman.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 137<br />
Humberto Eco resume o conhecimento anterior de modo<br />
bem coerente e introduz outros conceitos aos tipos de signos,<br />
a saber:<br />
a) diagramas – representam relações abstratas: fórmulas<br />
lógicas, químicas...;<br />
b) emblemas – figuras a que se associam conceitos:<br />
pombo > paz;<br />
c) desenhos – correspondem aos ícones, às inferências<br />
naturais; são os índices de Peirce;<br />
d) equivalências abstratas – são os símbolos de Peirce.<br />
e) sinais – embora sejam indícios, baseiam-se em códigos.<br />
Exemplo: sinais de trânsito.<br />
Estudioso da Lógica e da Filosofia, Pierce (1839-1914)<br />
também se dedicou, dentre muitas áreas, ao estudo da Lingüística<br />
do ponto de vista de sua classificação entre as ciências psíquicas.<br />
Foi o fundador do Pragmatismo e da ciência dos signos,<br />
a Semiótica, ampliando as noções de signo e de linguagem.<br />
A Semiótica (teoria geral dos signos, dos modos de significar),<br />
para Peirce, é um sistema de lógica. A Fenomenologia<br />
(descrição e análise das experiências do homem) permeia a<br />
semiótica peirceana. O fenômeno é o que é percebido pelo homem,<br />
seja real ou não. Em sua teoria o homem significa tudo<br />
que o circunda, numa concepção triádica. Toda experiência é<br />
formada por três elementos: Qualidade, Relação (termo mais<br />
tarde substituído por Reação), Representação (termo mais tarde<br />
substituído por Mediação).<br />
Nesse estudo, Peirce apresenta as Categorias Universais<br />
do signo com a seguinte terminologia: Primeiridade, Secundidade,<br />
Terceiridade.<br />
a) Primeiridade – percepção, impressão, sentimento – o<br />
fenômeno se apresenta à consciência no seu estado puro, no<br />
instante presente; invisível. É tenro, frágil, original, espontâneo,<br />
livre, superficial, não-analisável. É o sentimento como<br />
qualidade, o que dá sabor, tom, matiz à imediaticidade da<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 138
consciência. Precede a síntese e a diferenciação, oculta-se ao<br />
pensamento. Não se pode tocá-la sem estragá-la. No caso de<br />
um texto, verbal ou não, é a primeira leitura que se faz.<br />
b) Secundidade – ação e reação – conflito da consciência<br />
com o fenômeno, na busca de entendê-lo. A Qualidade da<br />
Primeiridade está encarnada numa matéria que tem existência.<br />
A Secundidade é a corporificarão material, a arena da<br />
existência cotidiana. É a reação em relação ao mundo; é a ação<br />
dos fatos que resiste às fantasias e aos desejos; dá aspecto<br />
factual à existência. É a leitura realizada com compreensão,<br />
aprofundando-se no conteúdo. Em O gato pulou do telhado,<br />
visualiza-se gato / telhado e a ação de pular.<br />
c) Terceiridade – interpretação e generalização do fenômeno;<br />
representação. Da qualidade instintiva ao caráter factual,<br />
à intelegibilidade. É o pensamento em signos; é a representação<br />
da compreensão / interpretação do real. Extrapola o<br />
espectro da estrutura verbal. O homem conecta à frase a sua<br />
experiência de vida. No exemplo O gato pulou do telhado, pode-se<br />
associar gato a outros bichos que andam pelo telhado<br />
(pássaros, ratos...) ou a determinado gato que, por estar com a<br />
pata ferida, não pode pular do telhado; no sentido figurado, por<br />
exemplo, pode referir-se a um homem belo ou a um larápio<br />
despencando de um telhado. Enfim, associa-se à frase dada<br />
uma infindável série de elementos extratextuais.<br />
Para Peirce há três tipos de signos (ou representamen:<br />
que está em vez de, em lugar de; é a interpretação do objeto):<br />
ícone, índice, símbolo.<br />
a) ícone – pela relação de proximidade sensorial, motiva<br />
o signo (p. ex., desenho). Há ícone que também é símbolo,<br />
como é o caso de uma placa de sinal de trânsito: proibido buzinar<br />
(b). O traço em diagonal que corta o desenho é arbitrário,<br />
convencionou-se que aquele traço significa “proibido”.<br />
b) índice – mantém ligação física com o seu objeto; é<br />
parte representada de um todo, como os fios de cabelo de al-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 139<br />
guém. A fotografia, por sua vez, antes de ser ícone (representação<br />
do objeto, motivada), é índice (registro da luz em determinado<br />
momento).<br />
c) símbolo – relação convencionada, imotivada, arbitrária<br />
entre o signo e o objeto.<br />
A semiótica peirceana, dado o nível de generalidade,<br />
não é uma ciência aplicada nem especializada, ela se preocupa<br />
com a relação dos fenômenos para com a verdade.<br />
Há autores que afirmam que a Semiótica não se enquadra<br />
no campo da lingüística, já que ela se desenvolveu com<br />
trabalhos de não-lingüistas. Para esses, ela concentra-se na análise<br />
de domínios de mitos, fotografia, cinema..., isto é, em todo<br />
e qualquer tipo de texto que transmite significados. De fato, ela<br />
surge na área da medicina, com a sintomatologia; depois migra<br />
para os domínios da filosofia. Só mais tarde passa a ser de interesse<br />
das ciências de comunicação.<br />
Santaella (1983) estuda e avalia o texto sob a ótica pluridimensional<br />
peirceana, considerando a gramática (cerceada<br />
pelas fronteiras frase / período / texto) ineficiente para dar conta<br />
de um exame mais profundo de compreensão / interpretação<br />
que envolva a globalidade textual, capaz de extrapolar a natureza<br />
sígnica, transitando do eixo sintagmático para o paradigmático.<br />
Para Peirce, a Semiótica engloba todas as ciências, uma<br />
vez que ela é a ciência dos signos, portanto, geral. O autor apresenta<br />
uma análise dos signos nítida, compreensível, que se<br />
norteia sob uma tríade de relações cujos parâmetros possibilitam<br />
ao intérprete uma dada firmeza por se ater nas fronteiras da<br />
significância do signo.<br />
Em Dubois et alli (1998: 537), lê-se:<br />
A semiologia é a ciência das grandes unidades<br />
significantes do discurso: nota-se que tal definição<br />
da semiologia aproxima-a da semiótica, estudo<br />
das práticas significantes que tem como domínio<br />
o texto.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 140
Essas diferentes concepções de Semiótica ocorrem em<br />
função da delimitação do campo de estudo, da divergência de<br />
pressupostos.<br />
Em suma, a Semiótica é a ciência do signo, e como tal é<br />
imprescindível para o entendimento do léxico e de seu dinamismo,<br />
foco da seção seguinte.<br />
3 - O léxico e seu dinamismo<br />
Ao conjunto de palavras de uma língua, de um indivíduo<br />
ou de grupo, denomina-se léxico. De origem grega (lexicon),<br />
o léxico, em sentido lato, significa vocabulário. Quando<br />
se fala o léxico de uma língua, quer-se dizer todo o vocabulário<br />
de que ela se compõe, um conjunto virtual que, para ser posto<br />
em uso, depende de uma realidade exterior, não-lingüística.<br />
Cada léxico do conjunto lexical de uma língua é formado<br />
por morfema(s), unidade mínima formadora de significados.<br />
Os morfemas podem ser lexicais (lexemas) ou gramaticais<br />
(gramemas). Enquanto os últimos formam uma classe fechada,<br />
limitada, conservadora, por isso dificilmente passível de transformação,<br />
os primeiros (foco deste estudo) estão em constante<br />
renovação, na maioria das vezes, fazendo-se valer dos gramemas,<br />
mas sempre na língua em uso.<br />
O léxico é um conjunto ilimitado. Nele coexistem palavras<br />
de toda ordem: do cotidiano, das modalidades oral e escrita,<br />
empréstimos (estrangeirismos), neologismos, arcaísmos,<br />
jargões técnicos, vocabulários regionais, sociais, gírias, etc.<br />
Cada indivíduo conhece uma parte desse conjunto, e, da<br />
parte conhecida, emprega apenas uma fração. Assevera-se,<br />
inclusive, que o homem conta com um número mais ou menos<br />
limitado de elementos formadores de palavras em sua memória,<br />
mas consegue formar um infindável número de enunciados.<br />
Com efeito, tudo que o homem conhece tem nome, e esse no-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 141<br />
me está inserido no léxico, o qual abarca todo o saber lingüístico<br />
partilhado nas interações interlocutivas.<br />
A verdade é que a legitimação do que diz ou do<br />
que se deve dizer depende fundamentalmente da<br />
chancela da comunidade, do povo – povo que<br />
constrói nações, fortalece impérios, escreve e reescreve<br />
a sua história, vitaliza idiomas: povo que,<br />
por direito, justiça e fato, é o único, legítimo e<br />
verdadeiro “dono da língua”.<br />
(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 146)<br />
Conforme Carvalho (1989: 22), “o léxico de uma língua<br />
é como uma galáxia, vive em expansão permanente por incorporar<br />
as experiências pessoais e sociais da comunidade que a<br />
fala”. Na mesma perspectiva, Baccega (1995: 28) diz que<br />
[...] entre o homem e a realidade, entre o sujeito e<br />
o objeto, há uma mediação, há uma ‘cerca’, há<br />
uma ‘força’ que o impele a perceber essa realidade<br />
de um determinado modo. E a raiz dessa força<br />
é a palavra.<br />
Miranda; Santos; Lacerda (1995: 26) defendem que a<br />
palavra “[...] organiza o caos, dá-lhe contorno de cosmos. Como<br />
bumerangue, retorna a si, e tanto se carrega de energia a<br />
cada solicitação, quanto se desgasta com o excesso de uso”<br />
São as atividades humanas que, ao gerirem mudanças<br />
sociais, provocam transformações no léxico que atendam à sua<br />
emergência expressiva. Assim, a língua refaz-se incessantemente.<br />
Não é estática, mas processo eterno e ininterrupto, movimento,<br />
devir. É o dinamismo do uso corrente que engendra<br />
alterações semânticas responsáveis pela ampliação do léxico.<br />
Reconhecendo a mobilidade sócio-espacial do homem<br />
refletida no acervo lexical de uma comunidade lingüística, Aguilera<br />
(2002: 77) elucida:<br />
[...] a história interna das palavras não pode ser de<br />
maneira alguma isolada de sua história externa”.<br />
Bakhtin (2004: 41) complementa: “a palavra é<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 142
capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas,<br />
mais efêmeras das mudanças sociais.<br />
Embora a linguagem esteja sempre em trânsito, a mudança<br />
só é absorvida se for funcional e aceita pela comunidade<br />
lingüística. As alterações ocorrem com o uso quase automático<br />
dos léxicos. Os enunciados se formam no bojo das necessidades<br />
interativas do homem, gerando incontáveis alterações semânticas<br />
e, por conseguinte, semioses ilimitadas.<br />
A serviço da nomenclatura técnica, por exemplo, o grego<br />
e o latim (línguas mortas?) entram em cena. São lexias que,<br />
como a fênix renascida, ressurgem das cinzas, com aparência<br />
de novíssimas palavras. Concepção ratificada em Baccega<br />
(1995: 32-35), ao afirmar que “o novo é sempre resultado do<br />
que já era” e “[...] o novo está contido nas possibilidades do<br />
velho”.<br />
A dinâmica da renovação lexical é contínua num universo<br />
lingüística e semioticamente elaborado. Como a Semiótica<br />
é a teoria dos signos (dentre os quais está o léxico) e tem<br />
como domínio o texto, é pertinente uma relação entre Semiotica,<br />
léxico e texto.<br />
4 - Relação: Semiótica / léxico / textos<br />
A ciência semiótica – em sua corrente norteamericana<br />
– explicita os mecanismos de produção<br />
de textos, observando os signos que os constituem<br />
em três signos: a) o das qualidades, que tocam<br />
a sensibilidade e despertam a função cerebral;<br />
b) o das relações, que provocam reações<br />
sensitivas deflagradoras de associações entre experiências<br />
vividas e estratégias a desenvolver; c)<br />
o das generalizações, que possibilitam a construção<br />
de leis gerais aplicáveis em situações análogas<br />
futuras.<br />
(SIMÕES, 20<strong>07</strong>)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 143<br />
A Semiótica abre possibilidades para o estudo do léxico<br />
no texto, já que seu domínio é o texto como prática significante.<br />
A Semiótica se efetiva quando deflagra, o raciocínio, que é<br />
o depósito de vivências que esperam o apelo do indivíduo para<br />
virem à tona, seja em seu estado natural ou transformadas, de<br />
modo que possam resolver a questão instaurada. A Semiótica<br />
ensina o indivíduo a “ver” o que está no signo, no seu entorno e<br />
além de suas fronteiras por meio da assimilação e da compreensão.<br />
Orlandi (1996: 2), apud Simões (2002), afirma:<br />
Face a qualquer objeto simbólico, o Sujeito se encontra<br />
na necessidade de ‘dar’ sentido. E o que é<br />
dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios<br />
de significância (delimitar domínios), é tornar<br />
possíveis gestos de interpretação.<br />
A Semiótica pode prestar contribuições ao ensinoaprendizagem<br />
de língua, em especial no âmbito da leitura e da<br />
produção de textos. Essas atividades propiciam ao leitor ou<br />
produtor de texto sair de si para o diálogo numa dimensão para<br />
além da sintagmática e da paradigmática, posto que ele rompe<br />
com o texto, passa pelo contexto e atinge o mundo vivido e<br />
imaginado desse sujeito, onde é possível encontrar eco para<br />
suas expressões. E assim, lendo o mundo, ele compreende e<br />
produz textos com conhecimento de causa.<br />
Não há um abismo entre a atividade psíquica e a expressão,<br />
“[...] não há ruptura qualitativa de uma esfera da realidade<br />
à outra”. Há, sim, um código que permeia essa travessia.<br />
“[...] tudo que ocorre no organismo pode tornar-se material<br />
para a expressão da atividade psíquica, posto que tudo pode<br />
adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo”<br />
(BAKHTIN, 2004: 33).<br />
Há de se convir que cada elemento tem um valor distinto.<br />
A palavra, por exemplo, é um material semiótico privilegiado<br />
que se entrecruza com outros tantos elementos semióticos<br />
de valor secundário.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 144
Se não nos voltássemos para a função semiótica<br />
do discurso interior e para todos os outros movimentos<br />
expressivos que formam o psiquismo, nós<br />
estaríamos diante de um processo fisiológico puro,<br />
desenvolvendo-se nos limites do organismo<br />
individual.<br />
(BAKHTIN, 2004: 32)<br />
Como interlocutor, o homem se apropria, muitas vezes<br />
irrefletidamente, das palavras de outrem, que antes lhe eram<br />
desconhecidas, mas que no momento da apropriação algumas<br />
lhe pareceram naturais. E assim, da tensão entre o indivíduo e a<br />
sociedade, emana o léxico, cujo uso / seleção varia de indivíduo<br />
para indivíduo, segundo vários fatores particulares, tais<br />
como: experiências lingüísticas, competência, cultura, idade,<br />
meio social, etc.<br />
Em estado de dicionário, a palavra é um campo neutro;<br />
no texto, todavia, ela assume direções. Ela incorpora tendências<br />
que não são, muitas vezes, as que o usuário pretendeu, mas<br />
que, pela inabilidade de lidar com o jogo discursivo no qual a<br />
seleção lexical é um trunfo, a comunicação / interação não se<br />
efetiva a contento.<br />
Entre um léxico e outro, nas entrelinhas do texto, o sujeito<br />
se envolve, age criando, trabalha os sentidos (segundo o<br />
apelo das mensagens), mobiliza-se em busca da satisfação de<br />
uma necessidade que lhe é inerente: expressar-se. Diante da<br />
multiplicidade não-linear dos sentidos que o texto possibilita,<br />
significados são constituídos, formando liames entre o indivíduo<br />
e a sociedade, o instituído e o instituinte, conduzindo-o à<br />
autonomia. Um conjunto de transformações lingüísticas interage<br />
no universo do enunciador levando-o a apropriar-se do léxico<br />
para estreitar relação com o outro.<br />
Um texto, portanto, é o resultado de um processo de seleção<br />
que o produtor elabora com o fim de comunicar seu intento.<br />
Para tal, organiza e sistematiza as idéias, opta por certos<br />
vocábulos em detrimento de outros, estabelece nexos lingüísti-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 145<br />
cos por meio da coesão e da coerência. Nesse empenho, a semântica<br />
tem papel de destaque, uma vez que o sentido de uma<br />
mensagem não fica por conta apenas do uso das palavras e da<br />
sintaxe, mas atravessa o texto e atinge o domínio discursivo.<br />
Não menos respeitável é a Semiótica. Para Simões (2002),<br />
Adentrar os umbrais da semiótica resulta em reeducar<br />
a percepção do mundo; redirecionar o poder<br />
de captação dos signos e significações resultantes<br />
da interação do homem com seu mundo<br />
interior e com o mundo que o cerca.<br />
No tocante ao ensino-aprendizagem, o professor pode<br />
facilitar ao aluno a aquisição de habilidades que lhe agucem a<br />
percepção e os sentidos, para experimentá-los conscientemente<br />
em várias perspectivas. Assim, essa atividade se torna mais<br />
dinâmica e até mesmo lúdica; passa a ser um jogo que trabalha<br />
com a adivinhação e com a criatividade no que tange a textos<br />
lingüísticos e não-lingüísticos, ampliando as fronteiras de dado<br />
conteúdo e possibilitando sua aplicabilidade.<br />
A opção por uma ou outra palavra revela a singularidade<br />
de cada indivíduo, fruto de um determinado sistema de valores<br />
e de suas idiossincrasias, das leituras que faz do mundo<br />
com o qual interage pela linguagem. Como ser ativo, em permanente<br />
processo, o homem, para interagir, faz do léxico o<br />
depósito de todos os signos que surgem (BASÍLIO, 2000). Esse<br />
material estocado não é usado aleatoriamente, passa por “filtros”,<br />
segundo os grupos sociais a que pertence o indivíduo:<br />
um sujeito social autônomo, mas não independente, uma vez<br />
que está articulado ao mundo, interagindo com seus pares, produzindo<br />
discursos.<br />
Para se enfrentar a questão dos discursos, temos,<br />
portanto, de considerar que a linguagem não é<br />
meramente um exercício de significações circunscritas<br />
individualmente, delimitadas “no” indivíduo.<br />
Há que se perceber o “deslocamento”<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 146
dessas significações: a produção do sentido está<br />
na sociedade, está na história.<br />
(BACCEGA, 1995: 27)<br />
Dessa forma, o léxico assume significado, ao ser inserido<br />
no contexto, no discurso, materializando o pensamento do<br />
sujeito cujo enunciado nada mais é do que uma polifonia do<br />
meio em que vive, das interlocuções de que participou / participa,<br />
seja no contato face-a-face, seja nas interações à distância,<br />
ou em seu papel de interlocutor do discurso midiático. E é<br />
assim que ele se torna mais do que um “eu”, um ser plural.<br />
A título de ponderação sobre a natureza sócio-históricoideológica<br />
da linguagem, Biderman (1996: 6) considera a força<br />
da midia (a da televisão, principalmente) maior do que a da<br />
literatura no papel de ditadora da norma lingüística, de expansão<br />
dos recursos expressivos da língua, contribuindo substancialmente<br />
para com a ampliação do vocabulário comum. A autora<br />
pontua, também, a significativa influência da midia<br />
impressa, em especial sobre a classe dominante, que serve de<br />
modelo aos demais segmentos sociais.<br />
Nesse sentido,<br />
O léxico de todas as línguas vivas é essencialmente<br />
marcado pela mobilidade; as palavras e as<br />
expressões com elas construídas surgem, desaparecem,<br />
perdem ou ganham significações, de sorte<br />
a promover o encontro marcado do falante com a<br />
realidade do mundo biossocial que o acolhe: o<br />
homem e o mundo encontram-se no signo.<br />
(BARCELLOS DA SILVA, 2000: 142)<br />
Nas práticas sociais, entrecruzam-se múltiplas linguagens<br />
que, permeadas de sentidos, resultam em formas sensoriais<br />
e cognitivas diferenciadas. São combinações discursivas,<br />
gramaticais, lexicais, fonológicas, icônicas...<br />
No nível da produção do texto com ênfase na busca de<br />
compreensão, evidencia-se a articulação em dois planos, o conceitual<br />
e o lingüístico, no estabelecimento de coesão e coerên-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 147<br />
cia textuais. (VAL, 1997). Isso requer habilidade para se selecionar<br />
o léxico na organização das orações, levando-se em conta<br />
a inter-relação entre elas, de modo a sistematizar e adequar<br />
as idéias, preocupando-se com a tessitura textual a elaborar.<br />
O ângulo de visão do produtor deve estar mais atento ao<br />
emprego dos mecanismos lingüísticos, índices observáveis na<br />
superfície do texto. É óbvio que o sentido não se restringe ao<br />
uso de palavras isoladas, nem apenas às relações sintáticas,<br />
mas também ao uso da palavra no texto, dadas às relações de<br />
sentido que transbordam para além dos limítrofes espaços da<br />
superfície textual.<br />
Para Bakhtin (2004: 46), “o ser, refletido no signo, não<br />
apenas nele se reflete, mas também se refrata. [...] O signo se<br />
torna a arena onde se desenvolve a luta de classes”. Isso significa<br />
que, se, por um lado, o signo reflete o real, por outro, ele o<br />
transforma. O indivíduo então reproduz e produz linguagem.<br />
Quando se verifica o comportamento do léxico em diversos<br />
textos, é possível observar que<br />
[...] uma das principais características da língua<br />
escrita formal é a neutralização da situação do falante<br />
em termos de individualização; daí evitarmos<br />
utilizar a primeira pessoa e procurarmos tanto<br />
as formas passiva e genérica. Num discurso em<br />
que a individualidade procura se esconder, não há<br />
lugar para expressões subjetivas claras, razão por<br />
que qualquer processo morfológico que tenha<br />
função subjetiva explícita está descartado da língua<br />
formal escrita. Como conseqüência dessa situação,<br />
vamos encontrar marcada diferença entre<br />
o léxico da língua formal escrita e o léxico da língua<br />
coloquial falada, sendo o daquela consideravelmente<br />
mais limitado do que o desta, já que não<br />
permite expressões claras de subjetividade.<br />
(BASÍLIO, 2000: 89)<br />
Pelo excerto, percebe-se que a chamada competência<br />
lexical, defendida pelos gerativistas como sendo o conhecimen-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 148
to internalizado do falante nativo sobre o léxico de sua língua,<br />
abrange itens lexicais e processos de formação que podem ser<br />
diferenciados no texto falado e no escrito. Enquanto o primeiro<br />
incorpora aos itens lexicais matizes afetivos peculiares à fala, o<br />
segundo procura dirimir subjetividades optando pela variante<br />
mais técnica.<br />
A escolha vocabular tende a expressar o ponto de vista<br />
do usuário em meio ao mundo circundante, a saber: sinônimos,<br />
hiperônimos, caracterizações que emanam dos juízos de valor<br />
(positivos / negativos) do enunciador.<br />
Enfim, o sentido do léxico está na práxis, na interação<br />
social. Como essa interação é flutuante, o sentido do léxico<br />
também o é, diferentemente das coisas que existem independentes<br />
de nós. “Quando nos inteiramos com elas, através da<br />
práxis, o que era objeto passa a produto. Já não se trata mais da<br />
coisa ‘solta’, a interação transforma o objeto em produto”.<br />
(BACCEGA, 1995: 39).<br />
O processo de construção de um texto profícuo requer<br />
uma competência léxico-gramatical, incluindo-se aí expressão<br />
e conteúdo. Saberes de ordem fonológica, morfológica, léxica e<br />
sintática, que possibilitam ao usuário: articular e identificar os<br />
sons da língua em sua seqüência; associar segmentos sonoros<br />
aos devidos significados e, por extensão, a seus sentidos no<br />
texto; não infringir as regras da língua ao combinar suas unidades;<br />
detectar construções mal-formadas em decorrência da<br />
transgressão de regras de formação de palavras.<br />
Esses saberes precisam estar articulados aos saberes da<br />
competência pragmático-textual. Nesse sentido, Azeredo<br />
(2000: 49) pondera que o usuário é capaz de manejar os recursos<br />
do componente expressivo da linguagem, tanto em seu papel<br />
de locutor como de interlocutor de enunciados; discernir os<br />
vários sentidos do enunciado: literais, figurados e contextuais<br />
atribuíveis; selecionar, empregar e interpretar palavras, expressões,<br />
construções da língua conforme as convenções de cada<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 149<br />
situação comunicativa; interpretar e elaborar textos coesos e<br />
formalmente adequados aos respectivos propósitos comunicativos<br />
e às diferentes situações discursivas.<br />
Conhecer o léxico, portanto, implica mais que o simples<br />
nomear, envolve o uso adequado de palavras, que só é alcançado<br />
por quem percebe o real com criticidade reconhecendo-o<br />
como o lugar de conflitos e consegue pela palavra articular o<br />
emocional, o volitivo e o cognitivo.<br />
A impropriedade lexical detectada em textos falados e<br />
escritos aponta para a necessidade de um outro projeto de ação<br />
no ensino-aprendizagem, que considere percepção, capacitação<br />
e reflexão sígnica. Sob essa ótica, tem-se maior visibilidade do<br />
fenômeno lexical, uma vez que os sentidos, em simbiose (contribuições<br />
da semiótica), facilitam a interpretação e o uso / seleção<br />
do léxico.<br />
O ato da secundidade move o homem a transitar do indício<br />
a descobertas mais profundas. “A representação icônica<br />
torna possível ao homem operar sobre as coisas e fenômenos,<br />
analisando-as e descrevendo-as por meio de atos de linguagem”.<br />
(SIMÕES, 2002). A semiótica, avessa a dicotomias,<br />
contribui tanto para identificar signos como para analisar imagens,<br />
esquemas, metáforas... favorecendo o raciocínio lógico,<br />
filosófico e fisiológico.<br />
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – Ensino<br />
Médio, Parte II: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias<br />
(2002: 123) propõem “a interatividade, o diálogo, a construção<br />
de significados na, pela e com a linguagem”, visando à formação<br />
do aluno para o mundo contemporâneo, considerando a<br />
escola o ponto de encontro entre o pensar e o fazer. Essa exploração<br />
multissígnica é de base semiótica. Mais adiante (p. 126-<br />
127) se lê:<br />
Toda linguagem carrega dentro de si uma visão<br />
de mundo, prenha de significados e significações<br />
que vão além do seu aspecto formal. O estudo apenas<br />
do aspecto formal, desconsiderando a inter-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 150
elação contextual, semântica e gramatical própria<br />
da natureza e função da linguagem, desvincula o<br />
aluno do caráter intrasubjetivo, intersubjetivo e<br />
