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anais do xi encontro da epfcl|afcl - brasil - Escola de Psicanálise dos ...

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ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL<br />

Fortaleza - 2011<br />

1


ANAIS DO XI ENCONTRO DA EPFCL|AFCL - BRASIL<br />

Coor<strong>de</strong>nação Nacional: Sonia Alberti<br />

Georgina Cerquise<br />

Consuelo Pereira <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong><br />

Coor<strong>de</strong>nação Local: Andrea Rodrigues<br />

Sandra Mara Nunes Doura<strong>do</strong><br />

Coor<strong>de</strong>nação <strong>da</strong> Comissão Científica: Lia Carneiro Silveira<br />

Membros <strong>da</strong> Comissão Científica: Alba Abreu<br />

Angélia Teixeira<br />

Andrea Brunetto,<br />

Diego Mautino<br />

Dominique Fingermann<br />

Maria Anita Carneiro Ribeiro<br />

Silvia Amoe<strong>do</strong><br />

Zil<strong>da</strong> Macha<strong>do</strong>.<br />

Diretoria <strong>da</strong> EPFCL-Brasil (2011): Ana Laura Prates (Diretora)<br />

Sandra Berta (Secretária)<br />

Patrocínio:<br />

Apoio:<br />

Beatriz Oliveira (Tesoureira)<br />

Associação <strong>do</strong>s Lojistas <strong>da</strong> Monsenhor Tabosa<br />

2


SUMÁRIO<br />

APRESENTAÇÃO 5<br />

PLENÁRIAS 7<br />

O SINTOMA ENTRE MARX E LACAN 8<br />

ALÍNGUA HISTÉRICA 14<br />

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE O NÚCLEO REAL DO SINTHOMA E A EXPERIÊNCIA DO GOZO OUTRO 24<br />

“DAR NA PINTA”: PARECER MULHER COM CORPO DE HOMEM 32<br />

SINTOMA E FANTASIA NA HISTERIA MASCULINA 42<br />

O SINTOMA E O AMOR 50<br />

APOSTAR NO SINTOMA 56<br />

SINTOMA E ESCRITA OU...OS ECOS DO SINTOMA SELVAGEM 64<br />

O LIVRO DE CABECEIRA: DA ESCRITA COMO SINTOMA AO SINTOMA COMO LETRA 74<br />

A SATISFAÇÃO DO FINAL DE ANÁLISE 81<br />

MESAS SIMULTÂNEAS 90<br />

“FAZER UMA ESCOLHA OU PERMANECER NA DÚVIDA?” 91<br />

O QUE MARCÉLIO SABIA 100<br />

REFLEXÕES SOBRE A DIREÇÃO DO TRATAMENTO NA CLÍNICA DA PERVERSÃO 109<br />

A PELE, SUAS MARCAS E O CORPO:FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO E TATUAGEM 117<br />

SINTOMA: RUÍDO DA ALÍNGUA NO CORPO 128<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE O GOZO EM UM CASO CLÍNICO DE PSORÍASE 136<br />

SINTHOME: O REAL DO SINTOMA 146<br />

SINTOMA E FANTASIA FUNDAMENTAL 152<br />

O NOME DO SINTOMA 160<br />

A ARTE É O QUE HÁ DE MAIS REAL 168<br />

OS USOS DO CORPO E A POLÍTICA DO SINTOMA: O CASO DA TRANSFORMAÇÃO CORPORAL 175<br />

O REAL DO SINTOMA: SUA POLÍTICA NA CURA 184<br />

SINTOMA OU FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO? DECIFRA-ME OU TE DEVORO! 195<br />

CONSIDERAÇÕES TOPOLÓGICAS DA PASSAGEM DO SINTOMA AO SINTHOMA 202<br />

UM ADOLESCENTE EM CENA 210<br />

A RELAÇÃO DO SINTOMA COM AS LEIS MORAIS 217<br />

“SINTO QUE NÃO TOM(A)ES” – SOBRE A DESIMPLICAÇÃO SUBJETIVA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA<br />

223<br />

A FUNÇÃO DO ANALISTA E A POLÍTICA DA PSICANÁLISE NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL 229<br />

OS IMPASSES DA TRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE E DA TRANSMISSÃO EM PSICANÁLISE 235<br />

ASPECTOS DA RELAÇÃO ENTRE SINTOMA E ANÁLISE 241<br />

PSICOSES ORDINÁRIAS E ATOS VIOLENTOS 246<br />

ENTRE A SÍNDROME E A MÃE: MARCELA 252<br />

O HOMEM CONDUTOR: UM CASO DE HISTERIA MASCULINA? 260<br />

DA ILUSÃO DE COMPLETUDE AO ENCONTRO SIMBÓLICO: A PEREGRINAÇÃO AMOROSA DO SUJEITO<br />

DESEJANTE EM “UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES”, DE CLARICE LISPECTOR 267<br />

SINTOMA, SINTHOME E FINAL DE ANÁLISE 277<br />

3


“IMAGINE O QUE EU NÃO FALARIA SE EU NÃO FOSSE GAGO!”: O QUE FALA ESSA GAGUEIRA? 283<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NA PSICOSE: CASO SCHREBER 287<br />

DE UM SINTOMA NO CORPO A UM SINTOMA ANALÍTICO: UMA CLÍNICA A PARTIR DOS FENÔMENOS<br />

PSICOSSOMÁTICOS 294<br />

A CRIANÇA COMO SINTOMA DOS PAIS EM CASOS DE DISPUTA DE GUARDA 301<br />

PSICANÁLISE E POLÍTICA : O PSICANALISTA COMO SINTOMA DA CULTURA 307<br />

SINTOMA E REPETIÇÃO NA NEUROSE OBSESSIVA 314<br />

O SINTOMA NA ARTE OU A ARTE COMO SINTOMA? 322<br />

ESPAÇO ESCOLA 330<br />

CARTEL: ESPAÇO DE SABER ARTICULADO À POLÍTICA DA PSICANÁLISE 331<br />

O PASSE: A RAZÃO DE UM FRACASSO 340<br />

4


Apresentação<br />

“O sintoma fun<strong>da</strong>mental é a única coisa que faz i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro nome próprio – o que to<strong>da</strong>s as i<strong>de</strong>ntificações fracassam em<br />

fazer. É somente nele que o sujeito po<strong>de</strong> encontrar seu princípio <strong>de</strong><br />

consistência e constitui-lo em resposta à questão <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>: o que<br />

sou? Sou este gozo ou, mais precisamente, esta mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

amarração entre um <strong>de</strong>sejo impossível <strong>de</strong> dizer tu<strong>do</strong> e um gozo que<br />

fixa uma letra <strong>do</strong> inconsciente” Colette Soler, 10/07/1999.<br />

Se i<strong>de</strong>ntificamos três momentos para a psicanálise: o <strong>de</strong> seu surgimento, <strong>de</strong> sua<br />

releitura e <strong>de</strong> seu objeto a abrir um novo campo, ain<strong>da</strong> assim o sintoma, que estará nos três,<br />

po<strong>de</strong>rá ser um quarto a amarrá-los. O sintoma é a política <strong>da</strong> psicanálise por diferenciá-la<br />

não só <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras clínicas mas também como discurso, aparelho <strong>de</strong> gozo.<br />

A psicanálise surge num contexto histórico muito complexo, na pena <strong>de</strong> um gênio<br />

que consegue traduzir o que está absolutamente presente sem que ninguém consiga vê-lo e<br />

transmitir, com suas próprias palavras, o que até então não era possível dizer. Inicialmente é<br />

isso o sintoma: na histeria, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo insatisfeito; na fobia, a angústia <strong>da</strong><br />

castração, e na neurose obsessiva, o direito ao <strong>de</strong>sejo no compromisso com sua proibição.<br />

A psicanálise cresce com o campo <strong>da</strong> fala e <strong>da</strong> linguagem com o qual Lacan po<strong>de</strong><br />

“construir algoritmos mais rigorosos” (Lacan, p. 109, Sem. 21) para articular a obra <strong>de</strong> Freud,<br />

e trazer novamente à cena o que fora recalca<strong>do</strong> na própria psicanálise, cuja situação em 1956,<br />

para retomar somente um <strong>de</strong>sses momentos, se sintomatizava na burocracia <strong>da</strong> formação<br />

psicanalítica, muito distante <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> freudiana.<br />

A psicanálise abre um novo campo, o campo lacaniano, <strong>do</strong> gozo, e novamente o<br />

sintoma comparece, <strong>de</strong>ssa vez como política. Na clínica, isso inclui em seu campo, além <strong>da</strong><br />

neurose, a psicose e mesmo o final <strong>da</strong> análise. Com Joyce e a ciência <strong>do</strong> real, a lógica, os nós,<br />

instrumento que introduz as três dimensões com as quais, em 12 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1974 Lacan<br />

propõe cingir o ponto <strong>do</strong> lugar <strong>da</strong> psicanálise no mun<strong>do</strong>. A psicanálise mesma como sintoma,<br />

observa Lacan em 1974, <strong>do</strong> que não vai bem no real...<br />

Nos seminários mais tardios <strong>de</strong> seu ensino, Jacques Lacan retomou a noção <strong>de</strong><br />

sintoma para lhe atribuir finalmente, a função <strong>de</strong> ano<strong>da</strong>mento, amarração, entre real,<br />

5


simbólico e imaginário o que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ter referência com o termo freudiano atribui<strong>do</strong> a<br />

Eros <strong>de</strong> amarrar, ligar, bin<strong>de</strong>n.<br />

O sintoma como nó é quarto, é também o sintoma como o que vem <strong>do</strong> real: o que<br />

claudica, por exemplo, no discurso <strong>do</strong> mestre. Os novos sintomas presentificam o que<br />

claudica no discurso <strong>do</strong> mestre contemporaneo: as to<strong>xi</strong>comanias – que <strong>de</strong>man<strong>da</strong>m drogas<br />

lícitas e ilícitas – como retorno <strong>do</strong> real <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> capitalista; o recru<strong>de</strong>cimento <strong>da</strong><br />

segregação; os transtornos... conforme as novas nomenclaturas sintomatizan<strong>do</strong> a ciência.<br />

O sintoma como o que claudica no discurso <strong>do</strong> mestre inclui o próprio inconsciente<br />

real, o gran<strong>de</strong> campo <strong>do</strong> não saber. A partir <strong>do</strong> que observou nossa convi<strong>da</strong><strong>da</strong> internacional<br />

Colette Soler, ano passa<strong>do</strong> em Buenos Aires, o passe <strong>de</strong>veria ocupar-se disso: na contramão<br />

<strong>da</strong> confusão entre a fantasia e o real <strong>do</strong> inconsciente, a i<strong>de</strong>ntificação ao sintoma implica o<br />

saber-se objeto, ponto <strong>de</strong> vira<strong>da</strong> em relação à repetição.<br />

Sonia Alberti – Diretora <strong>da</strong> EPFCL | AFCL-Brasil<br />

6


PLENÁRIAS<br />

7


O sintoma com Marx<br />

O Sintoma entre Marx e Lacan<br />

Sonia Alberti 1<br />

Praticamente, a ca<strong>da</strong> vez em que Lacan se refere ao sintoma,<br />

estatisticamente se quiserem, po<strong>de</strong>mos dizer a ca<strong>da</strong> <strong>do</strong>is anos em seu<br />

Seminário, ele começa assim: “é importante observar que historicamente não<br />

resi<strong>de</strong> aí a novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Freud, a noção <strong>de</strong> sintoma, como várias vezes marquei, e<br />

como é muito fácil observar na leitura <strong>da</strong>quele que por esta noção é<br />

responsável, [...] [é <strong>de</strong>] Marx” (1970-­‐1, p. 220). Extraí essa citação ao acaso, elas<br />

são inúmeras nos textos <strong>de</strong> Lacan, ain<strong>da</strong> em RSI ele faz essa referência e no<br />

seminário sobre o Sinthome. Já anteriormente, em seu texto “Formulações sobre<br />

a causali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica” (1946) Lacan termina por colocar em série: Sócrates,<br />

Descartes, Marx e Freud como aqueles que “não po<strong>de</strong>m ser supera<strong>do</strong>s, na<br />

medi<strong>da</strong> em que conduziram suas investigações com essa paixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar a<br />

qual possui um objeto: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (p.193). É por estarem referi<strong>do</strong>s a esse objeto,<br />

que os <strong>do</strong>is últimos, Marx e Freud, pu<strong>de</strong>ram perceber o quanto a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é<br />

sempre meio dizer e o quanto insiste, justamente, ali on<strong>de</strong> sempre se vela. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, também po<strong>de</strong>mos ler em Lacan que “O sintoma tem o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

valor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Tal observação é associa<strong>da</strong>, por Lacan, com esta outra: “o que<br />

há <strong>de</strong> essencial no pensamento mar<strong>xi</strong>sta é a equivalência <strong>do</strong> sintoma com o<br />

valor <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Lacan, 1971-­‐2, p. 25).<br />

Assim: para Lacan, tanto Marx como Freud possuem o mesmo objeto: a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, além disso, para ambos, é o valor <strong>de</strong>sse objeto que equivale ao sintoma.<br />

1 AME , Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro<br />

8


Ou seja: o valor ver<strong>da</strong><strong>de</strong> = valor sintoma, o sintoma em Marx e em Freud. Até aí<br />

pu<strong>de</strong> ir no último trabalho apresenta<strong>do</strong>, em particular em São Paulo quan<strong>do</strong> tive<br />

a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falar no FCL <strong>de</strong> lá. O que proponho hoje, e será rápi<strong>do</strong>, é um<br />

pequeno avanço: o sintoma entre Marx e Lacan.<br />

Em 1844, época em que Marx estabelece as bases filosóficas para to<strong>da</strong> sua<br />

obra, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em questão é a <strong>do</strong> sistema capitalista que Proudhon julgava<br />

estar se socializan<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais. É no questionamento <strong>de</strong>ssa hipótese <strong>de</strong><br />

Proudhon que encontramos talvez a mais evi<strong>de</strong>nte acepção <strong>do</strong> emprego <strong>do</strong><br />

termo sintoma, por Marx, na maneira como Lacan o marca. Retomemos to<strong>da</strong> a<br />

passagem em Marx:<br />

A diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro, o que Proudhon consi<strong>de</strong>ra<br />

como a anulação <strong>do</strong> capital e como uma tendência para socializar o<br />

capital é, por essa razão, <strong>de</strong> fato somente um sintoma <strong>da</strong> vitória<br />

total <strong>do</strong> capital <strong>de</strong> giro sobre o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza, isto é, <strong>da</strong><br />

transformação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> em capital industrial. É<br />

a vitória total <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> sobre to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que<br />

ain<strong>da</strong> são aparentemente humanas, e a total sujeição <strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> à essência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> – o<br />

trabalho. Certamente, o capitalista industrial também goza. De<br />

forma alguma ele retorna para a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> que<br />

não é natural; mas seu gozo é somente um assunto lateral –<br />

recreação – submeti<strong>do</strong> à produção; ao mesmo tempo, é calcula<strong>do</strong> e,<br />

por isso, ele próprio, um gozo econômico. Pois ele o <strong>de</strong>bita <strong>da</strong> conta<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>spesas, e o que for <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong> para seu gozo não po<strong>de</strong><br />

exce<strong>de</strong>r o que será substituí<strong>do</strong> com o lucro <strong>da</strong> reprodução <strong>do</strong><br />

capital. Por isso, o gozo é subsumi<strong>do</strong> ao capital, e o indivíduo que<br />

9


goza é subsumi<strong>do</strong> ao indivíduo que acumula capital. Antes, a<br />

situação era o contrário [o indivíduo que acumulava capital o fazia<br />

para gozar com ele, provocan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza]. A<br />

diminuição <strong>da</strong> taxa <strong>de</strong> juros [que Proudhon via como uma<br />

diminuição <strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> dinheiro] é, portanto, um sintoma <strong>da</strong><br />

anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />

crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital – <strong>da</strong> alienação crescente [...]. Aliás,<br />

esta é a única maneira <strong>de</strong> o que e<strong>xi</strong>ste afirmar seu oposto (Marx,<br />

1844, tradução e grifos meus).<br />

Não somos economistas para <strong>de</strong>senvolver to<strong>do</strong> esse raciocínio na<br />

articulação com as vicissitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1844. Efetivamente, no<br />

campo <strong>da</strong> economia, tais observações <strong>de</strong> Marx <strong>de</strong>vem ter ti<strong>do</strong> novas<br />

contribuições com as guina<strong>da</strong>s – para retomar uma expressão que usávamos no<br />

sába<strong>do</strong>, a partir <strong>da</strong>s observações <strong>de</strong> Colette Soler sobre o passe – <strong>do</strong> capitalismo<br />

no século XX. Mas o que me interessa aqui é verificar, na formulação mesma <strong>do</strong><br />

termo em Marx, as razões que levaram Lacan a i<strong>de</strong>ntificar, tantas vezes, a<br />

origem <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> sintoma, em psicanálise, em Marx, o que ocorre <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

primeiras observações sobre o sintoma em Lacan até as últimas, ou seja, no<br />

contexto <strong>do</strong> Seminário O Sinthoma, entre 1975-­‐6.<br />

Se nas primeiras observações então a questão parece articular o sintoma<br />

com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> – razão <strong>de</strong> o sintoma em Freud ser o sintoma em Marx, como<br />

vimos em São Paulo –, por que Lacan se interessa em artiular o sintoma, <strong>do</strong> jeito<br />

que a psicanálise o conceituaria, no Seminário O Sinthoma, com o conceito<br />

inventa<strong>do</strong> por Marx?<br />

10


Retomemos com vagar a passagem li<strong>da</strong>, os comentários <strong>de</strong> Marx sobre as<br />

teses <strong>de</strong> Feuerbach:<br />

1) “A diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro, o que Proudhon consi<strong>de</strong>ra como a<br />

anulação <strong>do</strong> capital e como uma tendência para socializar o capital é, por essa<br />

razão, <strong>de</strong> fato somente um sintoma <strong>da</strong> vitória total <strong>do</strong> capital <strong>de</strong> giro sobre o<br />

<strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza, isto é, <strong>da</strong> transformação <strong>de</strong> to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />

em capital industrial”. Inicialmente, o sintoma é sinal <strong>de</strong> que o capital <strong>de</strong> giro<br />

venceu o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza e, portanto, não corrobora a observação <strong>de</strong><br />

Proudhon, <strong>de</strong> que a diminuição <strong>do</strong> interesse no dinheiro seria sinal <strong>de</strong> que o<br />

socialismo estaria chegan<strong>do</strong>... Ao contrário, diz Marx: em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong><br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser privilegia<strong>da</strong>, surge o capital industrial,<br />

visan<strong>do</strong>, na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma sempre maior circulação <strong>da</strong> riqueza, em que o<br />

próprio capital é produtor <strong>de</strong> mais capital.<br />

2) “É a vitória total <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> sobre to<strong>da</strong>s as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ain<strong>da</strong><br />

são aparentemente humanas, e a total sujeição <strong>do</strong> <strong>do</strong>no <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />

à essência <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> – o trabalho”. O capital que produz mais<br />

capital submete o <strong>do</strong>no <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong> ao trabalho pois, para produzir<br />

é preciso trabalhar. Colocar o capital a trabalho. Ao mesmo tempo, Marx já<br />

<strong>de</strong>nuncia aqui o fim <strong>do</strong> humanismo, pois o homem é agora submeti<strong>do</strong> ao capital<br />

que o faz trabalhar para este mesmo capital. Se até então ain<strong>da</strong> havia uma i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> fazê-­‐lo para o homem, agora fica claro – já que essa i<strong>de</strong>ia era somente uma<br />

noção que vinha <strong>da</strong>s aparências porque, em essência, a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong><br />

privilegia<strong>da</strong> até então, era somente sustenta<strong>da</strong> pelo trabalho, seu capital – que,<br />

na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é pelo capital que o homem trabalha. E isso in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> esse<br />

homem ser o proprietário ou o operário, como se vê na frase seguinte:<br />

11


3) “Certamente, o capitalista industrial também goza”. Frase um pouco estranha.<br />

Como assim: “também”? Só posso enten<strong>de</strong>r essa frase quan<strong>do</strong> eu enten<strong>de</strong>r que o<br />

próprio gozo é esse capital que já estava lá apesar <strong>de</strong> vela<strong>do</strong> pelas “quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

aparentemente humanas”.<br />

4) Não é porque no capitalismo industrial há uma diminuição <strong>do</strong> interesse no<br />

dinheiro que esse capitalista estaria retornan<strong>do</strong> para “a simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>” que, aliás, <strong>de</strong> natural não tem na<strong>da</strong>, observa Marx <strong>de</strong> quebra.<br />

5) “mas seu gozo é somente um assunto lateral – recreação – submeti<strong>do</strong> à<br />

produção; ao mesmo tempo, é calcula<strong>do</strong> e, por isso, ele próprio, um gozo<br />

econômico. Pois ele o <strong>de</strong>bita <strong>da</strong> conta <strong>da</strong>s <strong>de</strong>spesas, e o que for <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong><br />

para seu gozo não po<strong>de</strong> exce<strong>de</strong>r o que será substituí<strong>do</strong> com o lucro <strong>da</strong><br />

reprodução <strong>do</strong> capital. Por isso, o gozo é subsumi<strong>do</strong> ao capital [...]”. A economia<br />

<strong>de</strong> gozo, no argumento <strong>de</strong> Marx, se mostra aqui mais uma vez como capital pois<br />

é ele mesmo calcula<strong>do</strong>, como o é o capital que já não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sperdiça<strong>do</strong>. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, o mecanismo obsessivo aqui <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>: tanto gozo para tanta<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> substituição com o lucro <strong>da</strong> reprodução <strong>do</strong> capital, <strong>de</strong>nuncia o<br />

quanto esse homem, anula seu <strong>de</strong>sejo.<br />

6) Novo mal-­‐estar na civilização: em mal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> qual o sujeito já<br />

não po<strong>de</strong> usufruir, gozar, “o indivíduo que goza é subsumi<strong>do</strong> ao indivíduo que<br />

acumula capital. Antes, a situação era o contrário” [o indivíduo que acumulava<br />

capital o fazia para gozar com ele, provocan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sperdício <strong>da</strong> riqueza],<br />

pagan<strong>do</strong> o preço para <strong>de</strong>sejar.<br />

7) E então, o grand finale <strong>de</strong> Marx: ao contrário <strong>do</strong> que previa Proudhon, “A<br />

diminuição <strong>da</strong> taxa <strong>de</strong> juros” (que Proudhon via como uma diminuição <strong>do</strong><br />

interesse <strong>do</strong> dinheiro) serve a provocar maior capital <strong>de</strong> giro e “é, portanto, um<br />

12


sintoma <strong>da</strong> anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />

crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital”. Ain<strong>da</strong> aqui inicialmente, o sintoma é sinal, mas<br />

não só. Ele também amarra o imaginário <strong>do</strong> que havia <strong>de</strong> aparentemente<br />

humano, o simbólico que se contabiliza, com o real <strong>do</strong> incomensurável que é o<br />

trabalho que nessa operação sempre se per<strong>de</strong> enquanto mais valia, na<br />

8) “alienação crescente” pois o próprio gozo que se per<strong>de</strong>, que se aliena, é ele<br />

mesmo o capital a incrementar a produção, gozo a mais ou mais <strong>de</strong> gozar.<br />

9) “Aliás, esta é a única maneira <strong>de</strong> o que e<strong>xi</strong>ste afirmar seu oposto”. Se é<br />

“sintoma <strong>da</strong> anulação <strong>do</strong> capital apenas na medi<strong>da</strong> em que é um sintoma <strong>da</strong><br />

crescente <strong>do</strong>minação <strong>do</strong> capital” é porque <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> presentifica o que não se<br />

goza – e que po<strong>de</strong>mos aqui associar com o impossível <strong>da</strong> relação sexual, <strong>de</strong><br />

outro la<strong>do</strong>, com o gozo a mais, produzi<strong>do</strong> a partir <strong>da</strong>quela per<strong>da</strong>: o Sinthoma e o<br />

real. Sinthoma, portanto, com “th”, reforçan<strong>do</strong> a amarração entre real, simbólico<br />

e imaginário ali on<strong>de</strong> o homem está em mal <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

MARX, K. (1844) Human Requirements and Division of Labour. Un<strong>de</strong>r the Rule<br />

of Private Property. In Economic and Philosophical Manuscripts of 1844.<br />

Consulta<strong>do</strong> no site:<br />

http://www.mar<strong>xi</strong>sts.org/archive/marx/works/1844/manuscripts/needs.htm<br />

(1845) Thesen über Feuerbach in Marx-­‐Engels Werke 3, 534. Consulta<strong>da</strong>s no<br />

site: http://www.mlwerke.<strong>de</strong>/me/me03/me03_005.htm<br />

13


Alíngua Histérica<br />

Jairo Gerbase 1<br />

Sob o título <strong>de</strong> alíngua histérica, escrita com uma só palavra como propõe Lacan,<br />

gostaria <strong>de</strong> justificar nossa hipótese <strong>de</strong> trabalho segun<strong>do</strong> a qual, o campo <strong>da</strong>s neuroses, campo<br />

<strong>do</strong> inconsciente real, é uma espécie <strong>de</strong> território on<strong>de</strong> <strong>do</strong>mina uma língua oficial – alíngua<br />

histérica – <strong>da</strong> qual as outras formas <strong>de</strong> sintoma, especialmente a forma <strong>do</strong> sintoma obsessivo,<br />

correspon<strong>de</strong>m a um dialeto.<br />

Alíngua histérica e dialeto obsessivo<br />

Na introdução <strong>do</strong> caso <strong>do</strong> “homem <strong>do</strong>s ratos” [Notas sobre um caso <strong>de</strong> neurose<br />

obsessiva (1909) v. X] Freud afirma que “A linguagem <strong>de</strong> uma neurose obsessiva, ou seja, os<br />

meios pelos quais ela expressa seus pensamentos secretos, presume-se ser apenas um dialeto<br />

<strong>da</strong> linguagem <strong>da</strong> histeria; é, porém, um dialeto no qual teríamos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r orientar-nos a seu<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campos <strong>do</strong> Fórum Lacaniano – Brasil. Membro <strong>do</strong><br />

Fórum Salva<strong>do</strong>r<br />

14


espeito com mais facili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vez que se refere com mais pro<strong>xi</strong>mi<strong>da</strong><strong>de</strong> às formas <strong>de</strong><br />

expressão a<strong>do</strong>ta<strong>da</strong>s pelo nosso pensamento consciente <strong>do</strong> que a linguagem <strong>da</strong> histeria.<br />

Sobretu<strong>do</strong>, não implica o salto <strong>de</strong> um processo mental a uma inervação somática —<br />

conversão histérica — que jamais nos po<strong>de</strong> ser totalmente compreensível”.<br />

Esta relação entre alíngua e dialeto po<strong>de</strong> ser estendi<strong>da</strong> às <strong>de</strong>mais formas <strong>da</strong> neurose<br />

inclusive à paranoia se tomarmos por referência o caso <strong>de</strong> Cecília [Caso 5 - Srta. Elisabeth<br />

Von R. (Freud) v.II] no qual ele afirma que “... a histeria tem razão em restaurar o significa<strong>do</strong><br />

original <strong>da</strong>s palavras ao retratar suas inervações inusita<strong>da</strong>mente fortes. Com efeito, talvez seja<br />

erra<strong>do</strong> dizer que a histeria cria essas sensações através <strong>da</strong> simbolização. É possível que ela<br />

não tome em absoluto o uso <strong>da</strong> língua como seu mo<strong>de</strong>lo, mas que tanto a histeria quanto o uso<br />

<strong>da</strong> língua extraiam seu material <strong>de</strong> uma fonte comum...”<br />

Quer dizer que não apenas a histeria, a obsessão, a fobia e a paranoia, mas a própria<br />

língua faz uso <strong>da</strong> alíngua, ou como diria Lacan o objeto <strong>da</strong> lingüística não é a língua, mas<br />

alíngua.<br />

Se me for objeta<strong>do</strong> que Freud também <strong>de</strong>stacou acima que o pensamento obsessivo é<br />

mais pró<strong>xi</strong>mo <strong>do</strong> pensamento consciente, ou que Lacan <strong>de</strong>nominou a neurose obsessiva <strong>de</strong> o<br />

15


princípio <strong>da</strong> consciência [L‘insu-que-sait <strong>de</strong> l‘une-bévue s’aile à mourre, 17/5/1977, Rumo a<br />

um significante novo – IV – Um significante novo] mesmo que me agra<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> elevar a<br />

obsessão à categoria <strong>de</strong> uma neurose exemplar, refutaria que ain<strong>da</strong> assim não faz discurso:<br />

não dizemos, a rigor, discurso obsessivo.<br />

Uma terceira referência a propósito <strong>da</strong> <strong>do</strong>minância <strong>da</strong> alíngua histérica sobre o dialeto<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> sintoma po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> na fórmula 9 <strong>do</strong> artigo [Fantasias<br />

histéricas e sua relação com a bissexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (1908) v.VIII] “(9) Os sintomas histéricos são a<br />

expressão, por um la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> uma fantasia sexual inconsciente masculina e, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong><br />

uma feminina”.<br />

Trato esta fórmula como um teorema e faço sua <strong>de</strong>monstração traduzin<strong>do</strong> fantasia<br />

sexual inconsciente masculina, primeiramente por significação fálica e, em segui<strong>da</strong> por gozo<br />

fálico [J ], posto que o gozo fálico é aquele que toma por referente (ou significação -<br />

Be<strong>de</strong>utung) o falo; por outro la<strong>do</strong>, traduzo a fantasia sexual inconsciente feminina por<br />

significação tórica e, em segui<strong>da</strong>, por gozo <strong>do</strong> Outro [J ], posto que o gozo <strong>do</strong> Outro é aquele<br />

que toma por referente o furo e que se po<strong>de</strong> mostrar seja através <strong>do</strong> símbolo <strong>do</strong> conjunto vazio<br />

[ ] ou <strong>da</strong> Impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Relação Sexual [IRS]ou ain<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto a.<br />

Freud termina este artigo afirman<strong>do</strong> que “No tratamento psicanalítico é extremamente<br />

importante estar prepara<strong>do</strong> para encontrar sintomas com significa<strong>do</strong> bissexual. Assim não<br />

ficaremos surpresos ou confusos se um sintoma parece não diminuir, embora já tenhamos<br />

resolvi<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s seus significa<strong>do</strong>s sexuais, pois ele ain<strong>da</strong> é manti<strong>do</strong> por um, talvez<br />

insuspeito, que pertence ao sexo oposto. No tratamento <strong>de</strong> tais casos, além disso, po<strong>de</strong>mos<br />

observar como o paciente se utiliza, durante a análise <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s sexuais, <strong>da</strong><br />

16


conveniente possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> constantemente passar suas associações para o campo <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong> oposto, tal como para uma trilha paralela”.<br />

O significa<strong>do</strong> bissexual <strong>do</strong> sintoma histérico, que nesta fórmula é indica<strong>do</strong> como<br />

sintoma completo, como trabalho acaba<strong>do</strong>, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> seu valor <strong>de</strong> alíngua oficial, <strong>de</strong>vemos<br />

traduzir por significa<strong>do</strong> asexual, posto que sabemos que a outra parte <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />

se escrever, não haven<strong>do</strong> por isto relação.<br />

Quarta referência, <strong>de</strong>sta vez em L´Étourdit, <strong>de</strong> Lacan, publica<strong>do</strong> no thesaurus:<br />

lalíngua [Lalíngua nos seminários, conferências e escritos <strong>de</strong> Jacques Lacan, organiza<strong>do</strong> por<br />

Dominique Fingermann e Conra<strong>do</strong> Ramos e publica<strong>do</strong> em Stylus 19, OE 492] “... Esse dizer<br />

provém apenas <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que o inconsciente por ser ‘estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem’, isto<br />

é, como alíngua que ele habita, está sujeito à equivoci<strong>da</strong><strong>de</strong> pela qual ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las se<br />

distingue. Uma língua entre outras não é na<strong>da</strong> além <strong>da</strong> integral <strong>do</strong>s equívocos que sua história<br />

<strong>de</strong>ixou persistirem nela. É a veia em que o real – o único, para o discurso analítico, a motivar<br />

seu resulta<strong>do</strong>, o real <strong>de</strong> que não e<strong>xi</strong>ste relação sexual - se <strong>de</strong>positou ao longo <strong>da</strong>s eras...”<br />

Citação que nos autoriza a atualizar o inconsciente estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem em o<br />

inconsciente real estrutura<strong>do</strong> como alíngua.<br />

Prefiro traduzir lalangue por alíngua que por lalíngua porque apesar <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

evocar a lalação não permite o equívoco que a primeira conserva.<br />

A objeção <strong>de</strong> que o inconsciente é estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem e <strong>de</strong> que a alíngua<br />

não é uma estrutura <strong>de</strong>ve-se respon<strong>de</strong>r afirman<strong>do</strong> que o inconsciente real estrutura<strong>do</strong> como<br />

alíngua correspon<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> inconsciente como aluvião <strong>do</strong>s mal-entendi<strong>do</strong>s <strong>da</strong> língua.<br />

17


O discurso histérico<br />

Passemos ao discurso histérico que escrevemos <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong> e que po<strong>de</strong>mos ler <strong>de</strong><br />

várias maneiras. Vamos ler esse matema tal como Lacan o leu no texto sobre o senti<strong>do</strong><br />

[Introdução è edição alemã <strong>de</strong> um 1º volume <strong>do</strong>s Escritos, OE 550].<br />

E<strong>xi</strong>ste uma clínica. Ela é inclusive anterior ao discurso analítico, e se o discurso<br />

analítico lhe trouxe alguma luz, isso ain<strong>da</strong> é preciso ser <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>. A clínica é mais antiga.<br />

O que é uma clínica? Não po<strong>de</strong>mos dizer só há uma estrutura clínica, a estrutura <strong>de</strong><br />

linguagem, a estrutura significante, que escrevemos [S( )], porque isso não é uma clínica. A<br />

clínica psicanalítica é o que se diz em uma psicanálise.<br />

Mesmo se <strong>de</strong>duzo <strong>da</strong> afirmação, <strong>da</strong> Bejahung e <strong>da</strong> não-afirmação, <strong>da</strong> Verwerfung, <strong>da</strong><br />

primeira afirmação e <strong>da</strong> primeira não-afirmação, nesse nível ain<strong>da</strong> não há uma clínica, porque<br />

18


estamos no nível <strong>da</strong> gênese <strong>do</strong> julgamento, e nesse nível ou admito ou expulso, nesse nível<br />

que <strong>de</strong>duzo <strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> linguagem e que chamo <strong>de</strong> estrutura <strong>do</strong> sintoma.<br />

Creio que é por esta razão que Lacan afirma que e<strong>xi</strong>ste uma clínica no nível <strong>da</strong>s<br />

formas <strong>do</strong> sintoma. Uma clínica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> sintoma. É preciso que o sintoma<br />

tome forma, configuração, para que se possa dizer: e<strong>xi</strong>ste uma clínica.<br />

É necessário que o sintoma tome a forma que convém à estrutura <strong>do</strong> sintoma para que<br />

possamos falar <strong>de</strong> clínica. Portanto, a clínica é <strong>da</strong>s formas <strong>do</strong> sintoma, <strong>da</strong>s formas neuróticas<br />

<strong>do</strong> sintoma, que po<strong>de</strong>mos escrever como [Σn] e que sabemos que resultam <strong>da</strong> estrutura <strong>do</strong><br />

recalque, ou <strong>da</strong>s formas que po<strong>de</strong>mos escrever como [Σp], <strong>do</strong> sintoma psicótico, que é outra<br />

forma <strong>do</strong> sintoma e que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> foraclusão ou <strong>da</strong> holófrase.<br />

A holófrase prece<strong>de</strong> a frase. É uma coalescência <strong>do</strong>s <strong>da</strong> frase que suprime o<br />

intervalo próprio <strong>da</strong> neurose, que também se po<strong>de</strong> escrever como e funciona como<br />

19


Um que vai <strong>da</strong> <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> à psicose. Alíngua é uma holófrase. É um jouis-signes distinto <strong>da</strong><br />

mensagem articula<strong>da</strong>. Um é <strong>do</strong> simbólico o outro é <strong>do</strong> real. Um é pré-verbal o outro é pré-<br />

linguagem. 1<br />

Po<strong>de</strong>mos partir <strong>de</strong> [S( )] e <strong>de</strong>duzir <strong>da</strong>í o discurso histérico; isso torna possíveis as<br />

formas histérica, obsessiva e fóbica <strong>do</strong> sintoma.<br />

Em um esquema como esse, temos, num primeiro nível, a estrutura <strong>da</strong> linguagem, <strong>do</strong><br />

significante e, num segun<strong>do</strong> nível, a estrutura <strong>do</strong> sintoma, que é, por exemplo, o discurso<br />

histérico.<br />

Hoje vou dizer que o discurso histérico é a estrutura <strong>do</strong> sintoma por excelência, <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

que esse discurso operou <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> afirmação primordial, operou negan<strong>do</strong> essa afirmação <strong>de</strong><br />

mo<strong>do</strong> veemente, afirman<strong>do</strong>: tenho horror <strong>de</strong> saber disso, que é o que se chama <strong>de</strong> mecanismo<br />

<strong>do</strong> recalque e que permite constituir a estrutura <strong>do</strong> sintoma que atinge um discurso, o discurso<br />

histérico, <strong>do</strong> qual po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>duzir diversas formas <strong>de</strong> sintoma.<br />

De acor<strong>do</strong> com essa concepção, a obsessão e a fobia <strong>de</strong>veriam ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como<br />

formas <strong>do</strong> discurso histérico, ou tipos <strong>de</strong> sintoma que resultam <strong>da</strong> estrutura <strong>do</strong> recalque. Dessa<br />

maneira gostaria <strong>de</strong> elevar o discurso histérico à estrutura <strong>de</strong> to<strong>do</strong> sintoma ou, pelo menos, à<br />

estrutura <strong>de</strong> to<strong>do</strong> sintoma neurótico e fazer <strong>da</strong> obsessão e <strong>da</strong> fobia formas <strong>do</strong> sintoma<br />

histérico.<br />

1 SOLER, C. O corpo falante. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, p.27.<br />

20


Dizer que o sintoma obsessivo é uma forma <strong>do</strong> discurso histérico é, no lé<strong>xi</strong>co <strong>de</strong><br />

Freud, dizer que a obsessão é um dialeto <strong>da</strong> histeria, ou que é uma forma inacaba<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

sintoma. Po<strong>de</strong>ríamos usar o lé<strong>xi</strong>co <strong>de</strong> Joyce e dizer que o sintoma obsessivo é um “Work in<br />

progress”, um sintoma em construção, um trabalho em an<strong>da</strong>mento. O sintoma fóbico é<br />

também um “Work in progress”, <strong>da</strong><strong>do</strong> que não sabemos se ele vai se concluir em um sintoma<br />

histérico, em um sintoma obsessivo, ou se vai permanecer, to<strong>da</strong>via como um sintoma fóbico.<br />

Po<strong>de</strong>mos esten<strong>de</strong>r este argumento ao extremo para po<strong>de</strong>r dizer que inclusive a<br />

paranoia uma vez coloca<strong>da</strong> no dispositivo analítico, isto é, uma vez opera<strong>da</strong> a partir <strong>do</strong><br />

discurso <strong>do</strong> analista <strong>de</strong>ve ser hystoriza<strong>da</strong> ou histeriza<strong>da</strong> a fim <strong>de</strong> se tornar sintoma analítico.<br />

Isto parece contrariar o conceito <strong>de</strong> estrutura clínica, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as estruturas<br />

clínicas não são intercambiáveis. Porém, atenção: não disse que a histeria po<strong>de</strong> virar paranoia,<br />

nem mesmo disse que a paranoia po<strong>de</strong> virar histeria, disse que o paranoico po<strong>de</strong> historizar seu<br />

21


discurso posto que a paranoia é igualmente um fato <strong>de</strong> discurso. O paranoico continuará<br />

paranoico, porém com um discurso histeriza<strong>do</strong>, historiza<strong>do</strong>. Isto, certamente implicará em<br />

uma estabilização.<br />

Talvez possamos tomar como exemplo <strong>de</strong> sintoma em construção o caso <strong>do</strong> Índio.<br />

Trata-se <strong>de</strong> uma “personali<strong>da</strong><strong>de</strong>” anancástica. Um estu<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> Engenharia ambiental que se<br />

preocupa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já em proteger o ambiente, por exemplo, reaproveitamento <strong>da</strong> água suja para a<br />

<strong>de</strong>scarga. Suas má<strong>xi</strong>mas: o homem <strong>de</strong>strói o ambiente; o sol vai esfriar; o índio já era artista<br />

muito antes <strong>de</strong> Tarzan... Com quatro anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> perguntou à sua mãe: e quan<strong>do</strong> a água <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> acabar? Ela respon<strong>de</strong>u: não vai acabar. Ele replicou: como não vai acabar se to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> usa a água? Desenvolveu uma inibição escopofílica [fobia social] que lhe impôs um<br />

atraso escolar consi<strong>de</strong>rável, uma procrastinação. Para me explicar diz que era uma criança tão<br />

hiperativa que certa vez seu pai foi à escola lhe obrigar a pedir <strong>de</strong>sculpas à professora e aos<br />

22


colegas; morreu <strong>de</strong> vergonha. Seu pai gostava <strong>de</strong> lhe expor ao ridículo: vestir-lhe <strong>de</strong> palhaço<br />

com a cara lambuza<strong>da</strong> em festas juninas; em um carnaval lhe vestiu uma fantasia <strong>de</strong> índio,<br />

sem roupas, sob o argumento irônico <strong>de</strong> que: índio an<strong>da</strong> nu. De mo<strong>do</strong> que acredito que esta<br />

fixão <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong>terminou tanto seu sintoma como sua escolha vocacional.<br />

23


Algumas observações sobre o núcleo real <strong>do</strong> sinthoma e a experiência <strong>do</strong><br />

gozo Outro<br />

Elisabeth <strong>da</strong> Rocha Miran<strong>da</strong> 1<br />

O sintoma é, para Freud, uma solução <strong>de</strong> compromisso (Kompromissbildung) entre o<br />

<strong>de</strong>sejo inconsciente e as e<strong>xi</strong>gências <strong>de</strong>fensivas <strong>do</strong> eu. É um sinal e o substituto <strong>de</strong> uma<br />

satisfação pulsional que não po<strong>de</strong> alcançar seu alvo <strong>de</strong> forma direta. É uma mensagem cifra<strong>da</strong><br />

que pe<strong>de</strong> interpretação. Para Lacan, o sintoma en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao Outro ganha uma significação.<br />

A “dialética <strong>do</strong> senhor e <strong>do</strong> escravo” elabora<strong>da</strong> por Hegel foi uma referência quan<strong>do</strong> em 1953<br />

no texto “Função e campo <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> linguagem” Lacan nos dá uma primeira leitura <strong>da</strong><br />

questão <strong>do</strong> sintoma. A partir <strong>de</strong> 1958, no texto “A direção <strong>do</strong> tratamento e os princípios <strong>de</strong><br />

seu po<strong>de</strong>r” (Lacan,1958) ele concebe o inconsciente como ten<strong>do</strong> “a estrutura radical <strong>da</strong><br />

linguagem” (Lacan, 1958: 600). A linguagem, segun<strong>do</strong> Saussure, é plena <strong>de</strong> diferenças e a<br />

sincronia significante inscrita no lugar <strong>do</strong> Outro, longe <strong>de</strong> ser uma plenitu<strong>de</strong> compacta,<br />

contém rupturas. Na seqüência sincrônica <strong>da</strong> linguagem abre-se uma hiância que se revela na<br />

clínica e po<strong>de</strong> ser formaliza<strong>da</strong> graças à teoria lacaniana <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> significante. A<br />

incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro é um fato <strong>de</strong> estrutura, o que faz Lacan <strong>de</strong>fini-lo como lugar <strong>da</strong> fala,<br />

“lugar <strong>da</strong> falta” (Lacan, 1958: 633).<br />

O recurso <strong>do</strong> sujeito para li<strong>da</strong>r com essa falta é o apelo ao significante Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />

concebi<strong>do</strong> como o significante <strong>do</strong> Outro <strong>da</strong> lei inseri<strong>do</strong> no Outro <strong>do</strong> significante. A<br />

significação fálica, produzi<strong>da</strong> retroativamente, está regi<strong>da</strong> pela função paterna, que se<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil, membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro<br />

24


inscreve no seio <strong>do</strong> Outro, em A. O sintoma se apresenta, neste momento, como metáfora<br />

significante e se constitui em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong> inscrição <strong>do</strong> significante Nome-<strong>do</strong>-Pai. No<br />

entanto, a estrutura <strong>do</strong> sintoma não se limita à estrutura <strong>da</strong> metáfora, já que o sintoma não se<br />

resolve <strong>de</strong> to<strong>do</strong> em uma análise <strong>da</strong> linguagem. O sintoma está enraiza<strong>do</strong> em algo <strong>de</strong> uma<br />

natureza distinta <strong>do</strong> significante, o que se comprova com a teoria <strong>da</strong>s pulsões. A compulsão à<br />

repetição e o gozo participam <strong>da</strong> estruturação <strong>do</strong> sintoma tanto quanto a metáfora significante<br />

surgi<strong>da</strong> <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> Outro.<br />

A lógica <strong>da</strong> enunciação não po<strong>de</strong> encontrar no campo <strong>do</strong> significante seu próprio fun<strong>da</strong>mento.<br />

Não há Outro <strong>do</strong> Outro, visto que to<strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> possui como única garantia<br />

sua própria enunciação. Nenhuma metalinguagem po<strong>de</strong> articular a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> última <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

Há um significante que marca que ao Outro falta, constituin<strong>do</strong>-o por uma falha e que se<br />

escreve com o matema . A or<strong>de</strong>m simbólica está articula<strong>da</strong> em torno <strong>de</strong> um furo, o que<br />

nos permite consi<strong>de</strong>rar como o matema <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai. Ain<strong>da</strong> que tenha si<strong>do</strong><br />

introduzi<strong>do</strong> para sublinhar a mortificação <strong>do</strong> pai freudiano pelo significante, o Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />

encontra-se inseri<strong>do</strong> <strong>de</strong> saí<strong>da</strong> no campo <strong>da</strong> linguagem. A incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro impe<strong>de</strong> que<br />

consi<strong>de</strong>remos o pai simbólico como o significante mestre (S1). Lacan <strong>de</strong>staca que o pai <strong>da</strong><br />

hor<strong>da</strong> primitiva, cujo <strong>de</strong>saparecimento instaura a lei, não transmite nenhuma mensagem, <strong>de</strong><br />

tal maneira que sua função se iguala a um significante sem significação. A referência a sua<br />

morte vai a favor <strong>do</strong> Outro marca<strong>do</strong> por uma hiância. “O cadáver é um significante, mas o<br />

túmulo <strong>de</strong> Moisés está tão vazio para Freud quanto o <strong>de</strong> Cristo para Hegel. Abraão a nenhum<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is revelou seu mistério” (Lacan, 1960: 833) diz Lacan em 1960. Na única aula <strong>do</strong><br />