social da linguagem.<br />
Fiorin (2005) esclarece:<br />
Cada ciência opera uma determinada redução,<br />
opera com um determinado objeto, e o que a Semiótica<br />
faz é ter como objeto o texto e estudar<br />
quais são os mecanismos que engendram seu sentido.<br />
A Semiótica é um campo muito amplo porque se volta<br />
para qualquer texto, qualquer manifestação de sentido, o que<br />
permite realizar múltiplas leituras, transitar no percurso figurativo<br />
do sentido, responsável pela assimilação do tema de um<br />
determinado texto.<br />
Sob o prisma semiótico (envolta em sensibilidade / reação<br />
/ raciocínio), é possível otimizar a interpretação do fenômeno<br />
simbólico constitutivo da linguagem, em cujo processo<br />
ocorrem as escolhas, momento em que se descortinam “janelas”<br />
com o propósito de alcançar os objetivos pretendidos.<br />
4 – Conclusão<br />
Pelo exposto, chega-se à conclusão de que o ato de expressar-se<br />
é, antes de tudo, marca do homem atuante, é uma<br />
forma de estar no mundo, dinamizando-o; é situar-se com outros<br />
homens; é um meio de desenvolvimento individual, de ser<br />
autêntico; enfim, é um ato de compreensão e expressão humanas,<br />
é emergir-se como sujeito, como autor, que cria mensagens<br />
e as recria, as multiplica, dá-lhes vida, dimensão. O laço<br />
entre o eu e o mundo é a o expressão; efetivá-la com mais eficiência<br />
é tornar-se mais humanizado, tornando-se, portanto,<br />
sujeito da sua própria vida.<br />
Sendo a escola o habitat formalmente responsável pela<br />
educação lingüística, não pode cercear a palavra do aluno, pois<br />
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assim ela cria obstáculos para que sua linguagem se desenvolva.<br />
Se a expressão não aflorar, o homem não sai do casulo. Por<br />
isso, é preciso diversificar os gêneros discursivos em sala de<br />
aula. Já se foi o tempo em que se dava uma série de palavras,<br />
isoladas do contexto, tão-somente com o seu significado (visto<br />
aí como absoluto) para o aluno decorar.<br />
Em sala de aula, as atividades podem ser desenvolvidas<br />
com o fim de ampliar o léxico do aluno. Por exemplo, a elaboração<br />
de paráfrases e resumos é um exercício que possibilita a<br />
percepção da escolha lexical não só por parte do texto original,<br />
mas também pelo aluno na sua prática de refacção. Para tanto,<br />
a escola deve ser o espaço de interação discursiva entre professor<br />
/ aluno, numa pedagogia que conceba o aluno como um ser<br />
fruto de uma história particular e social que se refrata na diversidade<br />
lingüística.<br />
Enquanto não houver uma conscientização do professor<br />
de português de que é preciso aderir a uma virada semiótica<br />
que se sustente em compreensão, produção e recepção de textos,<br />
as propostas do PCN de língua portuguesa continuarão a<br />
soar como vozes no deserto. Os órgãos de fomento ao estudo e<br />
à pesquisa precisam investir na formação de professores de<br />
língua portuguesa, para que finalmente ocorra a (trans)formação<br />
conscientizada do que é o ensino de língua em toda a sua<br />
extensão.<br />
O ensino do léxico a partir do texto, numa abordagem<br />
pragmática, foge ao preestabelecido. As regularidades lingüísticas<br />
dos gêneros a que se submetem os textos colocam o aluno<br />
em contato com situações distintas de uso do léxico, possibilitando-lhe<br />
conhecer determinadas regras e convenções de interação<br />
lingüística, a ponto de fazer com que ele amplie sua<br />
competência comunicativa.<br />
Por que não seguir alguns pressupostos da mídia, como<br />
o de apelar para todos os sentidos do interlocutor, que conseguem<br />
atingir tão bem seus objetivos? Hoje o progresso tecno-<br />
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lógico chegou a muitas escolas, por que não explorar seus recursos<br />
audiovisuais?<br />
É preciso entender o léxico (processo simbólico) sob o<br />
foco da semiótica, extrapolando o espectro da estrutura da linguagem<br />
verbal, isto é, na concepção da terceiridade peirceana.<br />
Hoje, a semiótica peirceana convive com outras correntes<br />
(saussuriana, hjelmsleviana, soviética, greimasiana, barthesiana...)<br />
ampliando seus campos de aplicações: literatura, artes,<br />
som, música, oralidade, televisão... Como ciência inter-, multi-<br />
e transdisciplinar, possibilita o diálogo e o intercâmbio conceitual<br />
com outras ciências: ciências sociais, psicologia, psicanálise...<br />
Por isso pode-se afirmar que a semiótica traz relevente<br />
contribuição no desenvolvimento do repertório do falante.<br />
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MADAMA SUI: MEMÓRIA E EROTICIDADE COMO<br />
FORMAS DE RESISTÊNCIA AO PODER<br />
Eliane Maria de Oliveira Giacon<br />
UEMS<br />
RESUMO:<br />
O romance Madama Sui (1995), de Augusto Roa Bastos, narra a história de<br />
Lágrima González Kuzugüe, uma das amantes de Stroessner, pela releitura<br />
de seus cadernos (memórias) e por entrevistas feitas com pessoas que a<br />
conheceram. Pretende-se trabalhar o elemento erótico demonstrando como<br />
essa tipologia textual das memórias subverte a ordem social e política vigente<br />
no Paraguai num processo de resistência, a fim de que a ideologia<br />
subversiva possa legitimar e minar os alicerces da ditadura. Assim em suas<br />
memórias apócrifas, estruturadas em um texto recheado da carnavalização<br />
com o uso do texto erótico a personagem Madama Sui resiste ao povo, ao<br />
ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois as amantes não aparecem<br />
nos livros da História Oficial. Contudo são seus cadernos (memórias),<br />
que fornecessem ao leitor uma noção histórica de sua passagem pela<br />
vida política e social do Paraguai.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Memórias, erótico, resistência.<br />
Introdução<br />
A obra Madama Sui (1995) de Augusto Roa Bastos tem<br />
como temática a reconstrução da personagem Sui, que foi segundo<br />
Maria Olmos (2005: 8) “uma das amantes de Alfredo<br />
Stroessner” (ditador do Paraguai de 1954-1989). O texto narra<br />
a história de Lágrima González Kuzugüe, a partir da releitura<br />
de seus cadernos e da organização das entrevistas feitas por um<br />
repórter com pessoas que a conheceram. Entre elas está Ottavio<br />
Doria, tutor de Sui, que o ajuda a reconstituir parte da história<br />
dela e muitas vezes o confunde num processo ambíguo de mostrar<br />
e encobrir os fatos. Dela sabe-se algumas coisas, tais como<br />
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que foi apaixonada por Él, um colega de adolescência, por<br />
quem sempre esperou até que a história do fim trágico dos dois<br />
virou a seguinte lenda: após ele ter sido perseguido pela repressão<br />
do governo Stroessner, ele se esconde numa casa e ela vai<br />
ao seu encontro, logo depois eles morrem num incêndio. Contudo<br />
segundo o narrador nenhum corpo foi encontrado no local.<br />
Na recomposição da personagem, além das técnicas<br />
narrativas e dos processos, que serão trabalhados a seguir, há o<br />
uso do texto erótico, que predomina as entranhas da narrativa<br />
memorialista de Sui e de seus narradores. Observa-se, portanto,<br />
que o texto erótico aqui é privilegiado pela intenção metafórica<br />
dos narradores de desvendar o corpo e a eroticidade de Sui, a<br />
fim de subverter a ordem social e política vigente do Paraguai<br />
num processo de resistência, pois segundo Foucault (1979: 41)<br />
“para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder[...]<br />
que venha de baixo e se distribua estrategicamente”, no intuito<br />
de que a ideologia subversiva possa legitimar e minar os alicerces<br />
da ditadura.<br />
A personagem ficcional Madama Sui resiste ao povo,<br />
ao ditador, a ausência de Él, ao tempo e a existência, pois ela<br />
pode ter existido ou não, afinal as amantes não aparecem nos<br />
livros da História Oficial, contudo são seus cadernos, suas<br />
memórias escritas ou orais, que fornecem uma noção de sua<br />
passagem pela vida política e social do Paraguai nas décadas de<br />
60 e 70 do século XX.<br />
Suas relações eróticas com os outros e consigo mesma<br />
são um tributo a sua vida, que se desenrola pela escrita, pois ela<br />
escreve; sua história é escrita por outros e seus atos eróticos<br />
são contados pela narrativa oral, na intenção de moldar um<br />
corpus das intrínsecas relações de poder de seu país durante a<br />
Ditadura Stroessner na década de 50 do século vinte Assim<br />
apesar da personagem não ser consagrada pela Historiografia<br />
Oficial, os fatos que a rodeiam como a Ditadura Peronista da<br />
Argentina e a Reconstrução Econômica do Japão no Pós-<br />
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guerra, contribuem para reconstituir uma época, na qual a personagem<br />
por força da metaficção ganha existência no romance.<br />
1 - Madama Sui<br />
Reconstruir a vida de um personagem histórico no romance<br />
histórico contemporâneo passa em via de regra pela<br />
releitura da vida desse personagem, que pode ocorrer de três<br />
formas: a primeira como releitura da vida do personagem do<br />
que poderia ter acontecido e não foi escrito; a segunda como<br />
aposta para o futuro, na qual muita coisa do que é relatado como<br />
sendo parte da vida de um personagem histórico pode estar<br />
sendo criado pelo romance, que está narrando a história e por<br />
fim o terceiro caso, no qual são as memórias apócrifas de um<br />
personagem histórica, que fornecem dados historiográficos<br />
demarcando no romance a sua existência. No primeiro caso<br />
encontram-se os romances de extração histórica, nos quais aparece<br />
como, por exemplo, o personagem histórico Lope de Aguirre<br />
na obra Lope de Aguirre, príncipe da liberdade (1988)<br />
de Miguel Otero Silva; no segundo há a personagem Evita Perón<br />
em Santa Evita (1996) de Tomás Eloy Martínez e por fim<br />
Lágrima González Kuzugüe, alcunhada de Madama Sui na<br />
obra homônima de Augusto Roa Bastos.<br />
A narrativa da obra Madama Sui reconstrói ficcionalmente<br />
a vida breve e marcante de uma das amantes de Stroessner<br />
(ditador do Paraguai entre 1955 e 1989), cujas biografia é<br />
conhecida pela organização das notas de seu diário executada<br />
por um jornalista que investiga os fatos reconstruindo a vida de<br />
Lágrima Gonzále Kuzugüe, nome verdadeiro de Sui a quem o<br />
narrador autodiegético define como sendo a criollita de fuego<br />
paraguayo-japonesa[...], alias Sui, apócope de la lechuza de<br />
nome suindá (ROA BASTOS, 1985: 48). E para organizar a<br />
vida da personagem, o narrador semelhante a uma ave noturna,<br />
em surdina, vai recolhendo dados e se confundindo proposi-<br />
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talmente ou não o leitor, num jogo, que esconde a sua identidade<br />
como se ele tivesse medo de ser descoberto.<br />
O narrador procura Ottavio Doria, tutor de Sui, que depois<br />
da morte dela se torna um ermitão, a quem comunica, que<br />
ele estava juntando material para escrever sobre Sui. Depois ele<br />
viaja para Manorá, que era tanto sua terra natal quanto de Sui.<br />
Ele esclarece, que viveu na mesma época em que Sui morou no<br />
povoado e que fora seu colega de escola. Suas frases são ambíguas<br />
e causam a impressão de que Sui estivera enamorada por<br />
ele. Como anteriormente na primeira parte da obra o narrador<br />
heterodiegético conta que Sui teve um grande amor a quem<br />
chamava de El e que por motivos políticos, ele havia ficado<br />
foragido. Na segunda parte o jornalista afirma que se distanciou<br />
de Manorá por motivos políticos. Ao citar esse fato, o narrador<br />
autodiegético dessa parte insinua, que ele poderia ser o<br />
grande amor de Sui. Contudo há a questão da morte, pois há a<br />
suposição de que El poderia ter morrido com ela num incêndio,<br />
quando ele fugira da repressão política da ditadura Stroessner.<br />
O narrador autodiegético não só extrai informações sobre<br />
Sui, mas também se põe do lado daqueles que criticam e<br />
expõem os atos do ditador Stroessner do Paraguai, recolhendo<br />
da falas que ao testemunharem sobre Sui, também fazem uma<br />
crítica direta a desestruturação dos padrões sociais do Paraguai<br />
durante a ditadura. Um dos testemunhos colhidos é o de Doria,<br />
que diz El dictador omnímodo encontrou en la prostituición de<br />
la mujer el elemento primario, el más vulnerable pero también<br />
el más eficaz, para promover la corrupción generalizada de la<br />
sociedade (ROA BASTOS, 1985: 128), levando a jovem a um<br />
envelhecimento precoce, pois o ditador aproveitou-se, segundo<br />
o narrador, da sexualidade dela que era algo natural para transformá-la<br />
em um produto de exploração.<br />
O leitor é informado paulatinamente, que Sui perdera os<br />
pais ainda criança e que Ottavio Doria tornou-se seu tutor, a<br />
quem ela incumbio de construir uma escola, na qual ela estu-<br />
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dou com seus companheiros, dos quais há a lembrança nítida<br />
de El, o seu enamorado, que por motivos políticos como já dissemos,<br />
foi embora de Manorá e de Leandro, o jovem com<br />
quem ela teve sua primeira relação sexual. Foi nessa época que<br />
ela aprendeu que os homens eram incompletos e as mulheres<br />
tinham poder sobre eles. Depois ela parte para Assunção, onde<br />
além de dedicar-se ao Balé Japonês, que dirige, ela se torna<br />
uma das amantes de Stroessner. Em seguida, Sui vai ao Japão.<br />
No retorno ao Paraguai, permanece durante algum tempo com<br />
o ditador voltando a viver em Manorá, onde é execrada por<br />
todos. Doria, nessa época, ajuda-a na construção de sua casa,<br />
na qual ela mora com Celina Blanco, uma das bailarinas do<br />
Balé Japonês. Desde a sua adolescência Sui escreve em seus<br />
diários, tanto sobre sua vida íntima como sobre seus sonhos e<br />
devaneios. Um de seus desejos é ser comparada a duas figuras<br />
ímpares da História da América Hispânica: Eva Perón e Madama<br />
Lynch. A primeira de artista de teatro tornou-se amante e<br />
depois esposa de Juan Perón, presidente da Argentina na décadas<br />
de 40 e 50 do século XX; a segunda de prostituta francesa<br />
torna-se esposa de Solano Lopes, ditador do Paraguai na décadas<br />
de 50 e 60 do século XIX.<br />
Sui é um ser exótico descrito pelos relatos orais de Doria,<br />
pelos seus vinte cadernos e por dois narradores que se intercalam,<br />
a fim de recompor um personagem diluído nos fatos<br />
de sua época.Para tanto os narradores utilizam dois artifícios: o<br />
primeiro pela metaficção das memórias da personagem Sui nos<br />
seus vinte cadernos e o segundo, pela reconstituição de sua<br />
vida no romance de forma circular, no qual os relatos de sua<br />
vida e de sua morte vão se encaixando, na intençao de formar<br />
um painel do momento político do Paraguai durante o governo<br />
de Stroessner.<br />
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2 – Memórias versus ditadura Stroessner<br />
Alfredo Stroessner conseguiu chegar ao poder após o<br />
golpe de maio de 1954 e ficou até 1989, quando é destituído<br />
por André Rodriguez em meio de um golpe de Estado.A Ditadura<br />
de Stroessner se manteve no poder por trinta e cinco devido<br />
ao uso de aparelhos de legitimação eficazes e pelo fato do<br />
governo conseguir capitais estrangeiros para promover algumas<br />
melhorias no país.<br />
O Desenvolvimento da ditadura Stroessner têm como<br />
características: a corrupção que mantém o quadro político coeso,<br />
a repressão que utilizou a tortura e os grupos pyrague ou<br />
sóplon, funcionários do Estado, que atuavam como delatores da<br />
população. Além da presença da resistência formada por grupos<br />
no campo denominados: Liga Agrária Cristiana, Hermanos<br />
Franciscanos, Comunidad Cristiana de Bases que foram derrotados<br />
pela ditadura.<br />
Ë no âmbito desse período ou parte dele entre as décadas<br />
de 60 e 70, que vive a personagem do romance Madama<br />
Sui, cujo enredo delimitado por dois narradores recompõe as<br />
suas memórias e o seu perfil com um texto que funciona como<br />
uma aposta contra a ditadura, pois há a pretensão explícita do<br />
autor de não somente montar um painel da época e da vida da<br />
personagem, mas também de demonstrar os efeitos da ditadura<br />
sobre a sociedade e a vida íntima das pessoas.<br />
Assim em consonância com Savietto (2002: 114) podese<br />
dizer que a memória adquire forma a partir das lembranças<br />
“que ressurgem desordenadamente, uma vez que elas são selecionadas<br />
segundo um critério de ordem interna e intrinsecamente<br />
relacionado com os momentos que tiveram papel relevante<br />
em nossas vidas”, os quais são expostos de acordo com a<br />
uma seleção que depende de forma subjetiva daquilo que consideramos<br />
importante.<br />
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No caso da personagem Sui, as suas memórias servem<br />
de mote para que os narradores da obra possam não só recompor<br />
a sua vida como também reconstituir um período crítico da<br />
vida política do Paraguai, partindo do particular, do íntimo, do<br />
sensual e do erótico como metáforas do que por forças do politicamente<br />
correto foram escondidos por baixo do “tapete” da<br />
pós-ditadura.<br />
Para tanto, a sua figura é focalizada de forma externa e<br />
interna. Externamente Doria e o narrador autodiegético recompõem<br />
de forma fragmentada do que e de quem teria sido aquela<br />
mulher, cuja vida se confundia com a história daquele período,<br />
pois segundo Doria al final de su vida: mujeres perdidas, desaparecidas<br />
em sua propia leyenda. Eso era lo que entusiasmaba<br />
a Sui. (ROA BASTOS, 1995: 125). Observa-se a idéia<br />
que agradava Sui, era a de poder se perder em sua própria lenda.<br />
E para tanto ela e seus narradores utilizam a memória, a fim<br />
de selecionar dados, que referendam sua passagem por aquele<br />
período da ditadura com elementos, que a legitimam tanto no<br />
âmbito individual como no coletivo.<br />
No individual são os cadernos, que apresentam um panorama<br />
de quem seria Sui, contudo esses cadernos apócrifos<br />
não são encontrados pelo jornalista – o narrador autodiegético.<br />
No coletivo, o único testemunho de sua existência é seu tutor<br />
Doria, que defende a sua pureza e inocência em relação à sexualidade,<br />
pois segundo ele o sexo para Sui era só pel deseo de<br />
atraer y gustar (p. 125) daqueles que estivessem a sua volta.<br />
Para reconstituir a vida de Sui, o jornalista passa por um<br />
emaranhado discursivo, que o leva tanto a refazer a história<br />
política da Ditadura Stroessner, no tocante aos danos cometidos<br />
contra a população e o povo paraguaio como a percorrer os<br />
caminhos que o levam a tentar conhecer a volúpia sexual dessa<br />
mulher.<br />
Em termos, as memórias de Sui colhidas ou relatadas<br />
pelos dois narradores representam uma forma de oposição à<br />
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ditadura, pois segundo Doria el sexo sierve a la mujer como<br />
arma de legítima defensa (p. 126), que a personagem utilizou<br />
para atingir os seus objetivos. Da mesma forma, pode-se dizer,<br />
que o texto erótico roabastiano serve de subterfúgio para analisar<br />
o discurso da resistência ao poder.<br />
3 - Carnavalização do poder via texto erótico<br />
A carnavalização é um termo que tem origem lingüística<br />
no campo semântico do carnaval, uma festa que desde a<br />
Idade Média é um momento em que as pessoas põem as máscaras,<br />
a fim de que elas possam viver uma outra realidade. No<br />
carnaval os limites de hierarquia social somem e um bobo vira<br />
rei e o rei pode andar por entre as gentes de forma oculta.<br />
Nos estudos de Bakhtin (2002) sobre Dostoievski o<br />
termo carnavalização junto a outros como dialogia, paródia e<br />
heteroglosia são propostos e discutidos como mecanismos capazes<br />
de fornecer ao texto ficcional contemporâneo um corpus<br />
lingüístico capaz de reestruturar os signos, agrupando-os de<br />
acordo com os múltiplos significados de uma obra literária.<br />
Assim o conceito de carnavalização sai do âmbito lingüístico<br />
e serve de fundamentação par um novo gênero literário<br />
– o Romance Histórico Contemporâneo, que segundo Menton,<br />
(1993: 44) possui uma característica – a carnavalização, que<br />
consiste nas “exageraciones humorísticas y el énfasis en las<br />
funciones del cuerpo desde el sexo hasta la eliminación”, que<br />
invertem a ordem textual e produzindo um estranhamento, que<br />
construí um novo quadro do mundo no lugar do que fora destruído<br />
pela junção de elementos díspares como os desejos sexuais<br />
e os elementos temporais e espaciais do cotidiano do homem.<br />
A carnavalização via discurso erótico é um traço marcante<br />
desse gênero, que Roa Bastos trabalha em algumas de<br />
suas obras, no intuito trazer à tona as relações de poder, que<br />
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estão escondidas no corpo social do Paraguai e da América<br />
Latina com seus sistemas ditatoriais, cuja história sobre essa<br />
forma de poder segundo Foucault (1979: 231) é um discurso,<br />
“que ainda está totalmente por ser feito”. E, portanto, o discurso<br />
literário ao recorrer ao artifício do texto erótico contribui<br />
como mais uma forma de penetrar nos meandros do poder via<br />
reconstrução dos mecanismos de resistência.<br />
Ao ridicularizar ou exaltar os atos eróticos, o discurso<br />
erótico, como no caso da poética roabastiana, assume diferentes<br />
funções inclusive a de ser um elemento de transgressão às<br />
ideologias de fundamentação históricas, discursivas e de resistência,<br />
que legitimam, ultrapassam e completam o poder, a fim<br />
de se alimentarem dele e nele se inserem, de tal forma, que<br />
quando mais um discurso é produzido,mais a visão dos excêntricos<br />
desmistifica, dessacraliza e contesta a historiografia<br />
formalizada e defendida por quem controla o poder.<br />
No caso específico do romance Madame Sui, o texto<br />
erótico como objeto de desejo “não é todo o erotismo, mas é<br />
atravessado por ele” (BATAILLE, 1987: 122) metaforizando a<br />
sexualidade em relação às diversas concepções de poder sacralizadas<br />
pelo discurso do ditadura, que se fundamenta na “verdade”histórica<br />
contada pelos vencedores e na ação da resistência<br />
subversiva.<br />
Quando o erótico atravessa o objeto de desejo Sui, ele<br />
cria um caleidoscópio, cujo foco de luz branca divide-se em<br />
diferentes matizes, que irão recompor em pinceladas firmes a<br />
história da personagem e a história do período da ditadura Stroessner.<br />
Para tanto o texto não demarcar datas, mas sim deixa<br />
vago, qual teria sido o período em que Sui tornou-se uma mulher<br />
tão desejada, que usava seu corpo ora ingênuo, ora corrompido,<br />
ora envelhecido, ora amado, em função das necessidades<br />
suas e dos outros. Portanto o seu corpo vivo semelhante<br />
ao corpo morto de Evita Perón se torna símbolo de uma resistência<br />
silenciosa, que somente a memória pode recuperar.<br />
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4 - Pontos de resistência das memórias de Sui<br />
Emprestemos uma citação de Marcuse (1968: 201) para<br />
focalizarmos como a resistência dos cadernos apócrifos e dos<br />
relatos evidenciam a presença de Eros na vida de Sui que se<br />
move “pela recordação protestando (grifo nosso) contra a ordem<br />
de renúncia; e usa a memória em seu esforço para devorar<br />
o tempo num mundo dominado pelo tempo”.Logo é possível<br />
dizer que a escrita desse texto funciona como uma aposta contra<br />
o tempo enfrentada pela personagem, que usa as armas da<br />
oralidade e da escrita como formas de resistência a tudo que<br />
está a sua volta, principalmente contra a domínio da ditadura.<br />
Portanto, a Sui do romance é uma metáfora da resistência contra<br />
o povo, a ditadura, a ausência de El, o tempo e a sua existência,<br />
pois esses elementos se opõem ao seu corpo a sua eroticidade.<br />
4.1 - O povo<br />
Sui desde a época da escola era capaz de atrair a atenção<br />
dos homens por seu ar exótico mestiço entre japonês/ paraguaio<br />
e pela sua sensualidade que aos poucos foi se transformando<br />
num forte apelo erótico desenhado com linhas<br />
marcantes por um discurso, no qual a personagem em seus cadernos<br />
escreve com letra miúda os seus desejos sexuais mais<br />
contidos e suas experiências sexuais tanto com os homens como<br />
com outras mulheres. Por trás de cada linha do texto há<br />
sempre uma conotação sublinhar de que o erótico se estende<br />
além do ato sexual apelando para todos os sentidos que a envolvem.<br />
Desde jovem ela possuía uma áurea de eroticidade, que<br />
a levou a alcançar todos os seus objetivos e ao mesmo tempo a<br />
fizeram se afastar das pessoas, pois seus amigos foram poucos,<br />
enquanto proliferaram as histórias sobre sua vida e suas aven-<br />
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turas sexuais, que fizeram dela um símbolo de desejo e rendição<br />
do povo paraguaio.<br />
Ao voltar à sua terra natal bem que ela tentou fazer com<br />
que as pessoas a aceitassem, convidando-os vizinhos e antigos<br />
colegas para festas em sua casa, contudo ela foi rechaçada com<br />
actitud de repulsa, de censura, de odio cerval, [...] cuya solo<br />
presença consideraban um insulto para el pueblo. (ROA<br />
BASTOS, 1995: 1<strong>07</strong>). Não se sabe, porém, se o ódio do povo<br />
contra ela referia-se aos apelos chamativos de sua eroticidade,<br />
à sua vida tida como mundana ou se era pelo fato dela ter sido<br />
amante do ditador, que era ponto de ódio das populações campesinas,<br />
que sofriam com a repressão política.<br />
Desta forma, Sui resiste ao povo na medida em que sua<br />
vida torna-se de domínio público e as pessoas são capazes de<br />
reconhecer em sua figura um ícone de uma época da História<br />
do Paraguai, que não pode ser contada, pois ainda é carregada<br />
de medo das implicações políticas, visto que os mandatários<br />
das perseguições e torturas permanecem nas rodas sociais e<br />
políticas do país do final do século XX.<br />
4.2 - A ditadura<br />
A Ditadura Stroessner consolidou-se assumindo a máxima<br />
de “Paz, Justiça e Trabalho”, contudo para atingir tais<br />
objetivos foram feitas a partir de 1955 alianças entre Colorados,<br />
Epifanista, Democráticos, Liberais e Febreristas para criar<br />
um governo populista, mas havia os “porões” desse período,<br />
cujos crimes políticos dizimaram muitos opositores ao regime.<br />
Entre os opositores estão as ligas campesinas, as universidades<br />
e a igreja católica.<br />
São dois os movimentos da obra Madama Sui em relação<br />
à ditadura semelhante ao que ocorre com as duas faces da<br />
ditadura Stroeesner. Se por um lado, a personagem Sui é segundo<br />
Doria víctima propiciadora en la estrategia de degradación<br />
del país (ROA BASTOS, 1995: 129), por outro ela inte-<br />
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gra-se ao universo da ditadura ao aceitar os meandros que a<br />
levaram a apreciar todas as experiências sexuais e sociais como<br />
o Concurso de Miss, as viagens propiciadas pelo ditador ao<br />
Balé Japonês, que a levaram ao Japão e o contato íntimo com<br />
Friné, uma das amantes do ditador.<br />
No desenrolar do romance os movimentos da personagem<br />
ora a aproximam, ora a distanciam da ditadura, semelhante<br />
a uma mariposa, que tem fascínio pela luz, que pode consumi-la,<br />
mas mesmo assim, Sui está sempre no raio da ditadura<br />
até o ponto em que para salvar El, o seu amor de infância ela<br />
ensaia um movimento de oposição,mas aí é tarde. Sobra para<br />
ela, então ir ao encontro de seu amado, sumindo com ele no<br />
meio do fogo que os consome.<br />
Passar pelo fogo para imortalizar-se foi uma das formas<br />
de resistência à ditadura encontrada pelo narrador heterodiegético<br />
para redimir a personagem, pois segundo ele una vida errada<br />
puede rescatarse cerrando su círculo a través del fuego<br />
purificador, junto a la persona amada. (ROA BASTOS, 1995:<br />
300), que fez com que Sui passasse do plano humano para se<br />
tornar uma lenda, pois não há indícios nem de sua vida, nem de<br />
sua morte, visto que são apenas os relatos orais e a suposta existência<br />
de vinte cadernos, que irão pautar os dois narradores<br />
num emaranhado discursivo, no qual um painel da personagem<br />
vai sendo traçado num jogo sensual de mostrar e encobrir.<br />
4.3 - Solidão / El<br />
Para ella había un solo y único El.<br />
(ROA BASTOS, 1995: 188)<br />
El sem nome ou sobrenome, poderia ser qualquer homem<br />
por quem Sui se apaixonou e a quem dedicou não só seu<br />
amor como também boa parte de suas memórias contida em<br />
seus cadernos. Ali se encontra quase que uma devoção religiosa<br />
a ele como se fosse um “homem-deus” ou um “deushomem”<br />
por quem a personagem suspira e mantém um culto<br />
religioso apregoado em suas escrituras.<br />
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Seus cadernos apócrifos sustentam uma forma de resistência<br />
a ausência daquele, cujo nome não poderia ser pronunciado,<br />
por dois motivos distintos: um relativo a suas convicções<br />
políticas, que o fizeram um fugitivo e outra não muito clara,<br />
mas possível de perceber nas entrelinhas do texto, que se ele<br />
fosse nomeado e substantivado, como sendo um mito criado<br />
por Sui, a fim de manter um sentido, um norte e um destino<br />
para sua vida.<br />
No final da obra, o narrador diz que nenhum corpo foi<br />
encontrado nas cinzas da casa queimada, deixando em dúvida<br />
tanto se Sui existiu como se El não passou de uma criação dela<br />
como forma de resistir a solidão, que pairou sobre sua existência.<br />
4.4 - O tempo<br />
O tempo consiste num fator determinante para o desenvolvimento<br />
da enunciação de um texto literário, que pode ser<br />
demarcado por datas, períodos históricos e por fases da natureza.<br />
Contudo Cronos é implacável com o personagem seja ele<br />
histórico ou ficcional, pois em ambos os casos eles podem desaparecer<br />
se não houver alguém que cante os seus feitos, fazendo-os<br />
reviver a cada momento nas próximas gerações.<br />
E como pode o ser humano, um simples, mortal sobreviver<br />
a esse deus, que engole tudo por onde passa? A sobrevivência<br />
de cada ser depende de como ele é capaz de escrever a<br />
sua história e deixar o registro de sua vida. Nessa tentativa de<br />
imortalizar-se e ao seu tempo o homem utiliza muitas formas<br />
desde os desenhos nas pedras até as formas mais íntimas como<br />
os diários e as memórias, escritas por ele mesmo ou pelos outros,<br />
a fim de perpetuá-lo.<br />
Uma outra forma encontrada pelo romance consiste na<br />
escrita de textos, que recuperam, reelaboram, reescrevem no<br />
âmbito da ficção as memórias de um personagem histórico ou<br />
literário, a fim de romper as barreiras do tempo, que o encerra-<br />
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am em uma época e substantivá-lo com um invólucro memorialista,<br />
no qual um personagem, como é o caso de Madama<br />
Sui atravessa as páginas de um texto contribuindo para que a<br />
obra literária seja aquella cuyo final recuerda siempre el comiezo,<br />
cerrando el círculo del relato. (ROA BASTOS, 1995:<br />
300), que é capaz de reviver a trama de um tempo, no qual Sui<br />
viveu e escreveu seus cadernos como forma de resistir ao tempo,<br />
na intenção de demonstrar a sua existência.<br />
4.5 - A existência<br />
Dar vida a um ser inanimado numa obra literária é um<br />
processo, que está presente em várias obras como as de Monteiro<br />
Lobato, as dos fabulistas e dos contistas das histórias infantis,<br />
que povoaram e povoam o imaginário de muitas gerações,<br />
mas dar vida a um personagem, cujos dados sobre sua<br />
existência histórica são duvidosos ou estão contidos em cadernos,<br />
cujas páginas não foram encontradas, consiste num trabalho<br />
de garimpo, que um narrador autodiegético da obra Madama<br />
Sui, personificando num jornalista sai a procura de pessoas<br />
e dados, que pudessem confirmar a existência de Sui a quem<br />
atribui-se na narrativa que ela seguiría inventando sua vida a<br />
casa día. (ROA BASTOS, 1995: 276), num processo de escrita,<br />
no qual os dados procurados pelo jornalista a respeito dela<br />
poderiam não existir e os fatos que lhes deram origem foram<br />
criados pela personagem, fechando-a personagem num círculo<br />
fogo, semelhante a lenda do escorpião.<br />
Diziam os egípcios, na tradição oral, que o escorpião,<br />
seguidor da deusa Isis, se fosse colocado num círculo de fogo,<br />
ele morreria vítima de seu próprio veneno, antes de ser consumido<br />
pelas chamas. A propósito, esse relato lendário ou não<br />
vem ao encontro de existência da personagem Sui, que percorre<br />
a trajetória do romance focada por dois narradores, que ora a<br />
expõem de forma explícita, ao apresentar seu corpo, sua eroticidade,<br />
suas idéias e sua existência com num discurso, que a<br />
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colocam no centro de um círculo de fogo, ora envolvem-na<br />
num halo esfumaçado, que lhe dá um ar fantasmagórico, que<br />
pode ser considerado um processo de desconstrução e construção<br />
da personagem, pois sua existência- vida e morte- advém<br />
do fato de que nada sobrou dos seus cadernos, de suas memórias,<br />
de sua casa, de seu povoado e de sua existência, visto que<br />
nadia la há visto entrar em el vientre em llamas de tarumá. Se<br />
formara la leyenda de su desaparición fantasmal. ( ROA<br />
BASTOS, 1995: 300), que passou a fazer parte do imaginário<br />
coletivo de um povo e de uma época, que o romance roabastiano,<br />
numa construção perpendicular entre memória e discurso<br />
reconstrói a vida da personagem expondo todas as amarras do<br />
texto para compor uma narrativa de extração histórica.<br />
Conclusão<br />
As técnicas aplicadas pelo autor dão ao romance algumas<br />
características, que o fazem uma obra fundamentada na<br />
construção de uma narrativa, na qual prevalece o uso das memórias<br />
sejam elas coletivas, pessoais e apócrifas sobre um determinado<br />
momento da ditadura Stroessner,quando um personagem<br />
surge das cinzas como a Phoenix, a fim de iluminar o<br />
caminho labiríntico pelo qual o leitor possa atravessar na busca<br />
de um texto que demarca no romance a sua existência, extraindo-a<br />
do universo lendário.<br />
Para tanto a abordagem roabastiana, nessa obra, em seu<br />
caráter metaficcional usa técnicas narrativas centradas nos seguintes<br />
pontos: a dualidade dos narradores, os discursos de<br />
oposição ao poder com o uso da carnavalização apoiada no<br />
texto erótico, a exaltação do corpo e do desejo em Sui como<br />
metáfora de resistência ao povo, à ditadura, ao tempo e a solidão.<br />
E por fim a presença das memórias apócrifas escritas em<br />
vinte cadernos dedicadas a cada ano de vida da personagem,<br />
nos quais a cada dia a dia, ela num ato de auto-afirmação, mol-<br />
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da-se, se inscreve e se escreve numa histórica de um tempo<br />
perdido na memória do povo paraguaio.<br />
O ato de criação da ficção roabastiana vem reafirmar a<br />
capacidade do gênero Romance Histórico Contemporâneo como<br />
um espaço singular, no qual é possível a desmarginalização<br />
tanto quanto aos temas como quanto à forma, pois o exercício<br />
de uma variedade textual possibilita o uso do texto erótico funcionando<br />
como um elemento estranhamento, que de dentro da<br />
estrutura da obra toma Eros como uma forma de transgressão<br />
das noções discursivas vigentes na intenção de dessacralizar o<br />
poder com a pretensão de dar voz ao outro, pois “a voz do outro,<br />
voz socialmente determinada, portadora de uma série de<br />
pontos de vista e apreciações” (BAKTHIN, 2002: 192), desmonta<br />
os mecanismos ideológicos legitimadores do poder.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
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Paulo Bezerra. 3.ed.Rio de Janeiro: Forense,2002.<br />
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CHIAVENATO, J. C. Stroessner: Retrato de uma Ditadura. 2<br />
ed.São Paulo: Brasiliense, 1980.<br />
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1985.<br />
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HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: história, teoria<br />
e ficção.Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1999.<br />
MARCUSE, H. Eros e civilização: uma crítica ao pensamento<br />
de Freud. 2 ed. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar,<br />
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MENTON, S. La nueva novela histórica: definiciones y origenes<br />
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de Augusto Roa Bastos. Disponível em<br />
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ROA BASTOS, A. Madama Sui. Asunción-PY: El Lector,1995.<br />
SAVIETTO, M. C. Baú de Madeleines: o intertexto proustiano<br />
nas memórias de Pedro Nava. 1 ed. São Paulo: Nankin Editorial,<br />
2002.<br />
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UM VERÃO ARDENTE: UMA LEITURA DO<br />
ROMANCE DE ISABEL RAMOS<br />
Elisabete Carvalho Peiruque<br />
UFRGS<br />
RESUMO:<br />
O texto, centrado no romance Está uma noite quente de verão, de Isabel<br />
Ramos, analisa as representações literárias das relações interpessoais no<br />
mundo em transformação acelerada de nossos dias. Na perspectiva de teóricos<br />
da literatura e de sociólogos, toda a ficção fala da época de sua produção,<br />
não importando a excelência literária. O romance analisado coloca-se<br />
como discurso da cultura de massa, remetendo para a não-separação entre<br />
produção erudita e popular da pós-modernidade.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Romance, cultura de massa, pós-modernidade, relações interpessoais.<br />
O fascínio por histórias que misturam realidade e invenção<br />
faz parte de nossa aparelhagem mental. Nosso gosto<br />
pela ficção - já presente na infância quando as histórias infantis<br />
alimentaram nossos sonhos e acalmaram nossas ansiedades –<br />
constitui o gérmen do romance e da sua receptividade, estendendo-se<br />
isso pela narrativa filmada. Último dos gêneros na<br />
história da literatura, o romance é considerado por Roger Caillois<br />
(1974) e Lucien Bóia (1998) como documentos da época<br />
de sua produção, enquanto Walter Mignolo, desmentindo a<br />
categoria unicamente representacional do romance, expressa<br />
sua crença na força do mesmo. Considera ele que o romance<br />
não deve ser lido apenas como objeto de estudo, e, sim, “como<br />
produção de conhecimento teórico; não como ‘representação de<br />
algo’, sociedade, idéias, mas como reflexão à sua própria moda<br />
sobre problemas de interesse humano” (2003: 305).<br />
Partindo dos pressupostos teóricos acima mencionados,<br />
as reflexões que se seguem têm por objetivo examinar o ro-<br />
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mance da escritora portuguesa Isabel Ramos, Está uma noite<br />
quente de verão, datado de 2005, como portador de uma teoria<br />
e como o registro muito específico de um certo tempo. A perplexidade<br />
que fica no leitor, após a sua leitura, deve-se talvez<br />
ao fato de o romance – em princípio tradução da realidade de<br />
maneira estética – dizer tão pouco, parecendo bastante colado à<br />
realidade. Isabel Ramos, num aparente ‘desenredo’, conta os<br />
desacertos de Mariana com a vida, numa narrativa linear, com<br />
uma voz a falar quase sempre do presente vivido a cada momento.<br />
O mundo da personagem é o nosso mundo em processo<br />
de transformação acelerada neste tempo que se costuma chamar<br />
de pós-modernidade ou modernidade final – continuação<br />
ou oposição à modernidade (?) – e que vem sendo estudado por<br />
sociólogos como Anthony Giddens e Zygmunt Bauman. Ambos<br />
acusam como uma das suas marcas maiores a alteração das<br />
relações inter-pessoais. Zygmunt Bauman comenta o fato de<br />
que, apesar de mudanças terem sido sempre a tônica da vida,<br />
“nunca antes [elas] foram tantas nem tão profundas e o [seu]<br />
rápido aumento [em] quantidade e profundidade torna muito<br />
mais difícil a permanente tarefa humana da auto-orientação”.<br />
(2000: 147 - 148). Por sua vez, Anthony Giddens afirma que:<br />
entre todas mudanças que estão se dando no<br />
mundo, nenhuma é mais importante do que aquelas<br />
que acontecem em nossas vidas pessoais - na<br />
sexualidade, nos relacionamentos, no casamento e<br />
na família.<br />
(2000: 61)<br />
O panorama alterado do “mundo em descontrole” – para<br />
usar da expressão do mesmo Giddens – vai desaguar no romance,<br />
lembrando que o que está na vida vai para a arte, e de<br />
modo especial, para a narrativa ficcional – ainda que não de<br />
forma mimética.<br />
Não chegando a convencer como obra de ficção pelas<br />
qualidades literárias, - embora levando à reflexão pelo gosto<br />
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amargo que deixa sua leitura – o romance de Isabel Ramos,<br />
entretanto, apela para sensibilidades exacerbadas pelas mudanças<br />
constantes dessa modernidade tardia – porque possivelmente<br />
resultado delas – modernidade que nos atropela com seus<br />
valores e desvalores convivendo em pé de igualdade. Huyssens<br />
(apud HARVEY, 1992: 45) sublinha tais sensibilidades integrantes<br />
das sociedades ocidentais como resultados de “uma<br />
notável mutação” e, dir-se-ia, inegável mutação de que o romance<br />
dá conta. Mariana vive uma relação atormentada com<br />
David e, em meio a essa confusão de sentimentos, encontros e<br />
desencontos em que se droga, bebe e fuma incessantemente,<br />
relaciona-se sem preconceitos com outros homens. O romance<br />
dá a medida de uma geração para a qual não é problema o sexo<br />
promíscuo a não ser como perigo da Aids, isto é, sem problemas<br />
morais. São suas essas palavras ao fim de uma aventura:<br />
“Era um final feliz para mais uma amizade colorida” (2005:<br />
60). Atente-se no advérbio ‘mais’ como representação de uma<br />
idéia que veio criando corpo de modo a tornar-se a marca dos<br />
relacionamentos entre as últimas gerações.<br />
Mariana, nem tão jovem, pois já anda perto dos quarenta<br />
anos, representa a geração que iniciou pelos finais dos anos<br />
sessenta, início dos setenta. Sua vida é o que Bauman denomina<br />
de “coleção de experiências” dessa segunda revolução sexual<br />
que temos diante dos olhos (1998: 184). A falta de sentido<br />
da vida, os personagens como que à deriva, a banalização do<br />
uso das drogas e do sexo que constituem a narrativa são como<br />
que um retrato das pontas do iceberg oculto que está sob nossos<br />
pés e do qual ainda não sabemos a dimensão real.<br />
Espécie de reportagem da época em que vivemos – e<br />
por isso mesmo podendo parecer o já referido discurso por demais<br />
colado ao real –, o romance de Isabel Ramos coloca algumas<br />
perguntas nas entrelinhas. O que quererá dizer a escrita<br />
de uma vida aparentemente sem sentido? O que quererá dizer<br />
essa narrativa do sem-sentido ao lado da busca do amor, da<br />
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experiência das amizades verdadeiras? Dentro de tal perspectiva,<br />
são significativas as opiniões de Roger Caillois e Lucien<br />
Bóia sobre a narrativa de ficção. Separados por um longo tempo<br />
nas suas reflexões, coincidem, entretanto, em suas posições<br />
sobre o valor do romance como elemento aferidor do social.<br />
Para o primeiro, o romance deve ser estudado como um fato<br />
social, fora do âmbito das letras, não importando sua qualidade<br />
literária nesse caso (1974: 161), enquanto Lucien Bóia reitera<br />
tal opinião a partir de estudos mais recentes sobre o imaginário.<br />
Para esse último, “do ponto de vista da história do imaginário,<br />
a excelência literária pouco conta; ela é de modo geral menos<br />
instrutiva que a representatividade”. Ele acrescenta então a<br />
necessidade de percorrer um sem número de obras medíocres e<br />
de qualidade duvidosa para apreender “os pensamentos e sonhos<br />
de uma época” (1998: 44). Os dois teóricos vêem os romances<br />
policiais e os folhetins, por exemplo – e, por extensão,<br />
outras obras menores em termos de valor literário –,como importantes<br />
para a decodificação de sensibilidades de um determinado<br />
tempo, lado a lado com os grandes monumentos da<br />
literatura.<br />
A personagem Mariana é uma solitária, ainda que tenha<br />
amigos e amigas. Quer encontrar o amor que está representado<br />
– e, ao mesmo tempo, não está –, em um David que vai e volta<br />
para um convívio tumultuado, para no final cindir a vida entre<br />
o relacionamento com ele e com outro. O que fica como uma<br />
leitura possível é a dissociação entre o amor e o exercício da<br />
sexualidade sem afeto, levando a pensar os valores da juventude<br />
ou, pelo menos, da primeira onda de uma modernidade tardia<br />
esboçada nos anos setenta e agora estabelecida, ao que parece,<br />
para valer, com seus códigos de comportamento sendo<br />
válidos para os filhos e netos dessa geração. Ainda, como saldo,<br />
fica uma reflexão sobre a banalização do que até não muito<br />
tempo era considerado como aspecto negativo das relações.<br />
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O romance em foco remete para a cultura de massa.<br />
Não se pode esquecer que essa facilita leituras com a identificação<br />
de uma sociedade que não sabe lidar com seus problemas<br />
e projeta suas expectativas de solução nos textos literários de<br />
qualidade inferior, no cinema para circuito comercial e, evidentemente,<br />
na telenovela. Dentro de tal contexto, Bauman em<br />
Amor líquido faz referência a uma série televisiva inglesa rotulando-a<br />
como repetição por falar do que é do conhecimento<br />
geral. “Reafirmações regulares e confiáveis para a pessoa insegura:<br />
sim, esta é a sua vida, e a verdade sobre a vida dos outros<br />
como você” (2004: 42). Está uma noite quente de verão está<br />
antes incluído na categoria de arte comercial - resultado de uma<br />
pós-modernidade - do que na de um romance pós-moderno.<br />
Narrativa linear, seguindo modelos de uma literatura tradicional,<br />
foge ao que se costuma chamar romance contemporâneo<br />
pelo alto nível de complexidade que esse carrega. Contudo,<br />
confere com a falta de profundidade das obras pós-modernas<br />
apontada por Eagleton, possível conseqüência talvez da tentativa<br />
da não separação entre produção erudita e produção popular.<br />
Ele vê a produção da cultura do pós-modernismo como:<br />
(...) uma arte superficial, descentrada, infundada,<br />
auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética, pluralista<br />
que obscurece as fronteiras entre e a cultura<br />
‘elitista’ e a cultura ‘popular’.<br />
(1998: 7)<br />
Bauman, o sociólogo do mundo líquido, ressalta a falta<br />
de compromisso bem como a inconsistência que caracterizam<br />
as relações afetivas nos dias de hoje, fatos sobejamente retratados<br />
na vida da personagem de Isabel Ramos. E, dir-se-ia, relações<br />
superficiais, porque dão conta de um mundo dos afetos<br />
que assim o é. O romance é superficial, como sua personagem<br />
e, neste sentido, ainda um documento da subjetividade de uma<br />
época, para usar palavras de Vargas Llosa (1991: 19) que reiteram<br />
o pensamento de Lucien Bóia.<br />
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Não sendo intenção dessas reflexões entrar especificamente<br />
nas discussões sobre o que é pós-moderno, sem que,<br />
contudo, seja possível omitir as evidentes relações, a análise<br />
centrada nas personagens indicia comportamentos típicos de<br />
nossa época representados por sensibilidades para captação e<br />
para a recepção das representações do mundo líquido, em que<br />
as coisas de hoje já saciaram os consumidores porque o mundo<br />
promete outras e mais intensas experiências para um amanhã<br />
que vem logo após. Consomem-se relações como se consomem<br />
os objetos que a sociedade do capital produz sem cessar.Eis o<br />
que um dos companheiros de Mariana deixa explícito: “Posso<br />
te dizer que ela me foi muito útil, no sentido prático da questão,<br />
ou seja, através dela conheci muita gente ligada à música”<br />
(2005: 226). Nesta linha de pensamento o, o conceito de Mireille<br />
Calle-Gruber sobre o romance como espelho privilegiado<br />
do mundo (1991: 12) é altamente significativo. O romance<br />
mostra o ‘dentro’ e o ‘fora’ das personagens, e é o mundo em<br />
que tudo é mercadoria que a narrativa de ficção – seja cultura<br />
de massa ou obra de valor – traz à tona.<br />
Em nota anônima na contracapa do romance, lê-se que<br />
“esta mulher vive a vida ao seu ritmo, ciente da fragilidade e<br />
efemeridade dos sentimentos”. Isso não soa como positivo, ao<br />
ser um retrato da vida que nos vai levando para onde não sabemos.<br />
Num esgotamento de emoções, o que sobrará após a<br />
corrida pelos caminhos labirínticos da busca de realizações de<br />
tais emoções distorcidas?<br />
Mariana vive o mundo do não-pensar e do prazer avulso,-<br />
se é que pode isto pode ocorrer.<br />
A música era boa e estava muito alta.<br />
Óptimo! Não teria de ouvir meus pensamentos.<br />
Era disto que eu precisava! (...) À medida que ia<br />
bebendo já no segundo copo, sentia o corpo baixar<br />
suas defesas. (...) Levantei-me, fui à casa de<br />
banho. Fantástico, este País está a evoluir: tinha<br />
um cestinho cheio de preservativos e outros mi-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 178
mos. On ne sait jamais, e servi-me de dois, um<br />
azul e um cor-de-rosa.<br />
(2005: 11)<br />
A cena que aparece aos olhos do leitor configura o<br />
mundo em que a personagem vive. A voz narradora passa como<br />
evolução a comercialização do sexo e a sua inconseqüência<br />
afetiva, o que remete para a crítica irônica de Bauman a comentários<br />
‘brilhantes’ de consultoras de relacionamentos em<br />
periódicos atuais de grande alcance na Inglaterra:<br />
As promessas de compromisso, escreve Adrienne<br />
Burgess, são irrelevantes a longo prazo. O compromisso<br />
é uma conseqüência aleatória de outras<br />
coisas: nosso grau de satisfação com o relacionamento<br />
(...) [e] levá-lo adiante nos causaria uma<br />
perda importante em matéria de investimentos.<br />
(2004: 28)<br />
Bauman então observa: “Um relacionamento, como lhe<br />
dirá o especialista, é um investimento como todos os outros”, e<br />
a análise do sociólogo é mordaz para explicar palavras que são<br />
espelho do mundo da mercadoria e do capital, a bem dizer,<br />
palavras do vocabulário da economia “As relações de bolso,<br />
explica Catherine Jarvie, são assim chamadas porque você<br />
guarda no bolso de modo a poder lançar mão delas quando for<br />
preciso” (2004: 36). Bauman conclui que a relação de bolso<br />
que a autora da expressão diz ser doce o é porque tem curta<br />
duração. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantaneidade<br />
e da disponibilidade” (2004: 36). Mariana é a que está<br />
disponível para qualquer coisa que a tire da solidão cada vez<br />
maior a qual ela afoga na bebida, na ausência de alguém.<br />
Eu vivo como quiser, à velocidade que bem me<br />
aprouver. Sou financeiramente independente, não<br />
tenho filhos, não tenho dívidas nem sócios (...)<br />
tenho meia dúzia de bons amigos, se calhar nem<br />
tanto (...) tenho 38 anos, já passei da fase de ter<br />
de provar coisas a mim própria (...) A vida é demasiado<br />
breve para isso.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 179<br />
(2005: 15)<br />
Na seqüência dessa breve apresentação de si mesma, a<br />
personagem dá a medida de sua visão da vida em que a velocidade<br />
das transformações é claramente mencionada. É um viver,<br />
um atordoar-se na busca incessante de coisas novas nas quais<br />
as pessoas estão incluídas como objetos de troca. “Na maioria<br />
das vezes, [o sexo] é aclamado como o estágio indispensável<br />
no processo de emancipação individual” (BAUMAN, 1998:<br />
184). Viver relacionamentos coloridos significa crescimento,<br />
ao que parece. Um resto da lembrança do que era a regra ‘antiga’<br />
aparece na semi-censura da amiga que lhe pergunta:<br />
- Dormiste com ele?<br />
- É claro que sim<br />
- Mas... como pudeste? Conheceste-o ontem! Eu<br />
não era capaz!<br />
- É... nesse aspecto tens razão. Demasiado fácil,<br />
não é? Mas olha, há dias em que não estamos para<br />
jogos. Apeteceu-me e aconteceu. E digo-te que<br />
foi óptimo (...).<br />
(2005: 54)<br />
Já referido linhas atrás, é reiterado aqui o gosto amargo<br />
que fica da leitura. Por parecer um retrato fiel da realidade,<br />
sendo uma ficção que não acrescenta nada ou muito pouco e,<br />
assim, não oferece expectativas de outra coisa senão a irreversibilidade<br />
do que aí está, o romance também ratifica ao longo<br />
se sua leitura seu caráter de retrato da cultura de consumo.<br />