25


seminário “Os nomes <strong>do</strong> pai”, Lacan (1963) diz que o sacrifício e<strong>xi</strong>gi<strong>do</strong> por Deus a Abraão<br />

nos faz enten<strong>de</strong>r que a herança <strong>do</strong> pai freudiano resi<strong>de</strong> no complexo <strong>de</strong> castração.<br />

A <strong>de</strong>scoberta freudiana e a lógica matemática levaram Lacan a formular a tese <strong>de</strong> que o<br />

significante Nome-<strong>do</strong>-Pai <strong>de</strong>termina e or<strong>de</strong>na a ca<strong>de</strong>ia significante, regulan<strong>do</strong> o gozo inerente<br />

a ela, gozo limita<strong>do</strong> pela renúncia ao objeto primordial <strong>de</strong> gozo. Essa tese se afirma com as<br />

fórmulas <strong>da</strong> sexuação e com o tardio <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia borromeana no ensino <strong>de</strong><br />

Lacan.<br />

A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recorrer a essa noção se impõe <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação<br />

sexual. Uma amarração <strong>da</strong>s três instâncias R.S.I. constitui a topologia mínima capaz <strong>de</strong> captar<br />

a estrutura <strong>do</strong> sujeito e construir a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> para o ser falante. A topologia <strong>do</strong>s nós baseia-se<br />

na idéia <strong>do</strong> furo, já que o <strong>de</strong>sejo só se sustenta em uma falta (Lacan, lição <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />

1975). “A ca<strong>de</strong>ia borromeana é um triplo furo” (Lacan, 1975: 267) que <strong>de</strong>limita o quarto furo<br />

on<strong>de</strong> se aloja o objeto a. Esses furos se presentificam <strong>de</strong> maneiras diversas em ca<strong>da</strong> um <strong>do</strong>s<br />

três registros; no registro <strong>do</strong> simbólico, ele aparece como a hiância fun<strong>da</strong>mental, como a<br />

incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro, como já dissemos, não há Outro <strong>do</strong> Outro, ao Outro falta, ele é<br />

barra<strong>do</strong> em relação ao to<strong>do</strong>; no registro <strong>do</strong> imaginário (Lacan, lição <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1975 e<br />

<strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1974), para além <strong>do</strong> que a imagem <strong>do</strong> corpo tenta elidir, o furo se faz<br />

através <strong>da</strong> negativização <strong>do</strong> falo (–phi); no registro <strong>do</strong> real, temos a hiância posta às claras<br />

pela não relação sexual, que marca a impossível completu<strong>de</strong> <strong>do</strong> ser sexua<strong>do</strong>.<br />

Em 1975, Lacan faz uma equivalência entre o Nome-<strong>do</strong>-Pai e a ca<strong>de</strong>ia borromeana.<br />

Esta, como já dissemos, é composta <strong>de</strong> três registros, RSI, que por si só não dão ao humano a<br />

26


estrutura necessária para que ele ace<strong>da</strong> ao falasser (parlêtre) e como tal po<strong>de</strong>r utilizar-se <strong>do</strong><br />

discurso como recurso à falta-ser. É necessário o quarto nó que amarre os três e esse quarto nó<br />

é o Nome-<strong>do</strong>-Pai, que nesta ocasião Lacan faz equivaler ao sinthome. Temos então o objeto a<br />

enquanto puro vazio, marca <strong>da</strong> castração, <strong>da</strong> falta radical constitutiva <strong>do</strong> sujeito aloja<strong>do</strong> no<br />

quarto furo <strong>de</strong>limita<strong>do</strong> pelo RSI. Neste mesmo lugar Lacan situa o sinthome e o Nome-<strong>do</strong>-<br />

Pai.<br />

O sinthome escrito assim em uma nova grafia toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> francês antigo é utiliza<strong>do</strong> por<br />

Lacan para <strong>de</strong>signar o conceito <strong>de</strong> sinthoma como quarto nó correlativo ao Nome-<strong>do</strong>-Pai. Para<br />

forjar este novo conceito diz Lacan, foi “preciso reduzir o sinthoma em um grau para<br />

consi<strong>de</strong>rar que ele era homogêneo à elucubração <strong>do</strong> inconsciente” (Lacan, 1976: 134). O<br />

conceito anterior era o <strong>de</strong> uma metáfora estanque, cujo senti<strong>do</strong> era possível <strong>de</strong> se extrair; a<br />

partir <strong>da</strong> indicação <strong>de</strong> 1976, temos um irredutível no sinthoma que se mantém no campo <strong>do</strong><br />

Real, estabelecen<strong>do</strong> “uma coerência entre o sinthoma e o inconsciente [...]. Elemento<br />

necessário <strong>da</strong> estrutura o sinthoma é ancora<strong>do</strong> em um gozo vincula<strong>do</strong> ao <strong>da</strong> fantasia<br />

fun<strong>da</strong>mental. Algo <strong>do</strong> sinthoma escapa ao senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> tal maneira que no final <strong>de</strong> uma análise<br />

resta-nos apenas “saber fazer com seu sintoma” (Lacan, lição <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1976). Se<br />

e<strong>xi</strong>ste um núcleo incurável, resta-nos assumi-lo, o que produz uma modificação <strong>do</strong> sujeito na<br />

relação com seu próprio gozo.<br />

O sinthoma é o real que se faz presente no simbólico, é a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> uma marca <strong>do</strong><br />

inconsciente transporta<strong>da</strong> ao simbólico, ele é “é o que as pessoas têm <strong>de</strong> mais real” diz Lacan<br />

(Lacan, 1975: 41), é a comprovação <strong>de</strong> que há inconsciente, é o que testemunha que o<br />

27


inconsciente mor<strong>de</strong>u o real. Logo, po<strong>de</strong>-se falar <strong>de</strong> sinthoma quan<strong>do</strong> há uma marca <strong>de</strong><br />

inconsciente <strong>do</strong> sujeito que se eno<strong>do</strong>u com algo <strong>do</strong> real <strong>de</strong> seu gozo. O sujeito não é só<br />

relativo ao significante, o que realmente lhe dá e<strong>xi</strong>stência, está liga<strong>do</strong> ao real <strong>de</strong> seu gozo, ao<br />

real <strong>do</strong> sexo.<br />

Em Lacan, a posição sexua<strong>da</strong>, a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, tem essencialmente suas raízes no real e<br />

não na relativi<strong>da</strong><strong>de</strong> significante e é, finalmente, a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina que põe sobre o tapete o<br />

laço <strong>do</strong> sexo com o real. No entanto, o problema <strong>do</strong> neurótico não é que o Outro <strong>do</strong> Outro<br />

não e<strong>xi</strong>sta, mas o que e<strong>xi</strong>ste no lugar <strong>da</strong> ine<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Outro como real. O sujeito tem que<br />

li<strong>da</strong>r com o que e<strong>xi</strong>ste como alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Confrontar-se com a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> é confrontar-se com a<br />

questão <strong>do</strong> que e<strong>xi</strong>ste aí on<strong>de</strong> o Outro está barra<strong>do</strong> , é confrontar-se com a ex-sistência.<br />

É na barra coloca<strong>da</strong> sobre o Outro, nesta falta, nesta falha que se articula o lugar <strong>do</strong><br />

gozo. O gozo fálico é limita<strong>do</strong> pelo Um <strong>da</strong> exceção enquanto que o é o lugar no qual<br />

Lacan situa o gozo feminino, outro que fálico, e que está em relação ao la<strong>do</strong> não-to<strong>do</strong>, em<br />

relação a não e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Um <strong>da</strong> exceção que seria a mulher se ela e<strong>xi</strong>stisse, logo lugar <strong>da</strong><br />

ex-sistência. O gozo <strong>do</strong> Outro barra<strong>do</strong> conforme Lacan o apresenta em 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1975 não é o gozo <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> significante, nem o Outro como corpo, mas Outro real, quer<br />

dizer impossível, é o furo abissal e impossível que e<strong>xi</strong>ste no lugar <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> Outro que não<br />

e<strong>xi</strong>ste. É o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro furo <strong>da</strong> estrutura.<br />

O sinthoma é uma resposta à possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> sempre presente <strong>do</strong>s três registros R.S.I. se<br />

confundirem. Resposta que se faz através <strong>do</strong> ser sexua<strong>do</strong>, pois o gozo referi<strong>do</strong> ao objeto a<br />

enquanto per<strong>da</strong> exclui a diferença sexual. O ser sexua<strong>do</strong> se faz através <strong>do</strong> gozo implica<strong>do</strong> na<br />

28


fantasia fun<strong>da</strong>mental e se articula ao núcleo real <strong>do</strong> sinthoma, ao gozo <strong>do</strong> sinthoma. É no<br />

lugar <strong>de</strong> J(A barra<strong>do</strong>) que Lacan inscreve o artifício <strong>do</strong> sinthoma como quarto elemento <strong>da</strong><br />

estrutura, necessário à subjetivação, por impedir que os outros três se confun<strong>da</strong>m.<br />

O final <strong>de</strong> uma análise freudiana é o roche<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração, a inveja <strong>do</strong> pênis Penisneid<br />

para as mulheres e o protesto viril para os homens, mas para uma análise lacaniana que vai<br />

além <strong>do</strong> falo, a castração se verifica no como significante <strong>do</strong> gozo feminino, que se trata<br />

<strong>de</strong> dissociar <strong>do</strong> objeto pequeno a <strong>da</strong> fantasia.<br />

A partir <strong>da</strong>í po<strong>de</strong>mos fazer uma diferença entre o gozo <strong>do</strong> sinthoma histérico, que é o<br />

gozo <strong>da</strong> privação <strong>do</strong> phallus e o gozo Outro que Lacan em O Seminário, livro: 20 Mais<br />

ain<strong>da</strong>...faz correspon<strong>de</strong>r ao gozo <strong>de</strong> Deus, como a outra face <strong>de</strong> Deus. O gozo <strong>de</strong> Deus<br />

genitivo subjetivo tem a face <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai e outra face que é o gozo feminino que<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> e sempre amor. A <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor parte <strong>do</strong> Deus barra<strong>do</strong> e a hiância que<br />

marca o abismo que o Outro representa, faz com que a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor jamais seja<br />

satisfeita. A noção <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong> Deus é introduzi<strong>da</strong> por Lacan na falha <strong>do</strong>no borromeo.<br />

Chegar a <strong>de</strong>cantar seu sintoma, chegar ao núcleo real <strong>do</strong> sintoma é uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se produzir um irreal, que é o objeto pequeno a no fim <strong>da</strong> análise. Em 1969 Lacan no<br />

relatório <strong>do</strong> Seminário, livro15 O ato analítico diz que: é “a partir <strong>da</strong> estrutura <strong>de</strong> ficção pela<br />

qual se enuncia a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que ele –o sujeito- fará <strong>de</strong> seu próprio ser, estofo para a produção<br />

<strong>de</strong> um irreal” (Lacan, 1969, p.372). Irreal que remete ao vazio <strong>de</strong> ser e à estrutura <strong>de</strong> ficção.<br />

Final em que o sujeito chega a tocar a estrutura, cuja chave é o gozo <strong>do</strong> Outro barra<strong>do</strong> J(A<br />

29


arra<strong>do</strong>), hiância que conforme Lacan em O Seminário livro 23 o sinthoma se abre entre<br />

imaginário e o real.<br />

Decantar o sinthoma até as últimas conseqüências é po<strong>de</strong>r verificar que há algo <strong>do</strong><br />

qual nós não po<strong>de</strong>mos gozar e que imputamos à Deus, e neste lugar não há na<strong>da</strong> <strong>de</strong> na<strong>da</strong>.<br />

Se para o neurótico o sinthoma é uma re<strong>de</strong> que o aprisiona na compulsão à repetição,<br />

no final <strong>de</strong> uma análise po<strong>de</strong>-se experimentar um silêncio inominável que liberta e apazigua.<br />

Fica então a questão a ser comprova<strong>da</strong> clinicamente <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> contingencial <strong>de</strong> ao final<br />

<strong>de</strong> análise, ao chegar ao significante <strong>da</strong> falta no Outro se ter a experiência <strong>do</strong> gozo Outro<br />

feminino, na medi<strong>da</strong> em que também é aí em que Lacan o situa. Po<strong>de</strong>-se experimentar o<br />

gozo Outro feminino, sempre que se ocupa a posição feminina e se cai no vazio <strong>de</strong> e<br />

uma <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> se experimentar aí é no momento <strong>do</strong> final <strong>de</strong> uma análise.<br />

Bibliografia<br />

30


LACAN,J. (1953) Função e campo <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> linguagem em psicanálise” In Escritos.<br />

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31


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2007.<br />

“Dar na pinta”: Parecer mulher com corpo <strong>de</strong> homem<br />

Georgina Cerquise 1<br />

No tempo inaugural <strong>da</strong> psicanálise, um <strong>do</strong>s critérios para estabelecer-­‐se o<br />

diagnóstico <strong>de</strong> histeria era o sintoma conversivo. Freud ampliou o campo <strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>scobertas e teorizou, em (1893-­‐1895), que diferentes fatores sexuais produzem<br />

diferentes quadros <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns neuróticas. Em 1905, o conflito psíquico-­‐inconsciente<br />

passa a ser a principal causa <strong>da</strong> histeria, ao introduzir-­‐se a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica como um<br />

aporte que favorecia o entendimento <strong>da</strong> sintomatologia <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença. A conversão começa,<br />

então, a ser entendi<strong>da</strong> como uma tentativa <strong>de</strong> realização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

Freud avança em sua tese quan<strong>do</strong> pesquisa a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> infantil, postulan<strong>do</strong> que<br />

tanto a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o sujeito liqui<strong>da</strong>r o complexo <strong>de</strong> Édipo quanto a tentativa <strong>de</strong><br />

evitar <strong>de</strong>parar com a castração têm conseqüências: levam o sujeito a uma rejeição <strong>da</strong><br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, conduzin<strong>do</strong>-­‐o à neurose histérica.<br />

Caso Clínico: A mãe <strong>de</strong> um jovem <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito anos, em entrevista, pe<strong>de</strong> para que<br />

seu filho seja atendi<strong>do</strong>, alegan<strong>do</strong> uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>. Esclarece que ele escolheu o<br />

pior caminho, pois assumiu a homossexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Acrescenta que ela tivera problemas<br />

no parto e que isso ocasionou muitas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> filho. No<br />

perío<strong>do</strong> escolar, custou para ser alfabetiza<strong>do</strong> e “sempre teve a pecha <strong>de</strong> retar<strong>da</strong><strong>do</strong>,<br />

esquisito, inconveniente e e<strong>xi</strong>bi<strong>do</strong>”. Ain<strong>da</strong> não conseguiu concluir o primeiro grau,<br />

apesar <strong>do</strong>s esforços <strong>da</strong> mãe para colocá-­‐lo em escolas especiais. No momento <strong>do</strong><br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong> janeiro<br />

32


encaminhamento, estava cursan<strong>do</strong> a sexta série <strong>do</strong> primeiro grau, numa escola<br />

municipal.<br />

A mãe revela que ficou <strong>do</strong>ente durante anos, com uma <strong>de</strong>pressão que lhe jogava na<br />

cama, não ten<strong>do</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong> direito <strong>do</strong>s filhos. Diz também que o alcoolismo <strong>do</strong> mari<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>rrubou-­‐lhe e que não teve escolha: man<strong>do</strong>u-­‐o embora. Ela interroga-­‐se: “Será que isso<br />

que acontece com meu filho é falta <strong>de</strong> pai?” Para o sujeito histérico, há um<br />

reconhecimento <strong>da</strong> falha, <strong>da</strong> impotência <strong>do</strong> pai. Isso não quer dizer que ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong><br />

ostentar os títulos simbólicos <strong>de</strong> pai, “mas, como um ex-­‐combatente, tem os títulos, mas<br />

está fora <strong>de</strong> combate” (Kaufmann, 1998, p. 249).<br />

O jovem chega atrasa<strong>do</strong> para a sessão, a primeira impressão choca, percebe-­‐se um<br />

corpo <strong>de</strong> menino <strong>de</strong> 12 anos em um jovem <strong>de</strong> 18 anos, extremamente magro. Com voz<br />

<strong>de</strong> criança, olhar fugidio, afirma: “Não sei se você percebeu, mas eu sou um gay”. Revela<br />

que já havia feito a sua opção sexual, o que lhe trazia problemas em casa. Costumava<br />

freqüentar boate gay, casa <strong>de</strong> orgia, e que saia com qualquer um, além <strong>de</strong> “baixar<br />

também no Aterro <strong>do</strong> Flamengo”, embora isso fosse reprova<strong>do</strong> pelos amigos. O paciente<br />

explica: “Gosto <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> escan<strong>da</strong>loso, gosto <strong>de</strong> <strong>da</strong>r na pinta; quan<strong>do</strong> chego, eu arraso, não<br />

me incomo<strong>do</strong> que me chamem <strong>de</strong> bichinha quá-­‐quá-­‐quá” 2 .<br />

A teoria freudiana <strong>de</strong> 1888 postula que nos sintomas <strong>da</strong> histeria po<strong>de</strong> ser<br />

observa<strong>da</strong> uma série <strong>de</strong> distúrbios psíquicos: alterações no curso e na associação <strong>de</strong><br />

idéias, exagero e supressão <strong>do</strong>s sentimentos. As manifestações histéricas têm uma<br />

característica marcante: são sempre exagera<strong>da</strong>s. Percebe-­‐se que o jovem tem um<br />

comportamento histriônico. Há, na sua fala, significantes expressivos que dão contorno<br />

<strong>de</strong> um possível diagnóstico <strong>de</strong> histeria: voraz, exagera<strong>do</strong>, escan<strong>da</strong>loso e, em especial,<br />

“<strong>da</strong>r na pinta” – expressão que para ele significa chocar e aparecer, no meio <strong>da</strong> boate,<br />

com roupas diferentes e <strong>da</strong>nças sensuais, sem <strong>da</strong>r bola para ninguém.<br />

2 Alcunha <strong>da</strong><strong>da</strong> aos homossexuais que se e<strong>xi</strong>bem, que são escan<strong>da</strong>losos<br />

33


Chaman<strong>do</strong> atenção pelo ônibus com roupas extravagantes, o jovem atravessa a<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> boates e lugares on<strong>de</strong> há festas <strong>de</strong> gays, sem levar em conta a<br />

preocupação <strong>da</strong> mãe que lhe adverte sobre a violência <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mesmo assim, ele sai<br />

sem preocupar-­‐se com na<strong>da</strong>. “Eu tenho <strong>de</strong> sair, não posso per<strong>de</strong>r tempo, eu não penso<br />

em ficar velho, prefiro morrer a chegar aos trinta anos”. Segun<strong>do</strong> a postulação freudiana,<br />

“a histeria masculina tem a aparência <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença grave; os sintomas que ela produz<br />

quase sempre são rebel<strong>de</strong>s ao tratamento” (Freud, 1888, p. 95).<br />

Esclarece que sempre vai para o “quarto escuro 3 ” <strong>da</strong> boate e transa com que<br />

estiver ali e que não costuma ficar com ninguém. “Eu não gosto <strong>de</strong> homem, eles não<br />

prestam, esses gays são homens também, isso é a pior raça: são competitivos, querem<br />

sempre <strong>de</strong>rrubar o outro”. Curiosamente, revela: “Gosto mesmo é <strong>de</strong> mulher, elas são o<br />

má<strong>xi</strong>mo, eu procuro imitá-­‐las, quero superá-­‐las, mas sem cair no ridículo <strong>de</strong> amar sem<br />

ser ama<strong>do</strong>. Percebe-­‐se aqui o narcisismo e a i<strong>de</strong>ntificação com as mulheres. Tal qual a<br />

jovem homossexual, ele apresenta uma amargura generaliza<strong>da</strong> pelos homens.<br />

Com muita emoção, o paciente traz para a sessão um pai falho: “Não sei on<strong>de</strong> ele<br />

está, é um alcoólatra”. Rememora sua infância sofri<strong>da</strong>, com a mãe <strong>de</strong>primi<strong>da</strong> e o pai<br />

brigan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa. “Quan<strong>do</strong> eles começavam, eu ia para a rua e fazia sacanagem<br />

com os meninos <strong>da</strong> vila. Era a alegria <strong>da</strong> menina<strong>da</strong>, porque já era um exagera<strong>do</strong>, tinha<br />

uma fila para transar comigo, <strong>de</strong>pois eu sentia nojo e ficava muito triste”.<br />

No “caso Dora”, Freud pontua: “Eu, sem dúvi<strong>da</strong>, consi<strong>de</strong>raria histérica uma pessoa<br />

na qual uma ocasião para a excitação sexual <strong>de</strong>spertasse sensações que fossem,<br />

prepon<strong>de</strong>rante ou exclusivamente, <strong>de</strong>sagradáveis; eu o faria, fosse ou não a pessoa<br />

capaz <strong>de</strong> produzir sintomas somáticos” (Freud, 1905, p. 26). Na tentativa <strong>de</strong> esclarecer<br />

melhor os episódios, a analista pe<strong>de</strong>-­‐lhe que <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bre sua fala: “Será que sou assim por<br />

que meu pai não me olhava? Eu tentava chamar atenção <strong>de</strong>le, queria um pai como to<strong>do</strong>s<br />

3 “Quarto escuro” é o local <strong>de</strong> <strong>encontro</strong> em que os gays transam sexualmente. É costumeiro não haver<br />

reconhecimento <strong>do</strong> parceiro. Segun<strong>do</strong> a fala <strong>do</strong> paciente, esse local funciona como um “vale tu<strong>do</strong>”.<br />

34


os meninos tinham. Ele era um homem bêba<strong>do</strong>, um pobre coita<strong>do</strong>, mas eu sempre<br />

<strong>de</strong>fendi meu pai, eu gosto muito <strong>de</strong>le”.<br />

Lacan <strong>de</strong>staca o amor <strong>do</strong> histérico (masculino-­‐feminino) pelo pai, apesar <strong>da</strong>s<br />

falhas, acrescentan<strong>do</strong> que o sujeito se coloca como aquele que vai amparar, vai tentar<br />

suprir a incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> paterna. O histérico engendra seu amor ao pai a partir <strong>do</strong> que este<br />

não lhe dá. Na teoria psicanalítica, a histeria articula-­‐se, a partir <strong>do</strong> Édipo, com uma<br />

pergunta: Sou homem ou sou mulher? Vale ressaltar que isso está para os <strong>do</strong>is sexos.<br />

Após esse primeiro momento <strong>da</strong> análise, o paciente faltou às sessões por duas<br />

semanas. A analista recebe um telefonema <strong>da</strong> irmã que pe<strong>de</strong>, aflita, para que a família<br />

seja atendi<strong>da</strong>. Na sessão, comparecem a mãe, o paciente e sua irmã. A mãe,<br />

enlouqueci<strong>da</strong>, diz que o paciente ficara <strong>do</strong>ente, com erupções na pele, e que o médico lhe<br />

pedira um exame <strong>de</strong> HIV. Repreen<strong>de</strong> o filho com dureza e chora copiosamente. O jovem<br />

está acabrunha<strong>do</strong> e, até mesmo, apavora<strong>do</strong>, mas tenta disfarçar a angústia: “Não estou<br />

nem aí, seu eu tiver com a “<strong>do</strong>ce 3 “, melhor, eu não quero viver até os trinta anos, não<br />

suporto a idéia <strong>de</strong> envelhecer, <strong>de</strong> ficar com o corpo velho; por isso, aproveito tu<strong>do</strong><br />

agora”. O resulta<strong>do</strong> dá positivo, revelan<strong>do</strong> a presença <strong>do</strong> vírus no rapaz e instalan<strong>do</strong> o<br />

caos familiar.<br />

O paciente chega para a análise com o corpo coberto <strong>de</strong> erupções, pe<strong>de</strong> uma<br />

ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> pouco uso: “Eu peguei sarna, não quero passar isso para seus pacientes”. Sem<br />

falar sobre o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> exame, diz que sua mãe está louca, que sua irmã é<br />

irresponsável porque não cui<strong>da</strong> <strong>do</strong>s filhos. A analista intervém e pergunta o que estava<br />

realmente acontecen<strong>do</strong>. Ele respon<strong>de</strong>, aos gritos e histericamente, que não queria falar,<br />

mas que não podia esquecer e que sabia que iria morrer jovem. Frente a essa atuação, a<br />

analista pergunta-­‐lhe diretamente sobre o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> exame. Ele chora, grita, revolta-­‐<br />

se e diz que o pior era não po<strong>de</strong>r transar livremente: “Eu estou enterra<strong>do</strong> vivo. Como<br />

po<strong>de</strong> uma pessoa nova como eu ficar sem sexo?”<br />

3 Gíria usa<strong>da</strong> pelos gays para <strong>de</strong>signar o vírus HIV.<br />

35


Completamente transtorna<strong>do</strong> frente aos limites impostos pelo médico, como<br />

<strong>de</strong>fesa, não esboça nenhuma elaboração quanto à <strong>do</strong>ença. Não quer saber <strong>de</strong> na<strong>da</strong> disso,<br />

preocupa-­‐se em ser <strong>de</strong>scoberto, em “<strong>da</strong>r pinta”, com o corpo, <strong>de</strong> que estava “pega<strong>do</strong>” 4 .<br />

“Eu não me preocupo em morrer, eu só não quero ficar como um coita<strong>do</strong>, eu prefiro<br />

morrer jovem a ficar velho”. Teríamos aqui o <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>da</strong> fantasia “envelhece-­‐se<br />

uma criança, ou pinta-­‐se uma criança”? O paciente prossegue: “Eu nunca achei que<br />

pegaria a <strong>do</strong>ce, ninguém fala o que tem e vai passan<strong>do</strong> para os outros”<br />

No <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> análise, o jovem recupera-­‐se <strong>do</strong> susto e segue retoman<strong>do</strong> seus<br />

hábitos antigos. É fácil observar que ele não tem nenhum projeto, não pensa em<br />

trabalhar, o estu<strong>do</strong> é só uma facha<strong>da</strong> encobri<strong>do</strong>ra. Ele <strong>do</strong>rme <strong>de</strong> dia para sair na noite.<br />

Interroga<strong>do</strong> sobre os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s que <strong>de</strong>ve ter para evitar a contaminação, respon<strong>de</strong><br />

evasivamente e troca <strong>de</strong> assunto. Frente a isso, a analista, como diretriz, chama a mãe<br />

para entrevista.<br />

A mãe revela: “Vivo no inferno, meu filho está com HIV, não consegue estu<strong>da</strong>r, não faz<br />

na<strong>da</strong>, só pensa em futili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Continua arriscan<strong>do</strong>-­‐se pela noite, sai sem dinheiro, com<br />

roupas estranhíssimas, que po<strong>de</strong>m provocar a agressão <strong>do</strong>s outros”. Essas roupas são<br />

peças femininas em um vestuário masculino, <strong>do</strong> tipo: calça jeans masculina, bor<strong>da</strong><strong>da</strong> com<br />

paetês e brilhos; blusa cor <strong>de</strong> rosa; botina <strong>do</strong> Exército; anéis <strong>de</strong> caveira com pulseiras <strong>de</strong><br />

miçangas; gargantilhas; cinturão masculino. Cabe aqui citar o Aba<strong>de</strong> <strong>de</strong> Choisy 5 : “Quan<strong>do</strong><br />

alguns homens possuem ou crêem possuir traços belos, que po<strong>de</strong>m inspirar amor, tratam<br />

<strong>de</strong> aumentá-­‐los com seus a<strong>do</strong>rnos femininos. Sentem, então, um inexprimível prazer <strong>de</strong> ser<br />

ama<strong>do</strong>” (Choisy, 1985, p. 13).<br />

O jovem revela que a<strong>do</strong>ra “se montar” 6 , e nas boates e festas, <strong>de</strong>staca-­‐se com suas<br />

“peças” femininas; sempre que po<strong>de</strong>, <strong>da</strong>nça e se e<strong>xi</strong>be: “To<strong>do</strong>s pensam que eu me drogo,<br />

4 Gíria referente a quem tem o vírus HIV.<br />

5 Referência feita por Lacan, no artigo “A carta rouba<strong>da</strong>” (In: Escritos, 1998), a respeito <strong>de</strong> um homem que se<br />

vestia <strong>de</strong> mulher para amar as <strong>do</strong>nzelas que <strong>de</strong>viam estar vesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> homem.<br />

6 “Montar-­‐se” significa vestir-­‐se com a<strong>de</strong>reços ou roupas femininas.<br />

36


mas não tem na<strong>da</strong> a ver. Eu só bebo água, porque estou sempre sem dinheiro, bem que<br />

gosto <strong>de</strong> um vinho. Agora, estou compran<strong>do</strong> pinturas e cílios postiços, vou me maquiar<br />

para sair na night”. O que você preten<strong>de</strong>? – in<strong>da</strong>ga a analista. “Parecer uma mulher com<br />

um corpo <strong>de</strong> homem”. Lacan (1985[1955-­‐56], p. 204) ressalta que: “nos sintomas<br />

histéricos, é sempre <strong>de</strong> uma anatomia imaginária que se trata”. Cabe aqui uma questão<br />

diagnóstica: No caso, estaríamos diante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>smenti<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração ou <strong>do</strong> recalque?<br />

De uma neurose ou perversão? Lacan (1956-­‐57, p. 121), ao citar a tese freudiana <strong>de</strong> que<br />

a perversão é o negativo <strong>da</strong> neurose, marca a diferença entre o mecanismo <strong>de</strong> um<br />

fenômeno perverso e a perversão categórica, chaman<strong>do</strong> atenção <strong>de</strong> que o mol<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

perversão se forma a partir <strong>da</strong> valorização <strong>da</strong> imagem.<br />

“Você sabe, eu gosto <strong>de</strong> ser homem, mas não gosto <strong>de</strong> homem, eles não prestam. O<br />

único homem que eu amei foi meu pai, mesmo assim ele me aban<strong>do</strong>nou, nunca se<br />

preocupou comigo. Talvez, se ele não tivesse i<strong>do</strong> embora, eu seria diferente”. Por quê?<br />

“Eu acho que não teria coragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepcioná-­‐lo”. Em “A dissolução <strong>do</strong> complexo <strong>de</strong><br />

Édipo”, Freud teoriza que há duas saí<strong>da</strong>s para o complexo <strong>de</strong> Édipo: uma satisfação<br />

ativa, e outra passiva. Na primeira, a criança po<strong>de</strong>ria colocar-­‐se no lugar <strong>de</strong> seu pai, à<br />

maneira masculina, e ter relações com a mãe, tal como o pai, sen<strong>do</strong> que este ocuparia um<br />

lugar <strong>de</strong> estorvo. Na segun<strong>da</strong>, a criança po<strong>de</strong>ria assumir o lugar <strong>da</strong> mãe e ser ama<strong>da</strong> pelo<br />

pai.<br />

O paciente agora apresenta o projeto <strong>de</strong> trabalhar como cabeleireiro ou com mo<strong>da</strong>:<br />

“Não sou uma bichinha <strong>do</strong>méstica, não suporto trabalho <strong>de</strong> casa. Também não consigo<br />

apren<strong>de</strong>r na<strong>da</strong> na escola, mas tenho vergonha <strong>de</strong> dizer que ain<strong>da</strong> estou no primeiro<br />

grau”.<br />

O trabalho analítico é difícil porque o paciente falta às sessões, per<strong>de</strong> ou esquece a<br />

hora. Na clínica psicanalítica com a<strong>do</strong>lescentes, o tratamento costuma ser cheio <strong>de</strong><br />

impedimentos e resistências, visto que o jovem interpreta a análise como mais uma<br />

imposição <strong>do</strong>s pais. Apesar <strong>do</strong>s avatares, sempre é possível um trabalho se a<br />

transferência tiver si<strong>do</strong> estabeleci<strong>da</strong>. Nesse caso, o jovem vai e vem, mas sempre retorna<br />

37


<strong>do</strong> ponto on<strong>de</strong> começaram as faltas. Interroga a analista sobre seu saber e investiga<br />

sobre a “lembrança” <strong>de</strong> suas falas: “Não suporto ser esqueci<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> bem que você não<br />

esquece o que eu digo”. O que é isso: ser esqueci<strong>do</strong>/lembra<strong>do</strong>? “Você sabe, isso é uma<br />

<strong>do</strong>r horrível, meu pai esqueceu <strong>de</strong> mim, ele nem me conhece mais. Se eu passar por ele<br />

na rua, não vai me reconhecer mesmo”. A analista pe<strong>de</strong> que o paciente <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bre sua fala<br />

e, choran<strong>do</strong> muito, diz: “Eu vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> homem/meta<strong>de</strong> mulher passo ao largo e<br />

ele po<strong>de</strong> me olhar, mas não vai me ver. Esse gay não é o filho <strong>de</strong>le, quan<strong>do</strong> ele foi embora<br />

eu ain<strong>da</strong> era um menino, eu tinha 10 anos”.<br />

A e<strong>xi</strong>bição <strong>do</strong> jovem paciente faz lembrar o caso <strong>da</strong> “Jovem homossexual”, <strong>de</strong><br />

Freud: junto com sua ama<strong>da</strong>, tenta chamar a atenção <strong>do</strong> pai, e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong>-­‐se nas ruas por<br />

on<strong>de</strong> costumava passar. A nostalgia <strong>do</strong> nosso paciente refere-­‐se ao na<strong>da</strong> que ele ocupa<br />

no afeto <strong>do</strong> pai, ou seja, mesmo que passe pelas ruas fantasia<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> to<strong>da</strong> atenção,<br />

o pai não po<strong>de</strong>rá reconhecê-­‐lo como filho.<br />

Num segun<strong>do</strong> momento <strong>da</strong> análise, oferece-­‐se para trabalhar como aju<strong>da</strong>nte <strong>de</strong><br />

cabeleireiro, mas é reprova<strong>do</strong>, não tem a escolari<strong>da</strong><strong>de</strong> e<strong>xi</strong>gi<strong>da</strong>, e os <strong>do</strong>cumentos<br />

necessários para empregar-­‐se. Sofre um abalo com as recusas sociais e com as<br />

advertências <strong>do</strong> médico com relação a sua conduta: ele se coloca em risco <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e po<strong>de</strong><br />

ser mortífero para os outros.<br />

Esse tempo <strong>de</strong> análise foi <strong>de</strong> intensa angústia e <strong>de</strong>sespero. Sem conseguir na<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

que <strong>de</strong>seja e com muitas reclamações, revela uma fantasia: “Tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar<br />

na night, <strong>da</strong>nçan<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> show <strong>de</strong> “drag-­‐queen”. Sempre que <strong>da</strong>nço, eu abalo. Gosto<br />

muito <strong>de</strong> palco e, nas boates, fico bem no lugar on<strong>de</strong> posso aparecer. O jovem trabalha<br />

essa idéia e pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> às suas amigas mulheres. Começa a busca por roupas e<br />

acessórios femininos que lhe possam favorecer nessa empreita<strong>da</strong>. A mãe na<strong>da</strong> sabe<br />

disso, visto que ele escon<strong>de</strong> as roupas. A mãe sempre pergunta e cobra o trabalho, o<br />

estu<strong>do</strong> e lembra que ele tem o vírus. Isso basta para que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iem brigas e<br />

agressões verbais ditas na janela para envergonhar a mãe e fazê-­‐la parar <strong>de</strong> falar.<br />

38


Nesse momento, a rebeldia se entrelaça com uma concretização <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, pois ele<br />

cava uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> dublar uma música num concurso <strong>de</strong> certa boate gay.<br />

Escolhe, sozinho, uma música e resolve “montar-­‐se” <strong>de</strong> “drag-­‐queen”, planejan<strong>do</strong> o<br />

show. Trata-­‐se <strong>de</strong> uma competição em que o ganha<strong>do</strong>r recebe um prêmio em dinheiro.<br />

Como treinamento, participa <strong>de</strong> uma para<strong>da</strong> gay “monta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mulher”.<br />

Escondi<strong>do</strong> <strong>da</strong> mãe, tal qual Anna Ó, ele arma seu “teatro priva<strong>do</strong>’’ durante o dia:<br />

ensaia frente ao espelho a dublagem <strong>de</strong> uma música em inglês, idioma que não <strong>do</strong>mina,<br />

repetin<strong>do</strong> as palavras, sem distinguir seu significa<strong>do</strong>. Há, porém, três significantes <strong>de</strong><br />

que ele se apropria para estabelecer os gestuais <strong>da</strong> mímica: my eyes, my hair, my lips. O<br />

jovem, realmente, dá seu show. Frente às vicissitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, ele tem uma estratégica<br />

histérica: no palco, corren<strong>do</strong> o risco má<strong>xi</strong>mo como to<strong>do</strong>s os jovens costumam fazer, ele<br />

entra em cena com o nome artístico <strong>de</strong> “Ohana”. “En-­‐cenan<strong>do</strong>” seu número no começo <strong>da</strong><br />

apresentação, ao sacudir seus cabelos postiços, a peruca cai em pleno palco, já que não<br />

foi <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente presa para agüentar os gestos <strong>da</strong> <strong>da</strong>nça e <strong>da</strong> mímica 7 . Ohana, em<br />

<strong>de</strong>sespero, fica sobre o foco <strong>do</strong> refletor vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “drag”, sem a peruca e sem ação.<br />

Vaia<strong>do</strong>, ridiculariza<strong>do</strong>, como um objeto que cai, como um na<strong>da</strong>, ele sai <strong>de</strong> cena e <strong>de</strong>smaia<br />

em pleno palco. “O na<strong>da</strong> e o olhar são aqui duas formas <strong>de</strong> referências ao objeto em que<br />

o sujeito, nesse momento, se fixa” (Alberti, 1995, p. 81). Como resposta a esse embaraço<br />

má<strong>xi</strong>mo, surge a angústia frente ao real impossível <strong>de</strong> simbolizar. O jovem, abala<strong>do</strong>, sem<br />

resistência, pega uma virose, mas seu organismo recupera-­‐se e ele volta à análise.<br />

Impacta<strong>do</strong> com os acontecimentos, faz um acting-out: pinta seus cabelos <strong>de</strong> rosa e<br />

tortura a mãe para que lhe dê dinheiro. Ameaçan<strong>do</strong> jogar-­‐se pela janela, aos gritos,<br />

quebra uma mesa e sai pela noite. Em análise, confessa: “Saí como uma pantera cor-­‐<strong>de</strong>-­‐<br />

rosa só para chocar e <strong>da</strong>r pinta <strong>de</strong> gay maluco. “Não pense que esqueci a vergonha que<br />

passei no show”.<br />

7 A estratégia histérica frente ao <strong>de</strong>sejo é torná-­‐lo insatisfeito.<br />

39


In<strong>da</strong>ga<strong>do</strong> sobre o que ele pretendia fazer frente ao fracasso, chora e grita: “Eu<br />

preciso trabalhar, achava que era um caminho fácil ser artista e me vestir <strong>de</strong> mulher.<br />

Agora, cai na real, tenho <strong>de</strong> inventar outra coisa”. Após os episódios, toma outra diretriz:<br />

pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> às suas amigas-­‐mulheres e aceita trabalhar numa feira <strong>de</strong> bairro. Corta<br />

couro, pinta cinturões e “chama a freguesia com sua pinta <strong>da</strong>n<strong>do</strong> pinta”, distribuin<strong>do</strong><br />

panfletos em praça, e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong>-­‐se, mesmo com roupas <strong>de</strong> homem. Po<strong>de</strong>ríamos pensar que<br />

a fantasia fun<strong>da</strong>mental <strong>do</strong> paciente seria tal qual o dita<strong>do</strong> Bíblico: “Pai, por que me<br />

aban<strong>do</strong>nastes?”. Para a analista, Ohana não engana: em praça pública, faz um apelo <strong>de</strong><br />

reconhecimento ao pai. Talvez pudéssemos pensar que o jovem, neuroticamente,<br />

engendra com seu corpo uma <strong>de</strong>fesa contra o aviltamento <strong>do</strong> pai. Segun<strong>do</strong> Lacan, “só nos<br />

<strong>de</strong>temos nas coisas quan<strong>do</strong> as consi<strong>de</strong>ramos como possíveis. De outro mo<strong>do</strong>,<br />

contentamo-­‐nos em dizer: é assim, e nem mesmo procuramos ver que é assim” (Lacan,<br />

1985[1955-­‐56], p. 115).<br />

Bibliografia:<br />

ALBERTI, S. – Esse Sujeito A<strong>do</strong>lescente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume & Dumará, 1995.<br />

CHOISY, A. – Memorias <strong>de</strong>l Abate <strong>de</strong> Choisy: Vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mujer. Buenos Aires: Manantial,<br />

1987.<br />

FREUD, S. “Estu<strong>do</strong>s sobre a histeria”. [1893-­‐1895]. –In: Obras psicológicas completas,<br />

ESB, v. II. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1977.<br />

__________”Histeria” (1888) v.I. In: op.cit<br />

_____– “Fragmentos <strong>da</strong> análise <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> histeria”. [1905].v. VII In: op. cit<br />

_____– “Psicogênese <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> homossexualismo numa mulher”. [1920]. In: op. cit. v.<br />

XVIII.<br />

_____– “A dissolução <strong>do</strong> complexo <strong>de</strong> Édipo”. [1924]. In: op. cit. v. XIX.<br />

LACAN, J. O Seminário, Livro 3: As psicoses. [1985[1955-­‐56]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1985.<br />

40


_____– O Seminário, Livro 4: A relação <strong>de</strong> objeto. [1956-­‐1957]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1995.<br />

KAUFMANN, P. – Dicionário <strong>de</strong> psicanálise: o lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> Freud e Lacan. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1986.<br />

41


Sintoma e Fantasia na Histeria Masculina<br />

Andréa Brunetto 1<br />

Ten<strong>do</strong> como referência o artigo <strong>de</strong> Freud sobre “Dostoievski e o parricídio”, “Bate-<br />

se em uma criança” e “O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente”, preten<strong>de</strong>-se<br />

apresentar alguns casos <strong>de</strong> histeria masculina e <strong>de</strong>bater como se estruturou a fantasia <strong>de</strong><br />

espancamento e a relação <strong>de</strong>ssa fantasia com o sintoma. Destacaremos um caso em que a<br />

pergunta sobre a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncia a vertente <strong>de</strong> amor ao pai, que se sobressaiu à<br />

i<strong>de</strong>ntificação.<br />

Em “Bate-se em uma criança”, Freud afirma que a fantasia <strong>de</strong> ser espanca<strong>do</strong> é<br />

uma convergência <strong>do</strong> sentimento com o amor sexual, um substituto <strong>da</strong> relação incestuosa,<br />

proibi<strong>da</strong>. Freud nos apresenta seis casos, <strong>do</strong>s quais a maior parte obsessivos (quatro) e a maior<br />

parte, mulheres. Estabelece três momentos para a construção <strong>da</strong> fantasia. No primeiro, bate-se<br />

em uma criança. Não quer dizer que a criança que constrói a fantasia seja a que apanha. Não<br />

tem importância o sexo <strong>da</strong> criança que apanha nesse primeiro momento. No segun<strong>do</strong>, meu pai<br />

me bate. E no terceiro, fruto <strong>do</strong> recalque, ‘meu pai bate em outra criança, um menino’. 2 Que a<br />

criança que apanha seja <strong>do</strong> sexo masculino, é característica <strong>da</strong> fantasia nas mulheres. Tem<br />

uma variante nos homens.<br />

O que preten<strong>de</strong>mos é apresentar a construção <strong>de</strong>ssa fantasia ‘bate-se em uma<br />

criança’ nos exemplos clínicos <strong>de</strong> homens, com diagnóstico estrutural <strong>de</strong> histeria,<br />

estabelecen<strong>do</strong> certas variações com relação aos exemplos freudianos. Uma questão é se essas<br />

variações têm relação com o diagnóstico estrutural ou refletem a diferença na partilha <strong>do</strong>s<br />

sexos. O que seria seguir Freud. Ele sustenta que a compreensão <strong>da</strong> construção <strong>de</strong>ssa fantasia<br />

1<br />

AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Campo<br />

Gran<strong>de</strong><br />

2<br />

Freud, S. “Bate-­‐se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976.<br />

42


lhe serve para “avaliar o papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pela diferença <strong>de</strong> sexo na dinâmica <strong>da</strong><br />

neurose”. 3<br />

Os exemplos <strong>da</strong> clínica<br />

Caso 1: Este homem procura a análise, pois tinha rompi<strong>do</strong> com sua analista que tentava<br />

controlá-lo. Apresenta muitos sintomas conversivos e sua posição é <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar a falta <strong>do</strong><br />

Outro. Diante <strong>de</strong> um Outro que espera que ele pague a conta, ele fala não. Assim, seu drama<br />

não é dizer não às <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s freqüentes <strong>de</strong> sua esposa, mas saber por que está com ela, com<br />

essa mulher ‘perdi<strong>da</strong>’, que não sabe quem é e nem o que quer. Por vezes tem os mesmos<br />

sintomas <strong>de</strong> sua mulher: náuseas, enjôos, <strong>do</strong>r <strong>de</strong> estômago. Mas nesse momento sua análise<br />

centra-se na relação com seu orienta<strong>do</strong>r, esse homem ‘quase cruel’ que o criticava como seu<br />

pai o criticava. Quan<strong>do</strong> ele mostrava seus erros, sentia-se incapaz. E enquanto o orienta<strong>do</strong>r<br />

falava, lembrava <strong>de</strong>le próprio, menino ain<strong>da</strong>, fazen<strong>do</strong> as tarefas com o pai e ele lhe dizen<strong>do</strong><br />