Bauman nos fala da verdade da arte, como ainda a concebemos,<br />
tendo por destino<br />
opor-se à realidade e, por meio dessa oposição,<br />
compensar a vida do que lhe foi despojado pela<br />
realidade e, assim, indiretamente, tornar a realidade<br />
suportável, protegendo-a contra as conseqüências<br />
de sua cegueira auto-inflingida.<br />
(1998: 158)<br />
Tal dimensão configura por contraponto a característica<br />
da cultura de massa que dá o ‘sim’ ao mundo sem questioná-lo.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 180
A narrativa da vida de Mariana constitui a aquiescência de seu<br />
tempo e que é, quer queiramos ou não, o nosso.<br />
Representação de boa parte dos comportamentos nas<br />
sociedades urbanas no mundo atual, o romance em foco permite<br />
inferir um modelo de vida que se vai tornando a regra por<br />
todo o lado e sem estranhamentos. Nele se pode ler o desencanto,<br />
o sem-sabor de uma vida mal vivida que ilustra estudos sobre<br />
sensibilidades alteradas pelo mundo da modernidade tardia.<br />
- Ah, queres drogar-te?!... – zombou o Pedro. –<br />
Olha que isso não resolve nada, muito pelo contrário.<br />
Mas está bem, apetece-te descontrair. O<br />
problema é que aqui eu não tenho nada, não há<br />
nada para ninguém. Provavelmente em casa, há<br />
por lá uma pedrinha esquecida, só procurando<br />
(...).<br />
(2005: 123)<br />
A teoria de Mignolo, deste modo, concretiza-se quando<br />
se lê por trás de uma história – até certo ponto destituída de<br />
interesse – não somente o retrato no espelho diferenciado do<br />
mundo atual (Cf CALLE-GRUBER: 1989), mas uma lição que<br />
coincide com os estudos na área da sociologia.O romance em<br />
questão remete para o mundo em descontrole em todos os sentidos.<br />
Mariana não quer compromissos, vive cada dia em busca<br />
de não sabe o quê, na verdade nem sabe bem o que quer. A<br />
angústia que se lê – angústia de quem lê e reflete nas implicações<br />
de novos modelos de vida – não se aplaca nem mesmo na<br />
passagem final quando Mariana encontra um homem que aparentemente<br />
a satisfaz, sem, no entanto, abrir mão de David.<br />
Fica no ar a indagação sobre o que significa amar no mundo da<br />
modernidade tardia. Num tom de aparente satisfação, a personagem<br />
conclui sua trajetória e a história dela.<br />
(...) meu encontro com Ioakeim, homem surpreendente<br />
e maravilhoso<br />
(...)<br />
Vivo entre Lisboa e Londres.<br />
Vivo entre o Ioakeim e o David.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 181<br />
Sim, o David, sempre o David...<br />
(2005: 253)<br />
A mera observação para o que se vê à volta parece confirmar<br />
o que os estudos sociológicos mostram como marca do<br />
tempo globalizado, onde além da exportação do capital, exportam-se<br />
maneiras de ser. Raymond Williams anota “um número<br />
de importantes e contínuas reações (...) a mudanças em nossa<br />
vida social, econômica e política”, ou seja, algo presente sob os<br />
nossos olhos, sejam eles críticos ou nem tanto. Na esteira dessa<br />
análise, afirma ele a evidente necessidade de um ‘mapa’ para se<br />
ler e compreender a natureza de tais transformações (apud<br />
HALL, 2003: 132 - 133). É, pois, possível pensar no romance<br />
de Isabel Ramos e outros que representam o mundo descontrolado<br />
como guias para sua compreensão. Está uma noite quente<br />
de verão aponta para uma realidade que vai sendo cada vez<br />
mais concebida como natural, desejável, ao mesmo tempo que<br />
os que a vivem dão mostras da insatisfação causada por ela.<br />
Neste sentido, o romance, com seu duvidoso valor literário,<br />
torna-se um documento valioso de nossa época em que amizades<br />
coloridas pela sexualidade desregrada são a tônica e o consumo<br />
de drogas é considerado prática social natural.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />
Editor, 2004.<br />
_______. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />
Editor, 2000.<br />
_______. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Editor, 1998.<br />
BOIA, Lucien. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris:<br />
Gallimard, 1998.<br />
CAILLOIS, Roger. Approches de l’imaginaire. Paris: Gallimard,<br />
1974.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 182
CALLE-GRUBER, Mireille. L’Effet-Fiction – de l’illusion<br />
romanesque. Paris : A. –G. Nizet, 1989.<br />
EAGLETON, Terry. As ilusões da pós-modernidade. Rio de<br />
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />
GIDDENS, Anthony. Mundo em descontrole – o que a globalização<br />
está fazendo conosco. Rio de Janeiro: Record, 2000.<br />
HALL, Stuart. Diáspora. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />
2003.<br />
MIGNOLO, Walter. Histórias locais / projetos globais. Belo<br />
Horizonte: Editora UFMG, 2003.<br />
RAMOS, Isabel. Está uma noite quente de verão. Lisboa: Editorial<br />
Presença, 2005.<br />
VARGAS LLOSA, Mario. La verité par le mensonge. Paris:<br />
Gallimard, 1991.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 183<br />
O EROTISMO EM CARLOS DRUMMOND DE<br />
ANDRADE: O AMOR COMO SAGRADO RITUAL PO-<br />
ÉTICO OU COMO MERO RITUAL SAGRADO<br />
Maria Alciene Neves<br />
UFSJ<br />
Adelaine La Guardia Resende<br />
UFSJ<br />
RESUMO:<br />
Em O Amor Natural, livro de poemas eróticos do poeta Carlos Drummond<br />
de Andrade, quatro poemas servem-nos de mote para analisarmos a tessitura<br />
erótica marcada pelo desejo masculino: “Amor – pois que é palavra essencial”,<br />
“Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, “A língua girava no céu<br />
da boca” e “Para o sexo expirar”. Observamos nesses textos que as palavras,<br />
muitas vezes, assumem um papel lúdico na representação do amor e do<br />
sexo. A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no qual o amor<br />
nos remete ao princípio do prazer. O sujeito neste processo é masculino. A<br />
mulher surge como cúmplice, mas não como enunciadora do prazer.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Erotismo, amor, ritual, poesia, Carlos Drummond de Andrade.<br />
1 – Introdução<br />
Drummond é um dos mais célebres poetas da literatura<br />
brasileira em virtude de sua poesia madura, de seu humor ácido,<br />
perpassado de crítica social, de uma densidade irônica singular,<br />
de uma alquimia verbal invejável. Poeta contido, sério,<br />
muitas vezes “gauche” até em seus textos poéticos. Causa escândalo<br />
literário quando publica, na revista Antropofagia, o<br />
poema “No meio do caminho tinha uma pedra”.<br />
Causam igualmente surpresa as poesias de “O amor natural”<br />
que revelam uma face do poeta que ficara por muito<br />
tempo latente e que mostram um universo poético bastante distinto<br />
daquele ao qual o leitor drummondiano estava habituado.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 184
Nessas poesias, que muitos chamaram de pornográficas e outros,<br />
apenas eróticas, revela-se-nos um Drummond destituído<br />
do estereótipo do homem tímido. As cenas eróticas desenhadas<br />
pelo poeta surgem numa linguagem sem floreios, direta, viva e<br />
lancinante, podendo causar em alguns um certo estranhamento.<br />
A linguagem do poeta passeia pelas formas eruditas e<br />
coloquiais, na medida em que ele joga com as palavras e, ao<br />
mesmo tempo, lhes impregna de “profundidade”. Para Maria<br />
de Santa-Cruz:<br />
A sua poesia erótica [Drummond] – mas nunca<br />
fescenina -, publicada em Portugal em 1993, e,<br />
mesmo no Brasil, só editada em livros anos depois<br />
de sua morte, constitui a mais bela e completa<br />
da Língua Portuguesa no gênero, hiperbolismo<br />
e hinologia do Amor, mais do que um Kamasutra<br />
em português vernáculo, ora erudito - sáfico, medievalizante,<br />
renascentista -, ora mais chão, dando<br />
nome às coisas na língua do povo, mas raramente<br />
usando a gíria vulgar.<br />
(2003: 83)<br />
Quando conclama “Oh! Sejamos pornográficos (docemente<br />
pornográficos)”, na verdade Drummond nos convida a<br />
experimentar esteticamente o erotismo através de um jogo poético<br />
ritualístico em que as palavras, muitas vezes, assumem um<br />
papel lúdico na representação do amor e do sexo. Mas não apenas<br />
lúdico, “o amor e a poesia são uma religião que, pela valorização<br />
da imagem, unem um ao outro e o humano ao divino”<br />
(PEREIRA, 1998: np.).<br />
O erótico e o pornográfico apresentam demarcações<br />
bastante tênues. Diferenciá-los, portanto, pode ser uma tarefa<br />
delicada. Isso porque pode envolver certos conceitos e preconceitos<br />
do próprio leitor. O que era considerado pornográfico há<br />
trinta anos pode ter deixado de sê-lo hoje em dia.<br />
Francesco Alberoni (1986) distingue entre um erotismo<br />
marcadamente feminino (água com açúcar) e um erotismo<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 185<br />
masculino ligado à pornografia (suceder contínuo de atos sexuais).<br />
Em sua obra, o autor delimita o que é excitante para o<br />
homem e o que o é para a mulher. Mas, ao mesmo tempo, não<br />
descarta o jogo da troca de papéis, ou seja, o que excita um<br />
homem pode também ser extremamente provocador de excitação<br />
e desejo numa mulher. Isso sem falar que a questão do erotismo<br />
(ou pornografia) pode passar (e passa) por um <strong>jul</strong>gamento<br />
de valor moral em que conceitos religiosos, por exemplo,<br />
podem servir de “pano de fundo” para determinar o limite de<br />
um e de outro. Dessa forma, não se pretende defender aqui a<br />
tese de que os textos drummondianos são pornográficos ou<br />
não, o que se considera uma discussão irrelevante para o propósito<br />
deste trabalho. Importa, sim, compreender aqui a tessitura<br />
erótica como definidora do próprio ser expresso através da<br />
linguagem. Entra em cena então a questão do desejo como motivador<br />
do processo erótico. O processo de análise envolve então<br />
aquilo que Michel Foucault aponta em sua História da Sexualidade:<br />
Analisar as práticas pelas quais os indivíduos foram<br />
levados a prestar atenção a eles próprios, a se<br />
decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos<br />
de desejo, estabelecendo de si para consigo<br />
uma certa relação que lhes permite descobrir, no<br />
desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou<br />
decaído.<br />
(FOUCAULT, 1984: 11)<br />
Interessante observar também as relações que se estabelecem<br />
entre o ser masculino e o ser feminino nesse processo.<br />
Para Georges Bataille, “o erotismo deixa entrever o avesso de<br />
uma fachada cuja aparência correta nunca deve ser desmentida...”<br />
(1986: 102), uma vez que no avesso revelam-se sentimentos,<br />
partes do corpo e maneiras de ser de que temos habitualmente<br />
vergonha. O eu lírico masculino, através desse<br />
princípio erótico (desestruturador), reúne os fragmentos da<br />
mulher que se configuram pelos elementos do seu corpo nu<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 186
(vulva, vagina, clitóris, etc.). Percebe-se, dessa forma, a construção<br />
do universo erótico masculino a partir da reificação de<br />
um “corpo feminino sem rosto”. Importante lembrar que essa<br />
construção passa pelo desejo de transcendência, busca a metafísica<br />
do ser, pois “todo erotismo é sagrado” (Cf. BATAILLE,<br />
1986), localiza-se no ponto mais elevado do espírito humano.<br />
Na teoria freudiana, a questão da sexualidade sempre<br />
predominou na estrutura instintiva. Num primeiro momento,<br />
volta-se aos pólos antagônicos instinto libidinal (sexo) e de<br />
autopreservação (ego), em seguida a teoria concentra-se no<br />
conflito entre Eros – instinto de vida – e Tanatos – instinto de<br />
morte. Depois essa concepção é substituída pela hipótese de<br />
uma libido narcisista (onipresente), desencadeadora dos poderes<br />
de Eros na medida em que a libido é liberada.<br />
Ainda precisamos destacar o lugar do princípio do Nirvana,<br />
que converge “terrivelmente” com o princípio do prazer.<br />
Para Marcuse, “se o princípio do Nirvana é a base do<br />
princípio de prazer, então a necessidade de morte aparece sob<br />
uma luz inteiramente nova. O instinto de morte é destrutividade,<br />
não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão.”<br />
(1969: 47). Entendemos aqui o princípio do Nirvana como<br />
completa gratificação do Ser, resultado do escoamento livre<br />
das quantidades de excitação, nesse sentido este princípio surge<br />
não como morte, mas como vida.<br />
Chamo de eróticos os quatro poemas selecionados para<br />
a realização deste trabalho, os quais foram recolhidos do livro<br />
O amor natural, publicado postumamente. Eróticos porque<br />
“soberanos”, ou melhor, porque nos conduzem à soberania, não<br />
masculina ou feminina, mas do Ser. O objetivo deste trabalho<br />
foi analisar os elementos que (re-)criam o mundo através da<br />
reinvenção de palavras e gestos dessa escritura que se apresenta<br />
como erótica.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 187<br />
2 - Amor: sagrado ritual poético ou mero ritual sagrado?<br />
Em “Amor – pois que é a palavra essencial”, temos uma<br />
interpelação do eu lírico ao amor para que este reúna “alma e<br />
desejo, membro e vulva”.<br />
Amor - pois que é palavra essencial<br />
comece esta canção e toda a envolva.<br />
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,<br />
reúna alma e desejo, membro e vulva.<br />
Quem ousará dizer que ele é só alma?<br />
Quem não sente no corpo a alma expandir-se<br />
até desabrochar em puro grito<br />
de orgasmo, num instante de infinito?<br />
O corpo noutro corpo entrelaçado,<br />
fundido, dissolvido, volta à origem<br />
dos seres, que Platão viu completados:<br />
é um, perfeito em dois; são dois em um.<br />
Integração na cama ou já no cosmo?<br />
Onde termina o quarto e chega aos astros?<br />
Que força em nossos flancos nos transporta<br />
a essa extrema região, etérea, eterna?<br />
Ao delicioso toque do clitóris,<br />
já tudo se transforma, num relâmpago.<br />
Em pequenino ponto desse corpo,<br />
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.<br />
Vai a penetração rompendo nuvens<br />
e devassando sóis tão fulgurantes<br />
que nunca a vista humana os suportara,<br />
mas, varado de luz, o coito segue.<br />
E prossegue e se espraia de tal sorte<br />
que, além de nós, além da própria vida,<br />
como ativa abstração que se faz carne,<br />
a idéia de gozar está gozando.<br />
E num sofrer de gozo entre palavras,<br />
menos que isto, sons, arquejos, ais,<br />
um só espasmo em nós atinge o clímax:<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 188
é quando o amor morre de amor, divino.<br />
Quantas vezes morremos um no outro,<br />
nu úmido subterrâneo da vagina,<br />
nessa morte mais suave do que o sono:<br />
a pausa dos sentidos, satisfeita.<br />
Então a paz se instaura. A paz dos deuses,<br />
estendidos na cama, qual estátuas<br />
vestidas de suor, agradecendo<br />
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.<br />
Em seguida, o eu lírico dilui as fronteiras entre corpo/alma,<br />
eu/outro, material/imaterial. Assim temos respectivamente<br />
“Quem não sente no corpo a alma expandir-se/ O corpo<br />
noutro corpo entrelaçado... fundido, dissolvido... / Integração<br />
na cama ou já no cosmo? / Onde termina o quarto e chega aos<br />
astros?”. É a libido a grande responsável pela conjunção dos<br />
corpos, pela sublimação do desejo, no qual o Eu e o Outro exercitam<br />
o ritual erótico: reúne-se, primeiro, sujeito (alma,<br />
membro) ao objeto (desejo, vulva); depois, funde-se o sujeito<br />
ao objeto. Aqui ocorre a diluição de fronteiras materiais (corpos)<br />
e não-materiais (almas) para, em seguida, Eros (energia<br />
sexual) encerrar-se em Tanatos (impulso da morte).<br />
Nas palavras de Terry Eagleton: “Lutamos para avançar,<br />
e somos constantemente levados para trás, buscando retornar<br />
a um estado anterior à nossa própria consciência” (1983:<br />
173). Assim, o orgasmo representa o limite entre Eros e Tanatos,<br />
depois disso “E num sofrer de gozo entre palavras”... “É<br />
quando o amor morre de amor, divino”. Em seguida, a paz é<br />
instaurada. Aqui o ego não pode ser atingido, a paz representa<br />
a bem-aventurança da morte.<br />
Já “Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas”, o tátil<br />
e visual se congregam a fim de preceder o ritual amoroso/sexual<br />
e depois, “na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado”.<br />
Aqui, mais uma vez, a idéia do sagrado está ligada a Eros:<br />
o amor realiza-se no elemento erótico (flora pubescente):<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 189<br />
Em teu crespo jardim,<br />
anêmonas castanhas.<br />
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas<br />
detêm a mão ansiosa: Devagar.<br />
Cada pétala ou sépala seja lentamente<br />
acariciada, céu; e a vista pouse,<br />
beijo abstrato, antes do beijo ritual,<br />
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.<br />
Neste poema, o eu lírico direciona o olhar do leitor para<br />
o objeto sexual, no caso, o corpo feminino representado metonimicamente,<br />
sendo o órgão genital a parte que representa o<br />
todo. Segundo Herbert Marcuse, “A finalidade erótica de sustentar<br />
todo o corpo como sujeito-objeto de prazer requer o contínuo<br />
refinamento do organismo, a intensificação de sua receptividade,<br />
o crescimento de sua sensualidade” (op.cit., p. 185).<br />
Se, por um lado, explorar o efeito de elementos corporais produz<br />
uma erotização acentuada; por outro, apresenta uma caracterização<br />
do Outro (feminino) fortemente estreita e redutora. O<br />
órgão sexual feminino é o alvo dos olhos e mãos possuidores<br />
do eu lírico masculino. O que é sagrado: o corpo feminino possuído<br />
ou a ação possuidora do sujeito que olha e toca?<br />
No poema “A língua girava no céu da boca”, por sua<br />
vez, o poeta brinca com as palavras, re(inventando-as):<br />
A língua girava no céu da boca<br />
A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas<br />
bocas, no céu único.<br />
O sexo desprendera-se de sua fundação, errante<br />
imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.<br />
Os dois nos movíamos possuídos, trespassados,<br />
eleu. A posse não resultava de ação e doação,<br />
nem nos somava. Consumia-nos em piscina de<br />
aniquilamento. Soltos fálus e vulva no espaço<br />
cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados<br />
de nós.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 190
A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo,<br />
se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se.<br />
A vida repontou: a vida menor.<br />
“Eleu”, a comunhão perfeita entre dois seres é aquilo<br />
que, no ato sexual, os torna unos. Aqui o sexo representa a vida<br />
maior, sublimada, algo capaz de libertar os corpos “Soltos,<br />
fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em<br />
núpcia, emancipados de nós”. Em tom de prosa poética, uma<br />
vez mais, o ritual do sexo desponta. No entanto, homem e mulher,<br />
neste momento, tornam-se posse dos próprios sexos, pois<br />
que “O sexo desprende-se de sua fundação, errante imprimianos<br />
seus traços de cobre”... e “Os dois movíamos possuídos”.<br />
Durante o gozo, o instinto se apodera dos corpos, o<br />
“princípio do prazer e o princípio do Nirvana convergem então”<br />
(Marcuse, 1969: 202). Ainda para Marcuse, “O instinto da<br />
morte opera segundo o princípio do Nirvana: tende para aquele<br />
estado de gratificação constante em que não se sente tensão<br />
alguma – um estado sem carências” (1969: 202). Isso é revelado<br />
no verso: “Consumia-nos em piscina de aniquilamento...<br />
vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós”. “A<br />
restituição à consciência”, “a reintegração do sexo” e “o repontamento<br />
da vida menor” representam a volta ao princípio da<br />
realidade freudiano.<br />
Por fim, em “Para o sexo a expirar”, o orgasmo traz a<br />
explicação do mundo, é ele a via pela qual a vida, na sua plenitude,<br />
é experimentada:<br />
Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.<br />
Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.<br />
Amor, amor, amor - o braseiro radiante<br />
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.<br />
Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,<br />
a minha se rebela ante a morte anunciada.<br />
Quero sempre invadir essa vereda estreita<br />
onde o gozo maior me propicia a amada.<br />
Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?<br />
enregela-se o nervo, esvai-se-me o prazer<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 191<br />
antes que, deliciosa, a exploração acabe.<br />
Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,<br />
e assim possa eu partir, em plenitude o ser,<br />
de sêmen aljofrando o irreparável ermo.<br />
Pode-se aqui vislumbrar a questão do tempo na tecitura<br />
do jogo erótico. Tempo e morte surgem como elementos repressivos<br />
do prazer sexual, uma vez que “A intemporalidade é<br />
o ideal do prazer. O tempo não tem poder sobre o id, que é o<br />
domínio original do princípio de prazer. Mas o ego, por cujo<br />
intermédio, exclusivamente, o prazer se torna real, está em sua<br />
inteireza sujeito ao tempo.” (MARCUSE, 1969: 200)<br />
A previsão do fim aponta para a dor, o sofrimento: “Pobre<br />
carne senil, vibrando insatisfeita/ a minha se rebela ante a<br />
morte anunciada”.<br />
3 - Considerações finais<br />
A poesia erótica de Drummond passa por um ritual no<br />
qual o amor nos remete ao princípio do prazer, já descrito por<br />
Freud, como o locus onde não há repressão ao prazer e à satisfação,<br />
local da morada do instinto que é a voz mais íntima do<br />
ser. O sujeito, neste processo, é masculino. A voz feminina se<br />
revela ausente na cena amorosa. A mulher surge como cúmplice,<br />
mas não como enunciadora do prazer, o que revela um discurso<br />
pautado no “sonho de uma transcendência masculina” em<br />
que o papel da mulher é de uma mera coadjuvante ou de completude<br />
passiva. Assim, segundo Brandão:<br />
Se a mulher aceita ser a ilusão da completude alheia,<br />
ela aceita um lugar que a imobiliza e mumifica,<br />
lugar de morte, enquanto impossibilidade de<br />
seguir o trajeto metonímico do seu próprio desejo.<br />
Se ela se aliena aí, ela também se petrifica, acreditando<br />
realizar um desejo que é, afinal, o desejo<br />
de um outro.<br />
(2006: 24)<br />
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Aprisionada na perversão do desejo masculino, a mulher<br />
surge possuída por uma construção discursiva (naturalizada)<br />
em que acaba como coadjuvante silenciosa. Então, a partir<br />
de um ponto de vista masculino e “caleidoscópico”, os termos<br />
do duplo eixo sexo/amor passam a ser indissociáveis, recebendo<br />
uma densidade metafísica, uma vez que “O amor é o que há<br />
de imperioso na vida, é o momento luminoso na escuridão, a<br />
afirmação da vida contra a morte, a procura da eternidade no<br />
fugaz instante” (SANT’ANNA, 1993: 83).<br />
Referências Bibliográficas:<br />
ALBERONI, Francesco. O erotismo – fantasias e realidades<br />
do amor e da sedução. Élia Edel (trad.). São Paulo: Círculo do<br />
livro, 1986.<br />
ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. 2ª ed. Rio<br />
de janeiro: Record, 1993.<br />
BATAILLE. Georges. O erotismo. 2ª ed. Porto Alegre: L &<br />
PM, 1987.<br />
BRANDÃO, Ruth Silviano. Mulher ao pé da letra: a personagem<br />
feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />
2006.<br />
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São<br />
Paulo. Martins Fontes, 1983.<br />
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2; o uso dos<br />
prazeres. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1984.<br />
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização - Uma interpretação<br />
filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />
1969.<br />
PEREIRA, Ana Santana de Souza Fontes. De anjo gauche a<br />
anjo na contramão – por uma poética do falanjo. Dissertação<br />
(Mestrado). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do<br />
Norte, 1998. (Disponível em < http:<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 193<br />
//serviços.capes.gov.br/capesdw.html?idtese>. Acesso em 23<br />
de <strong>dez</strong>embro de 2006).<br />
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O erotismo nos deixa<br />
gauche? In: ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural.<br />
Rio de janeiro: Record, 1993, p. 77-84.<br />
SANTA-CRUZ, Maria de. A oitava face do poeta: o amor natural<br />
– erotismo tardio ou alquimia do amor? Scripta, Belo<br />
Horizonte: s.n, v. 6, n. 12, jan/fev, p. 82-99, 2003.<br />
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ROMANCE DO OLHAR DANDI<br />
DE CLARICE LISPECTOR<br />
Mário Guidarini<br />
UNISUL<br />
RESUMO:<br />
Objeto desta crítica literária é invenção de Lucrécia Neves e de São Geraldo<br />
por Clarice Lispector. Quadro teórico-metodológico das três categorias<br />
fenomenológicas da Semiótica de Charles Peirce dá suporte ao ensaioresenha.<br />
Detalhes do olhar, ora difuso, ora atento, da protagonista e memória<br />
visual nomeiam coisas, objetos e animais narrados pela autora em forma<br />
de signos lingüísticos culturalmente refinados, acrescidos de nuances feminizantes.<br />
Ficção e crítica entrelaçadas. Meta reforçar presença viva de Clarice<br />
Lispector na literatura e na fortuna crítica contemporâneas.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Olhar, invenção, Semiótica.<br />
Introdução<br />
Este ensaio-resenha alterna ficção e crítica. Ensaio tomado<br />
como experiência de distanciamento crítico. Vale-se do<br />
quadro teórico-metodológico atrelado à Semiótica de Charles<br />
Sanders Peirce, instrumento de análise do discurso de Clarice<br />
Lispector. Resenha, recurso ilustrativo e prazeroso decorrente<br />
da alternância entre ficção e crítica.<br />
Descrição coloca em luz alta instância do discurso.<br />
Não-análise psicológica de dizeres e fazeres dos personagens.<br />
Narrar percepções do olhar da protagonista Lucrécia Neves em<br />
terceira pessoa pela autora, no espaço literário, implica manter<br />
distanciamento crítico frente à produção de novos significados<br />
romanescos em “A cidade sitiada”. Autora e espaço literário<br />
formatam redes semióticas ilimitadas nos corpos das doze crônicas<br />
na invenção de Lucrécia quanto da cidade São Geraldo.<br />
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A moça e o cavalo representavam as duas raças<br />
de construtores que iniciaram a construção da futura<br />
metrópole [...] tudo o que ela via era alguma<br />