‘você vai estu<strong>da</strong>r mais, senão vou te bater’. E atualmente, durante essas orientações, sente um<br />

torpor pelo corpo. Vai para casa, enquanto dirige sente uma leve náusea. Dias atrás, quan<strong>do</strong><br />

entrava em casa, <strong>de</strong>smaiou, acor<strong>do</strong>u segun<strong>do</strong>s <strong>de</strong>pois, com o corpo <strong>do</strong>í<strong>do</strong> como quem leva<br />

uma surra.<br />

Não apenas com o orienta<strong>do</strong>r ele encena o espancamento paterno prometi<strong>do</strong> em sua<br />

infância, mas tem sintomas que se assemelham aos <strong>de</strong> uma mulher grávi<strong>da</strong>. Ele não fez essa<br />

relação, mas talvez copian<strong>do</strong> os sintomas <strong>de</strong> sua mulher, ensaie uma resposta <strong>do</strong> que ela quer<br />

e ain<strong>da</strong> não sabe: um filho. Como <strong>da</strong>r um filho a uma mulher se sua fantasia está construí<strong>da</strong><br />

para dizer não a to<strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro? E, também, a partir <strong>da</strong> encenação <strong>do</strong>s sintomas <strong>de</strong><br />

sua mulher, coloca sua questão: sou homem ou mulher? Sou capaz <strong>de</strong> procriar? Fazen<strong>do</strong> uma<br />

analogia com o caso clínico <strong>de</strong>scrito por Michael Joseph Eissler, e que Lacan comenta no<br />

Seminário III, as psicoses. 4<br />

3 Ibid, p.239.<br />

4 Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985.<br />

43


Caso 2: È o engana<strong>do</strong>, procurou análise por que se envolveu em um negócio que lhe trouxe<br />

gran<strong>de</strong>s prejuízos financeiros. To<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dizia que <strong>de</strong>veria sair disso, que seu sócio não era<br />

confiável, mas não o fez. Apresenta um discurso <strong>da</strong> insatisfação, com tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s, mostra<br />

falhas na analista, que não lhe respon<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve pegar os novos projetos que aparecem e que<br />

conta em suas sessões. Alega que se sua mulher tivesse dito com mais veemência para sair <strong>do</strong><br />

projeto fali<strong>do</strong>, ele teria feito. Não tem lugar no Outro senão sen<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para trás. É sua<br />

expressão, que tem outro senti<strong>do</strong> e toca na fantasia ‘bate-se numa criança’: bate-se atrás, no<br />

traseiro. Versão, aliás, freqüente, segun<strong>do</strong> Freud. 5 Em uma <strong>da</strong>s vezes comete um lapso e em<br />

vez <strong>de</strong> dizer o nome <strong>do</strong> ex-sócio, fala o <strong>do</strong> irmão. Um irmão violento e cruel – que na<br />

atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é um criminoso – que lhe batia. Lembra <strong>da</strong>s surras que o irmão lhe <strong>da</strong>va enquanto<br />

tomava banho, nu, levan<strong>do</strong> tapas nas costas e ná<strong>de</strong>gas. Pergunta-se: por que não revi<strong>de</strong>i, se<br />

era maior e mais forte? Entre a sessão que lembra essa cena e a pró<strong>xi</strong>ma, conta à analista que<br />

<strong>de</strong>smaiou no chuveiro.<br />

Caso 3: Um homem que está casa<strong>do</strong> pela segun<strong>da</strong> vez com uma mulher rica e repete com ela<br />

as queixas que sua primeira mulher lhe fazia: você não me valoriza só porque sou mais pobre.<br />

Com a segun<strong>da</strong> mulher <strong>encontro</strong>u a mulher bonita que procurava, pois a anterior era<br />

<strong>de</strong>scui<strong>da</strong><strong>da</strong>. Nesse segun<strong>do</strong> casamento se <strong>de</strong>scontrola e bate na mulher. É essa a queixa que o<br />

trás à análise. Quan<strong>do</strong> se queixa <strong>de</strong> que a mulher não o reconhece, ao mesmo tempo é uma<br />

queixa feminina – “sinto na carne o que minha ex sofria” – e paterna. O pai sofria diante <strong>de</strong><br />

uma esposa, sua mãe, durona, que cui<strong>da</strong>va <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e não cui<strong>da</strong>va <strong>de</strong>le. O sentir na carne,<br />

<strong>de</strong>staca<strong>do</strong> por uma interpretação <strong>da</strong> analista, é literal, pois durante estas brigas, retorce o<br />

corpo, é como se uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina fosse incorporar e tem <strong>de</strong> fazer força para manter o<br />

<strong>do</strong>mínio. Este sujeito nos mostra o exemplo freudiano <strong>da</strong> mulher que se cobre com uma mão,<br />

com pu<strong>do</strong>r, e se <strong>de</strong>spe com a outra. Quan<strong>do</strong> se <strong>encontro</strong>u, na primeira entrevista, com a<br />

analista, lembrou-se que lhe tinha si<strong>do</strong> vaticina<strong>do</strong> que esta não era a mulher <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>,<br />

encontraria uma mulher bem alta. Alta é o significante qualquer que o pren<strong>de</strong> às entrevista<br />

preliminares.<br />

5 Freud, S. “Bate-­‐se em uma criança”, op. Cit., p.<br />

44


Neste segun<strong>do</strong> casamento, com esta mulher aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> mãe, vamos dizer assim,<br />

coloca em ato as surras que levava <strong>de</strong>la. É ele que bate na mulher, mas não é tão simples<br />

afirmar em que lugar ele está: sonha que está apanhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma mulher mais velha. Ao<br />

contar o sonho diz: não é minha mãe. Fazen<strong>do</strong> essa negativa, há uma suspensão <strong>do</strong> recalque,<br />

embora não uma aceitação <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>. 6<br />

Fazemos referência a essa negativa, pois nestes casos que relatamos, é o mais perto<br />

que um sujeito chega <strong>de</strong> reconhecer o prazer <strong>da</strong> fantasia. Freud afirma que o prazer nessa<br />

fantasia ficará inconsciente, mas em um <strong>do</strong>s casos que <strong>de</strong>screveu, tal não aconteceu. “Esse<br />

homem preservava claramente na memória o fato <strong>de</strong> que costumava empregar a idéia <strong>de</strong> ser<br />

espanca<strong>do</strong> pela mãe com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> masturbação” 7 . Alega que não po<strong>de</strong> explicar isso,<br />

mas esboça uma hipótese: quan<strong>do</strong> a fantasia incestuosa <strong>de</strong> um menino converteu-se na<br />

fantasia masoquista correspon<strong>de</strong>nte, ocorreu uma inversão a mais <strong>do</strong> que no caso <strong>do</strong> menino,<br />

ou seja, a substituição <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> pela passivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Caso 4: É um joga<strong>do</strong>r, um jovem que per<strong>de</strong> muito dinheiro em jogos <strong>de</strong> azar e quan<strong>do</strong> fica<br />

sem dinheiro nenhum, e com dívi<strong>da</strong>s, chama o pai para pagar suas contas, negociar com<br />

pessoas um tanto duvi<strong>do</strong>sas. Diz que seu pai prefere a ele, pois se preocupa mais com ele <strong>do</strong><br />

que com os irmãos. Uma <strong>da</strong>s vezes em que <strong>de</strong>saparece para jogar, e que a família fica<br />

preocupa<strong>da</strong>, é às vésperas <strong>de</strong> uma viagem <strong>do</strong>s pais, algo como um segun<strong>da</strong> ou terceira lua-<strong>de</strong>-<br />

mel. Quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se resolve, o pai <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não ir, para cuidá-lo. Sente-se vitorioso, o pai se<br />

<strong>de</strong>dica mais a ele que à própria esposa, sua mãe. Compete com a mãe pela atenção <strong>do</strong> pai, fala<br />

<strong>de</strong>le como, no geral, só as mulheres falam <strong>do</strong> pai, na clínica: com uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> incessante <strong>de</strong><br />

amor ao pai e como um ‘paizinho’ que gosta mais <strong>de</strong>le <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais. À parte essa<br />

fantasia <strong>de</strong> ser o menininho <strong>do</strong> pai, tem namora<strong>da</strong>s, consegue a ereção e leva a cabo as<br />

relações sexuais. Quem o castiga é a mãe, com sua severi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas não lembra <strong>de</strong> ser<br />

espanca<strong>do</strong>. Nos homens, estar sen<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong> pela mãe é a terceira fase, sucessora <strong>de</strong> ‘estou<br />

6 Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976, p. 296.<br />

7 Freud, S. “Bate-­‐se em uma criança”, Op. Cit., p.231.<br />

45


sen<strong>do</strong> espanca<strong>do</strong> pelo meu pai’, correspon<strong>de</strong>, nas meninas, ao ‘vejo um menino sen<strong>do</strong><br />

espanca<strong>do</strong>’.<br />

A fantasia <strong>do</strong> menino é masoquista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, marca Freud. Ele não <strong>encontro</strong>u<br />

uma primeira fase sádica, como nas mulheres e “<strong>de</strong>riva <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> feminina em relação<br />

ao pai” 8 . Na menina, parte <strong>de</strong> uma situação edipiana normal; no menino, <strong>de</strong> uma situação<br />

inverti<strong>da</strong>, no qual o pai é toma<strong>do</strong> como objeto <strong>de</strong> amor.<br />

Neste último caso, a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é maior <strong>do</strong> que nos outros. Não há irritabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

contra o pai.. O pai é aquele que “o salva”. Ele “apronta” nos jogos <strong>de</strong> azar, em outras<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, para o pai ir buscá-lo. É um joga<strong>do</strong>r invetera<strong>do</strong>, como Dostoievski, porém sem suas<br />

crises epiléticas – histeroepilepsia, nomeia Freud. Porém esse paciente apresenta uma inibição<br />

motora – cataple<strong>xi</strong>a narcoléptica, segun<strong>do</strong> a psiquiatria - entre acor<strong>da</strong><strong>do</strong> e <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, sente<br />

que sua menta está viva e o corpo morto, passa segun<strong>do</strong>s sem conseguir mexer o corpo. “A<br />

sensação é <strong>de</strong> estar morren<strong>do</strong>, ou já estar morto e não saber”.<br />

Tal como no caso <strong>de</strong> Dostoievski, suas crises tem o valor <strong>de</strong> uma punição 9 . Freud<br />

escreve que essas crises semelhantes à morte – já tinha fala<strong>do</strong> sobre elas na Carta 58 a Fliess –<br />

refletem o seguinte <strong>de</strong>sejo: “Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos nós essa outra<br />

pessoa e estamos mortos. Nesse ponto a teoria psicanalítica introduz a afirmação <strong>de</strong> que, para<br />

um menino, essa outra pessoa geralmente é o pai e <strong>de</strong> que a crise constitui assim uma<br />

autopunição por um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> morte contra um pai odia<strong>do</strong>”. 10 E explica que a punição <strong>do</strong><br />

supereu funciona assim: “Você queria matar seu pai, a fim <strong>de</strong> ser você mesmo o pai. Agora<br />

você é seu pai, mas um pai morto”. 11<br />

Nas “crises <strong>de</strong> morte” encena sua vertente <strong>de</strong> ódio ao pai, encena em seu corpo.<br />

Como Antonio Quinet escreve em Histerias, “o histérico oferece seu corpo como cama e mesa<br />

<strong>do</strong> Outro e diz sirva-se! Seu corpo é erogeneiza<strong>do</strong> pelo Outro. O corpo é também a mesa <strong>de</strong><br />

8 Ibid, p. 247.<br />

9 Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 211.<br />

10 Ibid, p. 211.<br />

11 Ibid, p. 214.<br />

46


jogo – citan<strong>do</strong> Lacan <strong>de</strong> Radiofonia - entre o consciente e o inconsciente, entre o senti<strong>do</strong> e o<br />

não-senti<strong>do</strong>, entre a presença recalcante <strong>da</strong> razão e o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>”. 12<br />

Mas o relacionamento <strong>de</strong> to<strong>do</strong> menino com o pai é ambivalente, o pai é o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação. E também por ele se tem amor sexual. A fantasia ‘uma criança é bati<strong>da</strong>’ mostra<br />

isso. E também se tem ternura por ele É isso que permitirá ao menino preservar sua<br />

masculini<strong>da</strong><strong>de</strong>, alega Freud. Lacan afirma que essa virili<strong>da</strong><strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um semblante<br />

ridículo, mas o menino precisará <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntificação metafórica com a imagem <strong>do</strong> pai. Esse<br />

“pequeno macho”, continua Lacan, tem guar<strong>da</strong><strong>da</strong> essa i<strong>de</strong>ntificação, para no futuro sacar seus<br />

<strong>do</strong>cumentos’ 13 .<br />

Toman<strong>do</strong> Dostoievski como um caso clínico, Freud explica um agravante em sua<br />

neurose: uma forte disposição bissexual. Pela ameaça <strong>da</strong> castração, ele, menino, se inclinou<br />

fortemente no senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> feminili<strong>da</strong><strong>de</strong> 14 . “O menino enten<strong>de</strong> que também <strong>de</strong>ve submeter-se à<br />

castração, se <strong>de</strong>seja ser ama<strong>do</strong> pelo pai como se fosse uma mulher.” Dessa maneira, o amor e<br />

o ódio ao pai, igualmente, experimentan repressão, como um homossexualismo latente, dirá<br />

Freud 15 . Enfim, Dostoievski tem, segun<strong>do</strong> Freud, um componente feminino especialmente<br />

intenso. E meu paciente também.<br />

A incompetência <strong>de</strong> bancar o homem para uma mulher<br />

Se a pergunta <strong>do</strong> homem histérico é a mesma que <strong>da</strong> mulher histérica – sou homem<br />

ou mulher? – as respostas <strong>de</strong> sua neurose são mais <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ras. Essa é a explicação <strong>de</strong> Maria<br />

Anita Carneiro Ribeiro, no artigo “O que é um homem?”. Continuo citan<strong>do</strong>-a: “Na<strong>da</strong> impe<strong>de</strong><br />

que uma histérica frígi<strong>da</strong>, com asco ao ato sexual, a ele se submeta, pensan<strong>do</strong> em outra coisa e<br />

manten<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo insatisfeito. Para o homem histérico, entretanto, que é, como homem,<br />

embaraça<strong>do</strong> por esse ‘penduricalho’, como diz Lacan, a falha na performance fálica <strong>de</strong>ixa a<br />

12 Lacan, J. Radiofonia (1970). Outros escritos. RJ: JZEditor, 2003, p. 414.<br />

13 Lacan, J. O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-­‐58). RJ: JZEditor, 1998, p. 201.<br />

14 Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976, p. 212.<br />

15 Ibid, p. 213.<br />

47


nu, para além <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo insatisfeito, a incompetência <strong>de</strong> bancar o homem para uma mulher.<br />

Na hora em que o <strong>de</strong>sejo pega fogo, não há na<strong>da</strong> a fritar, nenhum peixe fálico em jogo.”<br />

Como diz o Caso 1, o histérico cobra<strong>do</strong> pelos pais, pelo orienta<strong>do</strong>r, pela mulher e<br />

pela ex-analista, “quan<strong>do</strong> estou com minha mulher, na cama, sinto enjôo e náusea”. Que seja<br />

exatamente nessa hora, em que tem <strong>de</strong> mostrar os <strong>do</strong>cumentos, que a fantasia <strong>de</strong> procriação<br />

venha à tona, mostra bem a falta <strong>do</strong> peixe fálico.<br />

Concluin<strong>do</strong> com as questões <strong>do</strong> início<br />

Por que nesse caso clínico, <strong>do</strong> joga<strong>do</strong>r, diferente <strong>do</strong>s outros três, não aparece a<br />

fantasia ‘bate-se numa criança’? O Édipo inverti<strong>do</strong>, no qual o pai é toma<strong>do</strong> como objeto <strong>de</strong><br />

amor, o fez prescindir <strong>da</strong> fantasia ou reflete apenas os limites <strong>de</strong> sua relação com o saber?<br />

É claro que não interpretamos a partir <strong>da</strong> fantasia, fazê-lo seria interpretar a partir <strong>da</strong><br />

“apreensão <strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> imaginária <strong>do</strong> sujeito”. O campo propriamente analítico, afirma<br />

Lacan, no Seminário 3: as psicoses 16 é o sintoma. O sintoma <strong>de</strong>sse joga<strong>do</strong>r, que faz <strong>de</strong> seu<br />

corpo mesa <strong>de</strong> jogo <strong>do</strong> significante <strong>do</strong> Outro é que tem uma cor que mostra bem que ele é um<br />

estrangeiro na sua família, um a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, um estrangeiro como o avô. E usa seu sintoma, “essa<br />

satisfação às avessas”, para marcar um lugar no Outro. Ser um a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, um estrangeiro, lhe<br />

<strong>da</strong>rá um lugar no Outro? a Diminuirá seu gozo <strong>da</strong> privação e sua errãncia? Quanto a estas<br />

últimas perguntas, só a aposta <strong>da</strong> clínica, no só <strong>de</strong>pois, po<strong>de</strong>rá respon<strong>de</strong>r.<br />

Referências bibliográficas<br />

Carneiro Ribeiro, M. A. O que é um homem? I Colóquio <strong>da</strong> EPFCL- Fórum Rio: Histeria,<br />

sujeito, corpo e discurso. Julho <strong>de</strong> 2003.<br />

Freud, S. Dostoievki e o parricídio (1928). ESB, vol. XXI. RJ: Imago Editora, 1976.<br />

Freud, S. “Bate-se em uma criança”, in: ESB. Vol. XXII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora,<br />

1976.<br />

16 Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985, p. 189.<br />

48


Freud, S. “A negativa” (1925), in: ESB. Vol XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1976.<br />

Lacan, J. O seminário, livro V: as formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-58). Rj: JZEditor, 1998.<br />

Lacan, J. “O seminário, livro 3: as psicoses”. Rio <strong>de</strong> janeiro: JZEditor, 1985.<br />

Lacan, J. Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.<br />

Quinet. A. Histerias. I Colóquio <strong>da</strong> EPFCL- Fórum Rio: Histeria, sujeito, corpo e discurso.<br />

Julho <strong>de</strong> 2003.<br />

49


O Sintoma e o Amor<br />

Vera Pollo 1<br />

Do sintoma ao sinthoma, Joyce passa <strong>do</strong> fato clínico fun<strong>da</strong>mental ao laço social.<br />

Talvez possamos mesmo dizer, <strong>do</strong> gozo inapreensível àquele que captura leitores. O<br />

primeiro sintoma correspon<strong>de</strong> à posição subjetiva em que ele tanto está “enraiza<strong>do</strong> no<br />

pai”, quanto o renega (Lacan, Sem. 23,p.68). Ao construir um nome próprio, com sua<br />

arte-­‐sinthoma, Joyce compensa a carência paterna e se inscreve no laço social.<br />

Nenhum sintoma é, <strong>de</strong> saí<strong>da</strong>, favorável ao laço social. É possível que,<br />

para<strong>do</strong>xalmente, o sintoma paranóico, em que um sujeito se presta a ocupar o lugar <strong>do</strong><br />

i<strong>de</strong>al para to<strong>do</strong> um grupo, seja aquele que se situa mais pró<strong>xi</strong>mo <strong>do</strong> comunicável. Uma<br />

vez que a conversão histérica é analogicamente uma obra <strong>de</strong> arte mal sucedi<strong>da</strong> e o ritual<br />

obsessivo, uma religião particular, quase não é necessário dizer que a natureza <strong>de</strong><br />

ambos é anti-­‐social. Uma pequena exceção diz respeito ao sintoma histérico responsável<br />

por algumas loucuras coletivas e cujo <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento foi situa<strong>do</strong> por Freud na<br />

“i<strong>de</strong>ntificação basea<strong>da</strong> no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> colocar-­‐se na mesma situação”. (1921/1976, p.135)<br />

Retomemos Joyce. Entre os ensinamentos que Lacan extrai <strong>da</strong> obra joyceana,<br />

po<strong>de</strong>mos situar a constatação <strong>de</strong> que um sintoma po<strong>de</strong> transformar-­‐se em sinthoma, no<br />

senti<strong>do</strong> <strong>da</strong>quilo que corrige o nó, o que é prenhe <strong>de</strong> muitas conseqüências. No caso <strong>de</strong><br />

Joyce, há até mesmo um saber servir-­‐se <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong> origem, e talvez não seja exagero<br />

dizer que ele não apenas <strong>de</strong>sembaraçou-­‐se com seu sintoma, mas fez <strong>de</strong>le um bom uso.<br />

Soler (2001) propõe que i<strong>de</strong>ntifiquemos separa<strong>da</strong>mente seu sintoma-­‐gozo em<br />

seu gosto pela letra, e o sinthoma com que ele faz laço social, sua aspiração à fama e ao<br />

reconhecimento social. Em outros termos, que diferenciemos entre o sintoma que<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro<br />

50


con<strong>de</strong>nsa o traumatismo <strong>de</strong> lalíngua e o sinthoma-­‐nome que lhe permite entrar na polis<br />

como Mestre <strong>da</strong>s letras.<br />

Ora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Lacan en<strong>de</strong>reçou a Jenny Aubry sua “Nota sobre a criança”, em<br />

1969, fomos conduzi<strong>do</strong>s a pensar a transmissão <strong>do</strong>s pais aos filhos em termos <strong>de</strong><br />

resposta sintomática, a qual, mais <strong>do</strong> que a i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>svela a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

geração. Isto porque o sintoma implica a relação e não a equivalência. (Morel, 2009,<br />

p.63)<br />

Como o sintoma <strong>da</strong> criança é uma resposta particular ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong>s pais que<br />

presidiu seu nascimento, o qual é alimenta<strong>do</strong> pelos sintomas <strong>de</strong>les, os sintomas <strong>da</strong>s<br />

crianças prolongam os <strong>do</strong>s pais, corrigem seus <strong>de</strong>sejos, criam o que era até então<br />

inédito. Nesse caso, estamos bem longe <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação e <strong>do</strong>s egos “eguais”. Porém, na<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um sintoma inédito, ain<strong>da</strong> assim um prolongamento<br />

sintomático po<strong>de</strong> unir, como laço <strong>de</strong> amor, duas ou mais gerações <strong>de</strong> uma mesma<br />

família. Eis como Lacan interpreta a relação entre Joyce e sua filha Lucia.<br />

O episódio nos é mais ou menos conheci<strong>do</strong>: trata-­‐se <strong>de</strong> uma consulta a Jung, o<br />

qual diagnostica Lucia como esquizofrênica e conclui literalmente que a relação pai-­‐<br />

filha, nesse caso, é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação. Em suas palavras: “... A anima <strong>de</strong> Joyce, sua<br />

psychè inconsciente estava tão soli<strong>da</strong>mente i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com sua filha que, admitir<br />

interditá-­‐la, teria si<strong>do</strong> admitir que ele próprio tinha uma psicose latente. Por isso é<br />

compreensível que ele não pu<strong>de</strong>sse ce<strong>de</strong>r. Seu estilo “psicológico” é sem dúvi<strong>da</strong><br />

esquizofrênico, com a diferença, porém, <strong>de</strong> que o paciente comum não consegue evitar<br />

<strong>de</strong> falar e pensar <strong>de</strong>ssa maneira, enquanto Joyce o controlava e, mais ain<strong>da</strong>, o<br />

<strong>de</strong>senvolvia com to<strong>da</strong>s as suas forças criativas, o que explica por que ele próprio não<br />

ultrapassava a linha. Mas sua filha ultrapassou, porque não era um gênio como o pai,<br />

mas uma vítima <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>ença.” (cita<strong>do</strong> por Ellmann,1989, p.837)<br />

Para Lacan, é possível observar nas cartas escritas por Joyce que ele consi<strong>de</strong>ra a<br />

filha muito mais inteligente que to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e acredita que ela o informa <strong>de</strong> coisas que<br />

51


acontecem com pessoas que sequer conhece. “ Minha esposa e eu” – escreve Joyce – “<br />

vimos centenas <strong>de</strong> exemplos <strong>da</strong> clarividência <strong>de</strong>la”. (Ellmann, p.835) Lacan, que em uma<br />

apresentação <strong>de</strong> pacientes, tivera a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevistar um sujeito que dividia<br />

seu sintoma em <strong>do</strong>is tempos: um primeiro tempo em que sofria <strong>de</strong> “falas impostas” – ou<br />

seja, uma <strong>da</strong>s formas <strong>do</strong> automatismo mental <strong>de</strong>scrito por Clérambault -­‐, um segun<strong>do</strong><br />

tempo no qual compreen<strong>de</strong>u que tais coisas lhe aconteciam, porque era um “telepata<br />

emissor”, <strong>encontro</strong>u uma gran<strong>de</strong> semelhança com o sintoma <strong>de</strong> Joyce, porém o segun<strong>do</strong><br />

tempo era sua atribuição à filha <strong>de</strong> alguma coisa que estava no prolongamento <strong>de</strong> seu<br />

próprio sintoma: ele sofria <strong>de</strong> falas impostas, Lucia era telepata. (sem. 23, p.93)<br />

O biógrafo Ellmann relata que Joyce nutria a secreta esperança <strong>de</strong> que a filha<br />

escaparia <strong>de</strong> sua própria treva, quan<strong>do</strong> ele saísse <strong>da</strong> noite escura <strong>do</strong> Finnegans wake.<br />

Jung não foi o primeiro nem o único a notar a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> laço que os unia. Quan<strong>do</strong><br />

recebeu Lucia, ela já passara por inúmeros médicos. Jung teve acesso aos poemas que<br />

sua paciente escrevia e concluiu que ela imitava <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scontrola<strong>da</strong> idéias, fixações<br />

e linguagem que o pai, to<strong>da</strong>via, controlava. Também Paul Léon parece ter afirma<strong>do</strong> o<br />

seguinte: “o Sr. Joyce confia unicamente numa pessoa, e essa pessoa é Lúcia. Qualquer<br />

coisa que ela diga ou escreva é o que o guia.” E, como se não bastasse, o próprio Joyce<br />

confi<strong>de</strong>nciou a uma amiga: “As pessoas falam <strong>da</strong> minha influência sobre minha filha. Mas<br />

e a influência <strong>de</strong>la sobre mim?” (Ellmann, p. 840, 843)<br />

Passemos agora a uma pergunta <strong>de</strong> Lacan: “O que nos indicam as cartas <strong>de</strong> amor<br />

para Nora?” Tu<strong>do</strong> indica que, para os professores <strong>de</strong> literatura, o que mais surpreen<strong>de</strong><br />

nas letras/cartas <strong>de</strong> Joyce é a báscula que as arrasta <strong>do</strong> mais terno lirismo à linguagem<br />

mais crua e obscena. O próprio poeta o percebe e nelas menciona as duas faces <strong>do</strong><br />

sentimento que o liga a Nora: “Há uma parte feia, obscena e bestial, e há uma parte pura<br />

e santa e espiritual.” (1909/1988, p. 38) “Tu me agra<strong>de</strong>ces pelo lin<strong>do</strong> nome que te <strong>de</strong>i.<br />

Sim, queri<strong>da</strong>, ‘minha lin<strong>da</strong> flor agreste <strong>da</strong>s sebes! Minha flor azul-­‐marinho encharca<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> chuva!’ é um nome bonito [...] Mas, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> e no âmago <strong>de</strong>ste amor espiritual que<br />

tenho por ti há também um <strong>de</strong>sejo bestial e bruto por to<strong>do</strong>s os pe<strong>da</strong>cinhos <strong>de</strong> teu corpo,<br />

52


to<strong>da</strong>s as partes secretas e vergonhosas <strong>de</strong>le, pelos cheiros to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>le e por tu<strong>do</strong> que ele<br />

faz [...] Ensinei-­‐te a quase <strong>de</strong>smaiar quan<strong>do</strong> ouves minha voz cantan<strong>do</strong> ou murmuran<strong>do</strong><br />

à tua alma a paixão e a tristeza e o mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e ao mesmo tempo ensinei-­‐te a fazer<br />

trejeitos in<strong>de</strong>centes com a língua e os lábios [...] meu amor leal, minha colegial travessa<br />

<strong>de</strong> olhar lângui<strong>do</strong>, minha puta, minha amante, tu<strong>do</strong> quanto queiras (minha amantezinha<br />

punheteira, minha putinha fo<strong>de</strong><strong>do</strong>ra!) serás sempre minha flor agreste <strong>da</strong>s sebes, minha<br />

florzinha azul-­‐marinho encharca<strong>da</strong> <strong>de</strong> chuva.” Assina<strong>do</strong>: Jim (1909/1988, p.54-­‐55)<br />

Curiosamente, Lacan que, no seminário 20, já havia proposto fórmulas tão<br />

límpi<strong>da</strong>s quanto: “O que não é signo <strong>do</strong> amor é o gozo <strong>do</strong> Outro, o <strong>do</strong> Outro sexo [...] <strong>do</strong><br />

corpo que o simboliza” (p.28) e “ O que vem em suplência à relação sexual é<br />

precisamente o amor” (p.62), conclui agora que as coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s letras/cartas <strong>de</strong><br />

amor <strong>de</strong> Joyce a Nora indicam que há uma relação sexual, embora bem esquisita. (sem.<br />

23, p. 81)<br />

Os matemas propostos por Lacan no quadro <strong>da</strong> sexuação <strong>de</strong>ixam ver a relação<br />

homem-­‐mulher sob novas luzes: quan<strong>do</strong> um homem abor<strong>da</strong> uma mulher, se ela lhe<br />

serve <strong>de</strong> causa-­‐<strong>de</strong>-­‐<strong>de</strong>sejo, isso significa que ela está exatamente no mesmo lugar <strong>do</strong><br />

objeto a <strong>de</strong> sua fantasia. Mas este não parece ser o caso <strong>de</strong> Joyce. Suas letras/cartas<br />

testemunham que o sentimento que o enlaçou a Nora nunca a transformou na Dama <strong>do</strong><br />

amor cortês, aquela cujo <strong>encontro</strong> tem algo <strong>de</strong> real, consequentemente <strong>de</strong> traumático e<br />

inassimilável. Nora não é a outra face <strong>do</strong> vampiro, aquela que representa a última tela <strong>da</strong><br />

e<strong>xi</strong>stência, para além <strong>da</strong> qual começa o país <strong>do</strong>s fantasmas. Não é uma morta-­‐viva<br />

submeti<strong>da</strong> ao tormento eterno <strong>do</strong> entre-­‐duas-­‐mortes.<br />

Certa feita Nora comenta a reação <strong>de</strong> Joyce diante <strong>de</strong> um novo vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> festa<br />

que acabara <strong>de</strong> comprar: “Jim achou as costas <strong>de</strong>cota<strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais e <strong>de</strong>cidiu que teria <strong>de</strong><br />

costurar as costas <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>. Naturalmente ele fez pontos to<strong>do</strong>s tortos [...] Queria que<br />

vocês o tivessem visto costuran<strong>do</strong> minha pele e espinha.” (Ellmann, p.830) Ele não<br />

queria que ninguém, além <strong>de</strong>le, sequer olhasse o que quer que tocasse o corpo <strong>de</strong> Nora.<br />

53


Em 22 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1909, escreve-­‐lhe em uma carta: “Arrisco-­‐me a dizer<br />

somente uma coisa. Dizes que queres que minha irmã te leve <strong>da</strong>qui umas roupas <strong>de</strong><br />

baixo. Por favor, não faças isso queri<strong>da</strong>. Eu não gosto que ninguém, nem mesmo uma<br />

mulher ou uma moça, veja as coisas que te pertencem.” (Cartas, p.53) Menos <strong>de</strong> um mês<br />

antes, ele lhe escrevera; “Tenho an<strong>da</strong><strong>do</strong> in<strong>da</strong>gan<strong>do</strong> sobre um conjunto <strong>de</strong> peles para ti e<br />

se meus negócios correrem bem vou simplesmente afogar-­‐te em peles e vesti<strong>do</strong>s e capas<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong> sorte.”(p.47)<br />

Lacan (2007:93) não sabe ao certo se Joyce escrevia para libertar-­‐se <strong>do</strong> parasita<br />

fala<strong>do</strong>r ou, ao contrário, para <strong>de</strong>ixar-­‐se invadir por proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

essencialmente fonêmica <strong>da</strong> fala, isto é, sua polifonia. Mas não duvi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que<br />

também percebe e assim formula: no final <strong>da</strong>s contas, ele [o homem] faz amor com seu<br />

inconsciente, e mais na<strong>da</strong> (I<strong>de</strong>m:123).<br />

É possível que as cartas a Nora testemunhem apenas o gozo <strong>de</strong> Joyce com o corpo<br />

<strong>do</strong> Outro simbólico, com as palavras <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>de</strong> repugnância. Como<br />

dissemos acima, elas vão <strong>do</strong> tom mais lírico ao mais abjeto. Em certo senti<strong>do</strong>,<br />

apro<strong>xi</strong>mam-­‐se <strong>da</strong> dupla valência <strong>do</strong> objeto a, em sua face narcísico-­‐imaginária e em sua<br />

face real. Nesse caso, Joyce teria ama<strong>do</strong> mais a arte <strong>de</strong> escrever, <strong>do</strong> que a mulher <strong>de</strong><br />

carne e osso a quem enviava suas cartas.<br />

Nora não ocupava para ele o lugar <strong>de</strong> mulher-­‐sinthoma, alguém que, enquanto<br />

objeto ama<strong>do</strong>, lhe teria servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> intermediário para crer nas mulheres em geral. Não<br />

havia mais que uma mulher para Joyce, e este mulher era Nora. Ele a elegera, mas com a<br />

maior <strong>da</strong>s <strong>de</strong>preciações. Eis outra pergunta que Lacan se faz: por que Joyce elegera Nora<br />

com a maior <strong>da</strong>s <strong>de</strong>preciações? (2007:81)<br />

Tu<strong>do</strong> indica que Joyce sabia que, se fazer amor é poesia, em contraparti<strong>da</strong>, o ato<br />

<strong>de</strong> amor correspon<strong>de</strong> à perversão polimorfa <strong>do</strong> macho, pois há um mun<strong>do</strong> entre a poesia<br />

e o ato (Lacan, 1985: 98) Objeto <strong>de</strong> amor, objeto transicional, ou simplesmente objeto <strong>de</strong><br />

um ciúme <strong>de</strong>lirante, o que quer que Nora tenha si<strong>do</strong> preferencialmente para Joyce, este a<br />

54


compartilhou conosco. Sentimo-­‐nos os <strong>de</strong>stinatários, entre muitos, <strong>da</strong>s missivas<br />

joycianas.<br />

Referências Bibliográficas<br />

AUBERT, Jacques. “Prólogo a Um retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem” in Retratura <strong>de</strong> Joyce.<br />

Uma perspectiva lacaniana. Letra freudiana, ano XII, n.13 (1993), pp.40-­‐51.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐“Joyce com Lacan” in A Jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ulisses. Palestras <strong>de</strong> Jacques<br />

Aubert no Brasil e outros trabalhos. <strong>Escola</strong> Letra Freudiana, ano XX, n. 28 (2001),<br />

pp.117-­‐123.<br />

ELLMANN, Richard. James Joyce. Tradução <strong>de</strong> Lia Luft. São Paulo: Globo, 1989.<br />

GATIAN <strong>de</strong> CLÉRAMBAULT, Gaétan. (1942) “Définition <strong>de</strong> l’automatisme mental’,<br />

Oeuvre psychiatrique, vol. II. Paris: PUF.<br />

JOYCE, James. Um retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2006.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ Cartas a Nora Barnacle. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1988.<br />

LACAN, Jacques _ (1956) “O Seminário sobre a carta rouba<strong>da</strong>” ” in Escritos. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, pp.13-­‐66.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ (1946) “Formulações sobre a causali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica” in Escritos. Op.<br />

cit., pp.152-­‐194.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ ( 1957) “A instância <strong>da</strong> letra no inconsciente ou a razão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Freud”<br />

in Escritos. Op. cit., pp.496-­‐533.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ (1972-­‐1973) O Seminário, livro 20: mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Ed., 1985.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ (1975-­‐1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Ed., 2007.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ (1970) “Lituraterra” in Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar<br />

Ed., 2003, pp. 15-­‐25.<br />

-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐-­‐ (1976-­‐1977) O Seminário, livro 24: L’insu que sait <strong>de</strong> l’une-bévue<br />

s’aile à mourre. Inédito. Lição <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1977.<br />

SOLER, Colette. “Joyce , martyr <strong>de</strong> la langue” in L’aventure litteraire ou la psychose<br />

inspirée. Paris:Editions du Champ lacanien, 2001, pp.83-­‐99.<br />

55


Apostar no Sintoma<br />

Zil<strong>da</strong> Macha<strong>do</strong> 1<br />

Comecemos com Freud. Na conferência Os Caminhos <strong>da</strong> formação <strong>do</strong> sintoma, ele<br />

nos ensina: O sintoma é causa<strong>do</strong> pela força <strong>da</strong> pulsão que ao pressionar por satisfação,<br />

encontra a barreira <strong>da</strong> censura e não po<strong>de</strong> ser realiza<strong>da</strong>. O que há nesse momento é<br />

angústia, o mal-­‐estar que força o advento <strong>do</strong> mecanismo <strong>do</strong> recalque. Devi<strong>do</strong> então ao<br />

recalcamento, o <strong>de</strong>sejo que agora é inconsciente regri<strong>de</strong> toman<strong>do</strong> a via <strong>da</strong> fantasia a um<br />

tempo on<strong>de</strong> houve a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se obter satisfação, pois uma coisa que Freud nos<br />

aponta é que o sujeito não abdica jamais <strong>de</strong> um prazer já experimenta<strong>do</strong>. Aí<br />

encontramos os conceitos <strong>de</strong> regressão (o retorno pela via <strong>da</strong> fantasia) e <strong>de</strong> fixação (ao<br />

ponto on<strong>de</strong> houve maior satisfação). Mas o aparelho continua pressionan<strong>do</strong>. A pulsão é<br />

uma força constante que não dá trégua ao sujeito. Há novamente outra tentativa <strong>de</strong><br />

buscar a satisfação, só que <strong>de</strong>sta vez, sob a ação <strong>do</strong> recalque, ela já não é direta. É o que<br />

chamamos “o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>”. Aí nesse momento o sujeito constrói o sintoma,<br />

uma “formação <strong>de</strong> compromisso” entre o <strong>de</strong>sejo inconsciente, provin<strong>do</strong> <strong>da</strong> pulsão<br />

sexual, e a força <strong>da</strong> censura que ele trata <strong>de</strong> burlar. Constrói assim um substituto que lhe<br />

permitirá encontrar a satisfação <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>, ao preço <strong>de</strong> não reconhecê-­‐la como tal.<br />

Para Freud, o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é sexual. E Lacan, no início <strong>de</strong> seu ensino, toma-­‐<br />

o por esta mesma vertente. Na “Instancia <strong>da</strong> letra” Lacan diz: “é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> que o<br />

<strong>de</strong>sejo foi em sua história que o sujeito grita através <strong>de</strong> seu sintoma”. [p. 522]. No<br />

entanto, ao longo <strong>de</strong> seu ensino Lacan fará profun<strong>da</strong>s modificações em sua abor<strong>da</strong>gem<br />

<strong>do</strong> sintoma, o que trará diversas consequências para o dispositivo analítico e à questão<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Belo<br />

Horizonte<br />

56


<strong>do</strong> final <strong>da</strong> análise, quan<strong>do</strong> ele dirá que o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é um só: o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

sintoma é o Real. (senti<strong>do</strong> como direção, nos dirá Soler).<br />

Temos então o sintoma como a presentificação <strong>do</strong> retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> pulsional<br />

teci<strong>do</strong> nas vere<strong>da</strong>s <strong>da</strong> fantasia. É realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos recalca<strong>do</strong>s e infantis e satisfação<br />

pulsional substituta que se sustenta em uma fantasia inconsciente e se articula e se fixa à<br />

gramática pulsional. Assim se dá, portanto, o acesso <strong>do</strong> sujeito à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>de</strong> forma<br />

conflituosa, <strong>de</strong>svia<strong>da</strong> e sintomática. E assim inaugura-­‐se o psiquismo na interdição <strong>do</strong><br />

objeto primordial, matriz à qual se dirige originalmente o <strong>de</strong>sejo, que cai sob a barra <strong>do</strong><br />

recalque, colocan<strong>do</strong> o sujeito para sempre à procura <strong>do</strong> objeto perdi<strong>do</strong>. Interdição –<br />

interdicção – inter-­‐dito. A sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> humana está fa<strong>da</strong><strong>da</strong> a se realizar necessariamente<br />

através <strong>da</strong>s palavras: gozo fálico.<br />

O sintoma, portanto, pressupõe o compromisso entre a pulsão e a <strong>de</strong>fesa. Ou seja,<br />

ali o sujeito não pô<strong>de</strong> escolher nem uma posição nem outra. Mas em uma escolha<br />

força<strong>da</strong>, ele é compeli<strong>do</strong> a, mesmo assim, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta estrutura, escolher uma posição<br />

<strong>de</strong> sujeito <strong>da</strong> qual, como nos lembra Lacan, sempre se é responsável. Ele escolhe então<br />

não escolher, ele escolhe compor. Pois, ser compeli<strong>do</strong> a escolher, sempre coloca o sujeito<br />

diante <strong>da</strong> castração. Escolher é mais que tu<strong>do</strong> renunciar. É consentir em per<strong>de</strong>r algo. Se<br />

se escolhe A, per<strong>de</strong>-­‐se B. Portanto, diante <strong>da</strong> premência a renunciar, a se <strong>de</strong>parar com a<br />

castração, o mecanismo que advém leva-­‐o a burlar a escolha. Diante <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> escolher A<br />

ou B, o sujeito escolhe outra posição: escolhe não escolher. Escolhe compor para que<br />

tu<strong>do</strong> permaneça como estava, para continuar com o má<strong>xi</strong>mo possível <strong>de</strong> satisfação. É o<br />

benefício primário <strong>da</strong> neurose – posição <strong>de</strong> satisfação que leva Freud a dizer que “os<br />

sintomas são as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sexuais <strong>do</strong> neurótico”. E leva Lacan a dizer que o sujeito é<br />

sempre feliz.<br />

Ou seja, o aparelho psíquico se arranja justamente aí com a construção <strong>do</strong><br />

sintoma: isso é a neurose. Ninguém escolhe a castração. Escolhe é burla-­‐la. E a resposta<br />

que aponta a estrutura é o mecanismo que se usa. [A psicose com a foraclusão nem a<br />

57


leva em consi<strong>de</strong>ração. A perversão com o fetichismo traz um mecanismo que ao mesmo<br />

tempo a reconhece e a nega]. 2<br />

No entanto sabemos que embora to<strong>do</strong> o esforço <strong>do</strong> sujeito seja nesse senti<strong>do</strong> [<strong>de</strong><br />

burlar a castração], isso é impossível pois, no psiquismo, “é a insatisfação que constitui o<br />

componente primordial”, nos diz Lacan 3 . Essa é a nossa condição <strong>de</strong> acesso à<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Daí vem a má<strong>xi</strong>ma <strong>de</strong> Lacan: “não há relação sexual”, pois ele o diz<br />

textualmente: “a relação sexual só e<strong>xi</strong>ste entre gerações vizinhas”: filhos <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>,<br />

pais <strong>de</strong> outro. Ao fazer a escolha <strong>do</strong> recalque, o sujeito opta pela “não relação sexual”. Ele<br />

opta pela interdição [<strong>do</strong> incesto], pela inter-­‐dicção.<br />

Ou seja, o mal-­‐estar é <strong>de</strong> estrutura, a falta é o cerne <strong>do</strong> ser falante e o objetivo <strong>da</strong><br />

pulsão não é a captura <strong>do</strong> objeto, é somente contorná-­‐lo. É seu retorno em circuito, na<br />

repetição, na procura <strong>de</strong> uma vivência <strong>de</strong> satisfação inscrita no âmago <strong>do</strong> sujeito como<br />

impossível, jamais alcançável. Ou seja, não há solução. Portanto, embora o sujeito seja<br />

“sempre feliz” pois, esteja na posição em que estiver, ele extrai sua cota <strong>de</strong> gozo, “ele não<br />

é [mais feliz] <strong>de</strong> jeito nenhum”, nos lembra Lacan na Entrevista à Imprensa pois, “<strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

quan<strong>do</strong> o verbo se encarna”, nos diz ali, “as coisas começam a ir mal”, levan<strong>do</strong> o sujeito<br />

muitas vezes a sofrer <strong>de</strong>mais. Mas, “sofrer <strong>de</strong>mais é a única justificativa para a<br />

intervenção <strong>do</strong> analista”, nos lembra Lacan no seminário XI 4 .<br />

Assim, chega o sujeito à análise, buscan<strong>do</strong> se aliviar um pouco <strong>do</strong>s sintomas que o<br />

afligem, pois por estrutura, o neurótico acreditar que há um Outro que sabe o que lhe<br />

acomete. Mas ele só quer reparar um pouco a fen<strong>da</strong> que se esgarçou um pouco <strong>de</strong>mais.<br />

Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> querer saber <strong>da</strong> castração.<br />

2 Já a escolha <strong>do</strong> tipo clinico [histeria, neurose obsessiva ou fobia], nos diz Freud, tem a ver é com outra coisa – com a<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa. Lembremos que o roche<strong>do</strong> <strong>da</strong> castração se refere à posição <strong>de</strong> homens e mulheres diante <strong>da</strong><br />

castração. No homem, protesto viril, e na mulher, pênis-­‐neid, ou inveja <strong>do</strong> pênis.<br />

3 Da psicanálise em suas relações com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.(p. 354),<br />

4 Seminário XI p. 158<br />

58


Mas, o sujeito po<strong>de</strong> entrar em análise, ele po<strong>de</strong> se tornar dócil ao discurso<br />

analítico e querer saber um pouco <strong>do</strong> que o <strong>de</strong>termina. Aí então sim, ele po<strong>de</strong>rá vir a<br />

consentir com a castração. A meu ver, isso só advém mesmo é ao final <strong>da</strong> análise, ao<br />

consentir com uma per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo. Assim é que ele po<strong>de</strong> vir a consentir com a escolha <strong>de</strong><br />

A, e consentir com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> B, ou vice-­‐versa. Po<strong>de</strong>r per<strong>de</strong>r -­‐ a essa posição, a meu ver,<br />

só o discurso analítico po<strong>de</strong> levar um sujeito. Ao permitir a ele subjetivar a falta, in<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

per<strong>da</strong> à causa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Ali on<strong>de</strong> o sujeito po<strong>de</strong> sustentar o <strong>de</strong>sejo como o vazio <strong>de</strong><br />

objeto, puro wunch.<br />

Os outros discursos apontam sempre soluções <strong>de</strong> tamponamento para a falta<br />

estrutural <strong>do</strong> sujeito. Aju<strong>da</strong>m a burlar a castração. Por isso Lacan diz que tu<strong>do</strong> concorre<br />

para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, para que tu<strong>do</strong> se mantenha e para que ele se repita. A<br />

tecnociência promete sempre: se não está satisfeito é porque você ain<strong>da</strong> não escolheu C<br />

ou D. E aí o alfabeto é infinito. Sempre há um novo objeto sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> forno. Aquele, sim,<br />

vai te fazer feliz. Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> postiça? É a partir <strong>do</strong> consumo ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong>sses objetos que<br />

Freud fala no “Mal estar na civilização” que assim, o sujeito chega a se tornar “uma<br />

espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>us <strong>de</strong> prótese (...) coberto por to<strong>do</strong>s os complementos artificiais que lhe<br />

dão ares <strong>de</strong> ser magnífico”.<br />

Mas, Lacan, na conferência à imprensa nos chama a atenção para uma questão<br />

importante: ‘embora essas engenhocas comam a gente, isso acontece porque a gente se<br />

<strong>de</strong>ixa consumir’. E ele nos diz: “por isso não estou entre os alarmistas nem os<br />

angustia<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong> nos saciarmos, pararemos com isso, e nos ocuparemos <strong>da</strong>s<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras coisas, ou seja, <strong>da</strong> religião”. Pois, o discurso religioso, ao contrário <strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

ciência, não só promete, esse cumpre a função <strong>de</strong> tamponamento <strong>da</strong> castração ao <strong>da</strong>r<br />

senti<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong>. Por isso Lacan diz: “São capazes <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> a qualquer coisa, até<br />

um senti<strong>do</strong> à vi<strong>da</strong> humana, por exemplo”.<br />

E o futuro <strong>da</strong> psicanálise, nos diz Lacan, <strong>de</strong> maneira enfática, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> que<br />

acontecerá aí nesses discursos. Pois tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o real insista. E <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,<br />

59


portanto, precipuamente, <strong>de</strong> como o sintoma será trata<strong>do</strong> no próprio dispositivo<br />

analítico. Sabemos <strong>da</strong>s longas análises que foram ao limite <strong>da</strong> interpretação e os efeitos<br />

disso no corpo <strong>do</strong>s analisantes.<br />

Mas o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é não só o senti<strong>do</strong> sexual, interpretável, aquele que<br />

Lacan no início supunha se resolver por inteiro numa análise linguageira, como ele o<br />

<strong>de</strong>fine em “Função e Campo”. O que vai se <strong>de</strong>puran<strong>do</strong> ca<strong>da</strong> vez mais é seu caráter<br />

imutável, liga<strong>do</strong> ao gozo. “O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma”, nos diz Lacan em A Terceira, “é o real”.<br />

E Colette Soler nos esclarece que a palavra senti<strong>do</strong> aqui utiliza<strong>da</strong> por Lacan diz respeito<br />

é ao senti<strong>do</strong> como uma direção. O sintoma provém <strong>do</strong> real, ele é causa<strong>do</strong> pelo Real. “O<br />

sintoma é a manifestação <strong>do</strong> real no nível <strong>do</strong>s seres vivos”, reforçan<strong>do</strong> aquilo que Lacan<br />

já dissera no Seminário XI: O sintoma, como as outras formações <strong>do</strong> inconsciente, é um<br />

envelopamento <strong>do</strong> real, não é o próprio real. Pois, “<strong>do</strong> real, somos totalmente<br />

separa<strong>do</strong>s” 5 , justamente “<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> a proporção sexual ser escrita”. E<br />

é <strong>da</strong>í que advém a “abundância <strong>de</strong> sintomas”.<br />

Então, se é o sintoma (o que provém <strong>do</strong> real) que leva o sujeito à análise, como a<br />

psicanálise – uma prática cujo instrumento é a linguagem -­‐ po<strong>de</strong> operar para tratar o<br />

real em jogo no sintoma? Como ela po<strong>de</strong> operar para levar a análise à sua conclusão?<br />

Aqui então é que Lacan nos esclarece quan<strong>do</strong> ele diz que a única maneira <strong>de</strong> se li<strong>da</strong>r com<br />

o sintoma é pelo equívoco significante. Só assim ele não engor<strong>da</strong>rá <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Ou seja,<br />

não é pelo senti<strong>do</strong> que o real é atingi<strong>do</strong>. Trata-­‐se <strong>de</strong> um trabalho com a linguagem<br />

<strong>de</strong>pura<strong>da</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> – lalíngua -­‐ cujo único fun<strong>da</strong>mento é a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>, a homofonia<br />

significante. Lalíngua é, pois, a linguagem que concerne à experiência <strong>da</strong> psicanálise.<br />

Pela maneira como a língua materna foi escuta<strong>da</strong> e provocou ranhuras no corpo,<br />

foi escrito ali o texto inconsciente. Implica a palavra dita pelo Outro, mas implica<br />

também o escuta-­‐<strong>do</strong>r, ou seja, o afeto causa<strong>do</strong> pelo que se escutou. O sintoma se<br />

relaciona então é ao mo<strong>do</strong> pelo qual lalíngua mor<strong>de</strong>u o corpo a partir não só <strong>do</strong> que foi<br />

5 P. 31<br />

60


fala<strong>do</strong> <strong>do</strong>/ao sujeito, mas <strong>da</strong> contingência – e <strong>da</strong> ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> -­‐ <strong>do</strong> que foi ouvi<strong>do</strong>, no<br />

<strong>encontro</strong> fortuito que <strong>da</strong>rá a ca<strong>da</strong> um sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo. Na Conferência <strong>de</strong><br />

Genebra sobre o sintoma Lacan nos aponta – “aí está a moteriali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> inconsciente”: a<br />

materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> linguageira. É <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> palavra encarna<strong>da</strong>, <strong>de</strong> lalíngua<br />

entalha<strong>da</strong> na carne <strong>do</strong> sujeito que emerge o sintoma. Ele comemora, para além <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o<br />

senti<strong>do</strong>, a saga <strong>do</strong> sujeito na linguagem, o nasce<strong>do</strong>uro <strong>de</strong> sua posição como um falasser.<br />

Aí está o x a que Lacan se refere no seminário RSI quan<strong>do</strong> ele então dirá que “esse x é o<br />

que <strong>do</strong> inconsciente po<strong>de</strong> se traduzir por uma letra” [RSI p. 23]. Letra que marca “o<br />

mo<strong>do</strong> particular <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um gozar <strong>do</strong> inconsciente, na medi<strong>da</strong> em que o inconsciente o<br />

<strong>de</strong>termina”. [RSI p. 37]<br />

No final <strong>de</strong> seu ensino Lacan <strong>de</strong>scobre uma formação <strong>do</strong> sintoma que prescin<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> recalque, que prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma amarração ao inconsciente. Sintoma que, portanto,<br />

tem função <strong>de</strong> suplência ao Real e que é ele mesmo real, articula<strong>do</strong> à letra e ao gozo.<br />

Trata-­‐se <strong>do</strong> sintoma que se <strong>de</strong>pura ao final <strong>da</strong> análise. Após to<strong>da</strong> interpretação possível,<br />

até to<strong>da</strong> a <strong>de</strong>codificação pela via <strong>da</strong> linguagem, o sintoma permanece como um caroço <strong>de</strong><br />

real – evento corporal, nos diz Lacan. Ponto zero <strong>da</strong> relação <strong>do</strong> sujeito com a linguagem,<br />

reduzi<strong>do</strong> a seus elementos mínimos, aos restos, às marcas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s pelo <strong>encontro</strong> <strong>do</strong><br />

sujeito com a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> e ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> significante em lalíngua, teci<strong>do</strong> significante<br />

inscrito a ferro e fogo no corpo como texto inconsciente. Este tipo <strong>de</strong> sintoma, que Lacan<br />

grafa Sinthome, pô<strong>de</strong> ser formula<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> caso Joyce, quan<strong>do</strong> a amarração <strong>da</strong><br />

estrutura pô<strong>de</strong> ser feita fora <strong>da</strong> lógica <strong>do</strong> inconsciente (tributária <strong>do</strong> Nome-­‐<strong>do</strong>-­‐pai), fora<br />

<strong>da</strong> significação <strong>da</strong> linguagem. Alguns dizem que a partir <strong>da</strong>í po<strong>de</strong>mos prescindir <strong>da</strong><br />

nomenclatura neurose, psicose e perversão, pois o que importa agora é o eno<strong>da</strong>mento<br />

sintomático, não importan<strong>do</strong> mais a estrutura.<br />

Acredito, no entanto, que Lacan se lançou na aventura joyciana para continuar<br />

aquilo que, a meu ver, é o cerne <strong>de</strong> seu ensino: a questão <strong>da</strong> análise e mais<br />

apropria<strong>da</strong>mente falan<strong>do</strong>, a questão <strong>do</strong> final <strong>da</strong> análise e a formação <strong>do</strong> analista. Com<br />

Joyce, ao esclarecer o trabalho <strong>da</strong> psicose, Lacan <strong>de</strong>monstra que ali não há a articulação<br />

61


<strong>do</strong> sujeito ao inconsciente, pois não há o Nome-­‐<strong>do</strong>-­‐pai. No entanto, o sujeito foi capaz <strong>de</strong><br />

criar um artifício que garantiu o eno<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> estrutura, um Sinthome.<br />

Ou seja, toman<strong>do</strong> o caso Joyce, Lacan pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar como esse sujeito se<br />

sustentou sem o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> psicose por ser capaz <strong>de</strong> criar um sintoma que lhe<br />

fez as vezes <strong>de</strong>ssa função. Mas o que Lacan <strong>de</strong>monstra também é a operação <strong>do</strong> final <strong>de</strong><br />

análise: o sintoma que subsiste para além <strong>da</strong> crença no inconsciente.<br />

Tomar Joyce é verificar em um sujeito que não foi mordi<strong>do</strong> pelo inconsciente –<br />

um “<strong>de</strong>sabona<strong>do</strong> <strong>do</strong> inconsciente”, como aponta Lacan, como ele foi hábil em operar com<br />

a linguagem prescindin<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong>compon<strong>do</strong>-­‐a em puro jogo <strong>de</strong> letras e<br />

sons. Ou seja, Joyce trabalhou com a linguagem para além <strong>da</strong> fala com suas significações,<br />

foi ao recurso <strong>da</strong> escrita, à letra, ao ponto on<strong>de</strong> o sintoma já não é mais passível <strong>de</strong> ser<br />

analisa<strong>do</strong>. Joyce mostrou com to<strong>do</strong> o seu trabalho com a letra, saber fazer com isso. Foi<br />

isso que causou sobremaneira o interesse <strong>de</strong> Lacan, pois, como ele o afirma: “que alguém<br />

faça disso um uso prodigioso, interroga por si o que diz respeito à linguagem” 6 .<br />

Ou seja, como o homem, <strong>do</strong>ente <strong>da</strong> linguagem, cativo <strong>do</strong> imaginário que nos leva<br />

ao <strong>de</strong>stino inelutável <strong>da</strong> <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> mental por sempre <strong>da</strong>rmos senti<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> usar<br />

a linguagem justamente no ponto <strong>de</strong> operar com seu osso, com a letra, seu ponto<br />

mínimo, <strong>de</strong> maneira assim, <strong>de</strong>sconecta<strong>da</strong> <strong>do</strong> inconsciente? Isso concerne ao final <strong>da</strong><br />

análise, nos afirma Lacan, e Joyce <strong>de</strong>monstra a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa operação.<br />

O final <strong>de</strong> análise leva o sujeito a modificar sua relação com o inconsciente,<br />

levan<strong>do</strong>-­‐o, portanto, a conseguir operar com a linguagem <strong>de</strong> outra maneira. Concerne ao<br />

final <strong>de</strong> análise, então, um efeito <strong>de</strong> escrita.<br />

6 Conf. Joyce, o Sintoma” Sem. 23. p. 162].<br />

62


Pu<strong>de</strong>mos acompanhar o trabalho apresenta<strong>do</strong> por Mario Brito 7 em seu<br />

<strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> passe. Ali quan<strong>do</strong> o sujeito, ao se dirigir às entrevistas <strong>de</strong> passe, per<strong>de</strong> o<br />

passaporte. Ao invés <strong>de</strong> se perguntar: “por que perdi o passaporte, o que isso quer<br />

dizer?, por exemplo, pu<strong>de</strong>r fazer simplesmente uma escrita, como o fez Mario: “ao passe<br />

sem passar por te”.<br />

Sinthome e sintoma se diferenciam então é na maneira pela qual o sujeito na<br />

análise po<strong>de</strong> chegar ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração, <strong>de</strong> redução <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma ao<br />

irredutível <strong>do</strong> Sinthome. Portanto, nessa redução à letra, ao fonema, o sinthome é a<br />

transmutação <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> em análise a partir <strong>da</strong> subversão ocorri<strong>da</strong> na<br />

posição <strong>do</strong> sujeito diante <strong>de</strong> seu próprio inconsciente.<br />

O final <strong>da</strong> análise é, portanto, ir ao ponto on<strong>de</strong>, ao se po<strong>de</strong>r prescindir <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

ao consentir com a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo, o sujeito pu<strong>de</strong>r “<strong>de</strong>ixar o sintoma ao que ele é, um<br />

acontecimento corporal” e souber fazer (savoir y faire) alguma coisa com o que<br />

comemorou a inscrição <strong>de</strong> lalíngua no leito <strong>de</strong> seu corpo, ali quan<strong>do</strong> justamente ele não<br />

mais acredita no seu inconsciente.<br />

Mas surgirá <strong>da</strong>í um analista se ele continuar acreditan<strong>do</strong> – mais <strong>do</strong> que isso,<br />

aman<strong>do</strong> -­‐ o inconsciente. Não mais o seu, mas o inconsciente como estrutura. É aí que<br />

surge o <strong>de</strong>sejo novo, o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista que o levará ao entusiasmo <strong>de</strong> querer se<br />

oferecer a levar outros até o ponto on<strong>de</strong> ele próprio pô<strong>de</strong> ir em sua análise.<br />

Trata-­‐se <strong>de</strong> uma política? Uma política <strong>da</strong> psicanálise. Ali on<strong>de</strong> é a análise em<br />

intensão que fun<strong>da</strong> as bases <strong>da</strong>quilo a que a psicanálise em extensão po<strong>de</strong> vir a trazer ao<br />

mun<strong>do</strong>. A posição ética então é essa: apostar no sintoma.<br />

7 BRITO, Mario. Al passe sin passa-­‐por-­‐te. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no Espaço <strong>Escola</strong> <strong>do</strong> XI Encontro <strong>da</strong> EPFCL|<br />

AFCL-­‐Brasil.<br />

63


Sintoma e Escrita ou...os Ecos <strong>do</strong> Sintoma Selvagem<br />

Sandra Leticia Berta 1<br />

É evi<strong>de</strong>nte que, no discurso analítico, só se trata disto, <strong>do</strong> que<br />

se lê e toman<strong>do</strong> como o que se lê para além <strong>do</strong> que vocês<br />

incitaram o sujeito a dizer, que não é tanto, como sublinhei<br />

<strong>da</strong> última vez, dizer tu<strong>do</strong>, mas dizer não importa o quê, sem<br />

hesitar em dizer besteiras. (Lacan, 1973/1985, p.39) 2<br />

Perguntar-me pela escrita <strong>do</strong> sintoma no percurso <strong>de</strong> uma análise levou a anunciar<br />

com título <strong>de</strong>ssa exposição “Sintoma e escrita”.<br />

A questão que me coloco é <strong>de</strong> se temos <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> escrita <strong>do</strong><br />

sintoma, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma análise. Ou ain<strong>da</strong>: verificar quais as relações possíveis entre<br />

essas diferentes escritas.<br />

Uma vinheta clínica faz contraponto a essa questão. Evoco Lacan em 1973: na análise<br />

há <strong>de</strong> se ter o sentimento <strong>do</strong> risco absoluto. 3 Mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> assinalar o afeto em questão e a<br />

dimensão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa.<br />

Escrever o sintoma <strong>de</strong>signa neste texto que apresento: <strong>de</strong>finir o sintoma analítico.<br />

Portanto, escrever o sintoma inclui o conceito <strong>de</strong> transferência, ain<strong>da</strong>, inclui o analista como<br />

sen<strong>do</strong> aquele que respon<strong>de</strong> pela posição <strong>do</strong> inconsciente.<br />

Des<strong>de</strong> Freud o sintoma é o estrangeiro que ten<strong>de</strong> a e<strong>xi</strong>lar-se para promover uma<br />

satisfação proibi<strong>da</strong>. Sintoma extraterritorial ao eu. Nome <strong>do</strong> enigma promovi<strong>do</strong> por um<br />

sofrimento que incomo<strong>da</strong> e que perturba pela sua insistência. Ele nos adverte que to<strong>do</strong><br />

sintoma tem um senti<strong>do</strong> sexual, oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trauma e <strong>da</strong> fantasia (reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica)<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> campo Lacaniano<br />

2 LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.<br />

3 LACAN, J. (1975 – 1976). El Seminário, libro XXII: el sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006, p. 45<br />

64


Como se escreve o sintoma na psicanálise?<br />

Estamos a <strong>de</strong>bater que, com Lacan, há duas gran<strong>de</strong>s vertentes que permitem dizer<br />

como se escreve o sintoma, as mesmas enlaçam to<strong>do</strong>s os meandros <strong>do</strong> seu ensino:<br />

Escrever o sintoma como mensagem <strong>do</strong> Outro<br />

A mensagem é o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Outro s(A). Mas sabemos que essa mensagem na<strong>da</strong><br />

mais é <strong>do</strong> que a interpretação <strong>do</strong> sujeito sobre sua e<strong>xi</strong>stência inefável. Nela se articulam: a - O<br />

traumático, entendi<strong>do</strong> como não termos a disposição uma resposta última vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro, um<br />

último significante que nos <strong>de</strong>i a resposta <strong>de</strong>finitiva sobre o que somos S( ), nem mesmo<br />

sobre o que queremos, uma vez que a Be<strong>de</strong>utung <strong>do</strong> falo se suporta no significante <strong>da</strong> falta <strong>de</strong><br />

significante (Ф); b - A construção <strong>do</strong> fantasma como resposta cristaliza<strong>da</strong> que eno<strong>da</strong><br />

imaginário e simbólico, como fixação <strong>de</strong>ssa ficção que é a interpretação <strong>do</strong> sujeito sobre o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro promove.<br />

Escrever o sintoma como letra<br />

A escrita <strong>de</strong> uma letra se suporta na questão sobre qual é a função <strong>de</strong>ssa letra. São as<br />

articulações <strong>do</strong>s anos ´70. Em primeiro lugar temos a letra como <strong>de</strong>trito, isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> a mesma um estatuto secundário à linguagem. A letra indica: o furo no saber,<br />

a ruptura <strong>do</strong> semblante (significante), artefato a não habitar mais que a linguagem, sem po<strong>de</strong>r<br />

confundi-la com o significante.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a escrita <strong>da</strong> letra testemunha sobre o furo no saber. A letra tanto limita<br />

o gozo quanto o evoca. Isso que evoca não refere ao furo no saber, mas ao puro exercício <strong>de</strong><br />

uma fala não-sense que leva ao <strong>encontro</strong> <strong>de</strong>sse furo no saber, até seu limite. Enten<strong>do</strong> ser essa<br />

a tese que nos propõe Colette Soler no seu livro Lacan, l´inconscient réinventé 4 quan<strong>do</strong>,<br />

4 SOLER, C. Lacan, l ´inconscient réinventé. Paris: Presses Universitaires <strong>de</strong> France, 2009.<br />

65


evocan<strong>do</strong> Lacan no Prefacio <strong>do</strong> Seminário XI 5 , nos diz que o passe ao real precisa (é minha<br />

leitura <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Soler) <strong>de</strong> três tempos: 1. A formação <strong>do</strong> inconsciente (lapso). 2. O<br />

inconsciente como espaço <strong>de</strong> significantes associa<strong>do</strong>s livremente, on<strong>de</strong> estão em função o<br />

senti<strong>do</strong>, a historização e o inconsciente – ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. 3. O inconsciente fora-senti<strong>do</strong>, analfabeto<br />

que fez funcionar o significante besta. Nesse terceiro tempo a escrita <strong>do</strong> sintoma é função<br />

reduzi<strong>da</strong> a sua má<strong>xi</strong>ma expressão <strong>de</strong> um gozo - por que não dizê-lo? – estranho, estrangeiro,<br />

mas sem função <strong>de</strong> enigma.<br />

Parece-me que assim posso apreen<strong>de</strong>r o que Lacan nos diz no Seminário RSI, na aula<br />

<strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1975, quan<strong>do</strong> escreve, usan<strong>do</strong>-se <strong>da</strong> formulação matemática f (x), o gozo<br />

<strong>do</strong> inconsciente que se <strong>de</strong>nuncia no sintoma. Isto é: o mo<strong>do</strong> como ca<strong>da</strong> um goza <strong>do</strong> seu<br />

inconsciente. Essa letra que se traduz <strong>do</strong> inconsciente, que é <strong>de</strong>trito; é isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa letra tem i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> si a si. Portanto o que se lê <strong>do</strong> sintoma é efeito <strong>da</strong><br />

erosão <strong>da</strong> linguagem. É <strong>da</strong>í que se retira o estatuto <strong>da</strong> escrita nesse contexto, <strong>de</strong> uma letra que<br />

afirma o gozo, fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Por essa razão, essa letra se escreve entre real e simbólico.<br />

Mas ela vem <strong>do</strong> real.<br />

Enten<strong>do</strong> que a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pensarmos as duas vertentes <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong> sintoma que<br />

promovem o trabalho <strong>de</strong> transferência po<strong>de</strong> ser extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma frase crucial. Precisamente<br />

porque põe em evi<strong>de</strong>ncia o caminho <strong>do</strong> sintoma, o que faz o cerne <strong>da</strong> sua função. Retomo a<br />

citação:<br />

O que é dizer o sintoma? É a função <strong>do</strong> sintoma, função a se<br />

enten<strong>de</strong>r como o faria a formulação matemática f (x). O que é<br />

esse x? É o que, <strong>do</strong> inconsciente, po<strong>de</strong> se traduzir por uma<br />

letra, na medi<strong>da</strong> em que, apenas na letra a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> si a si<br />

está isola<strong>da</strong> <strong>de</strong> qualquer quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do Inconsciente to<strong>do</strong> um,<br />

naquilo em que ele sustenta o significante em que o<br />

5 LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa <strong>do</strong> Seminário XI. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Editor, 2003, PP 567-569.<br />

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inconsciente consiste, to<strong>do</strong> um é suscetível <strong>de</strong> se escrever<br />

como uma letra. Sem dúvi<strong>da</strong>, seria preciso convenção. Mas, o<br />

estranho é que é isto que o sintoma opera selvagemente. O<br />

que não cessa <strong>de</strong> se escrever no sintoma vem <strong>da</strong>í. (21.01.75) 6 .<br />

A repetição <strong>do</strong> sintoma, o que não cessa <strong>de</strong> se escrever é o que se escreve <strong>do</strong> sintoma,<br />

primeiro selvagemmente, <strong>de</strong>pois f(x). Portanto, essa repetição é em, se mesma, a escrita <strong>do</strong><br />

sintoma. Digamos que há uma ‘linha direta” entre “o que não cessa <strong>de</strong> se escrever”<br />

(necessário) e o f(x) (contingente), segun<strong>do</strong> enten<strong>do</strong>.<br />

afirmação:<br />

Razão pela qual me impactou ler e ouvir o nosso colega Jairo Gerbase, na seguinte<br />

A psicanálise propõe que não há nenhuma participação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

na formação <strong>do</strong> sintoma, pois o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma é um<br />

<strong>encontro</strong> <strong>do</strong> real, isto é, há <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma quan<strong>do</strong> o<br />

sujeito <strong>encontro</strong>u algo impossível <strong>de</strong> ser dito, algo inefável. 7 (Gerbase,<br />

A hipótese Lacaniana, inédito)<br />

Há algo <strong>de</strong> selvagem no <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> um sintoma, e é esse operar<br />

selvagemente o qual indica que ai o real está em questão. Por isso há <strong>de</strong> se contornar. Isso não<br />

se suporta. Eis um fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> psicanálise, se me permitem. E, o que é selvagem?: um<br />

mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> escrita. ... Sim, porque no parlêtre isso não se agüenta. Mas, para<strong>do</strong>xalmente, é isso<br />

com o qual o parlêtre goza. O real é o impossível: com isso o parlêtre goza e se civiliza. É<br />

essa minha leitura <strong>da</strong> ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong>, a partir <strong>de</strong>ssas articulações sobre lalangue.<br />

6 LACAN, J. (1975). O Seminário, Livro XXII: RSI, inédito.<br />

7 GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedi<strong>da</strong> pelo autor.<br />

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Lalangue evi<strong>de</strong>ncia o gozo <strong>da</strong> fala: é disso que somos feitos os seres falantes, nossa<br />

carne. Por essa razão não po<strong>de</strong>mos per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a dimensão “parl” <strong>do</strong> parlêtre. E isso que<br />

está em jogo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, no sintoma. Volto a Lacan <strong>de</strong> 1958 8 . O que ele nos diz: O<br />

SINTOMA FALA. ISSO FALA! Na escrita selvagem há gozo fálico. Gozo que provêm <strong>da</strong><br />

relação <strong>do</strong> simbólico com o real. No sujeito que tem o suporte no parlêtre – INCC – está o<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> conjugar a palavra com esse gozo que se experimenta como parasitário, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à fala<br />

mesma, ou seja, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao parlêtre.<br />

E é por essa razão que na transferência ele - Isso – se põe a falar. Claro que se precisa<br />

<strong>de</strong> um consentimento <strong>da</strong>quele que se queixa para ler no que se ouve <strong>do</strong> “Isso fala”. E vejam<br />

que é nesse ano que Lacan aponta que o sintoma se diferencia <strong>da</strong>s outras formações <strong>do</strong><br />

inconsciente pela repetição. Agora, a questão é que no fun<strong>do</strong> esses enuncia<strong>do</strong>s são indizíveis,<br />

por isso a dimensão Real em questão. Nessa fala há <strong>de</strong> se recortar a potência patogênica <strong>de</strong><br />

enuncia<strong>do</strong>s indizíveis 9 .<br />

Isso posto, consi<strong>de</strong>ro que as análise que dirigimos <strong>de</strong>vem ter presente o sintoma-<br />

selvagem para que f(x) possa se escrever (contingência).<br />

Uma jovem chega ao consultório trazen<strong>do</strong> uma queixa, bem precisa: “meu problema é<br />

que posso estar e não estar ao mesmo tempo. É o que mais faço. Posso passar ao largo, sem<br />

que os outros percebam ou sem que eu mesma perceba o que passa para mim”.<br />

8 LACAN, J. (1957-1958). O Semináro. Livro V: As formações <strong>do</strong> inconsciente. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar, 1999.<br />

9 GERBASE, J. A hipótese Lacaniana, inédito. Cópia gentilmente cedi<strong>da</strong> pelo autor.<br />

68


Eis o que inaugura as entrevistas sobre esse sintoma que <strong>de</strong>ci<strong>do</strong> nomear, assim como<br />

ela nos diz: “passar ao largo”. Ela se interroga pelo traço infernal <strong>de</strong>sse ser que se esvai e que<br />

lhe faz acreditar que na<strong>da</strong> vale a pena nesta vi<strong>da</strong>... aliás,que po<strong>de</strong>ria morrer sem <strong>de</strong>ixar <strong>do</strong>res<br />

nem rastos. Passar ao largo.<br />

Num segun<strong>do</strong> momento no qual a analista – ocupa<strong>da</strong> em não sublinhar esse traço<br />

melancólico e, portanto, sintomatizá-lo fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong>le mais <strong>do</strong> que posição na estrutura,<br />

ressonância <strong>do</strong> enigma <strong>de</strong> um saber não sabi<strong>do</strong> – retomo, num segun<strong>do</strong> momento que por sua<br />

vez <strong>de</strong>limita a entra<strong>da</strong> em análise, o passar ao largo se associa a uma cena sexual para a qual<br />

ela diz “olha, não <strong>de</strong>i a mínima”. Essa cena traduzia sua primeira relação sexual: não lembra,<br />

entrou e saiu sem saber com quem, menos ain<strong>da</strong> para que.<br />

Esse “não <strong>de</strong>i a mínima” que a analista sublinha, permite que o sujeito recolha <strong>do</strong><br />

tesouro <strong>do</strong>s significantes uma conjunção entre o “não <strong>da</strong>r a mínima” e o “passar <strong>de</strong> largo”.<br />

Mas o inconsciente insiste..... A questão que aparece não é “não <strong>da</strong>r a mínima”, mas o<br />

“Olha”. Na volta <strong>de</strong>sse buraco uma cena com o <strong>encontro</strong> <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> olhar se prioriza, cena na<br />

qual um e<strong>xi</strong>bicionista lhe intercepta na rua, lhe <strong>da</strong>-a-ver o que escolhe como ponto <strong>de</strong> caça-<br />

olhar, e some, provocan<strong>do</strong>-lhe um “ataque <strong>de</strong> angústia”. “Olha, não <strong>de</strong>i a mínima”.<br />

“Encontrei o que tanto temia: o abuso sexual”. Abuso sexual? “As vezes me incomo<strong>da</strong><br />

o olhar <strong>do</strong> meu pai”. Eis a versão <strong>da</strong> obsceni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> pai que se <strong>de</strong>senrola por algum tempo,<br />

<strong>da</strong>n<strong>do</strong> marco à sua ficção <strong>de</strong> passar ao largo que agora se torna “passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>”. Ponto<br />

<strong>de</strong> fixão pulsional que liga sintoma e o objeto, promoven<strong>do</strong> as diferentes torções sucessivas<br />

<strong>do</strong>s ditos.<br />

69


Portanto: passar ao largo se vincula com a suspeita <strong>de</strong> passar ao largo para o Outro:<br />

ele não me quer o suficiente, não lhe interesso. Passar ao largo é a interpretação em falso <strong>do</strong><br />

que o sujeito toma <strong>da</strong> mensagem <strong>do</strong> Outro, e é o que faz com que a analizante faça <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>, em resposta, um passar ao largo <strong>do</strong> que quer, <strong>do</strong> que busca, <strong>do</strong> que encontra. Por outro<br />

la<strong>do</strong> “passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>” lhe confronta com o enigma mais obscuro <strong>do</strong> capricho <strong>do</strong> Outro,<br />

e com sua reposta que evoca o fato <strong>de</strong> saber que a pulsão é o eco no corpo <strong>do</strong> fato que há um<br />

dizer.<br />

Primeiro tempo: as entrevistas preliminares. Estar e não estar.<br />

Segun<strong>do</strong> tempo: a entra<strong>da</strong> em análise: passar ao largo toma sua evi<strong>de</strong>ncia no enlace <strong>do</strong><br />

significante com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> sexual, isto é, com o reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fantasmática que eno<strong>da</strong><br />

imaginário e simbólico, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> a essa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> o gozo-senti<strong>do</strong>, que lhe <strong>de</strong>fine: jouissance.<br />

Portanto, entra<strong>da</strong> na transferência e tempo <strong>de</strong> acreditar que a fantasia tem como mira a última<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Aqui se enlaça o passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>.<br />

É ai que a ética <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> parlêtre <strong>de</strong>ve ser sustenta<strong>da</strong> para não esquecer que há <strong>de</strong><br />

se fartar <strong>do</strong> significante para tocar (atingir?) o real. Fartar-se significa usar <strong>de</strong>la até o abuso,<br />

cansar-se <strong>de</strong>le. Há <strong>de</strong> se fartar <strong>da</strong> fantasia, <strong>do</strong> acúmulo <strong>de</strong> um saber que engor<strong>da</strong> o senti<strong>do</strong>,<br />

almejan<strong>do</strong> atingir a última ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas que fracassa na tentativa, por atingir a ca<strong>da</strong> vez o<br />

furo no saber.<br />

Uma arma contra o acúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> - o qual por sua vez é o produto <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

contra a operação selvagem <strong>do</strong> sintoma - encontra-se no equívoco. O memso produz um corte<br />

na repetição. Porque o sintoma é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> necessário, <strong>do</strong> que não cessa <strong>de</strong> se escrever. O<br />

70


grafo <strong>de</strong>monstra a relação <strong>do</strong> sintoma com a fantasia. Se ele repete é lá, no senti<strong>do</strong> imaginário<br />

<strong>da</strong> fantasia que o analizante vai ancorar suas construções e a proliferação <strong>de</strong> senti<strong>do</strong><br />

correspon<strong>de</strong>nte. Uma vez que ali o sintoma fica vizinho <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> débil que eno<strong>da</strong><br />

imaginário e simbólico. E é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> lá, também, que teremos <strong>de</strong> laborar para que não fique<br />

<strong>de</strong>scansan<strong>do</strong> no limbo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Por isso trata-se <strong>de</strong>, nessa proliferação <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, priorizar<br />

o equívoco, l´une bévue.<br />

Essa repetição <strong>do</strong> sintoma, que se <strong>de</strong>fine como necessário, se constata, mais uma vez<br />

na clínica quan<strong>do</strong> essa mulher se implica na sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong> e <strong>de</strong>senha o sintoma analítico com<br />

algo inusita<strong>do</strong>, um significante. Diz que outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> passar ao largo é sentir-se meio<br />

morta. Desse “meio-morta” se recolhe apenas uma simples falta <strong>de</strong> atenção que põe em risco<br />

seu trabalho, quotidianamente. Nesse frescor <strong>do</strong> início <strong>do</strong> trabalho analítico, retorna e traz<br />

uma lembrança infantil: “Meu pai dizia “mezzo-morto”. Com esse termo – que não e<strong>xi</strong>ste no<br />

português – apontava quan<strong>do</strong> algum paciente estava muito <strong>do</strong>ente, quase morren<strong>do</strong>, cansa<strong>do</strong>,<br />

chapa<strong>do</strong>. “Ele falava isso e eu ria, mas acho que ao mesmo tempo me assustava”. “Mezzo-<br />

morta” é “jogar um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> fora”, como nesses esquecimentos, lapso <strong>de</strong> atenção.<br />

Lacan, na sua Conferencia <strong>de</strong> Genebra, diz<br />

É absolutamente certo que é pelo mo<strong>do</strong> como alíngua foi fala<strong>da</strong> e<br />

também ouvi<strong>da</strong> por tal ou qual em sua particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, que alguma<br />

coisa em segui<strong>da</strong> reaparecerá nos sonhos, em to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> tropeços,<br />

em to<strong>da</strong> espécie <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> dizer. É, se me permitem empregar pela<br />

71


primeira vez esse termo, nesse motérialisme 10 on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a toma<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong> inconsciente – quero dizer que é o que faz com que ca<strong>da</strong> um não<br />

tenha encontra<strong>do</strong> outros mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sustentar a não ser o que a pouco<br />

chamei o sintoma. 11<br />

Impregnação <strong>do</strong> ser vivo pela linguagem. Mezzo-morta. Uma a<strong>do</strong>lescência na qual sua<br />

pele branca é o que carrega o brilho fálico. “Pele branca, sem sol, com olheiras, a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong><br />

passar mal para ficar com a boca branca e a pele <strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong> roxa”. A<strong>do</strong>rava também a tela <strong>de</strong><br />

Ofélia morta, Nirvana e seu CD Funeral. Isso a leva até um certo limite: bêba<strong>da</strong> <strong>de</strong> álcool,<br />

corta seu braço e termina em um psiquiatra. Tempos <strong>da</strong> sua a<strong>do</strong>lescência que incluem seu pai<br />

<strong>do</strong>ente <strong>de</strong> câncer. Mais um elemento: mezzo-morta estava sua mãe quan<strong>do</strong> paria seus filhos.<br />

Nesse moterialismo resi<strong>de</strong> a toma<strong>da</strong> <strong>do</strong> inconsciente, mezzo-morta, que se manifesta<br />

em to<strong>da</strong> série <strong>de</strong> tropeços: passar ao largo, estar <strong>de</strong>sliga<strong>da</strong>.<br />

Alingua não faz acervo, não acrescenta, mas impregna. O acervo, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

fica por conta <strong>da</strong> associação livre. Abre-se, nesse primeiro tempo que indica a iminência <strong>da</strong><br />

entra<strong>da</strong> em análise a partir <strong>de</strong> um significante que lhe representa na história edípica, uma<br />

palavra fora <strong>do</strong> dicionário, uma palavra em equívoco. Uma palavra que contem a marca <strong>de</strong><br />

acontecimento, mas que por sua vez, se oferta como um jogo <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> na transferência a<br />

partir <strong>do</strong> qual a <strong>de</strong>riva <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> – por longo tempo – haverá <strong>de</strong> vir.<br />

10 con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> mot (palavra) e materialisme (materialismo)<br />

11 LACAN J. (1975). Conferência em Ginebra sobre o sintoma. Copia<strong>da</strong> <strong>da</strong> Biblioteca <strong>do</strong> Campo<br />

Psicanalítico. www.campopsicanalítico.com.br.<br />

72


Se tivermos em mente a pergunta <strong>de</strong> como se escreve o sintoma, ou seja, <strong>do</strong> que ele<br />

opera selvagemente, po<strong>de</strong>remos privilegiar o equívoco para com ele evocar o eno<strong>da</strong>mento <strong>do</strong>s<br />

gozos e incidir nos mesmos. Mas o sintoma-selvagem não se <strong>de</strong>ixa <strong>do</strong>minar totalmente, ele<br />

insiste em se inscrever <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> em evidência o “Gozo opaco, por excluir o senti<strong>do</strong>” 12 . Por<br />

essa razão - enten<strong>do</strong> - na análise operar com a escrita po<strong>de</strong> ser ético, porque ela reduz ao<br />

má<strong>xi</strong>mo o senti<strong>do</strong>. Eis o mo<strong>do</strong> em que temos <strong>de</strong> transformar o sintoma- selvagem em sintoma<br />

analítico. Escrever o fora senti<strong>do</strong> na erosão <strong>do</strong> má<strong>xi</strong>mo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

12<br />

LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 566.<br />

LACAN, J. Prefácio à Edição Inglesa <strong>do</strong> Seminário XI. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Editor, 2003, PP 567-569.<br />

73


O Livro <strong>de</strong> Cabeceira: <strong>da</strong> escrita como sintoma ao sintoma como letra<br />

Ana Laura Prates Pacheco 1<br />

Inicio esse trabalho com uma questão coloca<strong>da</strong> por Lacan no Seminário 23: “O<br />

problema to<strong>do</strong> resi<strong>de</strong> nisso – como uma arte po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira divinatória<br />

substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-­‐sistência e em<br />

seu furo?” (p 38). É com essa inspiração que contarei com o auxílio <strong>de</strong> um filme <strong>de</strong> Peter<br />

Greenway (1996), chama<strong>do</strong> “O livro <strong>de</strong> cabeceira”, para me aju<strong>da</strong> a transmitir como o<br />

conceito <strong>de</strong> letra no último ensino <strong>de</strong> Lacan permitirá a reformulação <strong>do</strong> lugar <strong>do</strong><br />

sintoma na clínica psicanalítica.<br />

Encontramos aqui uma inspiração <strong>do</strong> cineasta na escrita feminina <strong>do</strong> Japão<br />

ancestral, especificamente na obra <strong>de</strong> Sei Shonagon –“Livro <strong>de</strong> Cabeceira” (Makura –<br />

nosôshi) – escrita no ano 1000. Shonagon era uma <strong>da</strong>ma <strong>da</strong> corte imperial japonesa, que<br />

aju<strong>do</strong>u a criar um gênero literário, caracteriza<strong>do</strong> por crônicas na forma <strong>de</strong> diários<br />

íntimo. Escrevia vários poemas/listas, tais como: “Coisas que fazem o coração bater mais<br />

forte” ou “Lista <strong>de</strong> coisas esplêndi<strong>da</strong>s” e experiências eróticas.<br />

No filme <strong>de</strong> Greenway não há nenhuma pretensão realista como a <strong>do</strong> cineasta<br />

japonês Nagesa Oshima, por exemplo, em “O império <strong>do</strong>s Senti<strong>do</strong>s”. Aqui ao contrário,<br />

tu<strong>do</strong> no filme é como a escrita <strong>de</strong> uma Iluminura. Ca<strong>da</strong> imagem, e mesmo a música, são<br />

cui<strong>da</strong><strong>do</strong>samente <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>s, e emaranha<strong>do</strong>s aos caracteres <strong>da</strong> língua japonesa e as<br />

outras línguas que aparecem na tela. Ele comenta: “quis fazer um filme que unisse o<br />

prazer <strong>da</strong> literatura e o prazer <strong>da</strong> carne. Uma <strong>da</strong>s coisas que sempre me fascinou é a<br />

noção <strong>de</strong> que as letras <strong>do</strong> alfabeto japonês são caracteres e significa<strong>do</strong> ao mesmo tempo.<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil, Membro <strong>do</strong> Fórum São Paulo<br />

74


Elas são imagens e texto, simultaneamente. Po<strong>de</strong>m ser li<strong>da</strong>s como texto e vistas como<br />

imagens”.<br />

Ora, a relação entre o som e a letra e a imagem está no centro <strong>do</strong> interesse <strong>de</strong><br />

Lacan pela língua japonesa que, segun<strong>do</strong> ele, se alimentou <strong>da</strong> escrita. No texto que<br />

apresentei em Roma – “A letra <strong>de</strong> amor no corpo” – tratei <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> letra com o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e o real no último ensino <strong>de</strong> Lacan. Não será possível retomar aqui essas<br />

elaborações, mas vou resumir brevemente um aspecto <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate a respeito <strong>do</strong> estatuto<br />

<strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> letra para Lacan, que será fun<strong>da</strong>mental para acompanharmos meu<br />

comentário sobre o filme “O livro <strong>de</strong> cabeceira”.<br />

Trata-­‐se <strong>de</strong> in<strong>da</strong>garmos se a advento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> letra em sua especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

implicaria numa renúncia <strong>de</strong> Lacan à tese <strong>da</strong> primazia <strong>do</strong> significante. Ora, no texto “O<br />

carteiro <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Le facteur <strong>de</strong> la verité, 1971), Derri<strong>da</strong> acusa Lacan <strong>de</strong> pertencer à<br />

tradição i<strong>de</strong>alista <strong>da</strong> filosofia oci<strong>de</strong>ntal, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Platão – o privilégio <strong>da</strong><br />

transmissão oral em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> escrita. Se vocês se lembrarem, em várias passagens<br />

<strong>do</strong> Seminário 18, Lacan respon<strong>de</strong> às críticas <strong>de</strong> Derri<strong>da</strong>, bem como em Lituraterra em A<br />

Terceira e no Seminário 24.<br />

Também em seu livro A Farmácia <strong>de</strong> Platão, Derri<strong>da</strong> retoma a distinção entre a<br />

fala e a escrita, a partir <strong>do</strong> Fedro <strong>de</strong> Platão. Tradicionalmente concebe-­‐se esse diálogo<br />

como uma con<strong>de</strong>nação <strong>da</strong> escrita, feita por Sócrates contra os sofistas. Platão retoma, no<br />

Fedro, um <strong>de</strong>bate entre os ora<strong>do</strong>res <strong>da</strong> época, a respeito <strong>da</strong> soberania <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou <strong>da</strong><br />

escrita na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transmissão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em Fedro, Sócrates conta para seu<br />

discípulo o mito <strong>do</strong> <strong>de</strong>us Theuth, que levou a escrita para o rei Thamous <strong>do</strong> Egito. Esse<br />

lhe pe<strong>de</strong> que <strong>de</strong>clare a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tal <strong>de</strong>scoberta: “um conhecimento (máthema) que<br />

terá por efeito tornar os egipcios mais instruí<strong>do</strong>s e mais aptos para rememorar:<br />

memória e instrução ganham seu remédio (phármakon). Respon<strong>de</strong> Thamous: “Tal coisa<br />

tornará os homens esqueci<strong>do</strong>s, pois <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> cultivar a memória (...). Transmites uma<br />

75


aparência <strong>de</strong> saber, e não a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 2 Com esse mito, Sócrates tenta convencer Fedro<br />

<strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> chegar ao justo, o bom e o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro pela via <strong>da</strong> escrita, já que ela<br />

vaga sem pai, indiscrimina<strong>da</strong>mente. A memória, para Platão, é a compreensão viva <strong>da</strong><br />

alma. Assim “só há sabe<strong>do</strong>ria na alma e nunca em escrituras”. Daí a supremacia <strong>do</strong><br />

conhecimento oral (ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro) em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> escrita (aparência). Ao mesmo<br />

tempo, o lógos é trata<strong>do</strong> como um corpo vivo: “ter um corpo que seja o seu”.<br />

Derri<strong>da</strong> retoma esse mito platônico apresenta<strong>do</strong> no Fedro fazen<strong>do</strong> uma crítica à<br />

tradição platônica oci<strong>de</strong>ntal que preconizaria, segun<strong>do</strong> seu argumento, a<br />

irredutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> significante e sua primazia em relação à escrita. Po<strong>de</strong>-­‐se perceber a<br />

presença constante <strong>de</strong> Lacan como referência oculta, nesse livro. Toman<strong>do</strong> como eixo<br />

uma análise minuciosa <strong>da</strong> escrita como Pharmakón ( a um só tempo veneno e remédio),<br />

Derri<strong>da</strong> inverte, entretanto, seu sinal, apontan<strong>do</strong> positivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s exatamente ali on<strong>de</strong><br />

Platão encontrava seus inconvenientes. Por exemplo, na “ausência <strong>de</strong> pai” na escritura e<br />

sua presença na fala. Lacan é acusa<strong>do</strong> por Derri<strong>da</strong> <strong>de</strong> “formalismo estruturalista”. Há<br />

uma belíssima resposta <strong>de</strong> Lacan a respeito <strong>da</strong> diferença entre forma e estrutura,<br />

apresenta<strong>do</strong> em uma conferência proferi<strong>da</strong> na Bélgica em 26 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1977, que<br />

<strong>de</strong>ixo aqui apenas indica<strong>do</strong>.<br />

Proponho, entretanto, como contraponto, outra leitura <strong>do</strong> Fedro mais coerente com<br />

Lacan, que <strong>de</strong>staca a escrita como ikhnos, o sinal, as pega<strong>da</strong>s, as pistas <strong>de</strong> caminhos já<br />

trilha<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> diálogos vivos que forjaram mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser 3 . Essa, me parece, é a dimensão<br />

que Lacan almeja <strong>da</strong>r à escrita: nem o simulacro <strong>do</strong> corpo imagem, nem o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro<br />

incorpóreo, nem mesmo a experiência <strong>do</strong> corpo como substância gozante <strong>da</strong> lalíngua,<br />

mas a dimensão <strong>de</strong> cifra <strong>de</strong>ssa experiência <strong>de</strong> gozo. É <strong>do</strong> sintoma como letra que se trata,<br />

na minha leitura, o filme “O livro <strong>de</strong> cabeceira”. Há, evi<strong>de</strong>ntemente, várias leituras<br />

possíveis, especialmente para um filme complexo como esse, mas tomarei a “licença<br />

poética” <strong>de</strong> tomá-­‐lo como um caso clínico e dividi-­‐lo em alguns recortes:<br />