coisa. [...] “O que se vê” – era a sua única vida interior;<br />
e o que se via tornou-se a sua vaga história<br />
[...]. E a cidade ia tomando a forma que o seu olhar<br />
revelava.<br />
(LISPECTOR, 1982: 18-19)<br />
Monólogos interiores sobre percepções de coisas pelo<br />
olhar detalhista da protagonista são subsumidos na escritura<br />
romanesca pela autora, sem estereótipos, nem jogos pirotécnicos<br />
retóricos e nem estremecimentos efêmeros. Trata-se, pois,<br />
dum romance do olhar, montado em câmara lenta e sem performances<br />
contundentes. Diálogos esporádicos. Focos narrativos<br />
de figurinos ao alcance da percepção visual e tátil da protagonista.<br />
Perceptivos, restritos às informações sensóriomotoras<br />
dos cinco sentidos. “São Geraldo era explorável apenas<br />
pelo olhar [...] ela debruçava-se sem nenhuma individualidade,<br />
procurando apenas olhar diretamente as coisas”<br />
(LISPECTOR, 1982: 20).<br />
Filigramas narrativas inesperadas e mudanças surpreendentes<br />
de representações semióticas emergem da montagem<br />
paratática do romance em doze crônicas de tamanhos e valores<br />
poéticos díspares. Sobreposições e contraposições de enfoques<br />
em terceira pessoa pela autora, alimentam verossimilhanças<br />
totêmicas entre sonhos e alucinações de Lucrécia e cavalos<br />
imaginários em prados ao redor de São Geraldo.<br />
Uma onda de poeira se erguendo ao galope de um<br />
cavalo imaginário [...] os cascos batendo, focinhos<br />
espumantes erguendo-se para o ar em ira e<br />
murmúrio [...]. O medo a tomava nas trevas do<br />
quarto, o terror de um rei, a mocinha queria responder<br />
com as gengivas à mostra.<br />
(LISPECTOR, 1982: 22)<br />
Se via diferente no espelho dos outros: entortada<br />
numa expressão passiva, monstruosa. [...] A cada<br />
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Romance do olhar<br />
parada do sonho, fixava uma rua desconhecida<br />
com novas pedras. [...] Eis que sobre a pista os<br />
cavalos diminuíam na distância.<br />
(LISPECTOR, 1982: 76)<br />
Coloca em alto relevo olhar objetos, coisas e animais<br />
designados por signos semióticos que representam algo (objeto)<br />
para alguém (interpretante) sob algum aspecto, dentro dum<br />
processo de semiose ilimitada de signos que remetem a outros<br />
signos imediatos. Interpretantes dinâmicos (mentes) por sua<br />
vez conotam fenômenos da experiência humana na consciência<br />
de intérpretes do discurso romanesco. “Fitar as coisas imóveis<br />
por um momento [...]. Um camelinho. A girafa. O elefante de<br />
tromba erguida [...] entre os vegetais carnudos de sono [...].<br />
Adormeceu desperta como uma vela” (LISPECTOR, 1982:<br />
75).<br />
“A colina se recortou com a niti<strong>dez</strong> torta de um desenho<br />
mal feito. [..] As torres arquejavam sob a lembrança de guerras<br />
e conquistas. [...] Desperta como o luar é ereto” (LISPECTOR,<br />
1982: 78).<br />
Olhar dandi e memória visual detalhista da escritora<br />
narra em terceira pessoa mantendo distanciamento crítico sem<br />
envolvimentos com trama do romance. Crônicas excelentes.<br />
Quadros literários culturalmente refinados. Nuances feminizantes.<br />
Expressões e sentimentos orquestrados. Filigramas tecidas<br />
com luci<strong>dez</strong>, entremeadas de repetições.<br />
Nem escuridão nem claridade – aurora. [...] Nem<br />
escuridão nem claridade – visibilidade. [...] Sob<br />
os estremecimentos, cambiantes da claridade até<br />
seus sinais já apareciam no rosto.<br />
(LISPECTOR, 1982: 82)<br />
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Analogias dizem o outrem. Metonímias formatam partes<br />
pelo todo. Ambas rompem linearidade – princípio, meio e<br />
fim – da narrativa tradicional.<br />
Lucrécia Neves não seria bela jamais. Tinha porém<br />
um excedente de beleza que não existe nas<br />
pessoas bonitas [...]. Inclinou-se de súbito para o<br />
espelho e procurou achar o modo de se ver mais<br />
bela [...] e pronta parecia um objeto, um objeto de<br />
São Geraldo.<br />
(LISPECTOR, 1982: 32-33)<br />
Sem pintura o rosto perdia os vícios de que em<br />
outros momentos Lucrécia Neves precisava para<br />
se dar certo peso neste mundo. [...] No fundo<br />
mesmo, ela se <strong>jul</strong>gava uma deusa. [...] Remoendo<br />
sua dificuldade de raciocinar.<br />
(LISPECTOR, 1982: 86-87)<br />
Indícios há de Lucrécia Neves ter sido elo final das cinco<br />
mil vidas da lendária maquiavélica Lucrécia Bórgia. Mera<br />
metaficção historiográfica sem qualquer compromisso com a<br />
verdade histórica vislumbrada pela escritora?<br />
Expressão e impressão<br />
Percepções visuais de arranjos e características físicas<br />
de objetos, coisas e animais em primeiridade monádica são<br />
incorporadas pela autora em terceiridade, grau máximo de semioticidade.<br />
Lucrécia, ao sonhar ser estátua grega, sem rosto<br />
no jardim da praça de São Geraldo, auto-encena-se ícone, grau<br />
mínimo de semioticidade.<br />
E seu destino como grega então era tão inconsciente<br />
quanto agora em São Geraldo [...] e a estátua<br />
jazia nas trevas do jardim. [...] As órbitas vazias.<br />
Ela mesma endurecida num só pedaço [...] agora<br />
facilmente transportável.<br />
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E assim a tinham pousado. De cabeça para baixo<br />
e pés juntos para cima.<br />
(LISPECTOR, 1982: 80-81)<br />
Percepção sensório-motora capacita-a encenar figurinos<br />
no ambiente urbano de São Geraldo e fazenda de origem, onde<br />
impressão é expressão.<br />
Moças riam difíceis de se comportar [...]. Ela pisando<br />
com os cascos na pedra escorregadia [...].<br />
A moça e o cavalo representavam as duas raças<br />
de construtores da futura metrópole [...] tudo o<br />
que ela via era alguma coisa. Nela e no cavalo a<br />
impressão era a expressão.<br />
(LISPECTOR, 1982: 18-19)<br />
Clarice revitalizou figurinos sob forma de signos na invenção<br />
da protagonista “olhando estúpida em volta, com dificuldade<br />
de pensamento que a falta de sensualidade lhe trazia”<br />
(LISPECTOR, 1982: 34).<br />
Análises discursivas pelo viés da semiose ilimitada<br />
permitem ao leitor crítico formular juízos perceptivos sobre<br />
versões não críticas da protagonista impregnadas de indistinções<br />
entre sujeito e objeto, realidade e ficção, sonho e vigília,<br />
protagonista e coisa.<br />
Aos poucos ela não saberia se olhava a imagem<br />
ou se a imagem a fitava porque assim sempre tinham<br />
sido as coisas e não se saberia se uma cidade<br />
tinha sido feita para as pessoas ou as pessoas<br />
para a cidade – ela olhava.<br />
(LISPECTOR, 1982: 48)<br />
Ver-se como outrem<br />
Monólogos interiores de Lucrécia, narrados por Clarice<br />
sob forma de juízos perceptivos, abordam características físicas<br />
dos figurantes em ambientes fechados (quarto, sala, sobrado) e<br />
abertos (rua, praça, sítio) sem recorrer a questionamentos reflexivos.<br />
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Assim como nunca precisava da inteligência,<br />
nunca precisava da verdade [...]. Lucrécia Neves<br />
tanto vivia se mostrando que algumas vezes chegava<br />
mesmo a se ver.<br />
Só que se via como um bicho veria uma casa: nenhum<br />
pensamento ultrapassando a casa.<br />
(LISPECTOR, 1982: 71-72)<br />
Autora quanto protagonista são construtos do romance.<br />
Pinta alegoricamente seu duplo Lucrécia. Narrar imagens não<br />
conscientes, sob algum aspecto para alguém, desencadeia semioses<br />
ilimitadas de verossimilhanças inesperadas entre ficção<br />
e realidade, sonho e vigília, olhar difuso e ver atento, aparência<br />
e realidade. “Formigas, ratos, vespas, rosados morcegos, manadas<br />
de éguas saíram sonâmbulas dos esgotos” (LISPECTOR,<br />
1982: 76).<br />
“De que era feita a flor senão da própria flor”.<br />
(LISPECTOR, 1982: 62)<br />
Oh, mas as coisas não eram jamais vistas: as pessoas<br />
é que viam. [...] Que diria se pudesse passar<br />
de ver os objetos a dizê-los... [...]<br />
O difícil é que a aparência era a realidade. [...] De<br />
que era feita a flor senão da própria flor.<br />
(LISPECTOR, 1982: 63)<br />
Sonhos e alucinações<br />
Passado de São Geraldo, década do após primeira guerra<br />
mundial, diz o presente duma metrópole em progresso após<br />
segunda guerra mundial. “Lá estava a cidade. [...] Se ao menos<br />
estivesse fora dos muros. Mas não havia como sitiá-la. Lucrécia<br />
Neves estava dentro da cidade” (LISPECTOR, 1982: 63-<br />
64).<br />
“Sob o sonho os motores do subúrbio não paravam,<br />
não paravam, a saliva escorria de sua boca aberta. Adormeceu<br />
enfim mais profundamente” (LISPECTOR, 1982: 78).<br />
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No jardim, quinta crônica, autora encena um dos sonhos<br />
da protagonista valendo-se de sobreposições, contraposições e<br />
condensações de imagens não-verbais. “Da barca soterrada na<br />
areia só aparecia a proa. E, na porta mutilada, velava a cabeça<br />
de um galo” (LISPECTOR, 1982: 61).<br />
Felicidade possível que poderia ter acontecido, não aconteceu<br />
ao se casar com forasteiro empreendedor Mateus.<br />
Transmutou-se em melancolia após enterro do esposo. Obrigou-a<br />
a retornar à casa materna, agora ambas viúvas. “Seria<br />
esta a história de uma vida vazia? [...] Tudo o que possuíra de<br />
mais precioso estava fora dela [...] recebeu a carta da mãe chamando-a<br />
para a fazenda” (LISPECTOR, 1982: 173).<br />
Imagens intertextuais e interdiscursivas<br />
Signos romanescos recriam autora, personagens e interpretantes<br />
dentro de processos de semioses ilimitadas de signos<br />
entre si e noeses ilimitadas de pensamentos entre si e idéias<br />
entre idéias. Enunciações semióticas dependem de interlocutores<br />
intertextuais e interdiscursivos. Semiótica peirceana acopla<br />
dimensão imediata à dimensão dinâmica da experiência literária.<br />
Autora imbrica percepções sensório-motoras da protagonista,<br />
grau mínimo de semioticidade ao grau máximo de significados<br />
literários. Interpretantes imediatos (livros, artigos) e<br />
interpretantes dinâmicos (mentes, leitores) desvelam imagens<br />
plásticas não-verbais de sonhos nos interdiscursos das doze<br />
crônicas (Cf. PIERCE, 1999: 71-76).<br />
A vigília da senhora de preto se alongava em<br />
sombra [...]. A fruta de ouro (no espelho) oscilava<br />
plena [...]. Deveria apanhá-la com a sua própria<br />
perturbação [...] com a escuridão cheia de abelhas<br />
de mel [...] ser apenas a mancha escura no espelho<br />
[...] até alcançar a atenção universal e sofredora<br />
de um cão [...] não era o cão, era ela que vi-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 201<br />
giava a casa [...]. Tal a sua gran<strong>dez</strong>a, tal a sua miséria.<br />
(LISPECTOR, 1982: 160)<br />
Produções da literatura brasileira, somadas às demais literaturas<br />
em português, jamais esgotarão potencialidades inerentes<br />
à língua. Romance sobrevive nos dizeres e fazeres dos<br />
personagens, constelações e criações seminais de estilo pessoal,<br />
polissemias, palavras, frases e tessituras prenhes de jogos<br />
metafóricos, metonímicos e alegóricos, filigramas feminizantes<br />
de críticas sutis ao medo de Lucrécia ultrapassar barreira sensório-motora.<br />
Quando uma coisa não pensava, a forma que possuía<br />
era o seu pensamento. O Peixe era o único<br />
pensamento do peixe. [...] O segredo das coisas<br />
estava em que, manifestando-se, se manifestavam<br />
iguais a elas mesmas.<br />
(LISPECTOR, 1982: 61)<br />
Crítica literária<br />
Autora em “A cidade sitiada” fragmenta linearidade<br />
discursiva do romance tradicional (princípio, meio, fim) valendo-se<br />
das novas técnicas de montagem, herdadas, salvo melhor<br />
juízo, do novo romance francês, responsável pela revitalização<br />
e sobrevivência de novos significados literários.<br />
Crítica literária implica campo teórico-metodológico,<br />
regras de formação e transformação na construção de textos<br />
críticos sobre textos de ficção. Autores de criações literárias e<br />
artísticas não-verbais não se atêm a normas pré-fixadas por<br />
teóricos e teorias de literalidade. Encenação da protagonista de<br />
si e para si própria testemunha veredito.<br />
Ela era um objeto da sala: os pés apoiavam-se no<br />
assoalho, o corpo se revelava no sexo e na forma.<br />
[...] Seria o momento de alguém olhá-la e vê-la.<br />
[...] Lucrécia Neves sorria em mistério e estupi<strong>dez</strong>.<br />
[...]<br />
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Sorrindo, bonitinha, olhando a mão direita onde<br />
queria ver em breve um anel de compromisso [...]<br />
de aliança.<br />
(LISPECTOR, 1982: 103)<br />
Significância romanesca constrói, desloca, decodifica e<br />
atrela jogos de imagens não conscientes a novos significados<br />
pertinentes. Autora encena sentimentos conflitantes de expressões<br />
e sensibilidades femininas. “Um modo de fazer doçura<br />
que não estava mais na doçura” (LISPECTOR, 1982: 153).<br />
Silhuetas estilísticas<br />
Estilo romanesco tradicional localizava-se entre invenção<br />
e linguagem, expressão e conteúdo, forma e fundo, som e<br />
sentido, imagem e mensagem sincronizados. Na contemporaneidade,<br />
estilo instala-se igualmente entre língua e discurso,<br />
código e mensagem, escritura e liberdades poéticas.<br />
Monólogos interiores, pré-sígnicos, inacabados e fractais<br />
da protagonista fluem da memória visual e ímpar da escritora<br />
dandi.<br />
O que não se sabe pensar, se vê! [...] Sala é o lugar<br />
onde estão as coisas. [...] As flores do jarro.<br />
Uma era vermelha. Tinha o talo fraco. Uma era<br />
cor-de-rosa. Era pequena. [...] O bibelô estendia a<br />
flauta. [...] O canto da sala era escuro. A parede<br />
[...]. O teto [...]. A estante. A porta. O chão. [...] O<br />
relógio. Flor, jarros, teto, chão, veneziana.<br />
(LISPECTOR, 1982: 93)<br />
Gostava de ficar na própria coisa: é alegre o sorriso<br />
alegre, é grande a cidade grande, é bonita a cara<br />
bonita – e era assim que se provava ser claro<br />
apenas o seu modo de ver [...] a cidade é a cidade.<br />
(LISPECTOR, 1982: 88)<br />
Linguagem incorpora memórias e experiências pessoais<br />
e culturais nos corpos das crônicas, cada qual como parte pelo<br />
todo, sem ter que somá-las para obtenção duma compreensão<br />
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satisfatória do romance. Lembram exposição de quadros pintados<br />
com palavras, frases e sentimentos poéticos dentro duma<br />
luci<strong>dez</strong> erudita sobre o medo de Lucrécia ultrapassar percepções<br />
visuais.<br />
Estava bruta, de pé, uma besta de carga ao sol.<br />
Essa era a espécie mais profunda de meditação de<br />
que era capaz [...] o olho sonolento como modo<br />
aberto de ver as coisas. Apenas o modo, não a<br />
posse [...].<br />
Podia-se pensar tudo contanto que não se soubesse.<br />
[...]<br />
Mesmo o erro era uma descoberta. Errar fazia-a<br />
encontrar a outra face dos objetos e tocar-lhes o<br />
lado empoeirado.<br />
(LISPECTOR, 1982: 90).<br />
“Seu medo era o de ultrapassar o que via. [...] No espelho<br />
flutuava o conhecimento de toda a sala” (LISPECTOR,<br />
1982: 91).<br />
Doze enunciações cíclicas expressam crítica sutil e débil<br />
dum olhar dandi sobre crescimento desmesurado de São<br />
Geraldo, sempre mais poluída por agressões ao meio ambiente<br />
e desconforto de moradores.<br />
Também a cidade deveria ser espiada por uma seteira.<br />
Assim quem espiasse se defenderia, como a<br />
coisa espiada. Ambos fora do alcance.[...]<br />
Tudo o que via se tornava real [...] o horizonte<br />
cortado de chaminés e telhados [...] a aparência<br />
era a realidade. Sua dificuldade de ver era como<br />
se pintasse.<br />
(LISPECTOR, 1982: 89).<br />
Indícios de lesbianismo<br />
Ana e filha Lucrécia, ambas viúvas, inventam-se personagens<br />
dum faz-de-conta lésbico.<br />
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Dois personagens que elas jamais saberiam descrever<br />
mas que podiam imitar, apenas inventando-se.<br />
[...]<br />
De outras vezes, quando a filha a tocava, Ana se<br />
sobressaltava e ainda tentava trotar entre as coisas.<br />
Mas hoje arfava ligeiramente [...] deu uma<br />
expressão de amor tão luminoso que se alguém a<br />
visse teria visto o amor.<br />
(LISPECTOR, 1982: 57-58).<br />
Gestos e ações de auto-invenção entre personagens do<br />
mesmo sangue conotam instintos genesíacos fulminantes impostos<br />
pela natureza. Pulsões do inconsciente coletivo simulam<br />
concomitantemente prazer e dor, atração e repulsa. Incestos<br />
rompem interditos éticos e políticos sob forma de jogos cênicos<br />
de ódio-amor, traição-fidelidade, ficção-ilusão entre mãe e filha<br />
no âmago do espaço literário. Conspurcam pacto coletivo imemorial<br />
do ethos mitológico.<br />
Olhou com alguma piedade aquela moça à sua<br />
frente, cheia de estúpida juventude, a quem jamais<br />
se poderia ensinar a... a... bondade? Que<br />
bondade? A moça então respondeu que se morresse<br />
– afinal que importava? A mãe não choraria<br />
sequer [...] mas já não precisavam de grandes<br />
preparativos para entrar nos dois personagens.<br />
(LISPECTOR, 1982: 58)<br />
Perfil do olhar dandi de Lucrecia<br />
O olhar não era descrito, eram descritivas as posições<br />
das coisas. [...]<br />
As coisas pareciam só desejar aparecer [...] era<br />
apenas o que se podia dizer. [...] Olhando agora<br />
pelo buraco da fechadura. Como as coisas pareciam<br />
grandes vistas pelo orifício. Adquiriam volume,<br />
sombra e claridade: elas apareciam.<br />
(LISPECTOR, 1982: 89)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 205<br />
Protagonista vislumbra posições efêmeras de coisas e<br />
objetos de seu difuso parecer ser coisa entre coisas. Lispector<br />
dandi narra olhar de Lucrécia conferindo-lhe duradoura beleza<br />
poética. Constelações de semioses ilimitadas de coisas feitas de<br />
coisas. Espiar dispensa pensar.<br />
Espiando [...] alguma coisa não existiria senão<br />
sob intensa atenção; olhando fazia com que ela<br />
não buscasse a causa das coisas, mas a coisa apenas<br />
que está ali [...]. Seu medo era o de ultrapassar<br />
o que via.<br />
(LISPECTOR, 1982: 91)<br />
A sala envelhecia com os bibelôs gelados [...].<br />
Lucrécia não os entendia [...]. Essas coisas feitas<br />
das próprias coisas [...]. Uma emprestada à outra<br />
emprestada à outra [...].<br />
O que não se sabe pensar, se vê!<br />
(LISPECTOR, 1982: 93-94)<br />
Pantomima de si para si<br />
Caíra numa arte antiga de corpo e este procurava<br />
a si mesmo tateando ignorância [...]. Exprimindo<br />
pelo gesto da mão sobre o único pé, e entortado<br />
com graça em oferenda, o único rosto sacudindose<br />
em pantomima, eis, eis toda ela terrivelmente<br />
física, um dos objetos. Assim permaneceu até que<br />
[...] perdera enfim o dom da fala. Porque era assim<br />
que uma estátua pertencia a uma cidade [...].<br />
Tudo isso foi uma brincadeira sabe “disse-se com<br />
pudor”.<br />
(LISPECTOR, 1982: 68-70)<br />
Sonho, enigma em fulgurações. Encena, condensa,<br />
transpõe e desloca imagens não-verbais para burlar interditos<br />
vigentes nos estados de vigília de Lucrécia. Objetos, coisas e<br />
medos assumem papéis de figurantes no sonho. Importa significância<br />
dessas imagens e fulgurações não conscientes pinçadas<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 206
pelo olhar dândi da escritora. Imagens não-verbais fabuladas<br />
no romance caracterizam-se pré-signos de outra natureza que a<br />
da língua e signos semióticos intencionais.<br />
Sonhar ser grega era a única maneira de [...] explicar<br />
seu segredo em forma de segredo; conhecer-se<br />
de outro modo seria o medo.<br />
Ela era antes dos gregos pensarem, ainda tão perigoso<br />
seria pensar. [...] E seu destino como grega<br />
então era tão inconsciente quanto agora em São<br />
Geraldo.<br />
(LISPECTOR, 1982: 80)<br />
Inconsciente coletivo retoma ciclos abissais das cinco<br />
mil vidas de Lucrécia Neves, agora estátua grega sem rosto nas<br />
trevas do jardim de São Geraldo.<br />
Paródias risíveis<br />
Vivia na rua em correrias mas sempre calmo e elegante.<br />
[...] Banho durante uma hora [...]. Cabelos<br />
grisalhos perfumados [...]. No bolso do paletó<br />
um lenço cheiroso. E ela sendo mulher, o servia.<br />
Enxugava-lhe o suor, alisava-lhe os músculos.<br />
Aviltava-a [...]. Estendendo camisas [...]. Ou alimentando-o.<br />
(LISPECTOR, 1982: 111)<br />
Mateus e Lucrécia, personagens fixos e acabados, atrelados<br />
a contextos localizados e a estereótipos de época, incorporam<br />
estigmas do entre duas guerras e status social datado.<br />
Ambos esgotam metas perecíveis no bojo do romance. Protagonista<br />
rompe finalmente cordão umbilical de esposa dócil e<br />
submissa.<br />
Um deles precisaria ser expulso, agora que Lucrécia<br />
recuperara o antigo poder [...]. Achava-se a<br />
criatura mais inteligente do mundo e fazia questão<br />
de demonstrá-lo a Mateus [...] Mateuzinho –<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 2<strong>07</strong><br />
perna fina e ria rumorosamente de frieza [...]. Ela<br />
lhe dizia como se falasse de uma terceira pessoa:<br />
– Ele não entende nada de roupas! [...]<br />
Era preciso manter a hilaridade para disfarçar a<br />
palavra [...]: o estúpido.<br />
(LISPECTOR, 1982: 129)<br />
Elementos hilariantes esboçados pela protagonista provocam<br />
risos reflexivos sobre procedimentos de esposas submissas<br />
em casamentos típicos de época. Ironias do olhar feminino<br />
de esposa rebaixada à condição de cozinheira e servente<br />
afastam sentimentalismos de complacência no desfecho infeliz.<br />
Enigmática, evoca seu passado maquiavélico.<br />
Cinco mil vidas<br />
“Na verdade cinco mil vidas não bastariam sequer para<br />
que nela chegasse à perfeição sua primeira vida real. Ela já<br />
começara porém o trabalho das cinco mil vidas” (LISPECTOR,<br />
1982: 147). “E na inocência de Lucrécia estava o mal [...]<br />
quem não vira nas noites sem vento como as flores de prata<br />
eram cruéis e assassinas?” (LISPECTOR, 1982: 146).<br />
Lucrécia Neves seria derradeiro elo das cinco mil vidas<br />
da sósia Lucrécia Bórgia? Metaficção historiográfica sem<br />
qualquer compromisso com verdades históricas? Haveria, sob<br />
algum aspecto, elo comum entre Lucrécia Bórgia renascentista,<br />
satirizada pelo personagem Filofila de Victor Hugo, e Lucrécia<br />
Neves, “tupiniquim”, a quem a escritora deu-lhe voz, rosto e<br />
olhar dandi? Beleza física e intelectual de Bórgia estimulou, na<br />
cultura ocidental, boatos e lendas sobre incestos, envenenamentos,<br />
casamentos não consumados, freira e assassina.<br />
Dotes de Neves afloram em confronto com Mateus propiciando-lhe<br />
salto qualitativo e status de sósia de Bórgia.<br />
Nunca fomos amigos – respirou com prazer –<br />
somos inimigos, meu amor, para sempre [...].<br />
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Mas Lucrécia [...] estava doce e cruel [...] de que<br />
passado perverso ela emergira. Freira ou assassina,<br />
ela descobria por um momento a nu<strong>dez</strong> de seu<br />
espírito. Nua, coberta de culpa como de perdão –<br />
e era daí que o mundo se tornava o limiar de um<br />
salto.<br />
(LISPECTOR, 1982: 148-150)<br />
Narrativa de estrutura complexa. Trata-se duma metaficção<br />
historiográfica romanesca da autora na produção de novas<br />
instâncias narrativas evocadas nos espaços ficcionais de<br />
vigília e sonhos da protagonista.<br />
Conclusão<br />
Invenção de Lucrécia Neves e São Geraldo acontece<br />
nas instâncias narrativas de doze crônicas experimentais. Olhares<br />
dandi da protagonista e da autora enfocam sentimentos opostos,<br />
características opacas de objetos, coisas e animais. Clarice<br />
narra na condição de produtora de novos significados<br />
literários. Lucrécia vê-se coisa entre artefatos. Estágio anterior<br />
à compreensão racional. Autora deu-lhe voz, rosto e sentimentos<br />
dentro dum processo de semiose ilimitada de palavras, frases<br />
e expressões culturalmente refinadas, feminizantes, acrescidas<br />
de nuances e silhuetas dignas duma fortuna crítica<br />
contemporânea e celebração condizente com os trinta anos de<br />
falecimento.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. 5. ed. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1982.<br />
PEIRCE, Charles S. Semiótica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva,<br />
1999.<br />
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DUAS FORMAS DE INTERTEXTUALIDADE EM<br />
CARTAS AO EDITOR EM NEWSWEEK<br />
Maurício Moreira Cardoso<br />
UECE<br />
RESUMO:<br />
Este artigo é uma análise de duas formas de intertextualidade, a pressuposição<br />
e a ironia, no corpus de 122 cartas ao editor extraídas da revista Newsweek.<br />
A fim de levar a termo a análise, buscamos suporte nas teorias de<br />
Bakthin (1986, 2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau<br />
(1997, 2001). Analisamos quantitativamente e qualitativamente 122 cartas<br />
endereçadas à revista no período entre <strong>jul</strong>ho e <strong>dez</strong>embro de 2002. Em relação<br />
a esse aspecto, observamos que as formas de intertextualidade referentes<br />
ao artigo ou reportagem têm uma conexão direta com o desenvolvimento<br />
da argumentação. As formas de intertextualidade são ligadas à linha argumentativa<br />
do texto, embora, algumas vezes, os limites dessas formas não<br />
possuam limites facilmente observáveis.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Discurso, cartas ao editor, intertextualidade, pressuposição, ironia<br />
1 – Introdução<br />
Este artigo é parte de nossa dissertação de Mestrado<br />
(CARDOSO, 2005) que teve por objetivo analisar as cartas ao<br />
editor coletadas da revista Newsweek no período compreendido<br />
entre <strong>jul</strong>ho a <strong>dez</strong>embro de 2002, com o fim de verificar como o<br />
jogo sócio-interacional entre leitor e editor se acha refletido nas<br />
estratégias discursivas comuns a esse gênero discursivo. Para<br />
este fim, baseando-nos principalmente em Bakthin (1986,<br />
2000), Orlandi (2001), Bronckart (2003) e Maingueneau (1997,<br />
2001) buscamos suporte teórico na área do conhecimento da<br />
Análise do Discurso, que considera um texto necessariamente<br />
ligado aos propósitos determinados pelos eventos humanos e<br />
destinado a produzir significações, não alheias à prática social.<br />
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Analisamos, qualitativa e quantitativamente, 122 cartas da referida<br />