2 Platão. Fedro. Martin Claret, p. 119<br />

3 Reis Pinheiro, M “Fedro e a escrita”. In: Anais <strong>de</strong> filosofia clássica, vol.2 n. 4, 2008<br />

76


• 1º. recorte: O sintoma que opera <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> selvagem: <strong>do</strong> contingente ao<br />

necessário:<br />

Trata-­‐se, inicialmente, <strong>da</strong> letra no corpo como marca <strong>do</strong> gozo, e suas conseqüências<br />

fantasmáticas. Nagiko, a personagem <strong>do</strong> filme, é cria<strong>da</strong> com uma cena que se repete<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a mais tenra infância, no dia <strong>de</strong> seu aniversário: o pai escreve os seguintes dizeres<br />

em seu corpo: Quan<strong>do</strong> Deus fez o primeiro mo<strong>de</strong>lo em barro <strong>de</strong> um ser humano, Ele pintou<br />

os olhos, os lábios e o sexo. Depois, Ele pintou o nome <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> pessoa para que o <strong>do</strong>no<br />

jamais esquecesse. Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vi<strong>da</strong> o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> barro<br />

pinta<strong>do</strong>, assinan<strong>do</strong> seu próprio nome. Ao mesmo tempo, a mãe ouvia na vitrola, e cantava,<br />

em man<strong>da</strong>rim, o disco que escutava quan<strong>do</strong> conheceu seu pai. A tia lia para ela, antes <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>rmir, o livro <strong>de</strong> cabeceira <strong>de</strong> Shonogan. Aos 4 anos, Nagiko vê uma cena sexual entre<br />

o pai, um escritor, e seu editor chantagista: cena fantasmática que cristaliza sua posição<br />

a um só tempo excluí<strong>da</strong> e i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> à posição masoquista <strong>do</strong> pai diante <strong>do</strong> editor: mito<br />

familiar <strong>do</strong> neurótico. Aos 6 anos, jura que terá, um dia, seu próprio “Livro <strong>de</strong><br />

Cabeceira”.<br />

Vemos, então, que o gozo <strong>da</strong> lalingua materna, a letra que cifra esse gozo, a<br />

produção <strong>da</strong>s primeiras i<strong>de</strong>ntificações e a verificação fantasmática estão presentes.<br />

Como afirma Lacan na aula <strong>de</strong> 21/01/1975 <strong>do</strong> Seminário RSI, o sintoma é a função <strong>do</strong><br />

sintoma, no senti<strong>do</strong> matemático. E o x <strong>da</strong> função “é o que, <strong>do</strong> Inconsciente, po<strong>de</strong> ser<br />

traduzi<strong>do</strong> por uma letra”. Mas, segun<strong>do</strong> Lacan, “qualquer um é suscetível <strong>de</strong> se escrever<br />

como letra”. Da contingência <strong>da</strong> cifra <strong>de</strong> “qualquer um que para <strong>de</strong> não se escrever”,<br />

entretanto, opera-­‐se, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> selvagem, como ele ensina, algo que passará para a<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica <strong>do</strong> necessário: “o que não cessa <strong>de</strong> se escrever”. No caso <strong>de</strong> nossa<br />

personagem, é a própria escrita no corpo que ocupa o lugar <strong>do</strong> x na “função sintoma”.<br />

• 2º. Recorte: A fantasia: essa ca<strong>de</strong>ia in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>de</strong> significações que se chama<br />

<strong>de</strong>stino:<br />

77


O filme mostra, então, a escrita <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino, ou seja, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa <strong>de</strong><br />

Nagiko na tentativa <strong>de</strong> salvar o pai <strong>da</strong> humilhação diante <strong>do</strong> editor. O primeiro mari<strong>do</strong> é<br />

escolhi<strong>do</strong> pelo editor <strong>do</strong> pai, numa “troca <strong>de</strong> favores” aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong>quela suposta por<br />

Dora entre seu pai e o Sr. K. Trata-­‐se <strong>de</strong> um praticante <strong>de</strong> arco e flecha, incapaz <strong>de</strong><br />

reconhecer o valor <strong>da</strong> literatura e <strong>da</strong> escrita que é vital para Nagiko. Na ausência <strong>do</strong> pai,<br />

ela tenta escrever a sau<strong>da</strong>ção ritualística <strong>do</strong>s aniversários no espelho. Seu “Livro <strong>de</strong><br />

cabeceiras” é repleto <strong>de</strong> listas negativas. O mari<strong>do</strong>, inconforma<strong>do</strong>, incen<strong>de</strong>ia seus<br />

escritos. Os papéis são queima<strong>do</strong>s, mas a “substância gozante” resiste ao fogo.<br />

O pai, humilha<strong>do</strong> e subjuga<strong>do</strong> pelo editor, acaba por cometer um suicídio ritual.<br />

Nagiko foge então para Hong Kong e, para manter a tradição <strong>do</strong> pai, obstina-­‐se em<br />

encontrar, nos seus amantes, o calígrafo i<strong>de</strong>al, fazen<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu próprio corpo, o papel. O<br />

que importa para ela é o ato <strong>da</strong> escrita, a caligrafia em si: “a palavra significan<strong>do</strong> chuva<br />

<strong>de</strong>veria cair como chuva. A palavra significan<strong>do</strong> fumaça <strong>de</strong>veria cair como fumaça”.<br />

Nagiko repete o <strong>de</strong>stino paterno, fazen<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> troca sexual, receben<strong>do</strong> como<br />

“mais <strong>de</strong> gozar” a escrita em seu corpo.<br />

Aqui, evi<strong>de</strong>ncia-­‐se a montagem fantasmática <strong>do</strong> tipo histérico, sustentan<strong>do</strong> o “pai<br />

castra<strong>do</strong>” pela via <strong>do</strong> sintoma. Sintoma que <strong>de</strong>safia o discurso <strong>do</strong> Mestre, na medi<strong>da</strong> em<br />

que extrai o gozo como mais valia <strong>da</strong> suposta exploração <strong>do</strong> Outro. Sintoma metáfora –<br />

que em sua vertente significante seria passível <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração, na medi<strong>da</strong> em que<br />

substitui o irredutível <strong>da</strong> fantasia fun<strong>da</strong>mental –, mas que <strong>de</strong>sliza metonimicamente<br />

enquanto tenta correr atrás <strong>da</strong> “ca<strong>de</strong>ia infinita <strong>de</strong> significações”.<br />

• 3º. Recorte: Ser Sintoma e <strong>de</strong>vastação<br />

Ocorre, então, nova contingência, e Nagiko encontra o amor. Se, entretanto, o<br />

<strong>encontro</strong> é contingente, o que produz uma retificação subjetiva é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> ato.<br />

Jerome se recusa a ocupar o lugar <strong>de</strong> Outro expropria<strong>do</strong>r. Ele não se interessa pela troca<br />

que ela lhe oferece. Embora ele conce<strong>da</strong> em escrever em seu corpo a sau<strong>da</strong>ção<br />

ritualística paterna, propõe-­‐lhe, em contraponto, uma inversão dialética: que ela passe a<br />

78


escrever em seu corpo. Po<strong>de</strong>mos supor aqui uma passagem <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> ter um sintoma<br />

como f(x) a ser o sintoma <strong>de</strong> um homem.<br />

Agora, a partir <strong>da</strong> convocação <strong>de</strong> Jerome, é ela quem passa a escrever em seu<br />

corpo: “Trate-­‐me como a página <strong>de</strong> um livro”. E ela lhe respon<strong>de</strong>: “Agora, serei o pincel,<br />

não só o papel”. A inversão, entretanto, não se dá sem certa escroqueria, certa trapaça,<br />

como brinca Lacan em 1977. Nagiko trama um plano no qual usará o amante para<br />

vingar-­‐se com editor. Ele, literalmente, empresta o corpo para portar a letra/carta que<br />

interpelará o Outro obsceno na fantasia. O plano consiste em que Jerome se torne<br />

amante <strong>do</strong> editor, e seduza-­‐a através <strong>da</strong> escritura <strong>do</strong> “Livro <strong>de</strong> Cabeceira” <strong>de</strong> Nagiko em<br />

seu corpo. Não é o corpo <strong>de</strong> Jerome que é o fetiche <strong>do</strong> editor, mas a letra ali <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>:<br />

“O aroma <strong>do</strong> papel em branco é como o aroma <strong>da</strong> pele <strong>de</strong> um novo amante”. Seriam 13<br />

os livros/poemas escritos no corpo <strong>do</strong> amante.<br />

Quem é, entretanto, engana<strong>do</strong> no “jogo <strong>do</strong> amor”? Para a mulher, o homem po<strong>de</strong><br />

ser uma <strong>de</strong>vastação. Toma<strong>da</strong> pelo ciúme, Nagiko rompe com Jerome e passa ao ato,<br />

voltan<strong>do</strong> a seus amantes. Ain<strong>da</strong> jogan<strong>do</strong> com semblantes, Jerome <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> simular a cena<br />

<strong>de</strong> Romeu e Julieta que, entretanto, torna-­‐se real. Jerome morre envenena<strong>do</strong> com a tinta<br />

usa<strong>da</strong> por sua ama<strong>da</strong> para escrever em seu corpo. Eis a face veneno <strong>do</strong> pharmakon..<br />

Numa <strong>da</strong>s cenas mais fortes <strong>do</strong> filme, o editor rouba o cadáver <strong>de</strong> Jerome, e tira a sua<br />

pele para fazê-­‐la, literalmente <strong>de</strong> papel. As vísceras e outros pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> carne vão para a<br />

lixeira. Incrível transmissão em linguagem cinematográfica, <strong>do</strong> que Lacan nos ensina em<br />

Radiofonia: na<strong>da</strong> melhor para representar o corpo simbólico <strong>do</strong> que o cadáver.<br />

• 4º. Recorte: A que<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro e a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> Sintoma<br />

Mas, para além <strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro incorpóreo, há substância gozante. E quanto ao<br />

gozo cifra<strong>do</strong> no sintoma, é preciso com isso se virar, ou, como diz Lacan, “usar isso até<br />

atingir seu real, até se fartar”. (p.16) No filme, o “uso lógico” <strong>de</strong> Nagiko é aquele<br />

necessário para fazer cair o Outro instituí<strong>do</strong> na personagem <strong>do</strong> editor. Através <strong>da</strong> escrita<br />

<strong>de</strong> 13 livros, nos corpos <strong>de</strong> sucessivos amantes, Nagiko consuma seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

79


vingança no último livro: “O livro <strong>do</strong>s mortos”. Enterra, então, o livro feito com a pele <strong>do</strong><br />

amante e po<strong>de</strong> se separar <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino fantasmático.<br />

O filme acaba em seu 28º. Aniversário, quan<strong>do</strong> o “Livro <strong>de</strong> cabeceira” <strong>de</strong><br />

Shonagon completa 1000 anos. Nagiko diz: “agora posso escrever meu próprio Livro <strong>de</strong><br />

cabeceira”. Na vitrola, toca a música em man<strong>da</strong>rim canta<strong>da</strong> por sua mãe. Seguran<strong>do</strong> nos<br />

braços seu filho, ela escreve, em seu corpo, os mesmos dizeres <strong>do</strong> pai. Como afirma<br />

Lacan: “não há relação sexual, a não ser entre gerações”.<br />

Há alguns comenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>sse filme que vêem nesse final a confirmação <strong>da</strong> idéia<br />

<strong>de</strong> Derri<strong>da</strong> <strong>de</strong> que a escrita é mais ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira porque po<strong>de</strong> prescindir <strong>do</strong> pai. Eu prefiro,<br />

com Lacan, entendê-­‐lo pela via <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação ao sintoma: “sintoma como aquilo que se<br />

conhece melhor” (Sem 24). Ou, em outras palavras, tornar o gozo possível através <strong>da</strong><br />

emen<strong>da</strong> entre ser sinthoma e o real parasita <strong>de</strong> gozo (Sem. 23. p. 71). Para mim, o que<br />

“O Livro <strong>de</strong> cabeceira” ensina é que é possível separar-­‐se <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>da</strong> fantasia. E<br />

quanto ao Pai, fiquemos com Lacan: “Por isso a psicanálise, ao ser bem sucedi<strong>da</strong>, prova<br />

que po<strong>de</strong>mos prescindir <strong>do</strong> Nome-­‐<strong>do</strong>-­‐Pai. Po<strong>de</strong>mos sobretu<strong>do</strong> prescindir com a<br />

condição <strong>de</strong> nos servirmos <strong>de</strong>le”. (Sem. 23, p. 132).<br />

80


A Satisfação <strong>do</strong> Final <strong>de</strong> Análise<br />

Antonio Quinet 1<br />

A satisfação própria ao final <strong>de</strong> análise é o tema que escolhi ao iniciarmos o<br />

cartel 1 <strong>do</strong> passe que agora completa <strong>do</strong>is anos. Essa satisfação, que como tal é<br />

uma forma <strong>de</strong> manifestação <strong>do</strong> real, po<strong>de</strong> ser apreendi<strong>da</strong> no dispositivo <strong>do</strong> passe?<br />

Eis uma pergunta difícil <strong>de</strong> ser respondi<strong>da</strong>, porque o passe é um dispositivo <strong>de</strong> fala,<br />

que é portanto sustenta<strong>do</strong> pelo simbólico <strong>da</strong> linguagem. E<strong>xi</strong>ste uma aporia <strong>da</strong><br />

transmissão <strong>do</strong> ato analítico, que estruturalmente se baseia na dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer<br />

passar algo <strong>de</strong> real pela via <strong>do</strong> significante. No entanto, algo <strong>de</strong>ssa satisfação se<br />

<strong>de</strong>ixa apreen<strong>de</strong>r e passa para o cartel conforme apontei no último Wunsch.<br />

A referência <strong>de</strong> Lacan, extremamente sucinta, que orientou nosso cartel <strong>do</strong><br />

passe, é a <strong>do</strong> Prefácio <strong>da</strong> edição inglesa <strong>do</strong> seminário 11 on<strong>de</strong> escreve sobre uma<br />

satisfação específica: a satisfação <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise. Aliás, ela não só é específica<br />

<strong>de</strong>sse momento <strong>da</strong> análise, como também ela é “a marca” <strong>do</strong> final. 2 Trata-se <strong>de</strong><br />

uma satisfação <strong>do</strong> analisante distinta <strong>da</strong> satisfação <strong>do</strong> sintoma. O sintoma é uma<br />

forma <strong>de</strong> satisfação pois a pulsão se satisfaz no sintoma e isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />

quan<strong>do</strong> o sujeito chega com o seu sintoma satisfeito, porém, insatisfeito com a<br />

satisfação que o seu sintoma lhe provoca.<br />

Quan<strong>do</strong> ele entra em análise ele fica satisfeito com a <strong>de</strong>cifração e com o<br />

processo analítico. É a satisfação <strong>da</strong> associação livre, <strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrimento <strong>do</strong>s fatos,<br />

1<br />

AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil, Membro <strong>do</strong> Fórum Rio <strong>de</strong><br />

janeiro<br />

2<br />

Jacques Lacan, Outros Escritos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.p. 568.<br />

81


<strong>do</strong>s ditos, <strong>da</strong>s fantasias e sua articulação com a ca<strong>de</strong>ia significante <strong>da</strong> sua história. A<br />

satisfação analisante se situa no la<strong>do</strong> <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a satisfação <strong>do</strong> gaio<br />

saber. Este é o gozo <strong>do</strong> <strong>de</strong>ciframento, satisfação relativa ao saber extraí<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

associação livre. Le gai savoir é uma referência <strong>de</strong> Lacan em Televisão, à poesia<br />

provençal, <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> amor cortês, para indicar o manejo significante <strong>da</strong> língua<br />

poética. Em análise correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> inconsciente poeta, espirituoso,<br />

brincalhão que rola e <strong>de</strong>ita e pula na cama elástica <strong>da</strong> língua. O saber que se elabora<br />

na associação livre arranca o sujeito <strong>da</strong> tristeza, pois ele reencontra o fio <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>sejo que estava extravia<strong>do</strong>. Essa satisfação <strong>de</strong> um saber alegre, com brinca<strong>de</strong>iras<br />

<strong>de</strong> linguagem, vai até o final <strong>da</strong> análise.<br />

Em nosso cartel <strong>do</strong> passe, constatamos vários tipos <strong>de</strong> satisfação que o<br />

analisante experimenta que po<strong>de</strong>m ocorrer durante uma análise a começar pela<br />

satisfação terapêutica que correspon<strong>de</strong> ao alívio <strong>do</strong> sofrimento. Em termos<br />

freudianos po<strong>de</strong>mos dizer que se trata <strong>de</strong> uma satisfação liga<strong>da</strong> ao princípio <strong>do</strong><br />

prazer, liberação <strong>da</strong> “libi<strong>do</strong> liga<strong>da</strong>”. Ela po<strong>de</strong> ocorrer quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecimento<br />

<strong>de</strong> certos sintomas e também quan<strong>do</strong> sobrevém momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>salienação <strong>do</strong><br />

Outro, ou seja, a partir <strong>do</strong> momento em que o analisante não se sente mais<br />

submeti<strong>do</strong> a certos ditos <strong>da</strong>s pessoas que ocuparam para ele o lugar <strong>do</strong> Outro, num<br />

exemplo <strong>de</strong> passe, o sujeito que não é mais submeti<strong>do</strong> aos ditos inferiores <strong>do</strong><br />

Outro materno sobre seus órgão genitais. A separação <strong>de</strong>sses significantes operou<br />

uma redução na satisfação <strong>do</strong> supereu quan<strong>do</strong> o sujeito pô<strong>de</strong> dizer não aos<br />

imperativos mortifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Outro. Em outros termos, po<strong>de</strong>mos localizar aqui a<br />

satisfação como alívio <strong>de</strong> <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação, que não se dá apenas uma vez, mas ao<br />

longo <strong>da</strong> travessia <strong>da</strong> análise, sen<strong>do</strong> que o sujeito às vezes – mas nem sempre –<br />

po<strong>de</strong> localizar no tempo seus efeitos. A satisfação ao longo <strong>da</strong> análise é também a<br />

82


satisfação <strong>da</strong> suspensão <strong>da</strong>s inibições e <strong>da</strong> atenuação <strong>da</strong> angústia, como por<br />

exemplo, num caso <strong>de</strong> passe quan<strong>do</strong> <strong>da</strong> que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto olhar.<br />

No Prefácio, Lacan situa o inconsciente no registro <strong>do</strong> real, sob a forma <strong>de</strong><br />

satisfação, em oposição à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: “a miragem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> qual só po<strong>de</strong> se<br />

esperar a mentira, não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim <strong>da</strong><br />

análise” 3 . Esse fim é, portanto, marca<strong>do</strong> por um “Estou satisfeito com essa<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>! Mesmo que não seja lá muito ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, tá bom! Chega! Não quero mais<br />

verificar a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.” Isso coloca um fim à historisterização – termo<br />

que aponta para o caráter fictício <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> - que o analisante faz <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, que<br />

po<strong>de</strong> ser compara<strong>do</strong> ao próprio processo analítico.<br />

É também neste texto que Lacan <strong>de</strong>fine o passe como a historisterização <strong>da</strong><br />

análise – a não confundir com a historisterização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que é efetua<strong>da</strong> na análise.<br />

Alguns passantes e mesmo alguns passa<strong>do</strong>res acham – como pu<strong>de</strong> constatar - que o<br />

dispositivo <strong>do</strong> passe é o lugar <strong>de</strong> um resumo <strong>da</strong> historisterização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, mas não é<br />

o que Lacan esperava <strong>do</strong> passe. Às vezes um testemunho é feito mas sobre o que<br />

ocorreu na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> que o que foi sua análise. Nesses casos fica difícil o<br />

cartel <strong>do</strong> passe po<strong>de</strong>r constatar algo <strong>de</strong> seu final, pois não foi possível apreen<strong>de</strong>r o<br />

fio condutor <strong>de</strong> uma análise e sua relação com as mu<strong>da</strong>nças na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito. No<br />

passe trata-se <strong>da</strong> historisterização <strong>da</strong> análise e a transmissão <strong>da</strong>quilo que permitiu ao<br />

passante ser analista. Nos <strong>do</strong>is casos <strong>de</strong> passe em que houve nomeação foi possível<br />

se apreen<strong>de</strong>r a estrutura e a solução <strong>da</strong> neurose apresenta<strong>da</strong> no final <strong>da</strong> análise e<br />

assim como a relação <strong>de</strong>ssa solução com momentos cruciais ao longo <strong>da</strong> análise e<br />

repercussão <strong>de</strong>sses na vi<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito “O passe, diz Lacan, é a verificação <strong>da</strong><br />

3 Jacques Lacan, Outros Escritos, op. cit, p. 568.<br />

83


histohisterização <strong>da</strong> análise absten<strong>do</strong>-me <strong>de</strong> impor esse passe a to<strong>do</strong>s, porque não<br />

há a to<strong>do</strong>s no caso, mas esparsos disparata<strong>do</strong>s”. Essa expressão <strong>de</strong> Lacan aponta<br />

que os analistas não fazem um to<strong>do</strong>, a <strong>Escola</strong> não to<strong>da</strong> . Não é um Outro<br />

reconstituí<strong>do</strong> para o analisante (como se chegou a propor explicitamente na AMP)<br />

que se <strong>de</strong>parou com a falta <strong>do</strong> outro em sua análise. O dispositivo <strong>do</strong> passe não<br />

constitui a <strong>Escola</strong> como um conjunto, nem a instituição que a sustenta – somos<br />

uma coleção <strong>de</strong> “esparsos disparata<strong>do</strong>s”.<br />

Ca<strong>da</strong> passante privilegia um aspecto em sua historisterização <strong>da</strong> análise<br />

assim como também encontramos várias indicações no ensino <strong>de</strong> Lacan <strong>do</strong> que<br />

po<strong>de</strong> acontecer no final <strong>da</strong> análise: a travessia <strong>da</strong> fantasia, a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto a, o<br />

<strong>encontro</strong> com a inconsistência <strong>do</strong> Outro, a i<strong>de</strong>ntificação com o sintoma, etc. O<br />

mais difícil é não nos <strong>de</strong>ixarmos influenciar por essas indicações – e isso vale tanto<br />

para os passantes, quanto para os passa<strong>do</strong>res e para o cartel <strong>do</strong> passe – para não<br />

distorcermos o passe e o transformarmos numa verificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />

padrões <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise. O passe aponta justamente para o oposto disso: é um<br />

anti-padrão radical.<br />

Quan<strong>do</strong> Lacan diz historisterização – vale lembrar - também é o caso a<br />

caso também: ca<strong>da</strong> um o fará <strong>de</strong> sua maneira, privilegian<strong>do</strong> alguns aspectos <strong>de</strong> sua<br />

análise e não evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> outros. A histohisterização é forçosamente não to<strong>da</strong>.<br />

Não se trata <strong>de</strong> uma elaboração <strong>da</strong> análise, que cabe mais ao cartel <strong>do</strong> passe, que é<br />

o júri, <strong>do</strong> que propriamente falan<strong>do</strong> ao passante, e muito menos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>r. É um<br />

problema quan<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong>r passa a teorizar pois po<strong>de</strong>, assim impedir a passagem<br />

<strong>do</strong> testemunho <strong>do</strong> passante até o cartel <strong>do</strong> passe.<br />

84


“Deixei à disposição, diz Lacan, para testemunhar <strong>da</strong> melhor maneira<br />

possível sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa”. Ao falar sobre ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa, não há uma<br />

<strong>de</strong>squalificação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. É uma constatação: não se po<strong>de</strong> distinguir totalmente a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mentira. O sujeito testemunha <strong>de</strong>ssa ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa. Ele sabe que a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é mentirosa mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Trata-se <strong>da</strong>quilo <strong>do</strong> qual o<br />

passante foi constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s significantes <strong>do</strong> Outro e a partir <strong>do</strong>s quais você<br />

fez a suas escolhas, ou seja, aquilo que os gregos chamavam <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, no qual o<br />

sujeito é mais fala<strong>do</strong> <strong>do</strong> que fala, mais agi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que age, etc. Consi<strong>de</strong>rar o <strong>de</strong>stino<br />

como uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa já é uma forma <strong>de</strong> você se <strong>de</strong>salienar <strong>do</strong> Outro, lá<br />

on<strong>de</strong> está inscrita sua história ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, que no entanto, mente – ela mente sobre<br />

o que é o ser.<br />

O que interrompe a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> na análise não é o esgotamento ou<br />

cansaço e sim o que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> satisfação. É o momento em que há<br />

transformação <strong>da</strong> valência <strong>do</strong> gozo, <strong>do</strong> gozo que faz sofrer ao gozo que faz fruir. É<br />

você passar <strong>do</strong> gozo trágico ao gozo <strong>do</strong> entusiasmo – afeto lacaniano<br />

imprescindível ao analista. É uma satisfação – que é uma satisfação <strong>de</strong> fim – que<br />

marca um corte na satisfação <strong>da</strong> transferência, na medi<strong>da</strong> em que a busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está vincula<strong>da</strong> à satisfação que o amor <strong>de</strong> transferência promove.<br />

O amor <strong>de</strong> transferência trás uma satisfação: a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se dá sob o<br />

signo <strong>de</strong> Eros, nos <strong>de</strong>sfilamentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo suporta<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor que<br />

sempre encontra seus sinais <strong>de</strong> reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Para o sujeito abrir mão <strong>de</strong>ssa<br />

satisfação amorosa, ela <strong>de</strong>ve encontrar uma outra satisfação. Há uma per<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

sofrimento promovi<strong>do</strong> pela análise ao transformar como diz Freud a infelici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

numa miséria banal. Quan<strong>do</strong> se faz essa passagem há uma diminuição <strong>do</strong> valor <strong>do</strong><br />

sofrimento, mas não é uma mu<strong>da</strong>nça: você continua com a miséria, apesar <strong>de</strong> ela<br />

85


estar banaliza<strong>da</strong>. A satisfação <strong>de</strong> fim não é a redução <strong>do</strong> sofrimento que<br />

acompanha a redução <strong>do</strong> sintoma, como propõe Lacan no que concerne a<br />

operação analítica sobre este. Ela é outra coisa, ela marca uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong><br />

comuta<strong>do</strong>r, ela não é vincula<strong>da</strong> a alienação significante, e sim à separação em<br />

relação ao Outro.<br />

Em um caso <strong>de</strong> passe, o cartel <strong>de</strong>tecta uma frase <strong>do</strong> testemunho que aponta<br />

para uma conclusão <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise: “Eu sou...”, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>-cisão <strong>do</strong> ser. Esta afirmação foi possível a partir <strong>de</strong> uma autorização <strong>de</strong> gozo<br />

não mais acompanha<strong>da</strong> <strong>do</strong> afeto <strong>da</strong> vergonha. O sujeito saiu <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> ser o<br />

objeto <strong>da</strong> vergonha <strong>do</strong> Outro materno. Essa satisfação correspon<strong>de</strong> ao “sal<strong>do</strong><br />

cínico” <strong>do</strong> gozo permiti<strong>do</strong> 4 , ou seja, sem o Outro. Neste caso, o efeito no gozo se<br />

vincula à pulsão escópica: houve um esvaziamento <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> olhar, que se<br />

expressa em uma fórmula significante cria<strong>da</strong>, pelo sujeito, na qual ele indica não<br />

estar mais na mira <strong>do</strong> Outro. Em outro caso <strong>de</strong> passe, a satisfação que marca o fim<br />

é vincula<strong>da</strong> à criação, a uma invenção própria <strong>do</strong> sujeito e, como tal, <strong>de</strong>svincula<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>s significantes <strong>do</strong> Outro paterno, aos quais ele se encontrava subjuga<strong>do</strong>.<br />

Algumas operações significantes efetua<strong>da</strong>s pelo sujeito atestam a presença <strong>do</strong> fio<br />

condutor <strong>da</strong> análise até sua conclusão final. Assim foi possível averiguar a travessia<br />

<strong>do</strong> sujeito em relação à voz <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong> qual ele se separa. A mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> valência<br />

<strong>de</strong> gozo se vincula neste caso à pulsão invocante e à que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto voz.<br />

No início <strong>do</strong> Seminário 20, Lacan se refere à satisfação <strong>do</strong> seu “não querer<br />

nem saber”, que é a própria expressão <strong>do</strong> recalque. O inconsciente vai<br />

evi<strong>de</strong>ntemente continuar se manifestan<strong>do</strong>, como nossos AE nos mostraram ao<br />

4 Jacques Lacan, 1967.<br />

86


elatarem suas formações <strong>do</strong> inconsciente em Roma e Fortaleza – lapsos e sonhos<br />

durante o procedimento <strong>do</strong> passe. O sujeito sabe que ele não disse tu<strong>do</strong>, mas está<br />

satisfeito não apenas com o que já disse e a que chegou mas também está satisfeito<br />

com seu recalque. “É somente, diz Lacan, quan<strong>do</strong> o seu (“não quero nem saber”)<br />

lhe aparece como suficiente que você... se <strong>de</strong>staca normalmente <strong>de</strong> sua análise”. 5 O<br />

“suficiente” correspon<strong>de</strong> aqui ao que é o satisfatório <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise, a um “é<br />

suficiente, estou satisfeito” – satisfação <strong>do</strong> saber adquiri<strong>do</strong>, mesmo saben<strong>do</strong> que<br />

resta a saber... e, no entanto, está bem assim. E o sujeito <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> estar insatisfeito<br />

com o que sabe e sai contente com isso. Quer também dizer que você está<br />

satisfeito com seu sintoma, ou seja, sua maneira <strong>de</strong> gozar <strong>do</strong> inconsciente, até para<br />

saber li<strong>da</strong>r com ele <strong>de</strong> uma maneira que não seja sofrimento.<br />

A análise po<strong>de</strong> chegar “ao ponto em que o bem-dizer satis-faça”. 6 Eis uma<br />

satisfação <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> análise: ela é relativa ao manejo <strong>da</strong> língua como bem-dizer que<br />

satisfaz o sujeito em se dizer (“eu sou...”) ou dizer seu sintoma (forma <strong>de</strong> gozo).<br />

Nesse termo <strong>de</strong> Lacan, encontramos também o fazer que nos remete ao saber fazer<br />

com o sintoma. Quan<strong>do</strong> o sujeito está no processo analítico ele está no “não basta”<br />

e sempre procura um dizer melhor, um dizer a mais que respon<strong>da</strong> a esse “não<br />

basta”. No final <strong>de</strong> análise o bem-dizer que satisfaz permite o “Basta!”, ou melhor<br />

dizen<strong>do</strong>, ele produz esse “Basta” cuja satisfação marca o final <strong>de</strong> análise. O bem<br />

dizer <strong>do</strong> seu sintoma não ocorre sem a histohisterização que dá conta <strong>da</strong> história <strong>do</strong><br />

seu sintoma, <strong>da</strong> sua fantasia, <strong>da</strong>s ficções secreta<strong>da</strong>s pelo inconsciente durante a<br />

análise, até que se chega ao bem-dizer <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um satis-<br />

fazer. Essa satis-fação, é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> real, <strong>de</strong> uma satisfação no fazer. Trata-se <strong>de</strong><br />

5 Jacques Lacan, Seminário 20, Seuil, p. 9.<br />

6 Jacques Lacan, “...Ou pire”, Autres écrits, p. 551.<br />

87


um fazer com seu sintoma. Essa satisfação <strong>do</strong> fazer po<strong>de</strong>mos apro<strong>xi</strong>má-la <strong>do</strong> que<br />

diz Freud <strong>do</strong> que se espera <strong>de</strong> uma análise: po<strong>de</strong>r amar e trabalhar. Parece pouco? Mas<br />

é muito! Eis um fazer <strong>do</strong> real que satisfaz e po<strong>de</strong> por um fim à busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

que é sempre mentirosa.<br />

A satisfação <strong>de</strong> final <strong>de</strong> análise está para além <strong>da</strong>quilo que caracteriza o<br />

<strong>de</strong>sejo inconsciente sempre insatisfeito ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong> significantes, guloso <strong>de</strong><br />

instrumentos <strong>de</strong> gozo: colares, amantes, carros e ... saber. O fala-a-ser cambia seu<br />

gozar – este novo gozar é um gozar <strong>de</strong>svincula<strong>do</strong> <strong>do</strong> gozo (suposto) <strong>do</strong> Outro. A<br />

que<strong>da</strong> <strong>do</strong> sujeito suposto gozar é a condição <strong>da</strong> satisfação <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise. Não<br />

se trata <strong>da</strong> promessa <strong>de</strong> um gozo-to<strong>do</strong> <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> necessariamente à <strong>de</strong>cepção, ou<br />

seja, não se trata <strong>de</strong> um empuxe-ao-gozo, e sim <strong>de</strong> um gozo que leva em conta a<br />

castração, um gozo castra<strong>do</strong>. Entretanto é um gozo que satisfaz – é um gozo<br />

satisfatório, permiti<strong>do</strong>, em o Outro.<br />

A satisfação <strong>de</strong> fim confere ao gozo uma coloração e vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> que se<br />

opõem ao negror e a mortificação <strong>da</strong> relação <strong>do</strong> significante com o gozo tanto na<br />

carne quanto na mente. Essa satisfação tem várias vertentes:<br />

- a vertente que acompanhou a travessia <strong>da</strong> análise e o <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong><br />

sofrimento <strong>do</strong> sintoma, <strong>da</strong> suspensão <strong>da</strong> inibição e <strong>da</strong> atenuação <strong>da</strong> angústia, como<br />

testemunhou Sílvia Franco em seus <strong>de</strong>poimentos públicos.<br />

- a vertente que diz respeito á sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>:- o sujeito está satisfeito com sua<br />

maneira <strong>de</strong> gozar sexualmente – é o que pu<strong>de</strong>mos verificar a partir <strong>do</strong> testemunho<br />

<strong>do</strong>s passantes. Ele não está mais nem na insatisfação nem na impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> e nem<br />

na metonímia <strong>de</strong>svaira<strong>da</strong> <strong>de</strong> transar com to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O sujeito po<strong>de</strong> enfim<br />

consentir com um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> gozar outrora recusa<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. Essa<br />

88


vertente <strong>da</strong> satisfação sexual é extremamente variável, mas ela sempre traz a paz.<br />

Final <strong>da</strong> guerra: guerra <strong>do</strong>s sexos, guerra consigo mesmo. Evi<strong>de</strong>nte que é uma paz<br />

que não impe<strong>de</strong> nem a batalha nem <strong>de</strong> ir à luta!<br />

- vertente <strong>do</strong> saber. Depois <strong>de</strong> várias voltas em sua história, recor<strong>da</strong>ções,<br />

fantasias e heranças ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> transforma<strong>da</strong>s em sua história, ou seja, após a<br />

historisterização <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> seu lugar na genealogia, o sujeito se dá por<br />

satisfeito. Ele se dá por satisfeito com o saber construí<strong>do</strong> e satisfeito com a<br />

in<strong>de</strong>cidibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua verificação. Ele se dá por satisfeito com a elaboração <strong>do</strong><br />

saber sobre seu sintoma e <strong>de</strong> seu limite – seu não-querer-saber.<br />

- vertente <strong>de</strong> lalíngua. Nos passes que escutamos no nosso cartel, pu<strong>de</strong><br />

constatar a satisfação linguageira correspon<strong>de</strong>nte ao inconsciente como uma<br />

elucubração sobre lalíngua. Esse inconsciente lalinguageiro é um trabalha<strong>do</strong>r<br />

incansável, como o <strong>de</strong>fine Lacan. Esse trabalho – Arbeit – termo tantas vezes<br />

emprega<strong>do</strong> por Freud – não é um trabalho força<strong>do</strong>, como o trabalho <strong>de</strong> luto,<br />

penoso, sofri<strong>do</strong>. O trabalho <strong>de</strong> lalíngua é – digamos – afreudisíaco! Nesse significante<br />

po<strong>de</strong>mos escutar aí também o gozo dionisíaco. E on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> verificar esse gozo<br />

é na letra <strong>do</strong> sintoma – a maneira como ca<strong>da</strong> um goza “lalinguamente” <strong>de</strong> seu<br />

inconsciente.<br />

89


MESAS SIMULTÂNEAS<br />

90


“Fazer uma Escolha ou Permanecer na Dúvi<strong>da</strong>?”<br />

Rainer Melo 1<br />

"No te pue<strong>do</strong> compreeen<strong>de</strong>r, corazón loco,<br />

yo no pue<strong>do</strong> compreen<strong>de</strong>r como se pue<strong>de</strong> querer <strong>do</strong>s mujeres a la vez y no estar loco,<br />

merezo una explicacion porque es impossible seguir con las <strong>do</strong>s".<br />

(Corazón Loco -­‐ Bebo Val<strong>de</strong>z y Diego Cigala)<br />

O caso que ilustra este trabalho é <strong>de</strong> um sujeito (42), casa<strong>do</strong> há 22 anos, que<br />

chega à análise queixan<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong> intenso sofrimento, atormenta<strong>do</strong> pela dúvi<strong>da</strong> em<br />

relação à sua divisão entre duas mulheres que ama, ca<strong>da</strong> uma diferente, perdi<strong>do</strong> na<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> escolha. Uma, é esposa e mãe, representa segurança; a outra é a<br />

mulher, amor proibi<strong>do</strong>, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> arriscar.<br />

O caso retrata a dúvi<strong>da</strong> sistemática, metódica e estrutural <strong>do</strong> sujeito que se<br />

exprime na vi<strong>da</strong> amorosa, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre a esposa e a outra, ou seja,<br />

a divisão subjetiva exprimin<strong>do</strong>-­‐se na divisão <strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> amor. O problema <strong>da</strong> divisão<br />

subjetiva estaria facilmente soluciona<strong>do</strong> se o sujeito fizesse a escolha. A ironia consiste<br />

no fato <strong>de</strong> um homem possuir duas mulheres e, no entanto, continuar insatisfeito.<br />

Freud 1 afirma: “A linguagem <strong>de</strong> uma neurose obsessiva, ou seja, os meios pelos<br />

quais expressa seus pensamentos secretos, presume-­‐se ser apenas um dialeto <strong>da</strong><br />

linguagem <strong>da</strong> histeria (...)” Continua: “A variante <strong>da</strong> neurose histérica é a neurose<br />

1 Psicanalista membro <strong>da</strong> EPFCL/ AFCL. Psicóloga. Licenciatura em Psicológia CES/ JF) Pós-Graduação em<br />

<strong>Psicanálise</strong> (CES/JF).<br />

91


obsessiva” 2 . É um pensamento contínuo, em que há uma satisfação libidinal, uma<br />

copulação <strong>de</strong> significantes. As idéias obsessivas que vêm sem cessar, os rituais, são para<br />

evitar que pense. O sujeito, para entrar em análise, é necessário entrar para o discurso<br />

histérico, ou seja, o sujeito precisa ser histeriza<strong>do</strong>.<br />

Caso Clínico<br />

O sujeito se apresenta queixan<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong> se sentir dividi<strong>do</strong> entre sua esposa, <strong>de</strong><br />

origem tradicional e rica, e uma mulher jovem, <strong>de</strong> família simples e pobre, ambas<br />

inteligentes e bonitas. A primeira representa o aconchego familiar, mãe <strong>de</strong> seus filhos e<br />

companheira <strong>de</strong> 22 anos. A outra representa o novo, o <strong>de</strong>safio, o proibi<strong>do</strong>. Ama as duas,<br />

não consegue saber qual a preferi<strong>da</strong>, pois ama ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong> forma intensa.<br />

Teme fazer uma escolha e arrepen<strong>de</strong>r-­‐se. As duas cobram uma posição que não<br />

consegue assumir, fica dividi<strong>do</strong>, mente a ponto <strong>de</strong> confundir o que é sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Fica<br />

em circuito fecha<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual não consegue sair, mas essa é uma estratégia que utiliza<br />

para manter seu <strong>de</strong>sejo impossível sem fazer uma escolha. É a forma <strong>de</strong> estar sempre em<br />

outro lugar para não correr risco. “O obsessivo usa a manobra covar<strong>de</strong> <strong>de</strong> não correr<br />

riscos, e<strong>xi</strong>min<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo; se ele não arrisca não goza, e o gozo <strong>do</strong> qual se priva é<br />

transferi<strong>do</strong> ao outro imaginário, que assume como gozo <strong>do</strong> espetáculo” 3 .<br />

Carmen Gallano 4 <strong>de</strong>staca que “a análise é o lugar on<strong>de</strong> o obsessivo po<strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus pensamentos, histerizar-­‐se, passan<strong>do</strong> pelo discurso histérico.”<br />

92


Constelação Familiar<br />

Lacan <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a constelação <strong>do</strong> sujeito é forma<strong>da</strong> na tradição familiar pela<br />

narração <strong>de</strong> certo número <strong>de</strong> traços que especificam a união <strong>do</strong>s pais. A constelação<br />

originária que presidiu ao nascimento <strong>do</strong> sujeito, ao seu <strong>de</strong>stino, quase à sua pré-­‐<br />

história, as relações familiares fun<strong>da</strong>mentais que estruturam a união <strong>do</strong>s seus pais<br />

mostram ter relação precisa e <strong>de</strong>finível com o que aparece como sen<strong>do</strong> o mais<br />

fantasmático <strong>do</strong> cenário imaginário ao qual chega como solução <strong>da</strong> angústia.<br />

O sujeito (Paul) vem <strong>de</strong> família tradicional. O pai, filho <strong>de</strong> imigrantes que<br />

fizeram fortuna, é professor universitário e empresário. A mãe, fina e educa<strong>da</strong>, pertence<br />

a uma família tradicional, rica e <strong>de</strong> prestigio. Quan<strong>do</strong> jovem, o pai <strong>do</strong> sujeito também<br />

ficara dividi<strong>do</strong> entre duas mulheres, preferin<strong>do</strong> escolher aquela que lhe <strong>de</strong>sse prestigio<br />

na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esse pai, homem educa<strong>do</strong>, mas autoritário, impunha suas <strong>de</strong>cisões que<br />

eram acata<strong>da</strong>s pela mulher. O sujeito sempre ouviu <strong>de</strong> sua mãe: “A família tem <strong>de</strong> ser<br />

preserva<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ve ficar acima <strong>de</strong> qualquer interesse”, dito materno que o sujeito sempre<br />

traz para sua análise e lhe provoca culpa, conflitos e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas suas <strong>de</strong>cisões.<br />

Observa que as duas mulheres com as quais se relaciona são como o pai, autoritárias, e<br />

lhe provocam me<strong>do</strong>, afirma ter “me<strong>do</strong> <strong>de</strong>las como <strong>do</strong> pai.” A lembrança <strong>da</strong>s atitu<strong>de</strong>s<br />

autoritárias <strong>do</strong> pai é trazi<strong>da</strong> para a análise, como no sonho que o sujeito relata, dividi<strong>do</strong><br />

em três níveis: No primeiro nível, no quintal <strong>de</strong> sua casa, há um lugar proibi<strong>do</strong> para<br />

brincar. Mesmo com hesitação, consegue ultrapassar. No segun<strong>do</strong> nível, vê surgir, numa<br />

espécie <strong>de</strong> névoa, um homem, uma mulher e duas crianças. Tenta tocar o homem, que<br />

93


lhe diz: Você não po<strong>de</strong> ultrapassar o limite e me tocar. Sente calafrio, obe<strong>de</strong>ce e não se<br />

apro<strong>xi</strong>ma. Desse segun<strong>do</strong> nível, vê o terceiro nível cerca<strong>do</strong> em fogo, faz o sinal <strong>da</strong> cruz e<br />

o me<strong>do</strong> se esvai. Nas associações, o pai autoritário e o temor, a lembrança <strong>do</strong>s castigos<br />

impostos. Em um <strong>de</strong>les, Paul recusava <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> alimento. To<strong>do</strong>s estão à mesa, o pai<br />

se levanta, coloca o rosto <strong>da</strong> criança <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> prato e, em segui<strong>da</strong>, o <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pé como<br />

castigo, o rosto sujo, olhan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s à mesa, paralisa<strong>do</strong>. Pergunta<strong>do</strong> sobre a reação <strong>da</strong><br />

mãe nessas ocasiões, respon<strong>de</strong> que ela nunca interferia nas atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> pai. Os ditos <strong>da</strong><br />

mãe estão sempre consigo, afirma.<br />

O obsessivo se mortifica, coloca-­‐se no lugar <strong>da</strong> falta <strong>do</strong> Outro, é uma forma <strong>de</strong><br />

salvar o Outro. Não só como a castração <strong>da</strong> mãe, mas a inconsistência <strong>do</strong>s ditos <strong>da</strong> mãe.<br />

Não po<strong>de</strong> pedir na<strong>da</strong>, para não mostrar a sua falta, diferentemente <strong>da</strong> histérica que<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> sempre. Se o obsessivo mostra a falta, vai ficar evi<strong>de</strong>nte que ele não é o falo, o<br />

falo como símbolo <strong>da</strong> falta <strong>do</strong> Outro. Aceitar ser o falo é condição para não ce<strong>de</strong>r ao<br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

Paul casou-­‐se jovem, ain<strong>da</strong> universitário, porque sua namora<strong>da</strong>, Cal, se<br />

engravi<strong>da</strong>ra. Ain<strong>da</strong> hoje “admira sua mulher, acha-­‐a lin<strong>da</strong>, sente atração e gosta <strong>de</strong> sexo<br />

com ela”. Tu<strong>do</strong> caminhou bem por alguns anos. Depois Paul começou a sentir “certas<br />

estranhezas”, como o corpo separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua cabeça, os pensamentos invadirem o corpo,<br />

as idéias obsessivas, hesitações, dúvi<strong>da</strong>s, ruminações. A partir <strong>da</strong>í, começou interessar-­‐<br />

se por outras mulheres, até que <strong>encontro</strong>u a jovem Nina, cuja relação dura há cinco anos.<br />

A esposa, ao saber, resolveu engravi<strong>da</strong>r e o sujeito prossegue com suas hesitações,<br />

94


sentin<strong>do</strong>-­‐se culpa<strong>do</strong> e dividi<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Freud, o que caracteriza o sintoma obsessivo<br />

são as dúvi<strong>da</strong>s, a ruminação e a incerteza.<br />

Paul e o Homem <strong>do</strong>s Ratos<br />

O caso <strong>de</strong> Paul nos remete ao famoso caso <strong>de</strong> Freud, “O Homem <strong>do</strong>s Ratos”, com<br />

o qual verificamos alguma semelhança. No HR, cuja problemática é típica <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong><br />

neurose obsessiva, on<strong>de</strong> aparece a ambivalência afetiva caracteriza<strong>da</strong> por Freud como a<br />

clivagem entre o amor consciente e o ódio inconsciente, aparece essa ambivalência em<br />

relação ao pai e a senhora que ele venera. Desse mo<strong>do</strong> manifesta os sintomas como<br />

forma <strong>de</strong> apreensões obsessivas, me<strong>do</strong> <strong>de</strong> que aconteça algo ruim com a senhora ou que<br />

o pai morra (que já estava morto). No caso <strong>de</strong> Paul vêm sempre o me<strong>do</strong> e as dúvi<strong>da</strong>s. "Se<br />

eu sair <strong>de</strong> casa algo ruim po<strong>de</strong> acontecer com minha mulher e meus filhos. Minha<br />

mulher vai <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me amar e ficar com outro. E a outra, se eu <strong>de</strong>ixá-­‐la? Algo vai<br />

faltar”.<br />

A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir entre os <strong>do</strong>is objetos <strong>de</strong> amor aparece em um<br />

sonho, no qual o sujeito se vê numa estra<strong>da</strong>, numa encruzilha<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> aparecem, <strong>de</strong> um<br />

la<strong>do</strong>, a mulher, mãe <strong>de</strong> seus filhos e, <strong>do</strong> outro, a analista, objeto proibi<strong>do</strong>, algo intocável.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, se constitui o analista como objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, constituição essencial<br />

para o estabelecimento <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> analista na experiência psicanalítica e o sujeito<br />

coloca o analista em seu sintoma.<br />

A formação <strong>do</strong> sintoma obsessivo alcança o triunfo quan<strong>do</strong> logra unir a<br />

95


proibição com a satisfação, <strong>de</strong> tal forma que o que fora originalmente um man<strong>da</strong>mento<br />

<strong>de</strong>fensivo, ou uma proibição, adquire a significação <strong>de</strong> uma satisfação, cujo efeito<br />

colabora com esses enlaces artificiosos. Encontramos a ambivalência no conflito<br />

obsessivo entre <strong>do</strong>is impulsos: o <strong>de</strong> ódio e o <strong>de</strong> amor. Freud <strong>de</strong>scobriu que, mesmo na<br />

e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is opostos, é na presença <strong>do</strong> ódio que se encontra a base <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

sintoma obsessivo, como resposta sempre à mão para se <strong>de</strong>frontar com signos <strong>de</strong> que o<br />

Outro não é um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> gozo.<br />

O sujeito tem sempre a sensação estranha <strong>de</strong> estar e não estar em lugar<br />

nenhum, "fico pulan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> para outro, mentin<strong>do</strong> para não <strong>de</strong>cidir entre a<br />

mulher, esposa rica, e a jovem pobre. Sempre confuso, sob pressão, com a sensação <strong>de</strong><br />

estar assenta<strong>do</strong> numa caixa <strong>de</strong> pólvora pronta a explodir, como nos sonhos se repetin<strong>do</strong><br />

em encruzilha<strong>da</strong>s, driblan<strong>do</strong> a morte.<br />

O sujeito <strong>da</strong> estratégia obsessiva 5 tentará enganar a morte. Para tanto, nunca<br />

estará on<strong>de</strong> se joga o jogo e, por isso, quase na<strong>da</strong> <strong>do</strong> que ocorre lhe interessa, tu<strong>do</strong> o que<br />

realmente importa per<strong>de</strong> o senti<strong>do</strong>. E, em seu lugar, esses pequenos e cotidianos<br />

absur<strong>do</strong>s sintomáticos se eternizam na vã tentativa <strong>de</strong> se preservar, abdican<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sejo que, por outro la<strong>do</strong>, lhe dá alimento. E sempre adian<strong>do</strong>: mais tar<strong>de</strong>, mais um dia...<br />

Trava-­‐se uma luta, constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> idéias contrarias expiatórias que ocupam to<strong>da</strong><br />

sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mental diurna e noturna. “O obsessivo pensa avaramente. Ele pensa em<br />

circuito fecha<strong>do</strong>. Ele pensa para ele sozinho” 6 . Esse <strong>de</strong>bate permanente opera-­‐se em um<br />

clima <strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>s bem sistemáticas, não levan<strong>do</strong> a nenhuma certeza. Surge nessas<br />

96


dúvi<strong>da</strong>s sempre uma interrogação, que gera procuras <strong>de</strong> respostas <strong>de</strong> soluções, sen<strong>do</strong><br />

sempre os resulta<strong>do</strong>s insatisfatórios. O obsessivo não tem me<strong>do</strong> apenas <strong>de</strong> cometer<br />

algum ato grave, imposto a ele por suas idéias, mas <strong>de</strong> tê-­‐lo feito <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> inadverti<strong>do</strong>.<br />

“(...) Essa cisalha chega à alma com o sintoma obsessivo, pensamento com o qual a alma<br />

fica embaraça<strong>da</strong>, não sabe o que fazer.” 7<br />

Quinet 8 <strong>de</strong>staca que a obsessão como sintoma é a maneira <strong>de</strong> gozar para um<br />

sujeito, cuja dúvi<strong>da</strong> e a falta <strong>de</strong> certeza impe<strong>de</strong>m seu ato, que é sempre adia<strong>do</strong>. Daí a<br />

obsessão como pensamento se encontra em oposição ao ato. Se o sujeito pensa, o ato<br />

não acontece. Uma análise possibilita que o sujeito fale, ou seja, coloque em palavras o<br />

seu pensamento. É preciso que o gozo passe <strong>do</strong> pensamento para o ato, inverten<strong>do</strong><br />

assim o próprio movimento <strong>de</strong> formação <strong>da</strong> obsessão.<br />

Consi<strong>de</strong>rações<br />

Verificamos no caso apresenta<strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira batalha entre as idéias, que entram<br />

em conflito e paralisam sua vi<strong>da</strong> mental, angustian<strong>do</strong> e inibin<strong>do</strong> possíveis soluções.<br />

Sabemos que não há respostas para as perguntas <strong>de</strong> Paul, porque as perguntas são<br />

sintomas disfarça<strong>do</strong>s. O sintoma não é para ser respondi<strong>do</strong> e sim para ser trabalha<strong>do</strong> em<br />

análise. Paul precisa <strong>de</strong>scobrir que sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong> não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão imediata.<br />

Escolher Nina ou Cal não <strong>de</strong>termina o sucesso <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sucesso<br />

consiste em <strong>de</strong>cifrar seu conflito e <strong>de</strong>scobrir os motivos que o levam sempre a uma<br />

encruzilha<strong>da</strong>.<br />

97


Notas<br />

1 FREUD. Um caso <strong>de</strong> neurose obsessiva (1909:160).<br />

2 FREUD. Disposição á neurose obsessiva. Uma contribuição ao problema <strong>de</strong> escolha <strong>da</strong><br />

neurose (1913:395)<br />

3 LACAN. A <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino (1957: 454).<br />

4 GALLANO. Enfermares Del cuerpo Del sexo. Inédito. (2010: s/p)<br />

5 LACAN. <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino (1957:458)<br />

6 LACAN. Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma (1975:5)<br />

7 LACAN. Televisão (1974:19).<br />

8 QUINET. Zwang und Trieb (1998: 67-76).<br />

Referência Bibliográfica<br />

FREUD, S. (1909) Um caso <strong>de</strong> neurose obsessiva (1909). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

1980. Vol X.<br />

FREUD, S.Um tipo especial <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> objeto feita pelos homens (Contribuições à<br />

psicologia <strong>do</strong> amor.(1911). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> janeiro. 1980. Vol XI.<br />

FREUD, S. Disposição à Neurose Obsessiva. Uma Contribuição ao Problema <strong>de</strong> Escolha <strong>da</strong><br />

Neurose (1913). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> Janeiro. 1980. Vol XII.<br />

FREUD, S. Recor<strong>da</strong>r, Repetir e Elaborar (1914). Imago Editora. Rio <strong>de</strong> janeiro. 1980.<br />

GALLANO, Carmen. Enfermares <strong>de</strong>l cuerpo fuera <strong>de</strong>l sexo: uma clínica <strong>de</strong>l obsessivo<br />

(2010). Roma. 2010. Inédito.<br />

GALLANO, Carmen. Conferência: Estraña el cuerpo. Campo Gran<strong>de</strong>. MS. 2010.<br />

LACAN, Jacques. A <strong>Psicanálise</strong> e seu Ensino. (1957). Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar<br />

Ed. 1998.<br />

98


LACAN, Jacques. O Seminário livro 5: As Formações <strong>do</strong> Inconsciente (1957/1958). Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1999.<br />

LACA.N, Jacques. O Mito Individual <strong>do</strong> Neurótico Lisboa: Assírio e Alvim. 1980<br />

LACAN, Jacques. (1974) Televisão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.<br />

LACAN, Jacques (1975) Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o Sintoma. Opção Lacaniana. São<br />

Paulo, n.19, 1988.<br />

QUINET, Antonio. Zwang und Trieb (1998). Os <strong>de</strong>stinos <strong>da</strong> Pulsão. Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Kalimeros, p. 67-77. 1998.<br />

VALDEZ, Bebo y CIGALA, Diego. Corazón Loco. CD: Lágrimas Negras.<br />

99


O que Marcélio Sabia<br />

Lia Carneiro Silveira 1<br />

O psicanalista, muitas vezes, recebe na clínica <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s relaciona<strong>da</strong>s a aprendizagem<br />

e que po<strong>de</strong>riam ser en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong>s a profissionais diversos como o psicólogo ou o<br />

psicope<strong>da</strong>gogo.<br />

Trata-se <strong>do</strong> momento em que, ao constatar o que enten<strong>de</strong>m como um “déficit <strong>de</strong><br />

aprendizagem”, os pais (ampara<strong>do</strong>s, muitas vezes, pela escola) resolvem procurar um<br />

especialista que possa tratar <strong>de</strong>sse “sintoma”. Para os saberes oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> psicologia, o que<br />

está em jogo aqui é uma <strong>de</strong>fasagem. O processo <strong>de</strong> aquisição <strong>do</strong> conhecimento, tal como<br />

entendi<strong>do</strong> nas abor<strong>da</strong>gens hegemônicas neste campo: tradição experimentalista, -<br />

behaviorismo – cognitivismo, e até algumas leituras freudiana que se centraram num<br />

fortalecimento <strong>do</strong> Ego) é entendi<strong>do</strong> como a consoli<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s respostas e<strong>xi</strong>tosas<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s por um organismo. Essas respostas seriam possíveis <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, por um la<strong>do</strong>, a uma<br />

bagagem hereditária mínima <strong>de</strong> respostas comuns a espécie, e por outro, a interação com um<br />

“meio” que oferece os estímulos necessários. De qualquer forma, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela<br />

aprendizagem, resi<strong>de</strong> no sujeito <strong>do</strong> conhecimento, o eu, a consciência ou a inteligência.<br />

(LAJONQUIÉRE, 1999)<br />

Quan<strong>do</strong> alguma coisa se interpõe entre o estímulo e a resposta (ou seja, não se alcança<br />

o nível optimum espera<strong>do</strong>), o especialista busca neste mesmo “eu” alguma resposta. Já que<br />

ele é entendi<strong>do</strong> numa lógica organicista e maturacionista, logo, o “<strong>de</strong>feito” só po<strong>de</strong> estar num<br />

<strong>de</strong>sses planos. Ou se trata <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento (algo orgânico ou genético -<br />

corpo) ou interferência <strong>de</strong> algum “aspecto psicossocial” (ambiente familiar <strong>de</strong>sajusta<strong>do</strong>,<br />

maus-tratos, etc.) Seja lá qual for a saí<strong>da</strong> encontra<strong>da</strong>, a intervenção vai ter como objetivo<br />

extirpar o sintoma (déficit <strong>de</strong> aprendizagem) e restaurar no eu a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r.<br />

Estamos no discurso <strong>da</strong> ciência, <strong>do</strong> sujeito cartesiano, <strong>do</strong> saber <strong>do</strong> especialista.<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> psicanálise <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum Fortaleza.<br />

100


No entanto, diferentemente <strong>de</strong>ssas profissões, o ofício <strong>da</strong> psicanálise vai <strong>de</strong>marcar<br />

uma diferença radical na forma como po<strong>de</strong>mos acolher as vicissitu<strong>de</strong>s pelas quais um sujeito<br />

passa no seu processo <strong>de</strong> aprendizagem. Também reconhecemos que, nos ditos “problemas <strong>de</strong><br />

aprendizagem” há alguma coisa que emperra, há uma pedra no meio <strong>do</strong> caminho. Po<strong>de</strong> ser<br />

que haja aí, para alem <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pais, um sintoma. Ocorre que sintoma, aqui não é<br />

entendi<strong>do</strong> como um déficit, uma anomalia a ser corrigi<strong>da</strong>. O sintoma, para a psicanálise é um<br />

índice <strong>do</strong> sujeito e <strong>da</strong>s tensões que se revelam entre este e o seu <strong>de</strong>sejo, inconsciente.<br />

O Sintoma na psicanálise<br />

O sintoma já é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>, antes mesmo <strong>da</strong> psicanálise, um importante conceito na<br />

medicina. Com Michel Foucault (1980) vemos como este está conceitua<strong>do</strong> no seio <strong>do</strong> projeto<br />

anatomopatológico <strong>da</strong> medicina, on<strong>de</strong> o sintoma sempre correspon<strong>de</strong> a lesão <strong>de</strong> um órgão,<br />

alteração que precisa ser corrigi<strong>da</strong> para reencaminhar o organismo em direção à normali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A psicanálise nasce <strong>de</strong> um <strong>encontro</strong>: aquele que se dá entre Freud e o sintoma <strong>da</strong>s<br />

histéricas. Destituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> lugar no saber médico, com Freud o sintoma ganhou estatuto <strong>de</strong><br />

mensagem. Porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um texto que remete ao sexual, ou melhor, a uma falha no sexual.<br />

Alem disso, Freud também afirma que os sintomas neuróticos são resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um conflito.<br />

Na premência constante <strong>da</strong>s pulsões, algo não po<strong>de</strong> ser aceito ou por ser incompatível com o<br />

eu ou por afrontar seus padrões éticos. A libi<strong>do</strong> insatisfeita é obriga<strong>da</strong> a aban<strong>do</strong>nar a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e buscar outras vias <strong>de</strong> satisfação. Daí temos uma outra peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sintoma em Freud. O<br />

sintoma é um acor<strong>do</strong>, uma peça <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> engenhosamente escolhi<strong>da</strong>, com <strong>do</strong>is<br />

significa<strong>do</strong>s em completa contradição mutua. (FREUD, 1916, p.421) Assim, a libi<strong>do</strong><br />

consegue encontrar alguma satisfação, embora seja uma satisfação que mal se reconhece<br />

como tal.<br />

Lacan também se interessou por essa face <strong>de</strong> carta en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong> ao Outro (face<br />

simbólica <strong>do</strong> sintoma), mas também soube extrair <strong>da</strong>í a dimensão <strong>de</strong> gozo que o sintoma<br />

presentifica, apontan<strong>do</strong> para uma face real <strong>do</strong> sintoma. No texto intitula<strong>do</strong> “A Terceira”<br />

Lacan (1974, p.24) afirma: o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, na medi<strong>da</strong> em que ele se atravessa<br />

aí para impedir que as coisas an<strong>de</strong>m, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que elas dão conta <strong>de</strong> si mesmas <strong>de</strong><br />

101


maneira satisfatória. Senti<strong>do</strong> aqui não no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> significação, mas no <strong>de</strong> vetor. Ou seja, o<br />

sintoma é um vetor apontan<strong>do</strong> para a presença <strong>do</strong> real.<br />

O Caso Clínico<br />

Os pais <strong>de</strong> Marcélio, 11 anos, me procuram em Junho <strong>de</strong> 2009 porque, segun<strong>do</strong> os<br />

pais “a professora disse que ele precisava <strong>de</strong> psicólogo”. É muito inquieto, não presta atenção<br />

na aula e briga constantemente com os outros alunos. Alem disso, embora esteja cursan<strong>do</strong><br />

pelo quarto ano consecutivo a terceira série, não consegue ler nem escrever. Trata-se <strong>de</strong> um<br />

caso atendi<strong>do</strong> em um serviço público <strong>de</strong> Fortaleza-CE situa<strong>do</strong> em uma região muito carente<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O <strong>de</strong>safio nas entrevistas preliminares foi tentar localizar algo na fala <strong>de</strong> Marcélio que<br />

o implicasse para alem <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong> comportamento en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong> a mim pelos<br />

pais e pela escola e que ele parecia en<strong>do</strong>ssar. Falava muito pouco e, nesse pouco, <strong>de</strong>ixa<br />

entrever que acredita que está ali para ser mais comporta<strong>do</strong>, para parar <strong>de</strong> brigar na escola e<br />

pra conseguir apren<strong>de</strong>r. Peço-lhe para me falar sobre isso, “não conseguir apren<strong>de</strong>r” e<br />

<strong>de</strong>scubro que não se trata simplesmente <strong>de</strong> não conseguir, há uma singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> muito<br />

relevante em sua história. Ele diz: eu sabia ler e escrever, mas um dia o colégio caiu. Tive que<br />

ficar em casa por uns meses e quan<strong>do</strong> eu voltei tinha “esqueci<strong>do</strong> <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>”. Suas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

dizem respeito tanto a leitura como a escrita. Também esquece com freqüência <strong>do</strong> que vai<br />

dizer: às vezes a palavra vem reta na minha cabeça mas na hora <strong>de</strong> dizer sai outra coisa.<br />

A passagem que vai permitir a Marcélio sair <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong>s pais para uma<br />

formulação <strong>de</strong> sua própria questão ocorre certo dia em que ele reconhece uma <strong>da</strong>s pacientes<br />

que aten<strong>do</strong> como sen<strong>do</strong> uma <strong>de</strong> suas vizinhas e me pergunta porquê ela está ali. Respon<strong>do</strong> que<br />

as pessoas vem para cá porque tem alguma coisa que as aflige, que as faz sofrer e vem buscar<br />

aju<strong>da</strong>. Pergunto se é o caso <strong>de</strong>le. Ele diz que tem sim, que ele sofre porque esqueceu algumas<br />

coisas e que acha que eu po<strong>de</strong>ria ajudá-lo a lembrar. Outro fato que lhe intriga é que ele, por<br />

diversas vezes, acor<strong>do</strong>u e estava em pé, em frente a gela<strong>de</strong>ira, por exemplo, e não se lembra<br />

como chegou lá.<br />

102


Esse momento foi um marco na direção <strong>do</strong> tratamento pois, enfim, seu en<strong>de</strong>reçamento<br />

à analista começa a se <strong>de</strong>linear. Agora comparece sozinho à sua análise, sempre preocupa<strong>do</strong><br />

em vir “bonito” para a sessão, segun<strong>do</strong> relato <strong>da</strong> mãe.<br />

Percebemos que, para além <strong>de</strong> uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> alfabetização, o que se verifica no<br />

caso <strong>de</strong> Marcélio é um regressão a uma fase anterior, on<strong>de</strong> algo se fixa no não saber. Para<br />

abor<strong>da</strong>r como isso se dá, é importante tecermos alguns comentários sobre o que a psicanálise<br />

tem a dizer sobre o processo <strong>de</strong> alfabetização.<br />

No texto sobre as afasias, ain<strong>da</strong> num momento pré-psicanalítico, Freud (1915a)<br />

i<strong>de</strong>ntifica o que está em jogo nos diversos momentos <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, num<br />

percurso que vai <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> fala à aquisição <strong>da</strong> escrita. Apren<strong>de</strong>mos a falar, segun<strong>do</strong> ele,<br />

servin<strong>do</strong>-nos <strong>de</strong> uma linguagem própria; criamos, uma espécie <strong>de</strong> dialeto. Fazemos isso<br />

associan<strong>do</strong> uma imagem sonora <strong>da</strong> palavra (que adquirimos <strong>do</strong> outro) a uma sensação <strong>de</strong><br />

inervação <strong>da</strong> palavra, associan<strong>do</strong> diferentes e estranhos sons <strong>de</strong> palavras a um único som que<br />

nós mesmos produzimos. No processo que se segue, passamos a tentar tornar esse som<br />

produzi<strong>do</strong> o mais pró<strong>xi</strong>mo possível <strong>da</strong> linguagem <strong>do</strong>s outros.<br />

O processo <strong>de</strong> aquisição <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> escrita, envolve, segun<strong>do</strong> Freud, uma reedição<br />

<strong>de</strong>sse processo, um segun<strong>do</strong> esforço <strong>de</strong> associação. Associamos as representações obti<strong>da</strong>s ao<br />

pronunciar ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s letras e, <strong>de</strong>ssas associações, percebemos surgirem novas<br />

representações <strong>de</strong> palavras. Reconhecemos no que aí obtemos o som <strong>da</strong> palavra tal como a<br />

conhecíamos, e então, lemos compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> ele, esse processo é facilita<strong>do</strong> pela<br />

semelhança que há entre o dialeto <strong>do</strong>s primeiros anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e a linguagem escrita.<br />

Percebemos que há uma pro<strong>xi</strong>mi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre esse dialeto a que Freud se refere e aquilo<br />

que anos mais tar<strong>de</strong> Lacan vai chamar <strong>de</strong> lalangue 2 . Lalangue não é a linguagem, ela é antes<br />

um banho <strong>de</strong> obsceni<strong>da</strong><strong>de</strong> como diz Colette Soler (2010, p.29) ao se referir a esses uns,<br />

essaim 3 , enxame <strong>de</strong> significantes que a criança recebe <strong>de</strong> primeiro gran<strong>de</strong> outro, a mãe.<br />

lalangue, portanto, não é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> simbólico, mas <strong>do</strong> real. A autora nos adverte que não<br />

2<br />

Neologismo cria<strong>do</strong> por Lacan. O termo “lalangue”, faz referencia a “lalação”, primeiros sons emiti<strong>do</strong>s pelo<br />

bebê.<br />

3<br />

Em Frances há uma homofonia entre “essaim”, enxame e “esse uns”, S1, termo que Lacan utiliza para se<br />

referir ao enxame <strong>de</strong> significantes.<br />

103


se trata, portanto <strong>de</strong> aprendizagem, mas <strong>de</strong> impregnação, <strong>de</strong> marcas que a criança recebe: são<br />

termos que excluem o <strong>do</strong>mínio e a apropriação ativa e, portanto, a i<strong>de</strong>ntificação.<br />

Desses sons sem senti<strong>do</strong> alguns vão se <strong>de</strong>positar, sob a forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>tritos, os primeiros<br />

uns sonoros. Segun<strong>do</strong> Soler (2010) é só num a posteriori, tempo <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o<br />

impossível <strong>do</strong> sexo, que esses uns vão se conectar ao problema <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> sujeito,<br />

especialmente <strong>do</strong> gozo fálico. Aqui não se trata <strong>da</strong> combinatória <strong>do</strong> significante, mas <strong>de</strong>sses<br />

uns erráticos, que se conectam diretamente com o gozo corporal. Nesse litoral que se escreve<br />

entre saber e gozo está em jogo não só a contingência <strong>do</strong> que foi fala<strong>do</strong> pelo outro, mas,<br />

principalmente, a contingência <strong>do</strong> que foi escuta<strong>do</strong>.<br />

Ain<strong>da</strong> durante as entrevistas, fiquei saben<strong>do</strong> (através <strong>do</strong> pai) <strong>de</strong> um acontecimento que<br />

vai retornar várias vezes na fala <strong>do</strong> filho. A família morava em uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> interior: o pai,<br />

a mãe, a filha mais velha e Marcélio filho, então com cerca <strong>de</strong> três anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Certo dia, o<br />

pai está beben<strong>do</strong> em um bar e entra numa briga. Vai até em casa, <strong>de</strong>ixa o filho que estava com<br />

ele no momento, pega uma faca e mata o colega com quem discutiu. Persegui<strong>do</strong> pela policia<br />

ele se escon<strong>de</strong> para livrar o flagrante e <strong>de</strong>pois se entrega. Há três anos ficou saben<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua<br />

sentença: cumpriria pena em regime semi-aberto.<br />

Há cerca <strong>de</strong> tres anos também, nasceu a filha mais nova <strong>do</strong> casal. Na fala <strong>da</strong> mãe o pai<br />

aparece como violento e muito ciumento: chegava em casa bêba<strong>do</strong> e obrigava as crianças a se<br />

ajoelharem e escreverem o alfabeto na pare<strong>de</strong>: “ele ficava rin<strong>do</strong>, parecia um louco”. Diz ain<strong>da</strong><br />

que apanhou muito durante a gravi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> Marcélio: “será que isso tem a ver com o jeito <strong>de</strong>le<br />

ser hoje?”<br />

Aos poucos, Marcélio começa a me falar sobre sua vi<strong>da</strong> na escola e em casa. Me diz<br />

que tem um irmão que está preso, o Daniel. Essa afirmação me surpreen<strong>de</strong> pois nem a mãe<br />

nem o pai tinham me fala<strong>do</strong> <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong>sse irmão. Fala também que o pai tem mais cinco<br />

filhos com outra mulher que conheceu antes <strong>de</strong> sua mãe. Ain<strong>da</strong> sobre a prisão <strong>de</strong> Daniel, faz<br />

uma relação com seu sintoma e afirma: Ele foi preso, no mesmo dia eu fui pra escola, a tia<br />

man<strong>do</strong>u eu ler e eu não sabia mais. Marcélio briga muito na escola, e ao perguntar o porquê<br />

disso ele me diz que os meninos chamam sua mãe <strong>de</strong> rapariga, e me pergunta o que é isso.<br />

Com o meu silêncio, ele me diz noutra pergunta: rapariga num é moça?<br />

104


Com essas informações novas e conflitantes e como Marcélio continua muito cala<strong>do</strong><br />

durante as sessões, sugiro trabalhar com <strong>de</strong>senhos, ao que ele se mostra muito interessa<strong>do</strong>.<br />

Seguem-se ai várias sessões on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>senha várias pessoas, escreve seus nomes (alguns<br />

corretamente, com uma letra bem capricha<strong>da</strong> – O <strong>de</strong>le, o <strong>do</strong> pai) e outros que ele não<br />

consegue escrever e me pe<strong>de</strong> aju<strong>da</strong> – Daniel e Cibita, uma prima com quem ele gosta <strong>de</strong><br />

brincar) <strong>de</strong>pois me fala sobre o que produziu. Noutras sessões ele recorta as figuras,<br />

formamos arvores genealógicas ou encenamos histórias com os personagens que ele<br />

<strong>de</strong>senhou.<br />

Nesses jogos e <strong>de</strong>senhos o que começa a se <strong>de</strong>linear é a duvi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Marcélio sobre<br />

quem é essa família, principalmente sobre esses filho que a mãe teria no interior. Ele diz que<br />

não tem certeza se Daniel é filho ou irmão <strong>de</strong>la, mas acha que são filhos. Ele passa a<br />

investigar isso junto a mãe que explica que eles, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> são seus primos, filhos <strong>de</strong> uma<br />

irmã <strong>de</strong>la.<br />

Outra questão que surge é com relação ao seu nome próprio: “Meu nome é igual ao <strong>do</strong><br />

meu pai e eu não sei porque”, “uma amiga minha falou que esse nome é uma peste”. Certo dia<br />

<strong>de</strong>ixa escapar com um sorriso no rosto que sua mãe (e quase to<strong>do</strong>s na rua) o chamam <strong>de</strong> Bebê<br />

e que ele gosta muito <strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> assim.<br />

Em uma sessão me diz: acho que eu nasci <strong>do</strong>ente, com alguma <strong>do</strong>ença, por que até<br />

meu irmão mais novo sabe mais <strong>do</strong> que eu. Pergunto então: o que você sabe sobre o seu<br />

nascimento? “Eu nasci <strong>da</strong> barriga, me tiraram <strong>de</strong> lá. Tu conhece a novela <strong>do</strong> Zé trovão ? Eles<br />

apostaram uma corri<strong>da</strong>. Se a Ana Raio per<strong>de</strong>sse tinha que <strong>da</strong>r um beijo nele, se ela ganhasse,<br />

num tinha não. Ela per<strong>de</strong>u e eles se beijaram, os cavalos <strong>de</strong>les também, porque tem o mesmo<br />

nome que eles. Pergunto porque ele lembrou disso? Porque foi bom. Acho que é assim, eu<br />

lembro <strong>do</strong> que é bom. O que é ruim eu esqueço”.<br />

Noutra vez, me diz que sua avó man<strong>do</strong>u um reca<strong>do</strong> para seu pai. Os irmãos <strong>do</strong> homem<br />

que ele matou estão queren<strong>do</strong> matar ele. Ele não po<strong>de</strong> ir pescar em... “idubaiu” 4 . A palavra<br />

certa não sai. Ele tenta varias vezes mas automaticamente só sai ‘idubaiu”. Pergunto se ele<br />

quer escrever. Ele escreve: “Dubaiu”. Depois tenta novamente: “Trubaiu”, e me diz: “não é<br />

4 Imagino que ele está fazen<strong>do</strong> referencia ao município cearense <strong>de</strong> Banabuiú.<br />

105


isso. Eu não consigo dizer”. Pe<strong>de</strong> pra ir lá fora perguntar a um vizinho que o acompanhava e<br />

diz: “a palavra certa é Donabuiu”.<br />

Eu marco que ele lembrou <strong>do</strong> buiu, mas esqueceu o Dona. Digo, Dona também é um<br />

nome <strong>de</strong> mulher. Esse significante surge como S1 que articula um enxame, ponto <strong>de</strong><br />

articulação ligan<strong>do</strong>-se a outros uns que apontam para to<strong>da</strong>s as questões <strong>de</strong> Marcélio:<br />

Donabuiú – Banabuiú – ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> o pai matou<br />

Dona – significante que aponta para o feminino<br />

Dedina – a mãe chama-se edina, mas ele escreve assim<br />

Daniel – que, como ele mesmo <strong>de</strong>staca, também escreve com D.<br />

Noutra situação me fala <strong>de</strong> uma cena que assistiu. A irmã mais nova, <strong>de</strong> três anos<br />

ain<strong>da</strong> mama e às vezes <strong>do</strong>rme no peito. Certo dia, conta ele, viu o irmão <strong>do</strong> meio <strong>de</strong>itar na<br />

cama, botar o outro peito para fora e mamar.<br />

Percebemos nessa escansão <strong>do</strong> significantes duas questões se colocam no caso:<br />

1- Marcélio se <strong>de</strong>bate com questões que dizem respeito ao enigma <strong>do</strong> sexo:<br />

sua ascendência, a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> materna e a in<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> limites quanto a<br />

isso. A mãe é rapariga? E esses irmãos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram? Po<strong>de</strong>m os filhos<br />

gozar <strong>do</strong> corpo <strong>da</strong> mãe ? porque ela <strong>do</strong>rme? O que po<strong>de</strong> o pai?<br />

2- Seu sintoma, esquecer o que sabia, irrompe por volta <strong>do</strong>s 7 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

num momento em que essas questões se presentificam: nasce a irmã mais<br />

nova, o pai vai ser preso, o irmão é preso.<br />

O que po<strong>de</strong>mos extrair <strong>da</strong>í aponta em primeiro lugar para a atuação <strong>da</strong> pulsão<br />

epistemofílica. Marcélio an<strong>do</strong>u procuran<strong>do</strong> saber, investigan<strong>do</strong> sobre sua origem e a origem<br />

<strong>de</strong>sses irmãos. No texto Leonar<strong>do</strong> Da Vinci e uma Lembrança <strong>de</strong> Sua infância (1910), Freud<br />

afirma que uma fase cheia <strong>de</strong> investigações é freqüente nas crianças pequenas. Elas visam<br />

saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêm os bebês, como eles são feitos? No limite, essas questões apontam também<br />

para a origem <strong>do</strong> próprio sujeitinho: <strong>de</strong> on<strong>de</strong> eu vim? Por que eu nasci? O que eles querem <strong>de</strong><br />

mim?<br />

Marcélio provavelmente an<strong>do</strong>u procuran<strong>do</strong> essas respostas e, posteriormente,<br />

<strong>encontro</strong>u ao longo <strong>de</strong> sua investigação algum limite <strong>de</strong>sse saber. (Esse limite é estrutural,<br />

106


pois a investigação fatalmente caminha para um ponto impossível <strong>de</strong> dizer e para o<br />

reconhecimento <strong>de</strong> uma falta, principalmente a falta no Outro). Nesse momento, opera o<br />

recalque que, por <strong>de</strong>finição, trata-se exatamente <strong>de</strong> um mecanismo que visa afastar<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> coisa <strong>da</strong> consciência, manten<strong>do</strong>-a à distancia (FREUD,1915b). Seria seu sintoma<br />

(esquecimento) equivalente ao próprio mecanismo <strong>do</strong> recalque? É o próprio Freud quem nos<br />

respon<strong>de</strong>, ao afirmar que Sintoma e recalque não são a mesma coisa, longe disso, seguem<br />

caminhos <strong>de</strong> formação completamente diferentes, pois o sintoma equivale, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a um<br />

segun<strong>do</strong> momento, o momento em que algo <strong>de</strong>sse recalca<strong>do</strong> busca acesso à consciência, um<br />

retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>.<br />

Tomemos novamente o caso <strong>de</strong> Marcélio: ele inicia, ain<strong>da</strong> numa fase remota suas<br />

investigações. Desiste <strong>de</strong>las e atribui uma resposta ao enigma como qual se <strong>de</strong>para, Daniel é<br />

meu irmão. Num momento posterior, marca<strong>do</strong> por solicitações escolares, nascimento <strong>de</strong> uma<br />

irmã, prisão <strong>do</strong> Daniel e <strong>do</strong> Pai, algo <strong>de</strong>sse conteú<strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> tenta voltar. Vacilan<strong>do</strong> o<br />

recalque, ele faz um sintoma, esquece o que sabia ler, sintoma cujo senti<strong>do</strong>, o vetor, como diz<br />

Lacan é apontar para o mesmo núcleo real com que esbarraram suas pesquisas sexuais, o<br />

impossível <strong>de</strong> saber.<br />

Nesse sintoma <strong>de</strong>svela-se ain<strong>da</strong> a posição <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong> Marcélio. Apesar <strong>de</strong> haver<br />

incidência <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-pai, a saí<strong>da</strong> pela i<strong>de</strong>ntificação ao significante paterno é recusa<strong>da</strong> por<br />

ele: “Não gosto <strong>de</strong> ter esse nome, esse nome é uma peste”. Prefere ser chama<strong>do</strong> pelo nome<br />

que recebeu <strong>da</strong> mãe, o Bebê. Continuar a ser o bebê <strong>da</strong> mamãe. Mas esse nome porta a marca<br />

<strong>de</strong> seu gozo, marca <strong>do</strong> impossível <strong>da</strong> relação, pois bebês não sabem ler.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

FOUCAULT, M. O Nascimento <strong>da</strong> clínica. 2 Ed. Tradução <strong>de</strong> Roberto Macha<strong>do</strong>. Forense<br />

Universitária, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1980.<br />

107


FREUD, S. (1910) Leonar<strong>do</strong> Da Vinci e uma lembrança <strong>de</strong> sua infância. v. 11. In: Edição<br />

stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>de</strong> obras completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, v. XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago,<br />

1996.<br />

___________. (1915a). O Inconsciente (Anexo C). In: Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras<br />

psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud . Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996., p. 165-209.<br />

____________. (1915b) Recalque. In: Obras psicológicas completas: Edição Stan<strong>da</strong>rd<br />

Brasileira. Vol. XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996.<br />

____________. (1916) Conferência XXIII – Os caminhos <strong>da</strong> formação <strong>do</strong>s sintomas. In:<br />

Edição. Stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, v. XVI. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996, p.419-439.<br />

LACAN, J. A Terceira (1974). Che Vuoi, ano 1, n. 0, Porto Alegre, Cooperativa Cultura<br />

Jacques Lacan, 1986.<br />

LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. Petrópolis, Vozes,<br />

1993.<br />

SOLER, C. O Corpo Falante. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Stylus, n o 01, maio <strong>de</strong> 2010.<br />

108


Reflexões sobre a direção <strong>do</strong> tratamento na clínica <strong>da</strong> perversão<br />

Maria Lúcia Araújo 1<br />

A idéia a<strong>xi</strong>al <strong>de</strong>ste trabalho é trazer reflexões sobre alguns aspectos em relação à<br />

direção <strong>do</strong> tratamento em sujeitos <strong>de</strong> estrutura perversa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a questão diagnóstica, manejo<br />

<strong>da</strong> transferência e final <strong>de</strong> análise.<br />

Consi<strong>de</strong>ramos que o perverso que procura o analista está na posição em que sente a<br />

angústia <strong>de</strong> castração. Quan<strong>do</strong> chega é porque a <strong>de</strong>fesa não funciona mais e a angústia<br />

transbor<strong>da</strong>. O sujeito vem nos dizer algo que no momento funciona mal e que antes<br />

funcionava bem. Agora funciona mal, até <strong>de</strong> forma perigosa. Está preocupa<strong>do</strong>, e se queixa <strong>de</strong><br />

não po<strong>de</strong>r controlar os impulsos, sabe o que lhe acontece, mas não consegue reagir, portanto<br />

quer aju<strong>da</strong>. Será que nós analistas estamos à altura <strong>de</strong> tal tarefa? Será que sabemos manejar a<br />

transferência na direção <strong>do</strong> tratamento? E como pensar o final <strong>de</strong> análise para a perversão?<br />

São questões que nos inquietam já faz alguns anos. Assim, pensamos que a<br />

preocupação <strong>do</strong> analista em orientar sua clínica a partir <strong>do</strong> diagnóstico estrutural é uma<br />

posição ética, e que po<strong>de</strong> a posteriori ser interpreta<strong>da</strong> como um ato. Além disso, torna-se<br />

fun<strong>da</strong>mental ressaltar que ao prescindir <strong>da</strong> hipótese diagnóstica não temos a mínima condição<br />

<strong>de</strong> dirigir o tratamento, pois tanto o dito como o dizer <strong>do</strong> analisante acabará fican<strong>do</strong> a <strong>de</strong>riva,<br />

a espera <strong>de</strong> um ato que nunca acontece.<br />

1 MARIA LÚCIA ARAÚJO – Psicanalista Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano Brasil,<br />

Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano - São Paulo. Trabalho apresenta<strong>do</strong> no XI Encontro Nacional <strong>da</strong> EPFCL/IF-<br />

Brasil (2010). araujomalu@uol.com.br<br />

109


Soler em seu curso sobre “A querela <strong>do</strong>s diagnósticos” nos lembra que Lacan mostrou<br />

a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> diagnóstico para sabermos se o sujeito que nos procura po<strong>de</strong> se beneficiar <strong>do</strong><br />

tratamento analítico, pois o saber clínico orienta a ação. Assim, o diagnóstico implica um<br />

julgamento ético, que está longe <strong>de</strong> ser um julgamento <strong>de</strong> saber (SOLER, p.18)<br />

Sen<strong>do</strong> assim, o que nos interessa aqui investigar não é apenas o sujeito perverso que<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> análise para saber sobre o dispositivo, já que sua formação o e<strong>xi</strong>ge, mas também<br />

aqueles sujeitos que são trazi<strong>do</strong>s porque correm sérios riscos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e colocam em risco a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> outros. Tanto em um caso como no outro as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s ocorrem quan<strong>do</strong> sobrevêm<br />

sintomas e perturbação no gozo.<br />

No seminário 16 “De um Outro ao outro” Lacan nos convoca a uma toma<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

posição ética dizen<strong>do</strong>: “Tratemos, em nossa elaboração <strong>de</strong> ser rigorosos! O sofrimento tem<br />

sua linguagem [...] O sofrimento é um fato, isto é, encerra um dizer.” (LACAN, p.63)<br />

Dessa forma, nós analistas estamos convoca<strong>do</strong>s a tomar uma posição ética em relação<br />

ao nosso próprio <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> analista. Pois sabemos, que a análise <strong>de</strong> um sujeito perverso se<br />

passa quase que o tempo to<strong>do</strong> no acting–out que se dirige ao Outro. Entretanto, enten<strong>de</strong>mos<br />

que é por essa via que o analista po<strong>de</strong> operar na direção <strong>do</strong> tratamento, ou seja, interpretar o<br />

acting–out, que é feito para a mostração.<br />

Lembremos uma afirmação <strong>de</strong> Lacan que está no seminário 10 “[...] se somos<br />

analistas, logo, ele, o acting-out, se dirige ao analista. Se ele ocupou este lugar, pior para ele.<br />

Ele tem <strong>de</strong> qualquer forma a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> que pertence a esse lugar que ele aceitou<br />

ocupar.” (LACAN, p.136)<br />

110


Outro aspecto que vale a pena ressaltar é que uma forma possível <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo perverso é<br />

a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo, que é uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozar realizan<strong>do</strong> sua fantasia. E, que a<br />

per<strong>da</strong> que precisa ser opera<strong>da</strong> no sintoma é a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo.<br />

Contu<strong>do</strong>, salientamos que o <strong>de</strong>sejo perverso não é uma pergunta, mas sim uma<br />

resposta, pois o perverso sabe o que quer e isso se <strong>de</strong>ve a sua petulância perversa, que o faz<br />

convenci<strong>do</strong> <strong>de</strong> saber a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> escondi<strong>da</strong>. Para esse sujeito não há falta, pois o fetiche<br />

sustenta seu <strong>de</strong>sejo.<br />

A perversão se utiliza <strong>de</strong> diversas estratégias para negar a falta no Outro, tais como: o<br />

masoquismo que tem a intenção <strong>de</strong> angustiar o outro, o sadismo que quer produzir a divisão<br />

<strong>do</strong> outro, o e<strong>xi</strong>bicionista que quer mostrar e assustar; o voyer que quer ver surgir o olhar <strong>do</strong><br />

outro. São alguns estilos <strong>de</strong> negar a falta. O que nos faz <strong>de</strong>duzir que há um lugar que o sujeito<br />

ocupa em relação ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro, e que há um la<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo e um la<strong>do</strong> gozo. A tipologia é<br />

uma diferenciação nessa trilha entre <strong>de</strong>sejo e gozo. O sujeito vai crian<strong>do</strong> cenas. Assim o<br />

analista ao fazer a distinção tipológica tem acesso a uma ferramenta fun<strong>da</strong>mental para a<br />

direção <strong>do</strong> tratamento, que vai ajudá-lo nas intervenções on<strong>de</strong> está a fantasia.<br />

Lacan nos adverte que “a fantasia perversa, tem uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> que po<strong>de</strong>mos agora<br />

<strong>de</strong>stacar.“ [...] há aí uma redução simbólica, que eliminou progressivamente to<strong>da</strong> estrutura<br />

subjetiva <strong>da</strong> situação para <strong>de</strong>ixar subsistir apenas um resíduo, inteiramente <strong>de</strong>ssubjetiva<strong>do</strong> e,<br />

afinal <strong>de</strong> contas enigmático, porque guar<strong>da</strong> a carga - mas a carga não revela<strong>da</strong>, inconstituí<strong>da</strong>,<br />

não assumi<strong>da</strong> pelo sujeito <strong>da</strong>quilo que é no nível <strong>do</strong> Outro a estrutura na qual ele está<br />

engaja<strong>do</strong> até o mais íntimo <strong>de</strong> si.” ( Sem. 4, p.120 ).<br />

111


Ora, o ponto que queremos ressaltar aqui, nesta afirmação <strong>de</strong> Lacan é o significante<br />

“<strong>de</strong>ssubjetiva<strong>do</strong>”, pois assim compartilhamos com o psicanalista Godino Cabas ao comentar<br />

este parágrafo, <strong>do</strong> seminário 4 , on<strong>de</strong> nos indica que “ [...] a tese <strong>de</strong> Lacan é que há uma<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser sublinha<strong>da</strong>: a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> uma redução simbólica que tem como<br />

resulta<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>ssubjetivação. Enten<strong>da</strong>mos : um processo que equivale a uma anulação, uma<br />

supressão, ou melhor, uma suspensão <strong>da</strong> função <strong>do</strong> sujeito.” “[...] o fantasma perverso<br />

conserva to<strong>do</strong>s os elementos <strong>da</strong> relação significante, mas em curto circuito. E, mais: um curto<br />

circuito no nível <strong>do</strong> sujeito. Sobretu<strong>do</strong>, porque a redução simbólica tem como efeito uma<br />

<strong>de</strong>ssubjetivação.”(CABAS, p.184)<br />

Sen<strong>do</strong> assim, os significantes permanecem em esta<strong>do</strong> puro, mas esvazia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seu<br />

sujeito. Ocorre que como nos lembra Godino “Esse esvaziamento que emerge como um<br />

corolário coinci<strong>de</strong> com a <strong>de</strong>srealização e a <strong>de</strong>ssubjetivação que caracterizam a passagem ao<br />

ato nas perversões.”<br />

Concor<strong>da</strong>mos com Godino Cabas no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que esse esvaziamento é uma<br />

proposição que já nos foi <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong>, que ao coincidir com a <strong>de</strong>ssubjetivação nos <strong>de</strong>ixa<br />

frente à passagem ao ato.<br />

Além disso, consi<strong>de</strong>ramos que na clínica <strong>do</strong> sujeito perverso esse fenômeno <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ssubjetivação se impõe quan<strong>do</strong> o sujeito transforma a questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo em vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

gozo e atua a fantasia na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>; se opon<strong>do</strong> radicalmente à castração e a experiência <strong>da</strong><br />

falta-a-ser. Na perversão o sujeito já se encontra localiza<strong>do</strong> na fantasia e <strong>de</strong>termina a si<br />

mesmo como objeto através <strong>do</strong> fetiche que faz função <strong>de</strong> véu, lugar <strong>da</strong> projeção imaginária.<br />

Nessa estrutura há valorização <strong>da</strong> imagem e redução simbólica <strong>de</strong> to<strong>da</strong> história.<br />

112


Ora, sabemos que o sujeito aparece quan<strong>do</strong> há uma questão e o sintoma quan<strong>do</strong> há<br />

uma solução. Embora falsa essa solução, aparece como uma resposta à angústia <strong>de</strong> castração.<br />

A perversão <strong>de</strong>smente sua falta-a-ser, elegen<strong>do</strong> o fetiche como objeto fun<strong>da</strong>mental<br />

com o qual tampona a castração feminina. Julien salienta que “[...] o fetiche é, portanto, uma<br />