revista no período compreendido entre <strong>jul</strong>ho e <strong>dez</strong>embro<br />
de 2002, detendo-nos em basicamente três aspectos: (a) características<br />
contextuais do gênero carta ao editor; (b) formas de<br />
heterogeneidade mostrada usadas como forma de remissão ao<br />
texto-base; e (c) relevância discursiva da identificação do leitor.<br />
As cartas ao leitor constituem, como sabemos um espaço<br />
que, em jornais e revistas, é destinado à manifestação dos<br />
leitores. São, assim, um importante instrumento da afirmação<br />
do princípio da democracia burguesa e da cidadania. E é notadamente<br />
a existência desse espaço criado para a manifestação<br />
do leitor, o ponto irradiador e, ao mesmo tempo, convergente<br />
de inúmeros fenômenos estudados através da Análise do Discurso<br />
e da Lingüística Textual. Desse modo, a superestrutura<br />
da forma de poder (o poder da comunicação escrita), que é a<br />
imprensa, é compartilhada por todos os indivíduos possuidores<br />
das competências necessárias para tanto. Por esse motivo, as<br />
cartas endereçadas aos editores de jornais e revistas constituem,<br />
a nosso ver, uma importante fonte de leitura e interpretação<br />
de determinado grupo social, mesmo que tal grupo não se caracterize<br />
por compartilhar o mesmo espaço geográfico, como é<br />
o caso de leitores de jornais e revistas cuja circulação é mundial,<br />
como, por exemplo, a revista que selecionamos.<br />
2 - A Ironia e a pressuposição<br />
Nos parágrafos seguintes, analisaremos duas formas de<br />
intertextualidade, remissivas ao texto-base, encontradas em<br />
nossa pesquisa: a pressuposição e a ironia. A escolha dessas<br />
duas formas de remissão ao texto-base se justifica pelos dados<br />
estatísticos que levantamos. As referidas formas de remissão se<br />
configuram como a mais e a menos utilizada, respectivamente.<br />
Estabelecida essa relação, queremos problematizar em torno da<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 211<br />
escolha feita pelos leitores missivistas da forma de remissão<br />
mais adequada aos seus objetivos argumentativos, bem como<br />
dos aspectos sócio-culturais que podem estar envolvidos nessas<br />
escolhas. No desenvolvimento de nossa pesquisa, detectamos<br />
as seguintes formas de remissão ao texto-base, feitas pelos leitores-missivistas<br />
do referido corpus: pressuposição, negação,<br />
ironia, referência ao título, alusão ao tema, paráfrase e excerto<br />
(correspondente a palavras entre aspas, nas obras citadas).<br />
Para uma vista panorâmica da heterogeneidade no corpus<br />
escolhido, vejamos a tabela abaixo que indica a porcentagem<br />
das caracterizações da intertextualidade encontradas nas<br />
revistas em estudo:<br />
Tabela: intertextualidade com texto original<br />
tipo de intertextualidade<br />
paráfrase<br />
referência ao título<br />
excerto<br />
alusão ao tema<br />
negação<br />
pressuposição<br />
ironia<br />
Total<br />
N° %<br />
23 18,9<br />
19 15,6<br />
20 16,4<br />
12 9,8<br />
13 10,7<br />
33 27,0<br />
2 1,6<br />
122 100,0<br />
Como podemos observar, a forma mais comum de remissão<br />
com o texto-base é a pressuposição (33/122 ou 27,0%),<br />
seguida pela paráfrase (23/122 ou 18,9%). A forma de heterogeneidade<br />
menos utilizada é a ironia (2/122 ou 1,6%). Para<br />
efeito desta análise, conforme explicamos acima, selecionamos<br />
apenas a ironia e a pressuposição.<br />
3 - A Heterogeneidade e o dialogismo<br />
Para a análise das formas de intertextualidade remissivas<br />
ao texto que originou a carta ao editor nas cartas da revista<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 212
Newsweek é central entender não só como o leitor-missivista<br />
faz remissão ao texto a que sua carta se refere, mas também o<br />
porquê da forma de remissão escolhida. Neste sentido, apesar<br />
de o caráter intertextual e o dialógico fazerem parte de qualquer<br />
enunciado (Bakhtin, 2000; Maingueneau, 1997), pretendemos<br />
estudá-los em suas formas de manifestação mais específicas<br />
– a heterogeneidade mostrada e o dialogismo<br />
circunscritos à relação direta entre o texto-base (artigo, reportagem<br />
da revista) e a carta a ele correspondente.<br />
Nesse sentido, interessa, em particular, investigar a interação<br />
leitor/editor, tomando como base a obra de Bakhtin<br />
(2000), quanto à sua noção de intertextualidade e dialogismo.<br />
Um aspecto não necessariamente intrínseco aos gêneros do<br />
discurso, mas aos textos em geral, é a noção de intertextualidade.<br />
Os textos mantêm relações com outros textos que lhes são<br />
externos, exteriores a ele, todavia, por algum viés, trazidos para<br />
dentro dele.<br />
Para começarmos a discorrer sobre a noção de intertextualidade,<br />
não podemos deixar de mencionar o pensamento de<br />
Bakhtin (2000). Na linha de pensamento deste autor, uma noção<br />
fundamental é a de dialogismo. Sobre essa noção, assevera<br />
Bakhtin:<br />
o diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a<br />
forma clássica da comunicação verbal. Cada réplica,<br />
por mais breve e fragmentária que seja,<br />
possui um acabamento específico que expressa a<br />
posição do locutor, sendo possível responder,<br />
sendo possível tomar, com relação a essa réplica,<br />
uma posição responsiva.<br />
(BAKHTIN, 2000: 294)<br />
Ora, para o autor, não existe enunciado que tenha partido<br />
do nada, tendo necessariamente que se configurar como<br />
uma resposta a outro enunciado, pois o que caracteriza o diálogo<br />
é a alternância de sujeitos falantes. Neste sentido, um dado<br />
texto nasce sempre de outro texto, direta ou indiretamente. Em<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 213<br />
outras palavras, qualquer texto traz sempre elementos de outro,<br />
ou de outros textos. Cabe aqui, mais uma vez, citar Bakhtin<br />
(2000: 317) que acrescenta o seguinte à noção de enunciado:<br />
a expressividade de um enunciado é sempre, em<br />
menor ou maior grau, uma resposta, em outras<br />
palavras: manifesta não só sua própria relação<br />
com relação ao objeto enunciado, mas também a<br />
relação do locutor com os enunciados do outro.<br />
(BAKHTIN, 2000: 317)<br />
Assim, os textos que constantemente se instauram são a<br />
materialização das necessidades comunicativas entre sujeitos.<br />
O sentido mais usual com que apreendemos este entrelace de<br />
textos é concernente às citações, “a presença de elementos reais<br />
de outros textos em um dado texto” (Fairclough, 2001: 39).<br />
Todavia as relações intertextuais nem sempre são tão explícitas<br />
quanto nas citações. Existem outros modos menos claros e menos<br />
diretos de incorporar elementos de outros textos. Fairclough<br />
ilustra com o discurso reportado, em que é possível não apenas<br />
citar o que fora dito, mas também resumir, fazer<br />
paráfrases, de modo que o texto original de algum modo se<br />
retextualiza. Assevera o autor:<br />
o discurso relatado, escrito ou pensado, atribui<br />
aquilo que é citado ou sumarizado às pessoas que<br />
o proferiram, escreveram ou o pensaram. Mas elementos<br />
de outros textos podem ser incorporados<br />
sem atribuição. Assim, a intertextualidade cobre<br />
uma ampla gama de possibilidades.<br />
(FAIRCLOUGH, 2001: 40) [tradução nossa]<br />
Em outras palavras, é muito difícil tipificar a intertextualidade.<br />
O fenômeno cobre desde citações literais, passando<br />
por discursos indiretos até o extremo em que a apropriação<br />
discursiva só pode ser reconhecida mediante o conhecimento<br />
prévio do leitor. A orientação para a diferença leva-nos às formas<br />
dialógicas nos textos. Neste particular, Fairclough segue<br />
de perto Bakhtin, para o qual uma palavra, um discurso, uma<br />
língua ou uma cultura trazem subjacente o dialogismo. Qual-<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 214
quer enunciado, como dito anteriormente, é um vínculo numa<br />
complexa cadeia organizada de outros enunciados.<br />
No entanto, Bakhtin ressalta que:<br />
o estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto,<br />
uma investigação mais profunda das formas<br />
usadas na citação do discurso, uma vez que essas<br />
formas refletem tendências básicas e constantes<br />
da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa<br />
recepção, afinal, que é fundamental também para<br />
o diálogo.<br />
(BAKHTIN, 1986: 147)<br />
Mas, como, afinal, o discurso de outrem é apreendido<br />
pelo locutor? O mencionado lingüista russo sustenta que é exatamente<br />
nas formas do discurso citado que podemos encontrar<br />
um documento objetivo que esclarece o problema. Esse documento,<br />
observa Bakhtin, fornece indicações sobre as tendências<br />
sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso<br />
de outrem que se manifestam nas formas da língua, pois é na<br />
sociedade que se situa o mecanismo do processo da intertextualidade.<br />
A sociedade<br />
escolhe e gramaticaliza apenas os elementos da<br />
apreensão ativa, apreciativa, da enunciação de outrem<br />
que são socialmente pertinentes e constantes<br />
e que, por conseqüência, têm seu fundamento na<br />
existência econômica de uma comunidade lingüística<br />
dada.<br />
(Bakhtin, 1986: 146)<br />
A isso devemos acrescentar o fato de que na transmissão<br />
sob forma escrita da enunciação de outrem deve ser levada<br />
em consideração a pessoa a quem está sendo transmitida tal<br />
enunciação, pois a orientação para uma terceira pessoa reforça<br />
a influências das forças sociais organizadas sobre o modo de<br />
apreensão do discurso. Nesse sentido, é curioso observar como<br />
numa situação real de diálogo, ao respondermos a um interlocutor,<br />
habitualmente não retomamos no nosso enunciado o enunciado,<br />
ou parte do enunciado, de nosso interlocutor.<br />
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Para Bakhtin, “as condições de transmissão e suas finalidades<br />
apenas contribuem para a realização daquilo que já está<br />
inscrito nas tendências da apreensão ativa, no quadro do discurso<br />
interior” (1986: 146). Tais tendências, aprofunda o autor,<br />
só podem desenvolver-se obedecendo aos limites das formas<br />
existentes numa determinada língua para a transmissão do discurso.<br />
O citado autor esclarece que as formas de transmissão<br />
do discurso de outrem, uma vez cristalizadas, exercem uma<br />
influência reguladora, estimulante ou inibidora, no desenvolvimento<br />
das tendências de apreensão apreciativa, cujo campo<br />
de ação é justamente definido por essas formas. Essa informação<br />
é importante no sentido de responder a indagação feita acerca<br />
da preferência sobre determinadas formas em dado gênero,<br />
enquanto outras tendem para o desuso.<br />
Contudo, Bakhtin observa que “toda a essência da apreensão<br />
apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser<br />
ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso<br />
interior” (1986: 147), pois o enunciado alheio sofre, no interior<br />
do indivíduo que o apreende, uma re-elaboração que acontece<br />
em termos do seu background cultural, de sua formação como<br />
ser social. Assim, é que o enunciado citado só pode ser corretamente<br />
entendido, quando estudado no interior do discurso<br />
que o cita. Em outras palavras, o discurso citado não pode ser<br />
divorciado do seu contexto narrativo, pois a interação dinâmica<br />
das duas dimensões, o discurso a transmitir e aquele que serve<br />
para transmiti-lo, é fundamental para quem deseja entender o<br />
fenômeno da intertextualidade. Essa interação dinâmica, por<br />
sua vez, é reflexo da dinâmica da inter-relação social dos indivíduos<br />
na comunidade ideológica verbal (Bakhtin: 1986). Cabe<br />
lembrar, ainda fazendo referência ao eminente lingüista russo,<br />
que “a língua elabora meios sutis e mais versáteis para permitir<br />
ao autor infiltrar suas réplicas e seus comentários no discurso<br />
de outrem” (1986: 150).<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 216
O referido autor observa ainda que um discurso a ser<br />
transmitido obedece a uma hierarquia social de valores. Dessa<br />
forma, “quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica<br />
na enunciação de outrem, mais claramente definidas<br />
serão suas fronteiras (...)” (Bakhtin, 1986: 153).<br />
No que diz respeito a essa discussão, Maingueneau<br />
(1997), apoiado em Authier-Revuz (apud Charaudeau & Maingueneau,<br />
2004), mostra uma distinção que na prática se revela<br />
bastante útil. Trata-se da distinção entre heterogeneidade mostrada<br />
e heterogeneidade constitutiva.<br />
Maingueneau começa por dizer que a noção de heterogeneidade<br />
é, antes de tudo, fundamental para o entendimento<br />
da relação do interior do discurso com seu exterior. Para o entendimento<br />
do que é heterogeneidade, importante se faz entender<br />
a noção de polifonia em Ducrot (1987). Este autor estabelece<br />
uma associação entre polifonia e o nível do enunciado. Em<br />
sua perspectiva, só há polifonia quando é possível distinguir<br />
em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores<br />
e os locutores, o que significa que outros pontos de vista além<br />
daqueles do emissor e do receptor podem ser veiculados através<br />
do enunciado.<br />
Maingueneau (1997: 76) esclarece que locutor é “um<br />
ser que no enunciado é apresentado como seu responsável. Trata-se<br />
de uma ficção discursiva que não coincide necessariamente<br />
com o produtor físico do enunciado”. No que se refere ao<br />
enunciador, Maingueneau explica:<br />
o enunciador representa, de certa forma, frente ao<br />
‘locutor’ o que o personagem representa para o<br />
autor em uma ficção. Os ‘enunciadores’ são seres<br />
cujas vozes estão presentes na enunciação sem<br />
que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras<br />
precisas; efetivamente, eles não falam, mas a enunciação<br />
permite expressar seu ponto de vista.<br />
Ou seja, o ‘locutor’ pode pôr em cena, em seu<br />
próprio enunciado, posições diferentes da sua.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 217<br />
(MAINGUENEAU, 1997: 77)<br />
O fenômeno da heterogeneidade se desdobra em algumas<br />
formas de ocorrências, que são as seguintes: pressuposição;<br />
negação; discurso relatado; palavras entre aspas; metadiscurso<br />
do locutor; parafrasagem; discurso indireto livre, ironia;<br />
autoridade, provérbio e slogan; pastiche.<br />
Alguns envolvem considerável complexidade, como é o<br />
caso da noção de pressuposição, que tem importância considerável<br />
para a análise do discurso. Segundo Ducrot (1987), a<br />
pressuposição se constitui através de um processo que apresenta<br />
dois ‘enunciadores’, E1 e E2; o primeiro é responsável pelo<br />
pressuposto, e o segundo, pelo posto.<br />
Exercendo um contraste com o discurso indireto livre,<br />
que institui um jogo fronteiriço entre o discurso citado e o discurso<br />
que cita, a ironia, de acordo com Maingueneau (1997),<br />
configura-se como uma subversão entre o que é assumido e o<br />
que não o é pelo locutor. O “locutor” coloca em cena um “enunciador”<br />
que adota uma posição absurda e cuja alocução não<br />
pode assumir, marcando esse distanciamento com diferentes<br />
índices: lingüísticos, gestuais, situacionais. É da essência da<br />
ironia suscitar a ambigüidade, fazendo que, com freqüência, a<br />
interpretação não consiga resolvê-la. Sendo sempre dirigida a<br />
um destinatário, não pode ser considerada uma atividade lúdica<br />
desinteressada.<br />
2.1 - O caráter intertextual do gênero carta ao editor<br />
A concepção tripartida do discurso – texto, prática discursiva<br />
e prática social, Fairclough (2001) – leva o analista do<br />
discurso a contemplar um texto além da camada meramente<br />
estrutural, pois um texto é também prática discursiva e, como<br />
tal, abrange produção, distribuição e consumo. É na esfera da<br />
prática discursiva, mais notadamente na esfera da produção do<br />
texto, que se inscreve a intertextualidade, concretizada no intertexto.<br />
A esse propósito, o referido teórico afirma que “gêneros<br />
particulares são associados com ‘modos particulares de inter-<br />
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textualidade’ (manifesta)” (2001: 164). Essa concepção de Fairclough<br />
mostra-se verdadeira pelo menos no que diz respeito<br />
ao gênero carta ao editor.<br />
A intertextualidade no corpus de nossa pesquisa revelase<br />
bastante particular, fazendo-nos pensar que em seu conjunto,<br />
as formas de remissão, configuram-se como característica marcante<br />
do gênero em foco. Mas só podemos entender o fenômeno<br />
da intertextualidade em carta ao editor se considerarmos que<br />
o referido gênero possui um caráter eminentemente dialógico<br />
(cf. Bakhtin, 2000), quer dizer, uma carta ao editor nasce como<br />
resposta direta a outro texto da mesma cadeia de gênero. Todas<br />
as cartas publicadas pela revista estão necessariamente atreladas<br />
a um artigo, reportagem, entrevista, entre outros, publicados<br />
em edições anteriores. Assim, a carta ao editor estabelece<br />
um diálogo com o texto a que se refere, e esse diálogo é marcado<br />
por formas de intertextualidade particulares, o que chamamos<br />
de formas de remissão.<br />
Na análise do corpus adotado, encontramos as seguintes<br />
formas de remissão ao texto-base: pressuposição, negação, ironia,<br />
alusão ao tema, referência ao título, excerto e paráfrase. No<br />
que diz respeito ao fenômeno da intertextualidade, argumentamos,<br />
apoiando-nos em Fairclough (2001), que as formas de<br />
remissão supracitadas ajudam a delimitar o gênero cartas ao<br />
editor – na dimensão da prática discursiva – se vistas em composição<br />
com os outros aspectos. Fazemos a ressalva de que as<br />
referidas formas de remissão só ajudam nessa delimitação se<br />
foram tomadas em seu conjunto. Por exemplo, a paráfrase é<br />
uma forma de remissão encontrada em outros gêneros, assim<br />
como o excerto, pelo que não elucida nada quanto ao gênero<br />
cartas ao editor se tomada isoladamente. Dito isto, podemos<br />
falar mais pormenorizadamente sobre a relação da intertextualidade<br />
com o gênero carta ao editor.<br />
A despeito de fato de que todo texto é possuidor do caráter<br />
dialógico (cf. Bakhtin, 2000), o gênero cartas ao editor se<br />
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caracteriza por ter o referido traço como um de seus elementos<br />
fundamentais, pois qualquer carta enviada à redação da revista<br />
Newsweek, a fim de ser publicada na seção Letters, constitui-se<br />
em uma resposta direta a um texto anterior, publicado na mesma<br />
revista. Podemos perceber que o enunciado de um poema,<br />
por exemplo, ainda que tenha sua gênese em outro enunciado,<br />
não possui, necessariamente, essa relação direta com um texto<br />
determinado. Na carta ao editor, diferentemente, percebemos<br />
claramente o referido traço responsivo, pois, além de tudo, configura-se<br />
como resposta a outro texto da mesma cadeia de gênero,<br />
ou seja, um texto jornalístico. Além disso, as cartas enviadas<br />
à redação configuram a possibilidade de quebra da<br />
unilateralidade da referida cadeia, pois, como sabemos, elas, ao<br />
mesmo tempo que elogiam, criticam, corrigem, também têm a<br />
função de oferecer à publicação uma espécie de feedback do<br />
comportamento adotado perante seu público leitor, pois, como<br />
sabemos, órgãos da comunicação escrita e televisionada são<br />
formadores de opinião. Sendo assim, as mencionadas cartas<br />
funcionam como fator de equilíbrio. Por outro lado, dado o<br />
pequeno espaço destinado às cartas, podemos inferir que esse<br />
equilíbrio fica, de antemão, comprometido, uma vez que o restante<br />
do suporte é reservado à publicação.<br />
Aqui, chamamos a atenção para a afirmação de Swales<br />
(1990), que diz ser a nomenclatura para gêneros de uma determinada<br />
comunidade de discurso uma fonte importante de percepção.<br />
Assim, o nome “carta ao editor” tem muita a revelar<br />
sobre o gênero que denomina. Em primeiro lugar, literalmente,<br />
trata-se de uma carta enviada ao editor de uma revista ou jornal,<br />
o que aponta para seu traço dialógico. Vale dizer ainda, a<br />
carta é enviada ao editor, e não especificamente ao indivíduo<br />
que ocupada o referido cargo. O editor de uma publicação tem,<br />
entre outras, a função de coordenar os trabalhos e de selecionar<br />
o que deve ser publicado, de acordo com a linha editorial da<br />
publicação. Nesse sentido, podemos dizer que, em última aná-<br />
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lise, é de sua responsabilidade a tarefa de evitar matérias que<br />
possam comprometer o nome da publicação, o que justifica que<br />
os leitores escrevam para ele não só para apontar algum equívoco<br />
cometido, criticando, mas também para dizer que a publicação<br />
está seguindo o caminho correto, elogiando, portanto.<br />
Mas a interpelação feita pelo leitor-missivista, a priori,<br />
dirigida ao editor, acontece através de alguma forma de intertexto,<br />
ainda que tal intertexto não possa ser imediatamente identificado<br />
na carta. As modalidades de remissão ao texto-base<br />
por parte do leitor-missivista são por nós chamadas de formas<br />
de remissão. Queremos crer que tais formas de remissão, em<br />
seu conjunto, imprimem ao gênero carta ao editor um caráter<br />
particular. Mas é preciso observar que, conforme expressa Bakhtin<br />
(1986: 148), “o erro fundamental dos pesquisadores que<br />
já se debruçaram sobre as formas de transmissão do discurso de<br />
outrem, é tê-lo sistematicamente divorciado do contexto narrativo”.<br />
Neste sentido, só é possível entender a intertextualidade<br />
como componente revelador das feições do gênero carta ao<br />
editor, se procurarmos entender como a recepção consciente<br />
dos enunciados se processa nas cartas.<br />
Apoiando-nos nas concepções do citado lingüista russo,<br />
podemos dizer que a intertextualidade em carta ao editor deve<br />
se articular com todos os outros elementos compreendidos dentro<br />
da concepção tridimensional do discurso trazida à tona por<br />
Fairclough (2001): texto, prática discursiva e prática social.<br />
Assim, no que se refere à esfera da prática discursiva,<br />
podemos entender a heterogeneidade mostrada (para Fairclough,<br />
intertextualidade manifesta) como o intertexto que, tendo<br />
sido incorporado dentro de um enunciado, provoca uma reorganização<br />
deste, de modo que esse enunciado se retextualiza a<br />
fim de acomodar o discurso alheio. No gênero carta ao editor,<br />
essa retextualização é fruto de uma acomodação em vários níveis;<br />
no entanto, por razões já expressas, focalizaremos apenas<br />
o nível da prática discursiva. Assim, queremos nos reportar à<br />
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forma como o gênero em tela se articula dentro da cadeia de<br />
gênero em que se insere – o texto jornalístico. Dentro dessa<br />
perspectiva, a intertextualidade existente no gênero e sua conseqüente<br />
acomodação dentro do enunciado obedecem a fatores<br />
como: o suporte, o canal, o enunciador (sua posição social e<br />
seus propósitos comunicativos), o co-enunciador (sua posição<br />
social), a cadeia de gênero em que se insere o gênero, de forma<br />
que o estudo das implicações da intertextualidade dentro de<br />
dado gênero se torna bastante complexa.<br />
Em linhas gerais, podemos dizer que, no que se refere<br />
ao fenômeno da intertextualidade e do dialogismo, a carta ao<br />
editor apresenta características que não são compartilhadas em<br />
sua totalidade com outros gêneros, inclusive com os que pertencem<br />
à mesma cadeia de gênero. Como exemplo, podemos<br />
citar a relação direta entre o texto-base (artigo, entrevista, reportagem)<br />
e a carta ao editor (elaborada como resposta ao texto-base).<br />
Pois, no primeiro caso, a manifestação da intertextualidade<br />
se dá diferentemente do segundo, muito embora<br />
pertençam à mesma cadeia de gênero.<br />
3 - Formas de remissão nas cartas ao editor de Newsweek: a<br />
pressuposição e a ironia<br />
3.1 - A pressuposição<br />
Para Ducrot (1987), as pressuposições correspondem a<br />
realidades supostas já conhecidas do destinatário; não podem<br />
ser afetadas pela negação ou interrogação; e, em princípio, não<br />
podem ser anuladas. No corpus da presente seção, a pressuposição<br />
é a forma de remissão mais utilizada pelos leitoresmissivistas,<br />
seguida da parafrasagem.<br />
Elegemos a carta de número 36, transcrita abaixo, para<br />
efeito de exemplificação e análise desse fenômeno de heterogeneidade<br />
mostrada. Conforme esclarecido em nossa fundamentação<br />
teórica, ao fenômeno da pressuposição está subjacen-<br />
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te a idéia de que, dentro do enunciado em que existe pressuposição,<br />
há sempre o que é pressuposto e o que é posto. Conseqüentemente,<br />
há sempre a presença de dois enunciadores.<br />
(36) to attack when necessary is bad enough, but<br />
to go to war on an if, a might and a maybe leaves<br />
me speechless. And now, eloquent speech writers<br />
will make something noble out of this macho<br />
militancy.<br />
MICHAEL G. DRIVER ICHIHARA, JAPAN<br />
O leitor-missivista dessa carta a inicia com uma avaliação<br />
sobre a possibilidade de uma guerra entre Estados Unidos e<br />
Iraque. Segundo sua avaliação, atacar quando necessário já é<br />
suficientemente ruim, porém algo pior acontece quando as razões<br />
para fazer a guerra estão marcadas pelo “se”, pelo “talvez”<br />
e pelo “pode ser” (if, might, maybe), o que em outras palavras<br />
significa dizer: sem razões confiáveis. Aqui a forma de remissão<br />
é feita pelo posto, que remete ao pressuposto, pois o autor<br />
não fornece informações detalhadas sobre o artigo que deu origem<br />
a essa missiva. O autor faz referência clara a uma enunciação<br />
que não autoriza pela menção na carta do “se”, do “talvez”<br />
e do “pode ser”, cujo caráter intertextual, nesse caso, é<br />
dado pela substantivação (an if, a might, a maybe), levando o<br />
leitor da missiva a procurar reconstruir o texto, pressupondo<br />
que os argumentos (pressupostamente em favor da guerra) do<br />
texto-base se constroem em torno de possibilidades, dúvidas e<br />
condições.<br />
Pela forma genérica com que o autor da carta, através<br />
dessa forma de heterogeneidade mostrada, refere-se ao texto<br />
base, podemos classificar a aludida forma de remissão como<br />
uma abordagem generalizante da temática. Isto pode ser constatado<br />