<strong>de</strong>fesa contra a angústia <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> mãe, é bem por isso que ele tem a mesma função que a<br />

fobia: colocar uma proteção em posto avança<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> perigo <strong>de</strong> ser engoli<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sejo<br />

insaciável <strong>do</strong> Outro.” (JULIEN, p.109)<br />

Torna-se, assim, necessário pensar a <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, a entra<strong>da</strong> e final <strong>de</strong> análise a partir <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>smenti<strong>do</strong> (verleugnung) <strong>da</strong> castração, levan<strong>do</strong> em conta que precisamos instaurar o sujeito<br />

e não a partir <strong>do</strong> recalque, como ocorre na neurose. Os perversos que chegam à análise se<br />

queixam que há uma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> colocar limite ao próprio gozo, revelan<strong>do</strong> que há uma<br />

conjunção entre a fantasia e o sintoma.<br />

Segun<strong>do</strong> Lacan, “Há neles uma subversão <strong>da</strong> conduta apoia<strong>da</strong> num saber-fazer, o qual<br />

está liga<strong>do</strong> a um saber, ao saber sobre a natureza <strong>da</strong>s coisas, há uma embreagem direta <strong>da</strong><br />

conduta sexual sobre o que é sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, isto é, sua almorali<strong>da</strong><strong>de</strong>.” (Sem.20, p.117)<br />

Além disso, nesta estrutura há uma coincidência <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e gozo e a tentativa <strong>de</strong> fazer<br />

e<strong>xi</strong>stir a relação sexual. O fetiche, que é a prova clínica <strong>da</strong> estrutura equivale ao sintoma na<br />

neurose.<br />

A este respeito, Jacques Lacan e Wladimir Granoff, no texto Fetichismo: o simbólico,<br />

o imaginário e o real afirmam que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1927, Freud, “[...] introduzia-nos no estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

fetiche indican<strong>do</strong> que ele <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>. Decifra<strong>do</strong> como um sintoma ou uma<br />

mensagem. Ele nos diz mesmo em que linguagem o fetiche <strong>de</strong>ve ser traduzi<strong>do</strong> “Des<strong>de</strong> o<br />

113


início, tal abor<strong>da</strong>gem situa o problema <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> explícito no campo <strong>da</strong> pesquisa <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> na<br />

linguagem e não uma vaga analogia ao campo visual [...]” Dessa forma, “O imaginário é<br />

<strong>de</strong>cifrável somente se traduzi<strong>do</strong> em símbolos.”<br />

Entretanto, quan<strong>do</strong> Lacan avança ao longo <strong>de</strong> seu ensino chega a nos alertar que “A<br />

perversão não é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompi<strong>do</strong>s, mas, sim,<br />

porque eles já são distintos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que é preciso supor um quarto que, nessa ocasião, é o<br />

sinthoma. (Sem.23, p.21)<br />

Então interrogamos: Será que se trata na perversão <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação ao sinthoma?<br />

E o fetiche viria enlaçar os três registros: real, simbólico e imaginário?<br />

Deixemos essas questões em aberto... E pensemos no discurso.<br />

O discurso <strong>de</strong> um sujeito perverso tem mais a função <strong>de</strong> mostração <strong>do</strong> que <strong>de</strong><br />

representação, <strong>do</strong> dito. Como ocorre no “ato obsceno” ele mostra além <strong>da</strong> cena, revela o<br />

prima<strong>do</strong>, ou melhor, o que e<strong>xi</strong>ste aquém <strong>da</strong> palavra – a imagem “[...] como se houvesse um<br />

encurtamento <strong>do</strong> espaço entre a fantasia e o ato. “Na clínica o perverso mostra falan<strong>do</strong>, -<br />

ten<strong>do</strong> o analista como participante <strong>da</strong> cena perversa. As fantasias são encena<strong>da</strong>s. “[...] a<br />

montagem <strong>do</strong> discurso perverso revela um discurso no qual a palavra se torna um instrumento<br />

<strong>de</strong> mostração. O perverso se serve tanto <strong>do</strong> corpo como <strong>da</strong>s palavras. O que ele quer é<br />

mostrar. (QUEIROZ, p.74)<br />

Ora, se o perverso toca algo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> com o fetiche e, além disso, há algo <strong>de</strong><br />

fantasia no fetiche é com esse objeto que vamos operar na direção <strong>do</strong> tratamento.<br />

A psicanalista Márcia Mello, que tem uma gran<strong>de</strong> experiência com a clínica <strong>da</strong><br />

perversão, afirma que “quan<strong>do</strong> rompe o vínculo com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a perversão substitui a<br />

114


fantasia por um ato, atua na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> ain<strong>da</strong> que insista na fantasia inconsciente. A diferença<br />

<strong>do</strong> neurótico é que o perverso faz isso exercen<strong>do</strong> a “vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo” ampara<strong>do</strong> no objeto<br />

en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao parceiro; evocan<strong>do</strong> sua presença numa imagem, <strong>da</strong>í a importância <strong>do</strong> fetiche<br />

enquanto imagem encobri<strong>do</strong>ra.” (MELLO, p.102)<br />

Após, essas breves consi<strong>de</strong>rações interrogamos: Será que é possível ao sujeito <strong>de</strong><br />

estrutura perversa, cujo <strong>de</strong>sejo sempre fracassa, por causa <strong>de</strong> sua posição fantasmática que<br />

está sempre em continui<strong>da</strong><strong>de</strong> com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, sair <strong>de</strong>ssa posição? Será que a partir <strong>de</strong> uma<br />

mu<strong>da</strong>nça na posição <strong>de</strong> gozo o sujeito po<strong>de</strong>ria terminar sua análise em direção a um saber<br />

fazer com o <strong>de</strong>sejo?<br />

Ora, sabemos que em to<strong>da</strong>s as estruturas e<strong>xi</strong>ste algo em comum, isto é, to<strong>da</strong>s sem<br />

exceção querem se livrar <strong>da</strong> angustia <strong>de</strong> castração.<br />

Diante <strong>de</strong>ssa constatação, nossa tendência a partir <strong>da</strong> experiência clínica com tais<br />

sujeitos é pensar que na perversão mais <strong>do</strong> que na neurose ou na psicose o sujeito precisa <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista e sua disposição para escutar a recusa, a verleugnung e suportar a<br />

“conjunção <strong>da</strong> palavra com o corpo no ato <strong>de</strong> dizer”.<br />

To<strong>da</strong>via, consi<strong>de</strong>ramos que é nos <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> guiar pela estrutura que obteremos <strong>de</strong>la<br />

seus efeitos, sem jamais esquecer que a formalização não nos e<strong>xi</strong>me <strong>de</strong> escutar a<br />

singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> sujeito.<br />

Termino com uma citação <strong>de</strong> Jacques Lacan em Radiofonia “Seguir a estrutura é<br />

certificar-se <strong>do</strong> efeito <strong>da</strong> linguagem. A estrutura é apanha<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong>í. Daí, isto é, <strong>do</strong> ponto<br />

em que o simbólico toma corpo.<br />

115


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

CABAS, A. G., O Sujeito na psicanálise <strong>de</strong> Freud a Lacan - <strong>da</strong> questão <strong>do</strong> sujeito ao sujeito<br />

em questão. Jorge Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2009.(p.184)<br />

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. In S.Freud, Edição Stan<strong>da</strong>rt <strong>da</strong>s obras<br />

psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud (Vol.VII). Imago editora - trabalho original<br />

publica<strong>do</strong> em 1905, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

FREUD, S. O fetichismo. In Freud, Edição Stan<strong>da</strong>rt <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras completas<br />

psicológicas <strong>de</strong> Sigmund (Vol.XXI), Imago Editora, 1927, Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

JULIEN, P. Psicose, perversão e neurose: A leitura <strong>de</strong> Jacques Lacan. Companhia <strong>de</strong> Freud,<br />

José Nazar, Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2004. (p.109)<br />

LACAN, J & GRANOFF, W Fetishism: The Symbolic, The Imaginary and the Real, texto <strong>de</strong><br />

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116


A Pele, suas Marcas e o Corpo:Fenômeno Psicossomático e Tatuagem<br />

Tatiana Carvalho Assadi 1<br />

Heloísa Helena Aragão e Ramirez 2<br />

“Minha vi<strong>da</strong> é o mar. Surfo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno e neste momento fui afasta<strong>do</strong> <strong>de</strong>stes instantes <strong>de</strong><br />

prazer por causa <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença que me invadiu o corpo.... 3 ”<br />

Como as personagens que são convoca<strong>da</strong>s ao mergulho no mar infinito <strong>do</strong> belíssimo<br />

texto <strong>de</strong> Mishima 4 , Leonar<strong>do</strong> sente-se atraí<strong>do</strong> para o mar. Nervoso, somente atinge momentos<br />

<strong>de</strong> calma e contemplação ao escutar as on<strong>da</strong>s <strong>da</strong> maré que se chocam com as minúsculas<br />

partículas <strong>da</strong> areia ou ain<strong>da</strong>, no sublime ato <strong>de</strong> avistar no horizonte os primeiros raios solares<br />

que avisam a hora <strong>do</strong> seu primeiro mergulho.<br />

Ao mesmo tempo são o olhar e o som que o lembram freqüentemente que seu corpo<br />

e<strong>xi</strong>ste e encontra-se a<strong>do</strong>eci<strong>do</strong>. Escuta os estali<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s que rompem sua pele e<br />

produzem vermelhidões espalha<strong>da</strong>s pelos joelhos, pernas e cotovelos e, portanto, são estas<br />

mesmas feri<strong>da</strong>s que ferem sua visão. Olhar seu corpo é insuportável, escutar a explosão <strong>da</strong>s<br />

feri<strong>da</strong>s é amedrontante, sente sua pele em chamas e nomeia-se <strong>de</strong> “carne viva”.<br />

1 Psicanalista. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano- SP. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong>- FCL-SP e<br />

<strong>do</strong> Circuito Ponto <strong>de</strong> Estofo- MC-SP. Pós-<strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em Psicologia Clínica- USP- SP. Bolsista FAPESP.<br />

tatiassadi@uol.com.br<br />

2 Psicanalista. Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>do</strong> Campo Lacaniano-SP e <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano-SP. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> Re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong>- FCL-SP e <strong>do</strong> Circuito Ponto <strong>de</strong> Estofo- MC- SP. Mestre em Psicologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> São<br />

Marcos. heloramirez@gmail.com<br />

3 To<strong>da</strong>s as falas em itálico são <strong>do</strong> analisante.<br />

4 Mishima (1987). Morte em pleno verão. Contos. Rocco.<br />

117


Estes são os motivos que levam este jovem a procurar análise <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tentar várias<br />

intervenções para sua afecção <strong>de</strong> pele: a psoríase. Freqüentou médicos, buscou tratamentos<br />

alternativos, espirituais e ou milagrosos que na<strong>da</strong> lhe adiantaram na cura <strong>da</strong> afecção<br />

<strong>de</strong>rmatológica. Restou-lhe a psicanálise como última possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou melhor, ampara<strong>do</strong> pela<br />

fala <strong>de</strong> outrem recebeu a indicação <strong>da</strong> psicanálise como uma direção ao seu mal estar.<br />

Conduzi<strong>do</strong> às primeiras entrevistas com <strong>de</strong>scrédito e mais além, <strong>de</strong>scrença, chega ao<br />

consultório relutan<strong>do</strong> em falar. Não podia acreditar que uma “terapêutica” pela fala pu<strong>de</strong>sse<br />

afetar seu corpo. Deman<strong>da</strong>va uma cura <strong>do</strong> corpo e retornar ao mar, sem se envergonhar <strong>de</strong> sua<br />

pele e <strong>de</strong> seu “corpo marca<strong>do</strong>”, eram seus maiores anseios.<br />

- “Marca<strong>do</strong>? – é uma <strong>da</strong>s primeiras intervenções <strong>da</strong> analista.<br />

- Sou inteiro marca<strong>do</strong>.<br />

- Marca<strong>do</strong>? – novamente uma intervenção.<br />

- Tenho lesões por to<strong>do</strong> corpo que fazem uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho assombra<strong>do</strong>.<br />

Um <strong>de</strong>senho que escama e solta cheiro. Sou como um filme <strong>de</strong> terror”.<br />

É assim que Leonar<strong>do</strong> começa a se apresentar. Reduz-se às <strong>de</strong>scrições e marcas<br />

corporais. Gesticula, aponta os <strong>de</strong><strong>do</strong>s para as partes <strong>do</strong> corpo em que foi invadi<strong>do</strong> pela<br />

psoríase e esbraveja utilizan<strong>do</strong> um vocabulário <strong>de</strong> baixo calão. Mostra a parte inferior <strong>da</strong>s<br />

pernas levantan<strong>do</strong> as calças em uma convocação <strong>do</strong> olhar <strong>da</strong> analista. Ao falar <strong>da</strong>s lesões<br />

nos cotovelos novamente expõe a pele avermelha<strong>da</strong> e, ao dizer <strong>da</strong> psoríase no couro<br />

cabelu<strong>do</strong> ergue as mãos como se estivesse arrancan<strong>do</strong> seus cabelos.<br />

118


Abro um parênteses para dizer que em nossa experiência clinica na Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pesquisa em<br />

Psicossomática (atual Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pesquisa em Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo<br />

Lacaniano SP em parceria com a Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo) verificamos inúmeras<br />

características que se repetem na fala ou mesmo em gestos <strong>da</strong>queles que nos foram<br />

encaminha<strong>do</strong>s com lesões <strong>de</strong>rmatológicas, por exemplo: o não pu<strong>do</strong>r em mostrar o corpo<br />

invadi<strong>do</strong> por uma lesão ou a vergonha como causa e impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> quebra <strong>do</strong>s laços<br />

sociais ou para além disto, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> falar sobre sua afecção <strong>de</strong> pele.<br />

Diante <strong>do</strong>s primeiros atendimentos hospitalares com lesões <strong>de</strong>rmatológicas e ampara<strong>do</strong>s<br />

nestas repetições clínicas <strong>de</strong>cidimos escutar as hipóteses relativas ao aparecimento <strong>da</strong>s lesões.<br />

Para nossa surpresa, num primeiro tempo, na<strong>da</strong> era possível dizer sobre o vitiligo, a psoríase<br />

ou mesmo a alopecia 5 . Em trabalho nas entrevistas preliminares os pacientes começavam a<br />

traçar hipóteses para suas lesões, e, como segun<strong>do</strong> tempo, ou conseqüência <strong>de</strong>sta tática, eles<br />

faziam <strong>de</strong>stas hipóteses suas ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s absolutas.<br />

E foi <strong>de</strong>sta maneira que aconteceu com Leonar<strong>do</strong>. Suas primeiras lesões apareceram<br />

quan<strong>do</strong> ele era ain<strong>da</strong> uma criança, aos seis anos. Naquela época era briguento e rigoroso com<br />

seus afazeres e como resulta<strong>do</strong> estava sempre <strong>de</strong> “cabeça quente”. Certa vez enquanto<br />

pensava insistentemente sua cabeça esquentou e uma coceira súbita surgiu no couro cabelu<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> soltaram-se “casquinhas escureci<strong>da</strong>s”. Como remédio para este ar<strong>do</strong>r a mãe, sábia e<br />

protetora, receitou-lhe que esfriasse a cabeça. Explico. Esfriar a cabeça para ela era uma<br />

forma <strong>de</strong> barreira ao pensamento, era preciso mergulhar no mar gela<strong>do</strong> para construir este<br />

5 Estas três lesões <strong>de</strong> pele foram as que trabalhamos nos Hospitais: <strong>Escola</strong> Paulista <strong>de</strong> Medicina-­‐SP; Policlínica<br />

<strong>de</strong> Mogi <strong>da</strong>s Cruzes e Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> ABC.<br />

119


dique. Lembra-se que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste feito tanto a coceira quanto a escamação melhoraram<br />

significativamente 6 . Durante as entrevistas relembrou-se que sua cabeça começou esquentar<br />

porque havia obti<strong>do</strong> uma nota baixa em uma avaliação escrita na escola e como punição pela<br />

indisciplina e irresponsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> teve uma escamação capilar que lhe causava inibição diante<br />

<strong>do</strong>s colegas.<br />

Aos 16 anos, portanto, 10 anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter fuma<strong>do</strong> maconha com os amigos<br />

atropelou uma pessoa <strong>de</strong> bicicleta. Sem saber como reagir e com me<strong>do</strong> <strong>da</strong>s conseqüências que<br />

teria que assumir fugiu <strong>da</strong> policia refugian<strong>do</strong>-se nos braços <strong>da</strong> mãe. No mesmo instante que<br />

escapou à punição social sentiu a carne ar<strong>de</strong>r em chamas, como se estivesse queiman<strong>do</strong> e<br />

placas vermelhas se espalharam por algumas regiões <strong>do</strong> seu corpo. Dias <strong>de</strong>pois estas placas<br />

começaram escamar e obteve o diagnóstico <strong>de</strong> psoríase. Sem saber o que este “palavrão”<br />

significava, ingeriu alguns remédios que não se recor<strong>da</strong> quais foram e espalhou pelo corpo<br />

cremes, sen<strong>do</strong> assim, após <strong>do</strong>is meses sua pele voltou ao normal.<br />

Mais um episódio ocorri<strong>do</strong> 10 anos <strong>de</strong>pois. Aos 26 anos, quan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> namorava, <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> levar sua garota ao aeroporto para uma visita familiar, ele estacionou seu carro em um<br />

posto <strong>de</strong> gasolina se abastecen<strong>do</strong> <strong>de</strong> guloseimas numa pequena loja <strong>de</strong> conveniência. No local<br />

<strong>encontro</strong>u uma amiga <strong>do</strong>s tempos <strong>da</strong> facul<strong>da</strong><strong>de</strong>, trocaram olhares e subitamente sentiu-se<br />

atraí<strong>do</strong> por ela. Instantes <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma pequena conversa dirigiram-se ao motel. Enquanto<br />

faziam sexo Leonar<strong>do</strong> sentiu que algumas regiões <strong>de</strong> seu corpo estavam “rasgan<strong>do</strong> <strong>de</strong> tanto<br />

6 Nota-­‐se claramente o efeito <strong>de</strong> sugestão a partir <strong>da</strong> fala <strong>do</strong> outro.<br />

120


calor”, uma coceira intermitente o envolvia e quan<strong>do</strong> foi se vestir verificou novas placas em<br />

seu corpo que rompiam sua pele.<br />

De <strong>de</strong>z em <strong>de</strong>z anos um episódio toma<strong>do</strong> como fora <strong>da</strong> lei, como contravenção moral<br />

aplacavam Leonar<strong>do</strong> que era puni<strong>do</strong> pela psoríase. Sua hipótese era <strong>de</strong> que a <strong>do</strong>ença tomou o<br />

lugar <strong>de</strong> sua “maldição 7 ”.<br />

Em resposta a Vauthier, Lacan, na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), fará<br />

uma essencial consi<strong>de</strong>ração sobre o <strong>do</strong>ente psicossomático que permite <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos na<br />

clinica psicanalítica. Algo acontece com estes sujeitos en<strong>de</strong>reçan<strong>do</strong> à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> escrito e na<br />

maioria <strong>do</strong>s casos os psicanalistas não sabem lê-lo. “Tu<strong>do</strong> se passa como se algo estivesse<br />

escrito no corpo, alguma coisa que se oferece como enigma...” 8<br />

Foi em 1975 que Lacan sugeriu o tema <strong>do</strong> psicossomático emparelha<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong><br />

signatura, <strong>de</strong> hieróglifo, <strong>de</strong> traço unário. Sobretu<strong>do</strong>, nos <strong>de</strong>bruçamos sobre estas premissas<br />

para abor<strong>da</strong>r a tática <strong>da</strong> psicanálise neste caso clinico apresenta<strong>do</strong> pela lesão <strong>de</strong> órgão, ou<br />

como pronuncia<strong>do</strong> por Lacan em 1966, por uma questão epistemo-somàtica. A in<strong>da</strong>gação<br />

estavam postas: se e<strong>xi</strong>ste um escrito no corpo, <strong>da</strong><strong>do</strong> a não ler, qual a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

analista diante <strong>de</strong>sta clínica?<br />

Pois bem, neste caso em particular um ponto nos surpreen<strong>de</strong>u para além <strong>da</strong> lesão <strong>de</strong> pele.<br />

Contou Leonar<strong>do</strong> que fez to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> tratamento, inclusive ingeriu remédio biológico, que<br />

7 Homofonicamente maldição e mal-­‐dicção.<br />

8 Lacan, J. (1998) Conferencia em Genebra sobre o sintoma (1975).In Opção Lacaniana n. 23. Dezembro <strong>de</strong><br />

1998. p. 13-­‐14-­‐ São Paulo.<br />

121


somente é prescrito em casos em que to<strong>do</strong> o corpo <strong>do</strong> paciente é toma<strong>do</strong> pela afecção. Vale<br />

salientar que suas marcas eram localiza<strong>da</strong>s em zonas <strong>de</strong> atrito, tais quais joelhos e cotovelos.<br />

Durante sua a<strong>do</strong>lescência participou <strong>de</strong> muitos campeonatos <strong>de</strong> jiu-jitsu e <strong>de</strong> surfe, tornan<strong>do</strong>-<br />

se um excelente esportista o que o autorizou a muitas viagens e gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> laços<br />

sociais. No entanto, sua vi<strong>da</strong> foi <strong>de</strong>sregra<strong>da</strong> em assuntos sexuais e <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> entorpecentes.<br />

Quan<strong>do</strong> iniciou as práticas esportivas disciplinou-se, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> orgias e vícios<br />

freqüentes. Como marco para esta mu<strong>da</strong>nça subjetiva tatuou na pele o mar e um luta<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />

jiu-jitsu, conseguin<strong>do</strong> eternizar na carne seu amor pelo esporte e sua “salvação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

mun<strong>da</strong>na”.<br />

Com a aparição “<strong>de</strong>la”, como Leonar<strong>do</strong> <strong>de</strong>signou a lesão <strong>de</strong> pele, teve que parar <strong>de</strong> lutar<br />

porque a psoríase seria mais propensa a aparecer quanto maior o atrito <strong>da</strong> pele. Como nenhum<br />

<strong>do</strong>s tratamentos regrediu sua lesão após seus 26 anos optou por a<strong>do</strong>rnar sua pele com<br />

<strong>de</strong>senhos como formas <strong>de</strong> encobrir as manchas vermelhas e escamações <strong>da</strong> pele. Assim, a<br />

pequena tatuagem <strong>do</strong> mar foi ganhan<strong>do</strong> contornos mais <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, espécies diferentes <strong>de</strong><br />

peixes e vegetação surgiram em regiões que a psoríase formava uma bor<strong>da</strong>. Um coqueiro foi<br />

pinta<strong>do</strong> em uma <strong>da</strong>s pernas e um sol em outra. As marcações corporais foram se expandin<strong>do</strong><br />

pela extensão <strong>de</strong> sua pele para tentar compor junto com o <strong>de</strong>senho um cenário que apagaria a<br />

lesão.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, o que Leonar<strong>do</strong> não contava era que a psoríase, como uma “praga”,<br />

aumentou com os contornos <strong>da</strong> tinta colori<strong>da</strong> no órgão pele. Conclusão: ele não sabia mais<br />

122


aon<strong>de</strong> começava sua tatuagem e, tampouco, aon<strong>de</strong> terminava sua psoríase. As marcas foram<br />

se misturan<strong>do</strong> umas às outras ate produzirem uma fusão indiferencia<strong>da</strong>.<br />

Ana Costa em seu livro Marcas Corporais e tatuagens (2003) recorta <strong>do</strong>s textos <strong>de</strong> Lacan<br />

duas passagens em que o ato <strong>de</strong> tatuar é questiona<strong>do</strong>. O primeiro <strong>de</strong>les, e dizemos, não é uma<br />

or<strong>de</strong>m cronológica, surge em Subversão <strong>do</strong> Sujeito e dialética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> 1966. Ali Lacan<br />

apresenta uma metáfora <strong>de</strong> um escravo que porta uma mensagem tatua<strong>da</strong> em seu couro<br />

cabelu<strong>do</strong>. Sem que soubesse <strong>da</strong> tatuagem, tampouco <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> ele transporta a<br />

mensagem que po<strong>de</strong>ria ser sua própria con<strong>de</strong>nação a morte. O comentário <strong>de</strong> Lacan ao<br />

<strong>de</strong>bruçar-se sobre esta passagem diz respeito ao elo <strong>da</strong> pulsão com a tatuagem, <strong>de</strong>ste tanto,<br />

enfatiza o corpo como <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> traços invisíveis e incompreensíveis que po<strong>de</strong>m ser<br />

materializa<strong>do</strong>s e en<strong>de</strong>reçam a uma leitura. Neste senti<strong>do</strong>, estamos diante <strong>de</strong> uma contradição<br />

em relação aos fenômenos psicossomáticos segun<strong>do</strong> o que Lacan nos apresenta na cita<strong>da</strong><br />

Conferência. Estes fenômenos são <strong>da</strong><strong>do</strong>s a “não-ler”. Po<strong>de</strong>-se então levantar uma idéia <strong>de</strong> que<br />

a tatuagem pe<strong>de</strong> um olhar, uma <strong>de</strong>cifração, ou seja, a busca <strong>de</strong> um lugar no amor <strong>do</strong> outro,<br />

pela procura <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong> traços corporais. Estaria a tatuagem <strong>de</strong> Leonar<strong>do</strong><br />

convocan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong>?<br />

Uma outra citação <strong>de</strong> Lacan, encontra<strong>da</strong> em Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong><br />

psicanálise (1964) atrela a tatuagem a uma função erótica. Po<strong>de</strong>ria, <strong>de</strong>ste feito, ser li<strong>da</strong> como<br />

uma encarnação <strong>do</strong> órgão, diferente <strong>do</strong>s cortes e cicatrizes que apontariam para um<br />

masoquismo erógeno. Se tomarmos a tatuagem nesta vertente <strong>de</strong> encarnação, sua impressão<br />

seria a <strong>do</strong> traço unário. E continuan<strong>do</strong> através <strong>de</strong>sta lógica, Lacan comunga, no mesmo<br />

123


seminário, <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> que o traço unário se marca como tatuagem, como o primeiro <strong>do</strong>s<br />

significantes, operan<strong>do</strong> assim no nível <strong>da</strong> contagem, instituin<strong>do</strong> uma diferença que singulariza<br />

o lugar <strong>do</strong> sujeito.<br />

Captura<strong>da</strong>s por esta construção remetemos o leitor novamente a um pequeno passeio pela<br />

Conferência em Genebra, lugar em que Lacan pontua que no FPS estamos diante <strong>da</strong> lógica <strong>do</strong><br />

número e não <strong>da</strong> letra, <strong>da</strong> contagem e não <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração.<br />

Não preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> forma alguma minimizar os estu<strong>do</strong>s sobre a tatuagem, tampouco<br />

reduzi-los a um senti<strong>do</strong> único. Nosso objetivo é articular, se possível for, as duas aparições<br />

corporais, a saber: o fenômeno <strong>de</strong> pele e a tatuagem.<br />

No percurso <strong>de</strong>sta premissa que seguimos as pistas <strong>de</strong> Lacan. Foi em momentos distintos<br />

<strong>de</strong> sua obra que falou sobre o fenômeno psicossomático. Vale-nos capturar um tempo em que<br />

em seu seminário livro 2 ele o articula a uma inscrição ou impressão direta na carne.<br />

Lembremos que estamos diante <strong>do</strong>s anos 55 e 56, quan<strong>do</strong> 20 anos mais tar<strong>de</strong>, portanto em<br />

1975 sua apresentação na conferencia <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> ao sintoma é que a lesão po<strong>de</strong>ria ser toma<strong>da</strong><br />

pela inscrição significante na carne. Uma tradução para esta consi<strong>de</strong>ração é a <strong>de</strong> ocorreria um<br />

curto-circuito no simbólico, ou seja, uma falha <strong>da</strong> função paterna.<br />

Alguns psicanalistas basea<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong>, nas concepções feitas por Lacan 9 sobre o<br />

emparelhamento <strong>do</strong> fenômeno psicossomático à <strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> mental e à psicose constroem a<br />

hipótese que nesta formação fenomênica não aconteceria uma holófrase total, mas,<br />

9 Lacan, J. Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise.seminário: livro XI.<br />

124


especialmente uma holófrase local, situa<strong>da</strong> no par S1S2, impedin<strong>do</strong> o <strong>de</strong>slizamento na<br />

ca<strong>de</strong>ia significante. To<strong>da</strong>via, isto não atestaria a ausência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, sua foraclusão, o<br />

<strong>de</strong>sejo estaria presente, contu<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> sua suspensão. Os significantes, pelo<br />

mecanismo <strong>de</strong>sta holófrase local, estariam congela<strong>do</strong>s, gelifica<strong>do</strong>s, isto quer dizer,<br />

passíveis <strong>de</strong> remontagem a ca<strong>de</strong>ia.<br />

Logo, tocar os fenômenos pela via <strong>do</strong> significante, <strong>da</strong> <strong>de</strong>cifração seria uma operação<br />

impossível e sem ê<strong>xi</strong>to , como foi mostra<strong>do</strong> por Assadi (2010).<br />

Se este escrito <strong>da</strong><strong>do</strong> a não-ler engendra algo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número, <strong>da</strong> contagem,<br />

articulan<strong>do</strong> o gozo a metonímia, po<strong>de</strong>mos chegar a conclusão que estamos diante <strong>do</strong> objeto<br />

<strong>da</strong> pulsão em sua relação com o significante isola<strong>do</strong> e não <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia significante.<br />

Algo nos faz questionar que o a<strong>xi</strong>oma o inconsciente estrutura<strong>do</strong> como linguagem,<br />

ten<strong>do</strong> o significante e a interpretação como suas molas propulsoras não são suficientes para<br />

tratar o fenômeno psicossomático. É preciso avançar no ensino <strong>de</strong> Lacan e tomar a lesão<br />

como um gozo especifico que po<strong>de</strong>ríamos apostar ser um gozo Outro, situa<strong>do</strong> na<br />

articulação borromeana entre real e imaginário. Assim neste gozo haveria uma fixação<br />

corporifican<strong>do</strong> a libi<strong>do</strong>, como um significante isola<strong>do</strong> e impresso na carne, fixa<strong>do</strong>.<br />

Po<strong>de</strong>-se concluir que o Fps surge na clinica muito mais como uma resposta <strong>do</strong> que<br />

como um enigma, faz obstáculo a perspectiva <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> ao Outro e<br />

traz interrogações sobre a direção <strong>do</strong> tratamento. Vem como um negativo <strong>da</strong> operação <strong>da</strong><br />

extração <strong>do</strong> objeto, concernente a operação <strong>de</strong> incorporação <strong>da</strong> estrutura.<br />

125


No sintoma temos uma mensagem dirigi<strong>da</strong> ao Outro e uma cifra que <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>cifração, enquanto que no FPS temos algo escrito no corpo, marca<strong>do</strong> na carne. Mas, a<br />

questão que não faz calar é se tomamos os últimos ensinamentos <strong>de</strong> Lacan, sobretu<strong>do</strong><br />

naquilo que diz sobre o sintoma como acontecimento <strong>de</strong> corpo, tanto o sintoma como o<br />

fenômeno possuem o mesmo estatuto: <strong>de</strong> um fenômeno.Quanto a isto <strong>de</strong>ixamos a questão<br />

para ser construí<strong>da</strong>.<br />

E, quanto a Leonar<strong>do</strong>: culpa, vergonha, punição, lei, dúvi<strong>da</strong>, obediência representavam<br />

seus significantes mestres enquanto que psoríase seu significante isola<strong>do</strong>. Ou melhor, o<br />

que o representava <strong>de</strong> fato como sujeito era ser marca<strong>do</strong>, ser um carne viva- um<br />

escama<strong>do</strong>- substituin<strong>do</strong> seu nome próprio.<br />

Durante a análise algumas rememorações surgiram. Lembrou-se que o irmão sempre<br />

fazia peripécias e ele era quem era “marca<strong>do</strong> na carne” . O pai pegava um chicote <strong>de</strong> cavalo<br />

e o castigava, o irmão o acusava e ele não sustentava pela palavra sua inocência. Como<br />

sempre moraram no litoral passear no mar transformou-se em sua rotina.. Contu<strong>do</strong>, como<br />

tinha a pele muito clara ficava vermelho com o excesso <strong>do</strong> sol e com a tez “escaman<strong>do</strong>, em<br />

carne viva”.<br />

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Paulo, número 23- <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1998.<br />

NASIO, J. –D. (1993). Psicossomática: as formações <strong>do</strong> objeto a . Rio <strong>de</strong> Janeiro. Jorge<br />

Zahar Editora.<br />

WARTEL e outros. (2003). Psicossomática e psicanálise. Rio <strong>de</strong> Janeiro. Jorge Zahar<br />

Editora.<br />

127


Sintoma: ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong> alíngua 1 no corpo<br />

Silvia Amoe<strong>do</strong> 2<br />

“Minha alma tem o peso <strong>da</strong> luz. Tem o peso <strong>da</strong> música.<br />

Tem o peso <strong>da</strong> palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.<br />

Tem o peso <strong>de</strong> uma lembrança. Tem o peso <strong>de</strong> uma sau<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Tem o peso <strong>de</strong> um olhar...”<br />

(Clarice Lispector)<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que o sintoma é um ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong> alíngua no corpo? Dos casos clínicos<br />

oriun<strong>do</strong>s <strong>da</strong> experiência analítica, Freud extrai o conceito <strong>de</strong> sintoma analítico, <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong><br />

para o próprio sujeito e que dá corpo ao corpo <strong>do</strong> ser falante, antes inerte. Como representante<br />

<strong>de</strong> um evento traumático <strong>da</strong> alíngua, <strong>de</strong> fantasias <strong>do</strong> paciente resultantes <strong>de</strong> coisas ouvi<strong>da</strong>s na<br />

infância, o sintoma é um substituto <strong>de</strong> uma satisfação pulsional. Na formação <strong>do</strong> sintoma,<br />

Lacan dá ênfase às coisas ouvi<strong>da</strong>s antes <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, quan<strong>do</strong> a criança ain<strong>da</strong><br />

não tem acesso ao senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> significante, o que <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> a alíngua, cuja impressão sobre<br />

o corpo <strong>de</strong>ixa vestígio que ressurge, <strong>do</strong> real, como ruí<strong>do</strong> no corpo, anuncian<strong>do</strong> o impossível<br />

<strong>da</strong> relação sexual. O sintoma é um evento corporal, solução para a <strong>de</strong>s/or<strong>de</strong>m, divisão causa<strong>da</strong><br />

no ser falante pela alíngua.<br />

Para a psicanálise, os casos clínicos são imprescindíveis. A palavra “caso” vem <strong>do</strong><br />

latim casus, que quer dizer aquilo que cai. Caso é também acontecimento, eventuali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

casuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, situação particular, história, aventura amorosa. Do grego kline, a palavra<br />

1 No presente texto, a<strong>do</strong>tei a tradução proposta por Jairo Gerbase “alíngua” para o neologismo “lalangue”, o<br />

qual mantém, na fala a presença <strong>do</strong> equívoco, que só a escrita explicita.<br />

2 Membro <strong>da</strong> EPFCL – Fórum Natal<br />

128


“clínica” significa leito e, na experiência analítica, po<strong>de</strong>-se dizer, um leito sem barragem, pelo<br />

qual correm as palavras que tentam dizer <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> leito conjugal e <strong>do</strong> leito<br />

eterno, respectivamente a relação sexual e a morte. Inesgotáveis, os casos clínicos <strong>de</strong> Freud<br />

continuam, para to<strong>do</strong>s aqueles que se <strong>de</strong>bruçam sobre a fonte freudiana, jorran<strong>do</strong> no processo<br />

contínuo <strong>de</strong> criação <strong>da</strong> psicanálise.<br />

Mas o que se espera <strong>do</strong> tratamento analítico em relação ao sintoma, já que este é<br />

que sustenta, com substância <strong>de</strong> gozo, o corpo <strong>do</strong> ser falante? O que se po<strong>de</strong> escutar, na<br />

relação analítica – que dispõe precisamente <strong>da</strong> linguagem como instrumento –, <strong>do</strong> eco <strong>de</strong>sse<br />

evento corporal constituí<strong>do</strong> <strong>de</strong> alíngua, antes <strong>da</strong> linguagem? São as pulsões no corpo, segun<strong>do</strong><br />

Lacan, o eco <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que há um dizer [...] é preciso que o corpo lhe seja sensível<br />

(1975/1976, p.18).<br />

Para abor<strong>da</strong>r essas questões, preten<strong>do</strong>, com recortes clínicos, seguir alguns <strong>do</strong>s<br />

rastros <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s no divã. A palavra <strong>do</strong> analisante é o meio através <strong>do</strong> qual a psicanálise opera.<br />

É no dito <strong>do</strong> sujeito, sob transferência, que o inconsciente se atualiza, precisamente quan<strong>do</strong> o<br />

sujeito vacila, quan<strong>do</strong> diz ou duvi<strong>da</strong> e, ain<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> não consegue sequer dizer, como mostra<br />

a experiência analítica.<br />

O sujeito A., após ter-se submeti<strong>do</strong> a vários tratamentos para uma <strong>de</strong>rmatite <strong>de</strong><br />

contato, procura análise quan<strong>do</strong> conclui que o saber médico falhara em seu caso. Sobre o<br />

sintoma, ela sabe que se trata <strong>de</strong> uma reação alérgica <strong>da</strong> pele, quan<strong>do</strong> entra em contato com<br />

alguma substância; mas qual substância? A pele coça, formam-se bolhas, que viram feri<strong>da</strong>s,<br />

seca e <strong>de</strong>scama, num ciclo que se repete <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que A. se enten<strong>de</strong> por gente. Ela se queixa:<br />

129


Isso faz com que eu não trabalhe na minha profissão e não tenha relação sexual com ninguém!<br />

E, coçan<strong>do</strong> a pele, passa a discorrer sobre suas impressões: sentia uma sensação estranha <strong>de</strong><br />

satisfação, quan<strong>do</strong> criança, ao escutar o ruí<strong>do</strong> <strong>da</strong>s unhas <strong>de</strong> sua mãe coçan<strong>do</strong> as costas <strong>de</strong> seu<br />

pai. De súbito, ela associa essa lembrança com a satisfação e o ruí<strong>do</strong> que escuta ao coçar as<br />

próprias feri<strong>da</strong>s <strong>do</strong> corpo. Encerro a sessão com a pergunta: Que ruí<strong>do</strong> é esse no corpo? O que<br />

isso quer dizer?<br />

Para que um dito seja ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, é preciso ain<strong>da</strong> que se o diga, que haja nele um<br />

dizer, (1972, O aturdito, p. 449). O sujeito A. diz que a cena tinha uma conotação sexual, que<br />

se expressava nos sussurros que seu pai emitia. As feri<strong>da</strong>s servem, então, como barreira, para<br />

me impedirem <strong>de</strong> tocar ou ser toca<strong>da</strong> por outro corpo? – pergunta. Isso é uma contradição:<br />

não faz senti<strong>do</strong>! – afirma, admitin<strong>do</strong> que gosta muito <strong>de</strong> tocar e ser toca<strong>da</strong>. Mas a pele<br />

<strong>de</strong>s/cama<strong>da</strong> continua a coçar, como se quisesse dizer coisas que não são <strong>do</strong> sujeito, para<br />

cessar a sensação in<strong>de</strong>finível que o pruri<strong>do</strong> provoca e o consequente ruí<strong>do</strong> que causa<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.<br />

O sujeito B., por sua vez, sofre com os <strong>de</strong>sarranjos que o acometem ca<strong>da</strong> vez em que<br />

é confronta<strong>do</strong> com uma situação em que tenha que <strong>da</strong>r prova <strong>de</strong> sua virili<strong>da</strong><strong>de</strong>. A pré/tensa<br />

relação sexual, como diz, configura-se como o maior <strong>de</strong>les e, só <strong>de</strong> pensar, a barriga começa a<br />

fazer um barulho estranho, ronca sem parar, culminan<strong>do</strong> numa <strong>de</strong>sinteria que o <strong>de</strong>ixa sem<br />

consistência. Ele se lembra <strong>de</strong> que, quan<strong>do</strong> criança, se excitava quan<strong>do</strong> ficava acor<strong>da</strong><strong>do</strong> na<br />

cama escutan<strong>do</strong> barulhos vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quarto <strong>do</strong>s pais, e só <strong>do</strong>rmia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvir os roncos <strong>do</strong><br />

pai, quan<strong>do</strong> se assegurava <strong>de</strong> que não haveria mais relação sexual entre eles. Isso o ator<strong>do</strong>ava.<br />

130


Pontuo: Sua barriga também ronca! Como indica Lacan (1975-1976), só é possível liberar<br />

algo <strong>do</strong> sintoma pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no<br />

significante que ressoe (p.18).<br />

No processo <strong>de</strong> associação livre, o sujeito B. <strong>de</strong>ixa entreverem-se alusões às<br />

experiências esqueci<strong>da</strong>s. Esse barulho retorna: Sonhei que tinha relações sexuais com uma<br />

mulher, uma mulher mu<strong>da</strong> – relata. Diz que as mulheres, quan<strong>do</strong> falam o acessam, mas que<br />

nenhuma mulher po<strong>de</strong> acessá-lo por inteiro, senão ele esgarça, como um teci<strong>do</strong>. E acrescenta:<br />

O melhor <strong>encontro</strong> sexual é mesmo no silêncio! O dito encobre um dizer – o real – que ex-<br />

siste no sujeito e que se anuncia assim: não há relação sexual – senão como interdição, no<br />

silêncio. Em Alíngua também é nó, diz Gerbase (2010, p. 65): ain<strong>da</strong> que se possa representar e<br />

discernir os ditos resta sempre algo que não se representa e que não se diz. A palavra falta e<br />

isto é sintoma <strong>do</strong> real.<br />

Sintoma <strong>do</strong> real? De que se trata? Sim, quero a palavra última que também é tão<br />

primeira que já se confun<strong>de</strong> com a parte intangível <strong>do</strong> real (Lispector, 1998, p.12). Seguir o<br />

fio <strong>do</strong> discurso analítico, segun<strong>do</strong> Lacan (1972-1973, p. 61), ten<strong>de</strong> para refraturar, marcar<br />

com uma curvatura própria, a <strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alíngua.<br />

Retorno às fontes freudianas, aos primórdios, quan<strong>do</strong> Freud concebe o sintoma como<br />

resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma eventuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> história, na qual o sujeito era acometi<strong>do</strong> <strong>de</strong> algo,<br />

inassimilável, que lhe vinha <strong>de</strong> fora – o trauma.<br />

Desconheci<strong>do</strong>s para o próprio sujeito, os sintomas causam sofrimento, ao mesmo<br />

tempo em que expressam a realização <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo, pois resultam <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> gozar <strong>do</strong><br />

131


sujeito. Em lugar <strong>de</strong> modificar o mun<strong>do</strong> externo para a satisfação, a modificação se dá no<br />

próprio corpo <strong>do</strong> sujeito.<br />

Freud (1896, p. 185) constatou que, em qualquer caso e em qualquer sintoma, chega-<br />

se infalivelmente ao campo <strong>do</strong> gozo sexual. Embora a presença <strong>da</strong> significação <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

na etiologia <strong>da</strong>s neuroses, como substituto sexual, já tivesse chama<strong>do</strong> a atenção <strong>de</strong> Freud<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras observações clínicas, naquela ocasião, como ele mesmo disse, ele não<br />

tinha ain<strong>da</strong> aprendi<strong>do</strong> a reconhecê-la como seu <strong>de</strong>stino inexorável, como impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

relação sexual.<br />

Esse não saber que se revela no sintoma, e em outras formações <strong>do</strong> inconsciente,<br />

conduziu Freud a elaborar a hipótese sobre o inconsciente, que Lacan, em seu retorno a Freud,<br />

enunciou como estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem. Com a linguagem, como diz Lispector<br />

(1999, p. 176): Eu tenho à medi<strong>da</strong> que <strong>de</strong>signo – e este é o esplen<strong>do</strong>r <strong>de</strong> se ter uma<br />

linguagem. Mas eu tenho muito mais à medi<strong>da</strong> que não consigo <strong>de</strong>signar. A linguagem é a<br />

matéria-prima, o real é o lugar on<strong>de</strong> vou buscá-la – e como não acho. Posteriormente, Lacan<br />

acrescenta que o inconsciente é estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem nos efeitos <strong>de</strong> alíngua, que<br />

já estão lá como saber, vão bem além <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que o ser que fala é suscetível <strong>de</strong> enunciar<br />

(Lacan, 1972-1973 p.190).<br />

O sintoma é um evento no corpo (Lacan, 1976, p. 565). Para Lacan, há o corpo<br />

imaginário, o corpo que encontra uni<strong>da</strong><strong>de</strong> com a antecipação <strong>da</strong> imagem corporal, quan<strong>do</strong> a<br />

criança, captura<strong>da</strong> pelo engo<strong>do</strong> especular, fabrica fantasias, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma imagem<br />

<strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong> <strong>do</strong> corpo até a forma <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste. Mas é a linguagem que conce<strong>de</strong> ao ser<br />

132


falante um corpo simbólico, esteja ele vivo ou morto. Com a sepultura, <strong>da</strong> morte emerge o<br />

símbolo que preserva o corpo <strong>do</strong> ser vivente. O simbólico tem, portanto, relação com a<br />

permanência <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que é humano e <strong>do</strong> próprio homem.<br />

O sintoma, como formação <strong>de</strong> significante, é uma metáfora, construí<strong>da</strong> como uma<br />

frase poética, que vale ao mesmo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus<br />

ritmos, sua sonori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tu<strong>do</strong> se passa em diversos planos, e tu<strong>do</strong> é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m e <strong>do</strong> registro <strong>da</strong><br />

linguagem (Lacan, 1953, p.24). Como observa Lacan, os sintomas <strong>de</strong> Dora, caso clínico <strong>de</strong><br />

Freud, são elementos significantes, mas na medi<strong>da</strong> em que sob eles corre um significa<strong>do</strong><br />

perpetuamente em movimento, que é a maneira como Dora aí se implica e se interessa (1956 -<br />

1957, p.149).<br />

Sobre a linguagem, diz Lispector (1999): A linguagem é meu esforço humano. Por<br />

<strong>de</strong>stino tenho que ir buscar e por <strong>de</strong>stino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o<br />

indizível. O indizível só me po<strong>de</strong>rá ser <strong>da</strong><strong>do</strong> através <strong>do</strong> fracasso <strong>de</strong> minha linguagem. Po<strong>de</strong>-se<br />

dizer que a linguagem toca o gozo – o indizível, o <strong>encontro</strong> <strong>do</strong> real como mostra o sonho<br />

paradigmático <strong>do</strong> Homem <strong>do</strong>s lobos: “Sonhei que era noite e que eu estava <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> na cama.<br />