na progressão do texto em análise. O leitor-missivista<br />
conclui seu texto dizendo que os redatores de discurso tratarão<br />
de tornar o comportamento reprovável (de fazer guerra) em<br />
algo que venha a ser aceito como “nobre” (heróico).<br />
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Pela leitura dessa missiva, podemos perceber que ela<br />
compreende o posto, enquanto que os pressupostos podem ser<br />
recuperáveis através dos elementos textuais fornecidos pelo<br />
autor. O primeiro pressuposto, marcado pela oração “atacar<br />
quando necessário já é suficientemente ruim” (to attack when<br />
necessary is bad enough), é: existem preparativos para uma<br />
guerra, pois contextualmente o leitor “deve ter conhecimento”<br />
que até a data da publicação da carta, a guerra a que o leitormissivista<br />
se referia não havia sido deflagrada. O segundo é: os<br />
argumentos que justificam o fazer a guerra são construídos em<br />
torno de possibilidades, de suposições, e de condições, evidenciados<br />
textualmente pelo uso do “se”, do “talvez”, e do “pode<br />
ser”.<br />
A última sentença dessa carta remete o leitor a pensar<br />
sobre algo que não foi veiculado em nenhum dos dois enunciados<br />
em que foi estabelecido o fio dialógico. O leitor-missivista<br />
chama a atenção para a possibilidade de que, no futuro, manipuladores<br />
do discurso venham a encontrar meios de fazer com<br />
que a situação real (da guerra injustificada) seja revertida para<br />
algo aceitável por parte da população, notadamente a população<br />
americana.<br />
Sendo a pressuposição a forma de remissão mais utilizada<br />
em nosso corpus, devemos tentar entender, buscando suporte<br />
em Bakhtin (1986), qual o significado de seu uso nas<br />
cartas enviadas ao editor da Newsweek. A princípio podemos<br />
dizer que essa forma de remissão tem o respaldo social necessário<br />
que faz com que os leitores queiram utilizá-las. Mas o<br />
elemento social por si só não diz tudo. Devemos entender que o<br />
seu uso harmoniza-se com as feições de um gênero que possui<br />
características muito próprias, ainda que tentemos entendê-lo<br />
com base em aspectos meramente contextuais. Ao usar a referida<br />
forma de remissão o leitor-missivista pressupõe que seu<br />
leitor tenha lido o artigo a que se refere. Por outro lado, a mencionada<br />
forma de remissão aponta para um apagamento, ainda<br />
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muito maior que a paráfrase, dos limites do intertexto dentro do<br />
enunciado que o incorpora. Podemos ver o intertexto apenas<br />
através da análise feita sobre ele pelo autor da missiva, o que<br />
aponta para o quão a temática por ele abordada deve ser familiar<br />
aos interlocutores.<br />
3.2 - A ironia<br />
A forma de intertextualidade chamada ironia se caracteriza<br />
pela presença de um enunciado que não é assumido pelo<br />
enunciador, em parte ou em sua totalidade, no momento da<br />
enunciação. Neste caso o enunciador procura criar um efeito de<br />
surpreender seu interlocutor, pois o enunciado se apresenta<br />
como um ponto de vista insustentável e atribuível a uma outra<br />
personagem. Trata-se de uma forma de heterogeneidade mostrada<br />
bastante complexa que vem sendo alvo de reflexão desde<br />
a origem da Filosofia (cf. Maingueneau & Charaudeau, 2004).<br />
A primeira carta em que reconhecemos a presença da ironia<br />
como forma de remissão é a carta de número 39 (de nosso corpus),<br />
transcrita a seguir:<br />
(39) THE UNITED STATES IS TOTALLY JUSTIFIED in<br />
targeting a rogue Middle Eastern country that has<br />
weapons of mass destruction, invades its<br />
neighbors, defies U.N. resolutions and international<br />
laws, and oppresses and terrorizes minorities<br />
and opponents to its regime. The country I'm<br />
thinking of is Israel: it has nuclear weapons, has<br />
invaded Egypt, Syria, Jordan and Lebanon, has<br />
consistently defied all U.N. resolutions pertaining<br />
to it and inflicts the worst kinds of terror on its<br />
Arab population. We should go and effect a regime<br />
change in Israel whether it accepts weapons<br />
inspectors or not.<br />
Ali Mili newark, new jersey.<br />
Nessa carta o leitor-missivista diz que “os Estados Unidos<br />
estão corretos em invadir um país vagabundo do Oriente<br />
Médio que tem armas de destruição em massa, invade os seus<br />
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vizinhos, desafia as leis das Nações Unidas, oprime e aterroriza<br />
as minorias e oponentes do seu regime”, para depois dizer que<br />
o país a que está se referindo é Israel. A ironia aqui está no fato<br />
de utilizar todos os atributos que os Estados Unidos utilizam<br />
para definir o Iraque. Depois, o autor da carta quebra a expectativa<br />
do leitor dizendo que se refere a Israel.<br />
A decisão de utilizar a ironia como forma de remissão<br />
alcança aqui um efeito um tanto incomum, demonstrando ser<br />
um meio eficiente de argumentação. Considerando que o espaço<br />
destinado ao leitor-missivista é bastante pequeno, comparado<br />
com o espaço de que dispõe o articulista, a referida forma<br />
de remissão cumpre mais de um papel: 1) utilizar um mínimo<br />
de espaço com o máximo de eficiência, ao demonstrar que Israel<br />
se enquadra perfeitamente dentro dos atributos e argumentos<br />
utilizados pelos Estados Unidos para invadir o Iraque; 2)<br />
mostrar a contradição e a parcialidade dos argumentos americanos<br />
para justificar a invasão ao Iraque.<br />
Chamamos a atenção para o modo como a estratégia<br />
remissiva utilizada se mostra eficiente no sentido de criar no<br />
leitor certa expectativa, para depois quebrá-la de uma forma<br />
surpreendente. Se, no início, o leitor não percebe a contradição,<br />
a tomada de consciência do contra-senso ocorre de forma quase<br />
que imediata, pois as primeiras frases da carta o levam a pensar<br />
que o seu autor se posiciona a favor dos critérios de <strong>jul</strong>gamento<br />
americanos, para depois mostrar, implicitamente, que esses<br />
critérios não estão sendo aplicados a Israel. É importante destacar<br />
que, na missiva, o leitor não diz que o Iraque não se enquadra<br />
nos referidos atributos, querendo, talvez, mostrar que os<br />
Estados Unidos não aplicam os mesmos critérios de avaliação a<br />
todos, o que leva a concluir que as razões verdadeiras para a<br />
invasão do Iraque são outras.<br />
O principal argumento utilizado para justificar a invasão<br />
dos Estados Unidos ao Iraque – ter armas de destruição em<br />
massa – provou ser falso, hoje sabemos. Paralelamente, Israel é<br />
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o país mais fortemente armado do Oriente Médio, o que prova<br />
a força da argumentação do leitor-missivista da carta 39.<br />
É interessante observar que não nos sentimos autorizados<br />
a usar a ironia em situações formais de interação social em<br />
que se estabelece uma relação de confiança e respeito mútuo<br />
entre, pelo menos, dois interlocutores. No entanto, o uso da<br />
ironia está associado a situações em que possivelmente essa<br />
relação de confiança e de respeito foi quebrada. A lei da sinceridade<br />
não está sendo cumprida e para demonstrar isso, o interlocutor,<br />
irônico, passa a usar da mesma insinceridade, ao mesmo<br />
tempo em que deixa claro que não está sendo sincero, pelo<br />
“absurdo” do que diz, muitas vezes utilizando-se de recursos<br />
supra-segmentais reconhecidamente reveladores do comportamento<br />
irônico. Na carta em análise, como sabemos, o seu autor<br />
não pode lançar mão desses recursos. Consegue ser irônico ao<br />
incorporar o discurso do seu interlocutor para depois aplicá-lo<br />
ao objeto “errado”. Talvez por apontar de uma forma tão contundente<br />
para o interlocutor como descumpridor da lei da sinceridade<br />
é que a ironia seja um recurso pouco utilizado em gêneros<br />
cujas características estejam ligadas à noção de<br />
democracia e liberdade de expressão, como é o caso de carta ao<br />
editor, pois ao ser irônico, o enunciador mostra que na verdade<br />
o seu interlocutor não quer ouvi-lo, indicando, conseqüentemente,<br />
o quão anti-democrático é o discurso do outro, especialmente<br />
quando o outro se arvora de democrático. Adotando<br />
um comportamento irônico, o locutor da carta aponta para o<br />
fato de que o seu co-enunciador não merece crédito.<br />
A carta de número 71 também apresenta a ironia como<br />
forma de remissão, embora a referida forma de heterogeneidade<br />
mostrada se realize de maneira diferente da carta 39. Na<br />
carta 71, a remissão irônica aparece somente no final, pois todo<br />
o restante do conteúdo da missiva se refere às características<br />
negativas do governo de Saddan Hussein. Ao longo de quase<br />
toda a exposição dessas características negativas, o missivista<br />
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dá a entender que se alinha com a abordagem política de Bush,<br />
para no final mostrar que o presidente americano não tem razão<br />
para condenar o governo iraquiano, uma vez que ambos compartilham<br />
características similares. O que há de irônico na carta<br />
é a forma como o leitor missivista mostra essas similaridades<br />
com o uso da palavra so nas duas últimas sentenças: Leiamos a<br />
carta:<br />
(71) since saddam seized power without any democratic<br />
mandate, his nation has suffered economic<br />
decline and become contemptible in the<br />
eyes of the world due to his bellicosity and unilateralist<br />
disdain for environment and the United<br />
Nations. At the same time, his weapons of mass<br />
destruction strike fear in our hearts. And he and<br />
his cronies have grown rich by corrupt dealings in<br />
oil and other industries. Why does Bush hate him<br />
so? They have so much in common.<br />
DAVID IRBY DINGLE, IRELAND<br />
Nesse caso, o locutor assume o conteúdo da enunciação,<br />
mas há uma discordância da atitude esperada para essa situação,<br />
o que provoca um efeito de choque sobre o leitor comum,<br />
especialmente sobre aqueles que se mostram a favor das atitudes<br />
do chefe do Estado americano.<br />
4 - Considerações finais<br />
Se pensarmos em termos de propósitos a serem atingidos,<br />
podemos observar feições relativas ao gênero em questão.<br />
O caso da ironia se configura como proveitoso exemplo para<br />
esse tipo de análise. Nos dois casos analisados, podemos perceber<br />
o quão o efeito criado exerce um papel importante, pois<br />
gera uma espécie de epifania no leitor comum, que passa a perceber,<br />
se ainda não percebia, implicações de atitudes e posicionamentos<br />
teóricos que de outra forma demandaria uma longa<br />
argumentação.<br />
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Já a pressuposição remete para a questão da familiaridade<br />
e do conhecimento que o leitor comum tem com o assunto<br />
abordado no texto-base. Neste sentido, a revista presta auxílio a<br />
esse leitor, colocando ao lado das cartas a gravura relacionada<br />
ao texto referido pelas cartas publicadas naquela edição. A<br />
pressuposição vem ao encontro às intuições das Bronckart<br />
(2003), que afirma que a realização de um gênero depende de<br />
elementos circunstanciais.<br />
As formas de heterogeneidade mostrada abordadas aqui<br />
denunciam o caráter fortemente dialógico do gênero do discurso<br />
carta ao editor, ao mesmo tempo em que se articulam com<br />
os propósitos comunicativos e com os efeitos almejados pelos<br />
leitores-missivistas, que, por sua vez, devem possuir a competência<br />
genérica necessária a fim de que suas escolhas enunciativas<br />
surtam o desejado efeito. A esse propósito, a pressuposição,<br />
como a forma de remissão mais utilizada nas cartas,<br />
polariza uma tensão entre o uso da uma argumentação tendente<br />
ao subjetivo – ancorada em formas de intertextualidade cujas<br />
delimitações não são imediatamente identificáveis na superfície<br />
do texto –, e o uso de formas de argumentação ancoradas em<br />
intertextos cujas delimitações são mais facilmente identificáveis<br />
na superfície textual. Em todo caso, seguindo de perto<br />
Bakhtin (1986), não podemos esquecer que as formas de intertextualidade<br />
aqui analisadas devem ser respaldadas pelo meio<br />
social em que são utilizadas. Uma prova disso é que o uso da<br />
pressuposição se destaca visivelmente na preferência dos leitores-missivistas,<br />
pelo menos no corpus que estudamos.<br />
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Newsweek: aspectos discursivos e sócio-interacionais. Dissertação<br />
de Mestrado apresentada na Universidade Estadual do<br />
Ceará, 2005, que teve como orientadora a Drª Maria Irandé<br />
Costa Antunes<br />
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O ENSINO DO TEXTO EXPLICATIVO<br />
Vanilda Salton Köche<br />
UCS<br />
Adiane Fogali Marinello<br />
UCS<br />
Odete Maria Benetti Boff<br />
UCS<br />
RESUMO:<br />
Este artigo aborda o texto explicativo como um gênero textual que apresenta<br />
soluções para um problema da ordem do saber. Seu estudo centra-se na<br />
necessidade de desenvolver habilidades de recepção e produção textual. O<br />
trabalho faz parte da pesquisa-ensino denominada Leitura e produção de<br />
textos na perspectiva dos gêneros textuais, realizada na Universidade de<br />
Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos. O artigo<br />
apresenta subsídios teóricos relacionados com os gêneros textuais e sua<br />
aplicação no ensino, em seguida, mostra os aspectos que caracterizam o<br />
texto explicativo, após apresenta uma análise ilustrativa e, finalmente, sugere<br />
atividades de leitura e escrita.<br />
PALAVRAS-CHAVE:<br />
Texto explicativo, gênero textual, ensino.<br />
Introdução<br />
As questões referentes à leitura e produção de textos na<br />
perspectiva dos gêneros textuais tornaram-se mais enfáticas<br />
com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, em<br />
1999. É consenso entre os teóricos que, no ensino tradicional,<br />
geralmente o professor trabalha o ensino da escrita a partir das<br />
tipologias textuais, principalmente a narração, a descrição e a<br />
dissertação. Não se pode ignorar a importância das tipologias,<br />
no entanto, elas por si só não dão conta da complexidade da<br />
escrita utilizada nas diversas situações de interação, por isso, é<br />
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preciso ir além, e avançar num trabalho de leitura e produção<br />
calcado nos gêneros textuais.<br />
Este artigo pretende analisar o texto explicativo, uma<br />
vez que, de certa forma, é negligenciado, principalmente no<br />
Ensino Fundamental e Médio. No entanto, o aluno convive<br />
com ele diariamente, quer através das leituras, dos livros didáticos,<br />
de artigos, entre outros. Mas, apesar de não ter seu lugar<br />
de destaque e os alunos ignorarem as especificidades desse<br />
gênero, sua escrita lhes é exigida, desde uma simples resposta a<br />
uma questão de prova a trabalhos mais complexos, desenvolvidos<br />
no decorrer das disciplinas. Assim, é imprescindível que se<br />
trabalhe sistematicamente com a leitura e a escrita deste texto<br />
para facilitar a prática quotidiana do aluno, dispondo subsídios<br />
teóricos que embasam o gênero. O estudo faz parte da pesquisa-ensino,<br />
intitulada Leitura e produção de textos na perspectiva<br />
dos gêneros textuais, desenvolvida na Universidade de Caxias<br />
do Sul - Campus Universitário da região dos Vinhedos.<br />
Fundamentam o trabalho os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />
(1999), Bakthin (1992), Coltier (1987), Charolles (1988) e<br />
Cristóvão e Nascimento (2005).<br />
1 - A dinamicidade da linguagem e o ensino dos gêneros<br />
textuais<br />
Todas as manifestações verbais humanas ocorrem mediante<br />
a produção de discursos, e não como elementos lingüísticos<br />
isolados. Tanto na oralidade quanto na escrita, os enunciados<br />
não são atos solitários, mas estão circunscritos a alguma<br />
instância da atividade humana socialmente organizada. Os gêneros<br />
textuais permitem desenvolver competências e habilidades<br />
para domínio da língua, visto serem determinados historicamente.<br />
Segundo Bakthin, os gêneros do discurso são tipos<br />
relativamente estáveis de enunciados produzidos pelas mais<br />
diversas esferas da atividade humana (1992: 127). Enquanto os<br />
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gêneros são até certo ponto estáveis, os textos que os materializam<br />
são variados e maleáveis. Por sua vez, Bronckart coloca<br />
que os textos são produto da linguagem em funcionamento<br />
permanente nas formações sociais. Em função de seus objetivos,<br />
interesses e questões específicas, essas formações elaboram<br />
diferentes espécies de textos; apresentam características<br />
relativamente constantes e ficam disponíveis no intertexto como<br />
modelos indexados para os contemporâneos e as gerações<br />
posteriores (1999: 137). Nesse sentido, são caracterizados especialmente<br />
por um conteúdo temático, uma estrutura particular<br />
e um estilo, que variam conforme a situação comunicativa.<br />
A tendência da lingüística textual e da teoria do discurso<br />
de valorizar as situações específicas de produção da comunicação<br />
influenciou a recomendação do estudo de gêneros nos<br />
Parâmetros Curriculares Nacionais (1999). Estes ressaltam que<br />
o ensino de língua portuguesa deve partir dos gêneros e se organizar<br />
em torno deles, visto estes serem identificados e caracterizados<br />
pelas funções específicas de comunicação que exercem<br />
na sociedade. Nesse sentido, afirmam que todo texto<br />
pertence a um determinado gênero, ou seja, a um conjunto heterogêneo<br />
de textos que compartilha características comuns<br />
(1999: 26).<br />
Com base nas quatro competências e habilidades fundamentais<br />
(falar, escutar, ler e escrever) que devem nortear a<br />
educação, os PCNs (1999) concebem a língua como atividade<br />
sócio-interativa, cognitiva e histórica. Conforme Marcuschi<br />
(2005), a atividade pedagógica necessita estar centrada nos<br />
gêneros que circulam na vida cotidiana. Eles devem ser tratados<br />
como entidades plásticas e observados em seu fluxo sóciointerativo<br />
e histórico, e não em suas fronteiras formais nem nas<br />
suas propriedades tipicamente lingüísticas do ponto de vista<br />
sentencial.<br />
Assim, é fundamental explorar os gêneros textuais enquanto<br />
objetos de reflexão nas situações de interação e com<br />
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propósitos definidos, e não somente sob o ponto de vista da<br />
materialidade da língua. Segundo os PCNs (1999), deve-se<br />
privilegiar a cultura do pensar e do produzir idéias, consolidando<br />
práticas de ensino de língua portuguesa que tenham como<br />
ponto de partida e chegada o uso da linguagem. Para isso, assinalam<br />
que a justificativa das propostas de leitura, escrita e uso<br />
da fala é a compreensão e a interlocução efetivas (1998: 21).<br />
Como a escrita é uma atividade interativa de expressão,<br />
os gêneros possibilitam que os indivíduos se organizem em<br />
sociedade na medida em que favorecem a comunicação. Assim,<br />
faz-se necessário criar materiais didáticos que favoreçam esse<br />
contato. Cristóvão e Nascimento afirmam que “a exploração<br />
das características do modelo didático do gênero é uma preciosa<br />
fonte de informações, material didático fundamental para<br />
que, a partir dele, o professor possa fazer as adaptações necessárias<br />
a uma 'transposição didática' de gênero” (2005: 57). Na<br />
organização desses materiais, deve-se considerar os objetivos<br />
de ensino, os diversos conhecimentos existentes sobre gêneros<br />
textuais e as capacidades dos aprendizes.<br />
2 - O ensino dos gêneros textuais na implementação das<br />
aulas de língua portuguesa<br />
A análise da língua, a partir de seu caráter interacionista,<br />
é um processo recente. Acreditamos ser imprescindível contribuir<br />
para a sua aplicabilidade, tendo em vista a influência das<br />
atuais reflexões no ensino e na elaboração dos materiais didáticos.<br />
A relevância pedagógica e social do estudo sobre o gênero<br />
textual reside no fato deste ser envolto essencialmente pela<br />
linguagem e a comunicação só ser possível por meio de algum<br />
gênero.<br />
Bakhtin assevera para o fato de que não é o indivíduo<br />
falante que cria os gêneros porque eles não deixam de ter um<br />
valor normativo. Segundo o autor, “se não existissem os gêne-<br />
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os do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de<br />
criá-los pela primeira vez no processo de fala, se tivéssemos<br />
que construir cada um de nossos enunciados, a comunicação<br />
verbal seria quase impossível” (1992: 302). Nessa perspectiva,<br />
os gêneros não podem ser considerados como produtos acabados<br />
à disposição dos falantes, pois possuem uma estruturação<br />
relativamente estável. Bakthin (1992: 301-301) afirma que:<br />
Para falar, utilizamo-nos sempre dos gêneros de<br />
uma forma padrão e relativamente estável de estruturação<br />
de um todo. Possuímos um rico repertório<br />
de gêneros do discurso orais (e escritos). Na<br />
prática, usamo-los com segurança e destreza, mas<br />
podemos ignorar totalmente sua existência teórica.<br />
(...) Aprender a falar é aprender a estruturar<br />
enunciados (porque falamos por enunciados e não<br />
por orações isoladas). Os gêneros do discurso organizam<br />
nossa fala da mesma maneira que a organizam<br />
as formas gramaticais (sintáticas).<br />
Desse modo, sob essa ótica, a atividade pedagógica de<br />
ensino de língua portuguesa embasa-se numa concepção de<br />
linguagem que reconhece a língua como eminentemente funcional<br />
e contextualizada, e que visa ao desenvolvimento da<br />
competência discursiva, também entendida como capacidade<br />
reflexiva, crítica e criativa. Como fenômenos lingüísticos, os<br />
gêneros variam e multiplicam-se, e estão presentes no tempo e<br />
na realidade para auxiliar as relações na sociedade. Segundo<br />
Marcuschi, “devem ser vistos como as práticas sociais, os aspectos<br />
cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias,<br />
as atividades discursivas e no interior da cultura. Eles<br />
mudam, fundem-se, misturam-se para manter sua identidade<br />
funcional como inovação organizacional” (2005: 19).<br />
É relevante explorar a forma composicional e os estilos<br />
dos gêneros para desenvolver práticas sociais e ampliar as possibilidades<br />
comunicativas das situações específicas de interlocução:<br />
os participantes da interação e suas relações sociais; as<br />
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temáticas; a intenção enunciativa e o estilo; o campo de atividade<br />
e seu tempo e lugar históricos; os impactos e sentidos<br />
produzidos pelas diversas modalidades de linguagem e mídias.<br />
Cabe à escola apresentar ao aluno diferentes gêneros textuais,<br />
usados em situações distintas e com objetivos diversos, de modo<br />
a ampliar sua competência comunicativa. Isso significa afirmar<br />
que, na sua prática docente, o professor desenvolve no<br />
aluno a capacidade de reconhecer que a pluralidade de discursos<br />
contribui para o desenvolvimento da sua auto-estima, seu<br />
sentido de cidadania e seu papel social.<br />
É evidente, portanto, a importância da leitura, produção<br />
e análise de diferentes gêneros textuais no ensino. Entretanto,<br />
pode-se afirmar que isso ainda não acontece como deveria ser,<br />
talvez, porque os cursos de Licenciatura não contemplem em<br />
sua totalidade um aprofundamento desta abordagem. Desse<br />
modo, tornam-se extremamente importantes as iniciativas de<br />
estudo e produção de material didático voltado ao ensino da<br />
leitura e da escrita na perspectiva dos gêneros textuais para<br />
auxiliará no trabalho pedagógico e facilitar o desenvolvimento<br />
das habilidades e das competências comunicativas dos alunos<br />
de diferentes níveis.<br />
3 - O texto explicativo<br />
O texto explicativo consiste em um gênero textual que<br />
faz compreender um problema da ordem do saber. A partir do<br />
problema apresentado, um sujeito comunica a seu interlocutor<br />
a solução, modificando-lhe a percepção anterior.<br />
Segundo Coltier (1987), diante de um problema relacionado<br />
com o saber, o texto explicativo questiona o real em<br />
duas circunstâncias. A primeira refere-se à existência de um<br />
paradoxo, que causa um certo estranhamento com o sistema<br />
estabelecido de explicação de mundo; faz aparecer uma incongruência.<br />
A autora exemplifica: na questão por que o Sol pare-<br />
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ce ser do mesmo tamanho da lua? ressalta a contradição que<br />
existe entre o que se sabe sobre o tamanho real do sol (400 vezes<br />
maior do que a lua) e sobre as leis da ótica (entre dois objetos,<br />
o mais volumoso é o que aparece como sendo o maior), e o<br />
fato constatado: o tamanho aparente do Sol não é superior ao<br />
da Lua. Para a referida autora, o procedimento pode ser esquematizado<br />
pela pergunta: sendo dado A (os saberes admitidos) e<br />
B (o fenômeno) não deveria existir, mas ele se produz. Como<br />
ou por que isso ocorre? A explicação deste problema vai decorrer<br />
do fato de que o sol é 400 vezes maior do que a lua e<br />
encontra-se a uma distância 400 vezes maior, por isso, parece<br />
ser do mesmo tamanho.<br />
A segunda circunstância em que o texto explicativo<br />
questiona o real, conforme a citada autora, ocorre na investigação<br />
de uma evidência, que consiste em um questionamento<br />
sobre um fenômeno normal que se torna objeto de investigação,<br />
sem que haja contradição. Exemplifica: Todos os seres<br />
vivos têm necessidade de se alimentar para fornecer a energia<br />
necessária para a atividade das células, para seu crescimento,<br />
para seu sustento (...). Como fazem as plantas para se alimentar?<br />
No exemplo, há um fato conhecido: as plantas se alimentam.<br />
Ele é problematizado pelo texto como uma explicação a<br />
ser dada, necessitando, para isso, maiores informações a respeito<br />
do fenômeno. Neste caso, o procedimento interrogativo pode<br />
ser esquematizado pelo seguinte questionamento: o fenômeno<br />
B existe conforme deve ser. Quais são as causas da existência<br />
de B?<br />
Nos dois casos apresentados, tanto na existência de um<br />
paradoxo, quanto na investigação de uma evidência, esse gênero<br />
constrói enigmas a serem explicados a um interlocutor, mediante<br />
um raciocínio lógico, conduzindo a uma conclusão. O<br />
problema deixa de existir, e torna-se um fenômeno normal. Por<br />
meio da explicação, todos os conhecimentos anteriores podem<br />
ser modificados no todo ou em parte.<br />
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A função social do gênero explicativo é transmitir e<br />
construir conhecimentos, o que o torna pertencente à ordem do<br />
expor. Segundo Bronckart (1999: 229), o raciocínio explicativo<br />
apresenta as seguintes fases:<br />
a constatação inicial - introduz um fenômeno<br />
não contestável;<br />
a problematização - explicita uma questão da<br />
ordem do porquê ou do como;<br />
a resolução - responde à questão colocada;<br />
a conclusão-avaliação - formula e completa a<br />
constatação inicial.<br />
Segundo Coltier (1987), no texto explicativo, normalmente,<br />
os enunciados são compostos por três categorias: os<br />
enunciados descritivos, os explicativos e os balizados. Os enunciados<br />
descritivos apresentam o fenômeno a ser explicado.<br />
O enunciador, como mero observador, registra os fatos de modo<br />
objetivo. Os verbos normalmente estão no presente ou no<br />
imperfeito do indicativo. Há a ausência dos pronomes em primeira<br />
e segunda pessoa. Os enunciados explicativos oferecem<br />
uma solução. A escolha dos tempos verbais dependerá do modo<br />
como se processa a explicação. Em caso de antecipação de<br />
hipóteses, ou da retomada de certas explicações, ocorre freqüentemente<br />
o emprego do futuro do pretérito (poderia, ocasionaria).<br />
Quando se vai para a solução, o enunciado compreende<br />
uma seqüência de asserções no presente do indicativo<br />
(ocasiona, resulta). Por sua vez, os enunciados balizados comentam<br />
o desenvolvimento do texto, assinalando as diversas<br />
etapas. Pode haver o emprego dos pronomes (eu, nós, se); de<br />
fórmulas imperativas (observe-se, analisemos); de verbos no<br />
futuro do presente (começaremos por, analisaremos) e por expressões<br />
que orientam o leitor (primeiramente, agora, em segundo<br />
lugar, depois, finalmente).<br />
No texto explicativo, a progressão das idéias é fundamental<br />
para a solução da questão. Segundo Charolles, “para<br />
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que um texto seja microestruturalmente ou macroestruturalmente<br />
coerente, é preciso que haja no seu desenvolvimento<br />
uma contribuição semântica constantemente renovada” (1988:<br />
57). Ou seja, para que um texto seja coerente não pode repetir<br />
indefinidamente seu assunto, numa circularidade temática, mas<br />
deve ser renovado progressivamente, numa progressão semântica<br />
(ou remática). Em torno de um tema devem se incorporar<br />
remas, trazendo novidades semânticas indispensáveis; há o<br />
equilíbrio entre a continuidade do texto e a progressão semântica.<br />
Para a resolução de um problema, esse gênero faz uso<br />
de substituições nominais, nas quais o enunciador seleciona<br />
certos traços do objeto, manifesta seu ponto de vista e orienta a<br />
representação do enunciatário, impondo a colocação do objeto<br />
numa perspectiva particular (sol - bola de gás em fusão, bola de<br />
fogo, ou massa de hidrogênio). Por sua vez, as nominalizações<br />
são muito importantes na medida em que dão um nome ao que<br />
foi dito, sintetizando um conceito (Quando os animais e as<br />
plantas morrem, seu corpo apodrece e acaba por desaparecer na<br />
terra. O apodrecimento é provocado por organismos tais como<br />
as bactérias ou os fungos, que são chamados decomponentes).<br />
Também as orações relativas são freqüentemente empregadas,<br />
pois elas possibilitam operar restrições no campo das<br />
representações (O sol, que é um astro, ilumina a terra.). A seu<br />
turno, o emprego de construções parafrásticas possibilitam esclarecer<br />
conceitos e favorecer a compreensão do enunciatário.<br />
Os operadores argumentativos são indispensáveis na<br />
organização lógica da explicação. Eles articulam as partes do<br />
discurso e auxiliam o raciocínio para se chegar à solução do<br />
problema. Citamos alguns exemplos: adição (e, ainda, também);<br />
oposição (porém, contudo, no entanto); causalidade<br />
(porque, já que, devido a); conclusão (logo, portanto). Os advérbios<br />
também têm a função de indicar a unidade da seqüên-<br />
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cia textual (inicialmente, em primeiro lugar, em segundo lugar,<br />
a seguir, finalmente).<br />
O texto explicativo sempre tem em mente quem é o seu<br />
interlocutor, qual o seu nível sócio-cultural, qual é a sua idade,<br />
quais são os seus interesses, entre outros, o que determinará as<br />
escolhas lexicais e o grau de abstração. Se a explicação for<br />
dirigida para um especialista de determinada área, a linguagem<br />
será mais complexa; se for para um interlocutor comum, o vocabulário<br />
será fácil e a sintaxe, simples. Normalmente, as interrogações<br />
são diretas, mas as indiretas também são empregadas<br />
ao propor uma questão. Pode também haver a presença de tabelas,<br />
gráficos, ilustrações para servir de complementação. Os<br />
recursos visuais complementam o texto e lhes conferem uma<br />
maior concretude.<br />
4 - Uma análise ilustrativa<br />
O QUE SÃO ALIMENTOS FUNCIONAIS?<br />
Rafael Tonon<br />
Alguns alimentos são indispensáveis para a conservação<br />
de nossa saúde, como os alimentos funcionais ou nutracêuticos.<br />
O que são alimentos funcionais?<br />
Os alimentos funcionais são aqueles que colaboram para<br />
melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde. Ou<br />
pelo menos deveriam ser assim: os cientistas já reconhecem as<br />
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propriedades funcionais de muitos desses alimentos, porém os<br />
estudos ainda não são conclusivos. “A ciência ainda não consegue<br />
determinar uma dieta diária de alimentos funcionais que<br />
atenda a todas as necessidades do organismo”, explica Valdemiro<br />
Sgarbieri, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da<br />
Unicamp.<br />
Essas substâncias não são novidade, como às vezes prega<br />
a indústria de alimentos. As isoflavonas, por exemplo, compostos<br />
que ajudam na redução do colesterol ruim, fazem parte<br />
da alimentação humana desde que a soja foi descoberta pelos<br />
chineses, há mais de 5 000 anos.<br />
O que vem acontecendo é um aprofundamento nos conhecimentos<br />
da natureza química das substâncias funcionais e<br />
das suas funções no organismo. Com isso, os laboratórios e a<br />
indústria alimentícia passaram a produzir, em larga escala, alimentos<br />
funcionais formulados ou “artificiais”, como leites fermentados,<br />
biscoitos vitaminados e cereais matinais ricos em<br />
fibras.<br />
Para chegarem ao mercado, a Agência Nacional de Vigilância<br />
Sanitária exige que o fabricante apresente provas científicas<br />
das propriedades funcionais alegadas na embalagem.<br />
Mas não se entusiasme demais com os rótulos: 1 litro de leite<br />
com ômega 3, por exemplo, oferece menos desse ácido graxo<br />
que uma posta de salmão.<br />
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SUBSTÂNCIAS COM SUSTANÇA<br />
Conheça alguns alimentos funcionais.<br />
Betacaroteno<br />
O que faz: ajuda a<br />
diminuir o risco de<br />
câncer.<br />
Como age: quando<br />
ingerimos gorduras<br />
e proteínas, o betacaroteno<br />
se converte<br />
em vitamina A, protegendo<br />
as células<br />
do envelhecimento.<br />
Onde encontrar:<br />
abóbora, cenoura,<br />
mamão, manga,<br />
damasco, espinafre,<br />
couve.<br />
Isoflavonas<br />
O que fazem: atenuam<br />
os sintomas da<br />
menopausa.<br />
Como agem: por ter<br />
uma estrutura química<br />
semelhante ao<br />
estrógeno (hormônio<br />
feminino), alivia os<br />
efeitos de calor e<br />
cansaço da menopausa<br />
e da tensão<br />
pré-menstrual.<br />
Onde encontrar:<br />
soja e seus derivados.<br />
Licopeno<br />
O que faz: está relacionado<br />
à diminuição<br />
do risco de câncer<br />
de próstata.<br />
Como age: evita e<br />
repara os danos dos<br />
radicais livres que<br />
alteram o DNA das<br />
células e desencadeiam<br />
o câncer.<br />
Onde encontrar:<br />
tomate e seus derivados,<br />
além de beterraba<br />
e pimentão.<br />
Ômega 3<br />
O que faz: diminui o<br />
risco de doenças<br />
cardiovasculares.<br />
Como age: reduz os<br />
níveis de triglicerídeos<br />
e do colesterol<br />
total do sangue, sem<br />
acumulá-lo nos vasos<br />
sangüíneos do<br />
coração.<br />
Onde encontrar:<br />
peixes de água fria,<br />
como salmão e truta,<br />
e óleo de peixes.<br />
Flavonóides<br />
O que fazem: diminuem<br />
o risco de<br />
câncer e atuam comoantiinflamatórios.<br />
Como agem: anulam<br />
a dioxina, substância<br />
altamente tóxica<br />
usada em agrotóxicos.<br />
Onde encontrar:<br />
suco natural de uva<br />
e vinho tinto, além<br />
de alimentos como<br />
café, chá verde,<br />
chocolate e própolis.<br />
Probióticos<br />
O que fazem: são<br />
microorganismos<br />
vivos que ajudam no<br />
equilíbrio da flora<br />
intestinal.<br />
Como agem: impedem<br />
que bactérias e<br />
outros microorganismos<br />
patogênicos<br />
se proliferem no<br />
intestino.<br />
Onde encontrar:<br />
iogurtes e leite fermentado.<br />
(TONON, Rafael. O que são alimentos funcionais. Revista Superinteressante.<br />
São Paulo, ed. 239, p. 46, mai 20<strong>07</strong>. Adaptação.)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 242
Esse texto foi publicado na Revista Superinteressante,<br />
no mês de maio de 20<strong>07</strong>, inserido na seção Superrespostas e<br />
está assinado pelo jornalista Rafael Tonon. Trata-se de um texto<br />
explicativo, pois apresenta ao interlocutor uma questão da<br />
ordem do saber. Propõe um enigma a ser elucidado, a partir de<br />
um raciocínio coerente e organizado, explica o que não se<br />
compreendia e encaminha para uma conclusão.<br />
O gênero apresenta a seguinte macroestrutura (Bronckart,<br />
1999): a constatação inicial, a problematização, a resolução<br />
e a conclusão-avaliação. Na constatação inicial, há uma<br />
evidência não contestável: Alguns alimentos são indispensáveis<br />
para a conservação de nossa saúde. A problematização coloca<br />
uma questão acerca da realidade para solucionar, da ordem do<br />
porquê: O que são alimentos funcionais?<br />
A fase da resolução propõe uma solução para o enigma,<br />
definindo alimentos funcionais: são aqueles que colaboram<br />
para melhorar o metabolismo e prevenir problemas de saúde.<br />
Explicita o conceito, através de um exemplo, as isoflavonas,<br />
que contribuem para a redução do colesterol ruim, e são usadas<br />
na alimentação humana há mais de 5000 anos.<br />
A conclusão-avaliação formula e completa a constatação<br />
inicial. O autor destaca que há um aprofundamento dos<br />
conhecimentos da natureza química das substâncias funcionais<br />
e das suas funções. Coloca, ainda, que se constata o aumento<br />
da produção de alimentos funcionais formulados ou artificiais,<br />
como leites fermentados, biscoitos vitaminados e cereais matinais<br />
ricos em fibras.<br />
Nesse texto, prevalecem os enunciados descritivos e<br />
explicativos. Nas linhas 1-4, o texto emprega seqüências descritivas<br />
para apresentar as propriedades dos alimentos funcionais:<br />
são aqueles que colaboram para melhorar o metabolismo<br />
e prevenir problemas de saúde. Utiliza predominantemente os<br />
verbos no presente do indicativo e os pronomes em terceira<br />
pessoa (são, colaboram).<br />
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A seguir, o gênero vale-se de enunciados explicativos, a<br />
fim de esclarecer que os estudos acerca desses alimentos ainda<br />
não são conclusivos. Para fundamentar essa afirmação, apresenta<br />
uma voz de autoridade, Valdemiro Sgarbieri, da Faculdade<br />
de Engenharia de Alimentos da Unicamp. O professor afirma<br />
que a ciência ainda não determinou uma dieta diária de<br />
alimentos funcionais capaz de atender a todas as necessidades<br />
do organismo. Nesses enunciados, predominam os verbos no<br />
presente do indicativo (atenda, explica, são, prega, ajudam).<br />
Para articular o discurso, de modo lógico e coerente,<br />
constata-se no texto o uso de operadores argumentativos: ou<br />
pelo menos (alternativo); a ciência ainda não consegue (adição);<br />
como às vezes prega (conformidade); com isso, os laboratórios<br />
(conclusão); para chegarem ao mercado (finalidade);<br />
mas não se entusiasme (oposição). Há o emprego de uma linguagem<br />
comum, com uma sintaxe acessível ao leitor.<br />
Observa-se no texto explicativo a ilustração de um alimento<br />
funcional, o tomate, acompanhada de uma legenda, que<br />
ressalta a principal propriedade do tomate, a de evitar o câncer<br />
de próstata. Também há uma tabela, ao lado do texto, que destaca<br />
substâncias presentes em alguns alimentos funcionais, o<br />
que fazem, como agem e onde encontrar.<br />
5 - Sugestão de atividades<br />
I) Leia o texto que segue e resolva as questões<br />
QUANTO VOCÊ CONTRIBUI PARA O AQUECIMENTO<br />
GLOBAL?<br />
Cada habitante da terra libera em média 7 toneladas/ano<br />
de gás carbônico. Para compensar os efeitos<br />
dessa emissão, seria preciso plantar 38,9 árvores.<br />
(Tiago Cordeiro)<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 244
Sabemos que há muitos fatores que contribuem para o<br />
aquecimento global do planeta. Quanto o homem contribui<br />
para esse aquecimento?<br />
Não são apenas as chaminés industriais que provocam o<br />
aquecimento global. Todos os anos, cada "pessoa física" do<br />
planeta produz, em média, 7 toneladas de gás carbônico. A<br />
estimativa, feita pela ONU, não inclui fábricas e usinas, só a<br />
soma de todas as emissões que as pessoas provocam ao ligar o<br />
carro, acender o fogão ou comer carne. Somadas, elas são responsáveis<br />
por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais de gás carbônico<br />
que a humanidade joga na atmosfera (número semelhante à<br />
emissão de fenômenos naturais, como vulcões e incêndios florestais).<br />
"O impacto pessoal na formação do efeito estufa é<br />
muito grande. Quanto mais prejudicamos o clima, fica mais<br />
urgente ainda tomar uma atitude", diz Osvaldo Martins, da ong<br />
Iniciativa Verde.<br />
Não há mais muita dúvida de que o homem é responsável<br />
pelas alterações que o clima do planeta sofreu nos últimos<br />
50 anos. De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 20<strong>07</strong>,<br />
as chances são de mais de 90% (leia mais sobre o relatório na<br />
página 23). "Mesmo que as emissões de gases na atmosfera<br />
fossem reduzidas em 60% a fim de que o planeta recuperasse o<br />
equilíbrio, já experimentaremos um aumento de 0,1ºC na temperatura<br />
a cada década durante os próximos 100 anos", diz Carlos<br />
Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais<br />
(INPE). A melhor atitude a se tomar é diminuir a emissão pessoal<br />
de gás carbônico.<br />
CORDEIRO, Tiago. Quanto você contribui para<br />
o aquecimento global? Revista Superinteressante.<br />
São Paulo, ed. 237, mar. 20<strong>07</strong>. (Disponível em:<br />
http://super.abril.com.br/revista/conteudo_215100<br />
.shtml) – Adaptação<br />
a) Por que o texto Quanto o homem contribui para o<br />
aquecimento global? é caracterizado como explicativo?<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 245<br />
b) O texto explicativo estrutura-se em constatação inicial,<br />
problematização, resolução e conclusão-avaliação. Aponte<br />
essas partes.<br />
c) O autor afirma que não são apenas as chaminés industriais<br />
que provocam o aquecimento global. Quais os dados<br />
estatísticos que ele apresenta para fundamentar essa declaração?<br />
d) Como se caracteriza a linguagem presente no texto<br />
(comum, cuidada, oratória, familiar, popular)? Justifique sua<br />
resposta.<br />
e) Qual o tempo verbal que predomina nesse texto explicativo?<br />
Por que isso ocorre?<br />
f) Verifica-se no texto o uso de operadores argumentativos<br />
a fim de articular o discurso, de modo lógico e coerente.<br />
Substitua os seguintes operadores por outros do mesmo sentido.<br />
Especifique a relação estabelecida:<br />
• para (parágrafo 2):<br />
• apenas (parágrafo 3):<br />
• só (parágrafo 3):<br />
• de acordo (parágrafo 4):<br />
• a fim de (parágrafo 4):<br />
II) A partir de diferentes assuntos, podemos observar fatos e<br />
fazer questionamentos em relação a eles. Veja o exemplo:<br />
Assunto: Porta inteligente<br />
Constatação: Quando um ser humano se aproxima de<br />
uma porta inteligente, ela abre.<br />
Questionamento: Como uma porta inteligente é capaz<br />
de se abrir, sem ter alguém que a toque?<br />
Escolha um assunto, destaque uma constatação que pode<br />
ser feita, e formule uma questão a partir dessa constatação:<br />
forno microondas, automóveis, tendinite, neblina.<br />
III) Que pergunta o pesquisador fez para chegar a essa resposta?<br />
Formule uma pergunta para o texto explicativo.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 246
Porque não havia motivos que justificassem os riscos e<br />
os custos de se mandar pessoas à Lua - o programa Apollo, que<br />
pôs 12 homens na superfície lunar entre 1969 e 1972, custou a<br />
bagatela de 19,5 bilhões de dólares. Quando gastou esse dinheiro,<br />
o governo americano estava querendo provar sua superioridade<br />
em relação à União Soviética - e, conseqüentemente,<br />
a supremacia do capitalismo. Vencida a corrida espacial, não<br />
havia mais por que ir à Lua. "É um problema de orçamento. Na<br />
época, foi dada prioridade aos ônibus espaciais e à estação espacial",<br />
afirma Steven J. Dick, chefe da divisão de história da<br />
Nasa.<br />
Agora, a nova política espacial do presidente George<br />
W. Bush, anunciada em 2004, voltou novamente as atenções<br />
para a Lua, com a justificativa de que a retomada das viagens<br />
possibilitará o desenvolvimento de tecnologias para que o homem<br />
possa ficar por um longo período no espaço (e assim explorar<br />
mais o sistema solar). Também poderiam ser investigados<br />
in loco os dados trazidos por sondas espaciais, como a<br />
possibilidade da existência de gelo nos pólos lunares. Faz parte<br />
da nova política espacial a construção de uma base lunar que<br />
servirá como apoio nas viagens a Marte.<br />
Para essas missões tripuladas, está sendo desenvolvido<br />
um novo veículo espacial, com uma enorme diferença em relação<br />
às naves Apollo: a tripulação e o módulo lunar viajam em<br />
foguetes distintos, que se acoplam na órbita terrestre. Ao chegar<br />
à órbita da Lua, os astronautas se transferem para o módulo<br />
lunar, que pousa enquanto o resto da nave aguarda o seu retorno.<br />
Os críticos afirmam que a missão é desnecessária. "Se<br />
quisermos descobrir algo mais, podemos fazer melhor com<br />
naves automatizadas do que mandando pessoas", diz o historiador<br />
Alex Roland, da Universidade Duke, ex-funcionário da<br />
Nasa.<br />
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IV) Produção do gênero<br />
Revista Superinteressante. São Paulo, ed. 230,<br />
set. 2006. Seção Superrespostas. (Disponível em:<br />
http://super.abril.com.br/superarquivo/<br />
2006/conteudo_165014.shtml)<br />
a) Procure em livros e revistas informações para responder<br />
a questão: Por que as folhas das árvores caem no outono?<br />
Produza um texto explicativo para ser socializado com os<br />
colegas.<br />
b) Produza um texto explicativo, para ser lido aos colegas,<br />
respondendo a seguinte questão: As frutas são essenciais à<br />
nossa saúde. Quais são os benefícios da maçã? (Dar o nome de<br />
uma fruta para cada aluno).<br />
c) A partir do levantamento realizado pelo jornal Zero<br />
Hora, de Porto Alegre, e publicado na edição de 15 de <strong>jul</strong>ho de<br />
20<strong>07</strong>, faça a leitura do gráfico e produza um texto explicativo.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 248
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 249<br />
6 - Considerações finais<br />
O domínio dos diversos gêneros textuais pode auxiliar o<br />
aluno a ser o legítimo autor de seu dizer e levar o estudante a<br />
ocupar, com maior consciência, os diferentes lugares na sociedade<br />
a partir dos quais pode interagir. Além disso, o trabalho<br />
com gêneros permitirá tanto a sua produção quanto a sua recriação<br />
por meio do exercício de práticas de linguagem significativas<br />
na/pela escola, durante as atividades de ensinoaprendizagem<br />
de Língua Portuguesa.<br />
Assim, o trabalho com o texto explicativo torna-se significativo<br />
na medida em que o aluno amplia habilidades e<br />
competências de leitura e escrita.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da<br />
criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.<br />
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e<br />
discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:<br />
EDUC, 1999.<br />
CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas de coerência<br />
dos textos. GALVES, C.; ORLANDI, E. P. ; OTONI, P. O<br />
texto, leitura e escrita. Campinas: Pontes, 1988.<br />
COLTIER, Danielle. Approches du text explicatf. Pratiques,<br />
metz (51): 3-22, sep. 1986. Trad. de Ignácio Antônio Neis. Porto<br />
Alegre: PUC/RS.<br />
CRISTOVÃO, Vera Lúcia Lopes e NASCIMENTO, Elvira<br />
Lopes. Gêneros textuais e ensino: contribuições do interacionismo<br />
sócio-discursivo. In: KARWOSKI, Acir Mário,<br />
GAYDECZKA, Beatriz e BRITO, Karim Siebeneicher. Gêneros<br />
textuais: reflexões e ensino. União da Vitória, PR: Kaygangue,<br />
2005, p.35-77.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 250
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e<br />
funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO,<br />
Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). Gêneros<br />
textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36.<br />
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Ensino<br />
Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 251<br />
ANEXO<br />
POSSÍVEIS RESPOSTAS<br />
I)<br />
a) Trata-se de um texto explicativo, pois apresenta ao interlocutor<br />
um enigma a ser elucidado: Quanto o homem contribui<br />
para o aquecimento global? Propõe uma questão da ordem do<br />
saber e, a partir de um raciocínio coerente e organizado, explica<br />
o que não se compreendia e encaminha para uma conclusão.<br />
b) As partes são as seguintes:<br />
Constatação inicial : Sabemos que há muitos fatores que<br />
contribuem para o aquecimento global do planeta.<br />
Problematização: Quanto o homem contribui para o aquecimento<br />
global?<br />
Resolução: O autor afirma que não são apenas as chaminés<br />
industriais que provocam o aquecimento global,<br />
pois todos os anos, cada "pessoa física" do planeta produz,<br />
em média, 7 toneladas de gás carbônico. Na seqüência,<br />
fundamenta essa declaração.<br />
Conclusão-avaliação: Não há mais muita dúvida de que<br />
o homem é responsável pelas alterações que o clima do<br />
planeta sofreu nos últimos 50 anos.<br />
c) Os dados estatísticos são os seguintes:<br />
Todos os anos, cada “pessoa física” do planeta produz,<br />
em média, 7 toneladas de gás carbônico.<br />
A soma de todas as emissões que as pessoas provocam<br />
são responsáveis por 0,9% das 7 gigatoneladas anuais<br />
de gás carbônico que a humanidade joga na atmosfera.<br />
De acordo com o relatório Mudanças Climáticas 20<strong>07</strong>,<br />
as chances são de mais de 90% de que o homem seja<br />
responsável pelas alterações que o clima do planeta sofreu<br />
nos últimos 50 anos.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 252
d) Há o emprego de uma linguagem comum, com um vocabulários<br />
simples e uma sintaxe acessível ao leitor.<br />
e) Predominam os verbos no presente do indicativo (pensa,<br />
falam, provocam, prejudicamos, é, são), pois a questão da ordem<br />
do saber que o texto elucida refere-se a um fenômeno atual<br />
e do qual o leitor também é co-participante.<br />
f) As substituições e as relações podem ser:<br />
• para (parágrafo 2): a fim de, com o intuito de, com o objetivo<br />
de,... - finalidade<br />
• apenas (parágrafo 3): somente, só, ... - exclusão<br />
• só (parágrafo 3): somente, apenas, ... - exclusão<br />
• de acordo (parágrafo 4): conforme, segundo, consoante, ...<br />
- conformidade<br />
• a fim de (parágrafo 4): para, com o intuito de, com o objetivo<br />
de,... - finalidade<br />
II) Pessoal<br />
III) Título original: Por que o homem parou de viajar à Lua?<br />
IV) Produção do gênero<br />
a) Pessoal<br />
b) Pessoal<br />
c) Esperara-se que os alunos leiam, no mínimo, as informações<br />
que seguem.<br />
O gráfico apresenta dados acerca dos acidentes de motocicletas<br />
com óbito ocorridos de 1º de janeiro a 30 de junho de<br />
20<strong>07</strong>, no Rio Grande do Sul. O levantamento, realizado pelo<br />
jornal Zero Hora, de Porto Alegre, mostra que aconteceram,<br />
nesse período, 131 acidentes com motos, dos quais resultaram<br />
142 óbitos. Desse total, a grande maioria dos mortos eram motociclistas<br />
(75,3%). Os caroneiros representam apenas 14,8%<br />
dos óbitos.<br />
Caderno Seminal Digital, Ano 13, Nº 8, V 8 (Jul/Dez 20<strong>07</strong>) – ISSN 1806-9142 253<br />
O gráfico evidencia ainda que a maior parte dos acidentes<br />
fatais ocorre no horário das 18h às 24h, e com maior incidência<br />
na segunda feira. Além disso, a maioria dos motociclistas<br />
envolvidos eram jovens, não tinham 30 anos, num<br />
percentual de 58,8%.<br />
Dos 131 condutores envolvidos em acidentes com mortes,<br />
70,2% não havia sofrido acidente anterior e 45,8% dos casos<br />
foram registrados na cidade.<br />
Dos pilotos que provocaram mortes, 16,8% haviam passado<br />
por exames de direção há menos de um ano. Os motociclistas<br />
com mais de 5 anos de carteira de habilitação representam<br />
32% dos envolvidos. Já os condutores clandestinos estão<br />
envolvidos em quase um quarto dos acidentes que misturam<br />
motos e óbito. Em 30 dos 131 acidentes fatais registrados por<br />
ZH - 22,9% do total das ocorrências -, os motociclistas não<br />
tinham a carteira de habilitação de categoria A, documento<br />
obrigatório para guiar motos.<br />
Portanto, a partir dos dados analisados, é necessário<br />
muita cautela por parte dos motociclistas, principalmente, na<br />
cidade e rodovias estaduais, na sexta e segunda-feira, no horário<br />
das 18h às 24h, mesmo para aqueles que nunca sofreram<br />
acidentes.<br />
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