[...] De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterroriza<strong>do</strong> ao ver que alguns lobos<br />

brancos estavam senta<strong>do</strong>s na gran<strong>de</strong> nogueira em frente <strong>da</strong> janela. Havia seis ou sete <strong>de</strong>les.<br />

[...] Com gran<strong>de</strong> terror, evi<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> ser comi<strong>do</strong> pelos lobos, gritei e acor<strong>de</strong>i” (FREUD,<br />

1918 [1914], p. 45).<br />

Além <strong>da</strong> sensação dura<strong>do</strong>ura <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que o sonho <strong>de</strong>ixou após o <strong>de</strong>spertar, <strong>do</strong>is<br />

fatores foram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s pelo paciente: o olhar atento <strong>do</strong>s lobos, como se tivessem fixa<strong>do</strong><br />

133


to<strong>da</strong> a atenção sobre ele, e sua própria imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> diante <strong>de</strong>sse olhar. Por trás <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

sonho, e<strong>xi</strong>stia provavelmente uma cena <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, que ocorrera havia muito tempo.<br />

Em A terceira (1975), Lacan diz que o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, que retorna sempre<br />

ao mesmo lugar, que não cessa <strong>de</strong> se repetir para impedir o an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s coisas – uma pedra<br />

no meio <strong>do</strong> caminho. O sintoma segue na contramão <strong>do</strong> projeto i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> e e<strong>xi</strong>toso <strong>do</strong><br />

sucesso no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s; por outro la<strong>do</strong>, no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> um, <strong>do</strong> singular, as coisas<br />

caminham <strong>de</strong> forma satisfatória. Eis a política <strong>do</strong> sintoma.<br />

A mulher <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> e o homem <strong>do</strong> ronco po<strong>de</strong>m ser nomes próprios, respectivamente,<br />

<strong>do</strong>s sujeitos A. e B., nomes <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> sintoma, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ser falante. Ruí<strong>do</strong> e ronco<br />

são, assim como lobos, significantes <strong>da</strong> alíngua.<br />

REFERÊNCIAS<br />

FREUD, S. A etiologia <strong>da</strong> histeria (1896). In: Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira <strong>da</strong>s obras<br />

psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1980. v. 3.<br />

______. História <strong>de</strong> uma neurose infantil (1918 [1914]). In: _____. Edição stan<strong>da</strong>rd <strong>brasil</strong>eira<br />

<strong>da</strong>s obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1980. v. 17.<br />

GERBASE, J. Alíngua também é nó, 2010.<br />

LACAN, J. O Seminário – livro 4: a relação <strong>de</strong> objeto (1956-1957). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />

1995.<br />

______. O Seminário – livro 20: mais ain<strong>da</strong> (1972-1973). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1982.<br />

______. O Seminário – livro 23: o sintoma (1975-1976). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, ?<br />

______. O simbólico, o imaginário e o real (1953). In: Nomes-<strong>do</strong>-Pai. Tradução André Telles.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2005.<br />

______. Joyce, o Sintoma (1976). In: Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 2003.<br />

134


______. A terceira (1975). Inédito.<br />

LISPECTOR, C. Água Viva. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1998.<br />

______. A paixão segun<strong>do</strong> GH. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1999.<br />

135


Consi<strong>de</strong>rações sobre o gozo em um caso clínico <strong>de</strong> psoríase 1<br />

Heloísa Helena Aragão e Ramirez 2<br />

Tatiana Carvalho Assadi 3<br />

“... o que mais e<strong>xi</strong>ste <strong>de</strong> mim mesmo está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> fora, não tanto porque eu o tenha<br />

projeta<strong>do</strong>, mas por ter si<strong>do</strong> corta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mim...” (Lacan, 1962-1663) 4<br />

Helena fora indica<strong>da</strong> para fazer análise por outra paciente que também “lutava contra a<br />

psoríase”, uma indicação que passou sem dúvi<strong>da</strong> pela suposição <strong>de</strong> saber uma vez que a analista<br />

estava vincula<strong>da</strong> à coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> projeto aloca<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele (UNIFESP): “Aspectos<br />

Psicológicos <strong>do</strong> Paciente com Vitiligo e Psoríase” liga<strong>do</strong> à Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Sintoma e Corporei<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> FCL-<br />

SP. No entanto, nesse primeiro momento a transferência não estava coloca<strong>da</strong> na suposição <strong>de</strong> saber<br />

sobre o sujeito <strong>do</strong> inconsciente, como é <strong>de</strong> se esperar em um caso <strong>de</strong> análise, mas numa suposição <strong>de</strong><br />

saber sobre o objeto psoríase, com o qual Helena convivia há muito mais <strong>de</strong> 30 anos. Tanto foi assim<br />

que pediu à analista a indicação <strong>de</strong> um médico que pu<strong>de</strong>sse ajudá-la a se livrar <strong>de</strong> uma vez por to<strong>da</strong>s,<br />

“<strong>de</strong>ssa coisa horrorosa”, disso que “impregnou seu corpo”. Mostrou-se esperançosa e reanima<strong>da</strong> pela<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um “tratamento novo, mais abrangente” que conciliaria os avanços <strong>da</strong> medicina,<br />

1 O trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele <strong>da</strong> UNIFESP nos colocou em contato com a psoríase, <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> pele que no<br />

Brasil atinge mais <strong>de</strong> cinco milhões <strong>de</strong> pessoas. Trata-se <strong>de</strong> uma afecção crônica <strong>de</strong> causa <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong> que po<strong>de</strong> se<br />

apresentar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> formas mínimas com pouquíssimas lesões até a chama<strong>da</strong> psoríase eritrodérmica, na qual to<strong>da</strong> a pele se<br />

encontra comprometi<strong>da</strong>. A forma mais frequente é a psoríase em placas, que se caracteriza pelo surgimento <strong>de</strong> lesões<br />

avermelha<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>scamativas na pele. Em boa parte <strong>do</strong>s casos, consi<strong>de</strong>ra-se que fenômenos emocionais estão relaciona<strong>do</strong>s<br />

com o surgimento ou o agravamento <strong>da</strong> psoríase, associa<strong>do</strong> a uma predisposição genética para a <strong>do</strong>ença. O mal estar<br />

geralmente é causa<strong>do</strong> pela coceira e pelo pruri<strong>do</strong> provoca<strong>do</strong>, e, especialmente, nos casos mais severos, pelo aspecto <strong>da</strong>s<br />

lesões.<br />

2 – heloramirez@gmail.com<br />

3 – tatiassadi@uol.com.br<br />

4 LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia[1962-1963]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2005.<br />

136


cuja expectativa era por um fim às feri<strong>da</strong>s <strong>de</strong> seu corpo, mais a aju<strong>da</strong> <strong>da</strong> psicanálise. Lacan em a<br />

Terceira 5 diz e<strong>xi</strong>ste uma expectativa <strong>de</strong> um ê<strong>xi</strong>to <strong>da</strong> psicanálise: “O que lhe pedimos é que ela nos<br />

livre tanto <strong>do</strong> real quanto <strong>do</strong> sintoma”. Mas sabemos, enquanto psicanalistas, que não é <strong>de</strong>ste lugar<br />

que <strong>de</strong>vemos respon<strong>de</strong>r. Foi justamente isso que me fez rever este caso, pensar o que operou e qual<br />

foi o manejo que produziu um efeito terapêutico e reduziu a psoríase à zero. Diferentemente <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> médica cujo princípio é eliminar o sintoma, para a psicanálise “o sintoma é uma formação<br />

<strong>de</strong> gozo singular <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ou or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> pelo inconsciente” 6 , e atua como ‘solução’ uma vez que<br />

surge na suplência ao “corpo a corpo <strong>de</strong> gozo”. A questão que está posta é “saber se e como a<br />

psicanálise, que opera pela palavra, dá um acesso eficiente a algo <strong>do</strong> corpo que seria real.” 7<br />

O que <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Helena foi subtraí<strong>do</strong> e inscrito no real <strong>do</strong> corpo? Nos primeiros <strong>encontro</strong>s<br />

com o dispositivo <strong>de</strong> análise ela se limitou a <strong>de</strong>screver o longo percurso que trilhou e os <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong><br />

sua peregrinação na busca <strong>de</strong> algo que resolvesse sua psoríase. A analista manteve o silêncio durante<br />

boa parte <strong>da</strong>s entrevistas, e que foi interrompi<strong>do</strong> pela a questão: “Pare... Diga-me o que veio fazer<br />

aqui?” Surpresa pela repentina interrupção em sua falação, Helena consegue respon<strong>de</strong>r: “eu sei que<br />

boa parte <strong>do</strong> meu mal tem a ver com minha cabeça. Eu sei que tu<strong>do</strong> tem a ver com o meu emocional.<br />

Eu sei que você po<strong>de</strong> me aju<strong>da</strong>r”. Estabelecia-se aí um reposicionamento <strong>da</strong> analista, o início <strong>de</strong> uma<br />

transferência e uma mo<strong>de</strong>sta implicação com o dispositivo <strong>de</strong> análise.<br />

Foi o choro convulsivo e copioso o quê marcou, <strong>da</strong>í para frente, as entrevistas<br />

preliminares. Ao sentar-­‐se na poltrona <strong>do</strong> consultório, invariavelmente, a garganta <strong>de</strong> Helena<br />

5<br />

A Terceira. 7° Congresso <strong>da</strong> Ecole Freudianne <strong>de</strong> Paris, 31/10/1974<br />

6<br />

Soler, C. “Sintoma, Acontecimento <strong>de</strong> corpo” in Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus “O Corpo Falante”. RJ, EPFCL, 2010. (p.31-­‐<br />

52)<br />

7<br />

Soler, C. “A psicanálise e o corpo no ensino <strong>de</strong> Jacques Lacan” in Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus “O Corpo Falante”. RJ,<br />

EPFCL, 2010 (p.65-­‐91)<br />

137


se embargava impedin<strong>do</strong>-­‐a <strong>de</strong> falar livremente. Sua voz se ouvia entrecorta<strong>da</strong> por soluços, sons<br />

e funga<strong>da</strong>s e, muitas vezes apenas grunhi<strong>do</strong>s. Nestes momentos aflitivos esperava-­‐se um<br />

tempo para que se recuperasse <strong>da</strong> angústia que a experiência suscitava até que pu<strong>de</strong>sse<br />

articular alguma fala. Em algumas sessões apenas sons, sem senti<strong>do</strong>, nenhuma palavra, não<br />

sabia o que dizer e nem porque o choro aflorava quan<strong>do</strong> estava com a analista. Helena não<br />

compreendia o que se passava, era algo mais forte <strong>do</strong> que ela, alguma coisa que fugia ao seu<br />

controle. Estes episódios me fizeram pensar em algo como uma re-­‐atualização <strong>de</strong> lalíngua.<br />

Seria possível? Um som separa<strong>do</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, mas afeta<strong>do</strong>, goza<strong>do</strong> pelo corpo, um som re-­‐<br />

atualiza<strong>do</strong> na experiência <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> uma erupção <strong>de</strong> gozo cuja origem aconteceu mesmo<br />

antes <strong>da</strong> fala primeira? Esta é uma questão que merece consi<strong>de</strong>ração maior e que <strong>de</strong>ixo aqui<br />

para futura discussão.<br />

Extraí <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Helena alguns pontos importantes para relatar. Somente agora que<br />

ela estava com quase 60 anos resolvera procurar por uma análise. Vivera to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> abala<strong>da</strong><br />

pela tristeza. “Sozinha” não tinha com quem contar. Havia muito tempo que sua família se<br />

“acabara”. Hoje só tem um irmão vivo e não consegue se enten<strong>de</strong>r com ele. Mas, sempre foi<br />

assim: “sozinha”! Tinha apenas <strong>de</strong>z anos na época em que sua mãe morrera, foi terrível porque<br />

“ain<strong>da</strong> precisava muito <strong>de</strong>la”. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Helena começou a sentir a falta <strong>da</strong> mãe pelo menos<br />

uns <strong>do</strong>is anos antes <strong>de</strong> sua morte quan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>ença começou a se agravar e a se tornar<br />

insuportável. Ela <strong>de</strong>finhava a ca<strong>da</strong> dia e sua ausência se fazia sentir em presença. Lembra-­‐se<br />

que ela gemia e chorava bai<strong>xi</strong>nho e que <strong>de</strong> seu quarto podia ouvir os seus ais e os soluços <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>r. O vômito e as cuspara<strong>da</strong>s também faziam muito barulho, ficavam ecoan<strong>do</strong> em seus<br />

138


ouvi<strong>do</strong>s ao ponto <strong>de</strong> precisar tapá-­‐los para conseguir <strong>do</strong>rmir. Recor<strong>da</strong>-­‐se <strong>da</strong> impotência <strong>do</strong> pai<br />

diante <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> mãe e relata uma cena on<strong>de</strong> o vê senta<strong>do</strong> numa ca<strong>de</strong>ira, com as mãos na<br />

cabeça como se a apertasse, choran<strong>do</strong> <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong> “feito uma criança. Me <strong>de</strong>u muita pena <strong>de</strong>le,<br />

nunca mais consegui esquecer isso”, diz.<br />

Outras cenas, porém <strong>da</strong>ntescas, povoavam seus pensamentos. Na primeira <strong>de</strong>las, sua mãe<br />

encantrava-­‐se senta<strong>da</strong> à beira <strong>da</strong> cama, muito páli<strong>da</strong>, seguran<strong>do</strong> nas mãos um penico cheio <strong>de</strong><br />

sangue. “Ela cuspia sangue. Era um horror”. Aquele foi um perío<strong>do</strong> marca<strong>do</strong> por uma série <strong>de</strong><br />

acontecimentos carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>salento e que ficaram para sempre em sua memória. No dia<br />

em que a mãe morreu Helena voltou <strong>da</strong> escola e levou um gran<strong>de</strong> susto. Ao entrar na sala<br />

<strong>de</strong>parou-­‐se com o caixão ilumina<strong>do</strong> apenas pelas velas acesas em meio à sala escura. Naquele<br />

tempo era costume velar os mortos em casa e forravam-­‐se as pare<strong>de</strong>s com um pano preto<br />

numa <strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> luto em que se viam envolvi<strong>do</strong>s os familiares já que o preto era a<br />

representação <strong>do</strong> na<strong>da</strong> <strong>da</strong> ausência e <strong>da</strong> escuridão. Helena disse que foi um “horror” tão gran<strong>de</strong><br />

que ela saiu <strong>da</strong> sala gritan<strong>do</strong> e choran<strong>do</strong>. “O meu pai teve o bom senso <strong>de</strong> não me <strong>de</strong>ixar ir ver o<br />

enterro <strong>de</strong>la”. Helena diz que “o mais impressionante” acontecimento <strong>da</strong>queles tempos foi o<br />

fato <strong>de</strong> que para ela era como se a mãe não tivesse morri<strong>do</strong>. Passou anos mentin<strong>do</strong> para as<br />

colegas <strong>do</strong> colégio, fingin<strong>do</strong> que sua mãe estava viva. Quan<strong>do</strong> alguém perguntava pela mãe ela<br />

tinha sempre uma resposta pronta ou criava uma nova história. Dizia: “minha mãe não gosta;<br />

ou minha mãe não quer que eu fique na rua; minha mãe não <strong>de</strong>ixa; tenho que ir para casa<br />

porque minha mãe tá esperan<strong>do</strong>, etc.”. Deixou <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> festa <strong>de</strong> formatura <strong>do</strong> colégio<br />

porque não tinha como apresentar a mãe. Estas lembranças foram, nas sessões, sempre<br />

139


acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> muita angústia e comoção. Helena <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>da</strong> analista uma resposta sobre<br />

a razão <strong>de</strong> fazer o que fazia. Porque não dizia que a mãe já estava morta? “Tem <strong>de</strong> haver<br />

alguma razão, sabe eu sinto falta <strong>de</strong>la até hoje. Morrer o pai é difícil, mas a mãe...”<br />

Foram mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos alimentan<strong>do</strong> a fantasia <strong>de</strong> que a mãe estava viva. Uma estratégia<br />

para não sofrer a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> luto. Sem per<strong>da</strong>, não há separação. Foi à concreção imaginária <strong>do</strong><br />

objeto <strong>de</strong> amor perdi<strong>do</strong> que garantiu a Helena sustentar a falta que a mãe lhe fez privan<strong>do</strong>-­‐a <strong>de</strong><br />

proteção e amor. A invocação <strong>de</strong>ste espectro assegurava-­‐lhe a ilusão <strong>de</strong> que ela estava viva<br />

suprin<strong>do</strong>-­‐a, <strong>de</strong>sta forma <strong>do</strong> <strong>de</strong>samparo avassala<strong>do</strong>r. Não era uma visão fantasmagórica no<br />

senti<strong>do</strong> clássico <strong>da</strong> palavra: quimérica e assusta<strong>do</strong>ra que aparece inoportunamente. Ao<br />

contrário era uma fixação, uma obsessão protetora que garantia sua sobrevivência <strong>da</strong>n<strong>do</strong>-­‐lhe<br />

forças para o: “eu aprendi tu<strong>do</strong> na rua, <strong>do</strong> jeito que <strong>de</strong>u, com as amigas”. Levanto aqui a<br />

hipótese <strong>de</strong> que esta não era uma simples falta que se substituiria por algum outro objeto, mas<br />

algo com valor <strong>de</strong> um furo, insubstituível, que fazia <strong>de</strong>saparecer o lugar na combinatória, a falta<br />

no lugar <strong>do</strong> Outro. Helena não conseguiu re-­‐atualizar esta falta fun<strong>da</strong>mental, porque não havia<br />

a condição para isso: não tinha ao seu la<strong>do</strong> o Outro <strong>de</strong>sejante. O lugar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre vazio que<br />

não po<strong>de</strong> ser ocupa<strong>do</strong> pela mãe, ela própria impotente, abriga o seu fantasma como forma <strong>de</strong><br />

cerzidura. “É na medi<strong>da</strong> em que a criança <strong>de</strong>scobre que o Outro <strong>de</strong>seja, que po<strong>de</strong>rá, por sua vez,<br />

<strong>de</strong>sejar sob a forma <strong>de</strong> um objeto que lhe retornaria como falta”. 8<br />

Os momentos <strong>de</strong>stas lembranças provocaram efeitos importantes na análise. A primeira<br />

cena, a <strong>do</strong> sangue, certamente faz referência à dimensão <strong>do</strong> real apontan<strong>do</strong> para um objeto não<br />

8 Nasio, J.-­‐D., Psicossomática – As formações <strong>do</strong> objeto a. 1993 RJ, JZE .<br />

140


especular próprio <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina. A segun<strong>da</strong> cena mostra o horror à morte irrompi<strong>do</strong><br />

pela presença implacável <strong>do</strong> corpo inerte, sem vi<strong>da</strong>. Cenas que apontam para o real em jogo e<br />

para um gozo específico.<br />

Os primeiros pontos <strong>de</strong> psoríase apareceram nos joelhos e cotovelos logo <strong>de</strong>pois que se<br />

menstruou pela primeira vez. Ficou apavora<strong>da</strong>. Não tinha com quem falar sobre isso. Não sabia<br />

muito bem o que fazer com to<strong>do</strong> aquele sangue. Teve que se “virar” sozinha. Passan<strong>do</strong> o impacto <strong>da</strong><br />

menarca começaram a aparecer os primeiros pontinhos vermelhos, que só a incomo<strong>da</strong>vam pelo fato<br />

<strong>de</strong> coçar. Fez inúmeros tratamentos, passou por <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> médicos <strong>de</strong>rmatologistas e outras opções<br />

alternativas. Por ser um a <strong>do</strong>ença crônica enfrentou diversas crises, <strong>de</strong> maior ou menor amplitu<strong>de</strong> ao<br />

longo <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> ocasião atravessou uma bem forte em que teve sua pele afeta<strong>da</strong><br />

em quase 70%. As lesões estavam muito feias, a pele escamava e coçava sem parar. Como estava<br />

“muito ataca<strong>da</strong>” <strong>da</strong> psoríase, procurou um curan<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> quem havia obti<strong>do</strong> ótimas referências. Ele<br />

lhe ofereceu uma medicação cuja fórmula era composta com uma boa <strong>do</strong>se <strong>de</strong> cortisona. Helena<br />

sabia que a formulação continha a droga, mas não sabia <strong>do</strong>s efeitos colaterais que ela provocava e<br />

fez uso contínuo <strong>da</strong> solução. A psoríase <strong>de</strong>sapareceu no tempo em que usou o remédio. Alerta<strong>da</strong> pelo<br />

farmacêutico que lhe aplicava as injeções e diante <strong>do</strong> inchaço que apareceu em seu rosto parou <strong>de</strong><br />

usar a medicação. O efeito rebote 9 foi imediato, “um horror”, se viu ataca<strong>da</strong> por uma psoríase<br />

extremamente acentua<strong>da</strong>. No entanto, esta experiência foi importante para que conhecesse o efeito<br />

que a cortisona tem <strong>de</strong> “limpar” a pele quase que instantaneamente. Daí para frente Helena passa a<br />

fazer um uso conveniente <strong>do</strong> remédio sempre que tinha um <strong>encontro</strong> com alguém e sua pele estava<br />

9 O efeito rebote é a tendência que um medicamento tem <strong>de</strong> provocar o retorno <strong>do</strong>s sintomas que estão sen<strong>do</strong><br />

trata<strong>do</strong>s. Em casos extremos <strong>de</strong> efeito rebote o reaparecimento <strong>do</strong>s sintomas po<strong>de</strong>rão ser mais graves que no<br />

início <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença.<br />

141


“ataca<strong>da</strong>” besuntava-se com uma poma<strong>da</strong> e se livrava <strong>do</strong> constrangimento <strong>de</strong> sentir a mão <strong>do</strong><br />

companheiro no seu corpo áspero. Estes eram tempos <strong>de</strong> amor quan<strong>do</strong> oferecia seu corpo,<br />

narcisicamente investi<strong>do</strong> ao outro.<br />

Porque privilegiar esta história e o que nesta história foi pinça<strong>do</strong> como fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong><br />

clínica? Seguramente, porque aqui repercute a forma como foi escrita e que se repete quase<br />

que invariavelmente em outros casos que temos atendi<strong>do</strong> no Instituto <strong>da</strong> Pele quan<strong>do</strong> se trata<br />

<strong>de</strong> algo como psicossomática. Foi escrita no corpo, ou melhor, inscrita no corpo, incrusta<strong>da</strong> na<br />

carne em forma <strong>de</strong> lesão, uma linguagem que não passou pela simbolização, uma escrita<br />

hieroglífica, ilegível, in<strong>de</strong>cifrável, mas, que po<strong>de</strong> perfeitamente se revelar, já que fenômeno<br />

psicossomático é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> mostração.<br />

Retoman<strong>do</strong> a teoria, na fun<strong>da</strong>mentação <strong>do</strong> fenômeno psicossomático o que ocorre é uma<br />

incidência <strong>do</strong> significante sobre o corpo em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um fracasso <strong>da</strong> função <strong>do</strong> Nome-­‐<strong>do</strong>-­‐Pai,<br />

um holofraseamento, permitin<strong>do</strong> que se estruture alguma coisa que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> letra. S1<br />

cola em S2, sem o intervalo que possibilita a divisão <strong>do</strong> sujeito. Como não e<strong>xi</strong>ste intervalo, não<br />

e<strong>xi</strong>ste também objeto perdi<strong>do</strong>, estilhaços pulsionais. O sujeito é compacta<strong>do</strong> ao objeto. É como<br />

se to<strong>do</strong> o narcisismo se concentrasse nessa “marca que é antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> uma assinatura”... Além<br />

disso, Lacan 10 fala em auto-erotismo sem relação <strong>de</strong> objeto, e precisa, “que a indução<br />

significante, no nível <strong>do</strong> sujeito se passa <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que não coloca em jogo a afânise”,<br />

10 LACAN, J. (1961) O Seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, JZE, 1973 – 3ªed., p. 215.<br />

142


eferin<strong>do</strong>-­‐se a uma espécie <strong>de</strong> bloqueio, “<strong>de</strong> congelamento <strong>do</strong> significante no corpo, um curto<br />

circuito que será responsável pelas manifestações corporais”. 11<br />

Isso significa que o sistema significante per<strong>de</strong> sua consistência, já que um significante não<br />

se remete mais a outro significante. Assim, conforme Nasio 12 “há um objeto, e <strong>de</strong>pois uma<br />

chama<strong>da</strong> significante que não teve resposta significante, mas teve uma resposta <strong>de</strong> objeto. A<br />

psoríase é uma resposta objeto para uma chama<strong>da</strong> significante, um significante remete a uma<br />

psoríase.” Um significante é inventa<strong>do</strong> que não é <strong>do</strong> Outro, é <strong>do</strong> Um, diferente <strong>do</strong>s outros e tem<br />

valor <strong>de</strong> real.<br />

No entanto, o que faz a psicanálise operar diante <strong>de</strong> um acontecimento <strong>de</strong> corpo, cujos<br />

significantes estão encarna<strong>do</strong>s, ou ain<strong>da</strong> qual é a direção <strong>do</strong> tratamento diante <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> corpo<br />

pelo fenômeno? Retomo Lacan 13 : “É por esse viés, pela revelação <strong>do</strong> gozo específico que há na sua<br />

fixação que sempre é preciso visar abor<strong>da</strong>r o psicossomático.” De que gozo específico se trata no<br />

psicossomático? Trata-se <strong>de</strong> um gozo fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, um gozo que ex-siste ao senti<strong>do</strong>, um gozo<br />

corta<strong>do</strong> <strong>da</strong> relação com o Outro, auto-erótico, um gozo <strong>do</strong> corpo próprio. Um gozo que nos remete a<br />

uma foraclusão <strong>da</strong> significação fálica, portanto, <strong>do</strong> gozo fálico. No caso em questão vimos,<br />

claramente, a prevalência <strong>do</strong> imaginário sobre o real. Não havia equivalência entre as consistências.<br />

A estratégia foi fazer o sujeito trabalhar na elaboração <strong>do</strong> luto, isto é na simbolização <strong>do</strong> que há <strong>de</strong><br />

mais fun<strong>da</strong>mental: o <strong>de</strong>samparo, o que incindiu no para além <strong>do</strong> horror. Para isso foi necessário, <strong>de</strong><br />

11 Este parágrafo também faz parte <strong>do</strong> artigo A Fantasia Encarna<strong>da</strong>: um estu<strong>do</strong> sobre o fenômeno<br />

psicossomático. Heloísa Helena Aragão e Ramirez & Christian Ingo Lenz Dunker.<br />

12 NASIO. J.-­‐D. “Psicossomática” – as formações <strong>do</strong> objeto a. RJ, JZE, 1983.<br />

13 In Conferência em Genebra sobre o sintoma.<br />

143


fato, per<strong>de</strong>r a mãe, o objeto ama<strong>do</strong>, o que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou sessões tão angustiantes. Paralelamente o<br />

sujeito trabalhou com o gozo implica<strong>do</strong> no significante “sozinha” e no laço que isso fazia com a<br />

psoríase, e com a <strong>do</strong>r, já que Helena “sentiu na pele” o aban<strong>do</strong>no. “... pois o que eu chamo <strong>de</strong> gozo,<br />

no senti<strong>do</strong> em que o corpo se experimenta, é sempre <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> tensão, <strong>do</strong> forçamento, <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa e<br />

até mesmo <strong>da</strong> façanha. Incontestavelmente, há gozo no nível em que começa a aparecer a <strong>do</strong>r, e<br />

sabemos que é somente nesse nível <strong>da</strong> <strong>do</strong>r que se po<strong>de</strong> experimentar to<strong>da</strong> uma dimensão <strong>do</strong><br />

organismo que, <strong>de</strong> outra forma, permanece vela<strong>da</strong>.” 14<br />

Mas, Helena não conseguiu sustentar a experiência e vai-­‐se embora. Diz para analista:<br />

“chega não agüento mais, não quero mais sofrer, vou parar <strong>de</strong> vir aqui, não estou suportan<strong>do</strong>!”<br />

Restou à analista o sentimento <strong>de</strong> não ter sabi<strong>do</strong> manejar a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente a angústia.<br />

Pouco antes <strong>do</strong> Natal Helena man<strong>do</strong>u notícias por uma amiga. Pediu-­‐lhe para me dizer<br />

que estava muito bem, sem angústias e sem a psoríase. Estava “limpa <strong>de</strong> corpo e alma” e que<br />

agra<strong>de</strong>cia aos céus, to<strong>do</strong>s os dias, o tempo em que esteve em análise. Foi bom saber disto. No<br />

entanto, se o paciente melhorou ou não, não é disso que se trata se pensarmos no sintoma<br />

como uma solução inconsciente <strong>da</strong><strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> um “diante <strong>do</strong> enigma <strong>do</strong> corpo e seu saber” 15 . No<br />

entanto, penso que o fenômeno psicossomático é um acontecimento <strong>de</strong> corpo diferente <strong>do</strong><br />

acontecimento <strong>de</strong> corpo <strong>da</strong><strong>do</strong> pela via <strong>da</strong> histeria. É um fenômeno <strong>de</strong> corpo é “o <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong><br />

um corpo que em sua essência é silencioso.” 16 Não diz respeito à imisção <strong>do</strong> significante no<br />

corpo, mas a uma fixação, a uma colagem <strong>do</strong> par S1 – S2. “Se evoquei uma metáfora como a <strong>do</strong><br />

14 LACAN, J. 1966, “O Lugar <strong>da</strong> psicanálise na medicina” in Opção Lacaniana n° 32<br />

15 Izcovich, L. O Corpo Sintoma. In Prelúdio para “O Mistério <strong>do</strong> Corpo Falante” maio/2010.<br />

16 I<strong>de</strong>m.<br />

144


congela<strong>do</strong>, é porque e<strong>xi</strong>ste, efetivamente, essa espécie <strong>de</strong> fixação... O corpo se <strong>de</strong>ixa levar para<br />

escrever algo <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número.” 17 Exatamente por isso é que Lacan recomen<strong>da</strong> tratar o<br />

psicossomático pelo viés <strong>do</strong> gozo. É preciso que o gozo tome um senti<strong>do</strong>. Assim, no manejo <strong>da</strong><br />

clínica com o paciente psicossomático é preciso fazê-­‐lo trabalhar para chegar ao “senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

que se trata”, já que ele se encontra profun<strong>da</strong>mente “arraiga<strong>do</strong> no imaginário” e para <strong>da</strong>r<br />

senti<strong>do</strong> ao gozo é preciso que se fale <strong>de</strong>le.<br />

17 Lacan, J. (1975) Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma In Opção Lacaniana – Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>. São<br />

Paulo, 1998, n°23, p 6-­‐16.<br />

145


Sinthome: o real <strong>do</strong> sintoma<br />

Maria <strong>da</strong>s Graças Soares 1<br />

“Sou um apanha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdícios.<br />

Amo os restos como as boas moscas.” Manoel <strong>de</strong> Barros<br />

Neste trabalho, <strong>de</strong> caráter introdutório, tentarei abor<strong>da</strong>r a relação <strong>de</strong> circulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

entre lalangue, sintoma e sinthome, como o <strong>de</strong>monstra a teoria lacaniana.<br />

Pré-história <strong>da</strong> linguagem no sujeito, lalangue é o tempo no qual o bebê, ain<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>ita<strong>do</strong> no berço, sofre os efeitos <strong>da</strong> lingua materna, que lhes <strong>de</strong>ixam marcas in<strong>de</strong>léveis no<br />

corpo. Tempo em que a linguagem para ele é ruí<strong>do</strong>, ou rumores humanos, que lhes <strong>de</strong>signa<br />

um lugar no campo <strong>do</strong> Outro, como um sujeito “escuta-<strong>do</strong>r”. Ali, apenas se articulam letra e<br />

gozo.<br />

Com o advento <strong>da</strong> linguagem ele mu<strong>da</strong> para a posição <strong>de</strong> um “fala-<strong>do</strong>r”, que, a<br />

posteriori, <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> num divã, po<strong>de</strong>rá se <strong>de</strong>slocar para a posição <strong>de</strong> um “fazer-<strong>do</strong>r” quan<strong>do</strong>,<br />

com a letra <strong>do</strong> alfabeto <strong>de</strong> lalangue escreve seu sinthome.<br />

Na última lição <strong>do</strong> Seminário 20, Lacan diz que lalangue, não é, senão, “rastro <strong>de</strong><br />

gozo on<strong>de</strong> a linguagem cavalga sobre ela”. Daí se concluir ser o significante uma invenção a<br />

partir <strong>de</strong> algo que já está lá para ser li<strong>do</strong>.<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>de</strong> Fortaleza<br />

146


A propósito <strong>da</strong> articulação entre lalangue e a construção <strong>do</strong> sinthome, pressupõe-se<br />

que e<strong>xi</strong>ste um meio. Esse meio é o “sintoma” <strong>do</strong> inicio <strong>de</strong> uma análise, que põe em cena o<br />

sujeito “conta-<strong>do</strong>r”, que com seu sintoma , dirige-se ao analista na forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>.<br />

Sujeito, por que é ele quem fala, mas o quê ele diz é lalangue que fala nele, pois elucubrar<br />

sobre lalangue é o que se faz numa análise.<br />

A propósito <strong>do</strong> sintoma e as transformações conceituais sofri<strong>da</strong>s na teoria, lembremos<br />

que algo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inicio permanece. Em Sintoma, Inibição e Angustia” Freud diz que “<br />

sintoma é gozo”.<br />

Para Lacan, no inicio <strong>de</strong> seu ensino, o sintoma era metáfora, mensagem dirigi<strong>da</strong> ao<br />

Outro, enigma, que uma vez <strong>de</strong>sven<strong>da</strong><strong>do</strong>, tinha efeito <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em “Função e campo <strong>da</strong><br />

fala e <strong>da</strong> linguagem”, embora ele diga, literalmente, que, “está perfeitamente claro que o<br />

sintoma, por ser pleno <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, se resolve por inteiro numa análise linguajeira”, já faz<br />

notar a coe<strong>xi</strong>stência, no sintoma, <strong>do</strong> simbólico e <strong>do</strong> real. Cito Lacan:“ o sintoma é símbolo<br />

inscrito na areia <strong>da</strong> carne e no véu <strong>de</strong> Maia.” O sintoma enquanto símbolo “inscrito”pertence<br />

ao campo <strong>do</strong> simbólico, mas “escrito” sob o véu <strong>de</strong> Maia, não estaria também no campo <strong>do</strong><br />

real? A titulo <strong>de</strong> esclarecimento, a expressão “Véu <strong>de</strong> Maia,” é usa<strong>da</strong> pelos orientais para<br />

dizer que “ver algo sob o véu <strong>de</strong> Maia faz também e<strong>xi</strong>stir o que não e<strong>xi</strong>ste, tamponan<strong>do</strong><br />

assim, a incompletu<strong>de</strong> tão angustiante para o sujeito. Sem ele, sem o véu <strong>de</strong> Maia, constata-se<br />

rapi<strong>da</strong>mente o “na<strong>da</strong>”. Em RSI Lacan confirma isso ao afirmar que já estava na idéia <strong>do</strong><br />

“Discurso <strong>de</strong> Roma” que o inconsciente ex-siste, que ele condiciona o Real.<br />

147


A partir <strong>do</strong> inicio <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970 Lacan se afasta <strong>do</strong> pensamento estruturalista,<br />

on<strong>de</strong> o simbólico <strong>de</strong>tinha primazia nas estruturas clinicas, para trabalhar com a perspectiva<br />

<strong>de</strong> uma equivalência entre os três registros, e,a estrutura <strong>do</strong> sujeito passa a ser <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>,<br />

pela forma <strong>de</strong> enlaçamento <strong>do</strong> simbólico, <strong>do</strong> imaginário e <strong>do</strong> real: RSI, SIR, IRS.<br />

Ao introduzir a teoria <strong>do</strong>s nós na segun<strong>da</strong> parte <strong>do</strong> seu ensino, o “discurso” ce<strong>de</strong> lugar<br />

à escrita. Enquanto no primeiro se privilegiava a produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, na escrita o que<br />

prevalece é o sem-senti<strong>do</strong>. Isso traz mu<strong>da</strong>nças cruciais no manejo <strong>da</strong> transferência, pois<br />

Lacan alerta que “o efeito <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> a se e<strong>xi</strong>gir <strong>do</strong> discurso analítico não é imaginário, não é<br />

também simbólico; é preciso que seja real”. A assertiva anterior <strong>de</strong> que o simbólico faz furo<br />

no real, sofre uma torsão e agora, é o real que faz furo no simbólico. Há um gozo no<br />

significante irredutível à significação. Na clinica, não se trata mais apenas <strong>de</strong> escuta, mas<br />

<strong>do</strong> que se “lê no que se escuta”. Por certo o sintoma está emaranha<strong>do</strong> em lalangue e é <strong>da</strong><strong>do</strong> na<br />

clinica pela repetição.<br />

A teoria <strong>do</strong>s nós constitui a ultima elaboração <strong>de</strong> Lacan sobre o sintoma, chegan<strong>do</strong> à<br />

escrita <strong>do</strong> inconsciente por meio <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia borromeana. Nela o sinthoma surge como o<br />

quarto elemento, que ao enlaçar os três registros - agora equivalentes entre si – produz uma<br />

ca<strong>de</strong>ia bo, e como nos lembra Lacan, “ se há equivalência, não há relação”. À falta <strong>de</strong> relação<br />

sexual, o sujeito respon<strong>de</strong> com o sinthoma: Cito: “ Sinthoma é a resposta que o sujeito<br />

encontra frente ao gozo <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> relação sexual”.<br />

148


No Seminário 23, Lacan <strong>de</strong>bruça-se sobre a obra <strong>de</strong> Joyce para teorizar a partir <strong>de</strong><br />

sua escrita. Para ele o escritor irlandês “acaba por ter visa<strong>do</strong> com sua arte, <strong>de</strong> maneira<br />

privilegia<strong>da</strong>, o quarto termo chama<strong>do</strong> sinthoma”.<br />

Artesão <strong>da</strong> literatura Joyce esculpe as palavras a partir <strong>de</strong> artifícios que cria com os<br />

rejuntes e recortes <strong>de</strong> fonemas, rompen<strong>do</strong> com a significação e e<strong>xi</strong>bin<strong>do</strong> o que se po<strong>de</strong> fazer<br />

com “lalangue”. Na conferência que Lacan proferiu no Blooms<strong>da</strong>y <strong>de</strong> 1975, ele batiza o<br />

escritor pelo nome “Joyce, o Sinthoma” por ele ter feito, com sua arte, o sinthome.<br />

Acrescenta: “ o sinthome é puramente o que lalangue condiciona e que o escritor conseguiu,<br />

com sua arte, elevar à potencia <strong>de</strong> linguagem, sem torná-lo analisável”.<br />

Uma breve passagem <strong>do</strong> “Retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem” torna evi<strong>de</strong>nte as razões<br />

que levaram a Lacan teorizar em cima <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong> Joyce. Uma breve passagem <strong>do</strong> livro é<br />

suficiente para nos <strong>da</strong>r essa clareza. Nela, Joyce consegue <strong>de</strong>spir o significante ‘xuxu”<strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong> sua significação e reduzi-lo ao “osso”escreven<strong>do</strong> apenas um resto sonoro<br />

“chuuuuuuuuuuu” , on<strong>de</strong> o leitor para lê-la terá que usar apenas a voz , provan<strong>do</strong> que a<br />

linguagem não se reduz apenas a produção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, a onomatopéia<br />

comum à sua escrita, remete ao mecanismo <strong>do</strong>s sonhos que tem seu ápice em seu ultimo<br />

trabalho “Finegans Wake” – narrativa <strong>de</strong>nsa que se inicia com uma palavra <strong>de</strong> 100 letras para<br />

<strong>de</strong>screver uma que<strong>da</strong>, e que o leitor para lê-la também terá que usar a própria voz como<br />

suporte <strong>da</strong> palavra, articulan<strong>do</strong> a escrita com a função <strong>da</strong> fonação. A partir <strong>de</strong>sses exemplos<br />

<strong>de</strong>nota-se que o texto <strong>de</strong> Joyce é uma escritura.<br />

149


Retornan<strong>do</strong> à função <strong>do</strong> sinthome na estrutura <strong>do</strong> sujeito, parto <strong>da</strong> seguinte questão: o<br />

sinthoma enquanto quarto elo na ca<strong>de</strong>ia borromeana, é próprio à estrutura neurótica? Se a<br />

resposta é afirmativa, como po<strong>de</strong>ria Lacan, pensá-lo em relação à Joyce?<br />

Lacan não diz que Joyce era psicótico. Diz, para usar suas palavras, que Joyce tinha<br />

“o pau um pouco mole”, e por isso precisou <strong>de</strong> sua arte para manter sua firmeza fálica. Sua<br />

arte, para Lacan, é o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro fia<strong>do</strong>r <strong>de</strong> seu falo, pois sem ela ele continuaria a ser um<br />

pobre diabo e não o herói que toma corpo em Stephen Hero, <strong>do</strong> “Retrato...” Sua arte - seu<br />

sinthome – fez funçao <strong>de</strong> S¹ que, ao <strong>da</strong>r força a seu ego, estabiliza sua estrutura ao torna-se o<br />

pai que nomeia. E é claro, observa Lacan, que a arte <strong>de</strong> Joyce é alguma coisa <strong>de</strong> tão particular<br />

que o termo sinthoma é <strong>de</strong> fato o que lhe convém, que enquanto suplência <strong>da</strong> carência <strong>do</strong><br />

nome <strong>do</strong> pai, dá à estrutura <strong>de</strong> Joyce um”ar” <strong>de</strong> neurose.<br />

Na primeira aula <strong>do</strong> seminário sobre Joyce, Lacan afirma ser o complexo <strong>de</strong> Édipo<br />

como tal, um sintoma. É na medi<strong>da</strong> em que o Nome-<strong>do</strong>-Pai é também o Pai <strong>do</strong> Nome, que<br />

tu<strong>do</strong> se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário”.<br />

A fórmula <strong>da</strong> metáfora paterna no primeiro tempo <strong>de</strong> seu ensino nos trás o Nome <strong>do</strong><br />

pai operan<strong>do</strong> como “S²”, em substituição ao <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> mãe; agora ele surge como S1,<br />

significante mestre que tem função <strong>de</strong> nomeação enquanto ato.<br />

Concluin<strong>do</strong>, retorno ao inicio, para me reportar à relação circular entre lalangue,<br />

sintoma e sinthoma, e assim, afirmar que lalangue está lá <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o inicio, sen<strong>do</strong> ela a condição<br />

<strong>da</strong> linguagem, e como observa Lacan “o equivoco toma conta <strong>de</strong> nossa lalangue, e o que ela<br />

tem <strong>de</strong> mais picante é o que posso escrever como “mais isso não”. Se diz tu<strong>do</strong>, mas isso não.<br />

150


Posso dizer que O mais isso não, aquilo que <strong>de</strong> lalangue não se po<strong>de</strong> dizer, é o que introduzo<br />

como sinthome.”Um resto, que, mesmo in<strong>de</strong>strutível, reciclável.<br />

Bibliografia<br />

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Topologia Y Psicanálisis. EFBA – Buenos Aires - 1994<br />

_______ - Função e campo <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> linguagem ( 1953) in Escritos, Zahar Ed.<br />

Rabinovitch, S. - Les Voix – Collection Point Hors Lingne – Ed. Erès – Paris Fr.<br />

151


Sintoma e Fantasia Fun<strong>da</strong>mental<br />

Soraya Carvalho 1<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>da</strong> concepção que o conceito <strong>de</strong> fantasia está subsumi<strong>do</strong> ao conceito <strong>de</strong><br />

sintoma, este trabalho preten<strong>de</strong> esclarecer a relação entre esses conceitos em momentos<br />

distintos <strong>do</strong> pensamento psicanalítico: inicialmente, a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> inconsciente<br />

estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, produzin<strong>do</strong> o sintoma na sua dimensão simbólica, e,<br />

posteriormente, <strong>do</strong> inconsciente na sua dimensão real, constituí<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong><br />

alíngua, produzin<strong>do</strong> o sintoma na sua dimensão real, o sintoma fun<strong>da</strong>mental.<br />

A clínica com histéricas levou Freud a consi<strong>de</strong>rar a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> fantasias<br />

inconscientes na vi<strong>da</strong> psíquica, bem como sua importância na formação <strong>do</strong>s sintomas,<br />

concluin<strong>do</strong> ser a fantasia a precursora <strong>do</strong>s sintomas histéricos.<br />

Lacan, por sua vez, em A lógica <strong>da</strong> fantasia 2 , <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> fantasia fun<strong>da</strong>mental a<br />

fantasia inconsciente, propon<strong>do</strong>-lhe a fórmula ($ ◊ a), on<strong>de</strong> reuniu <strong>do</strong>is elementos<br />

heterogêneos, um sujeito e um objeto, o objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, que no Encore 3 foi<br />

diversifica<strong>do</strong> em quatro: objeto seio, objeto fezes, objeto olhar e objeto voz. Para ele, a<br />

fantasia fun<strong>da</strong>mental é um a<strong>xi</strong>oma, uma significação absoluta, um resto aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema.<br />

Esse resto é o caráter real <strong>da</strong> fantasia, que Lacan reduziu a uma frase simbólica. E, se para<br />

Lacan a fantasia é o suporte <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo 4 , e o <strong>de</strong>sejo a essência <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é possível afirmar<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano<br />

2 LACAN, J. Seminário, livro 14: a lógica <strong>da</strong> fantasia [1966/67] Inédito<br />

3 LACAN, J. Seminário, livro 20: mais, ain<strong>da</strong>.[1972-­‐73]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 171.<br />

4 Id, ibid. [1966/67].<br />

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que a fantasia é a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, a maneira como ele a organiza; e o <strong>de</strong>sejo ancora<strong>do</strong> na<br />

fantasia, mantém com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> uma pretensa harmonia.<br />

O sintoma, por sua vez, adquiriu diversas <strong>de</strong>finições <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> teoria psicanalítica. Em<br />

Freud, ele foi o retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>, o substituto <strong>de</strong> uma satisfação pulsional. Em Lacan, <strong>da</strong><br />

metáfora à letra, ele obteve <strong>de</strong>finições como: “a maneira que ca<strong>da</strong> um goza <strong>de</strong> seu<br />

inconsciente 5 ”, ou “o que faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual” 6 , e, finalmente, o sintoma como produto<br />

<strong>do</strong>s significantes <strong>de</strong> alíngua 7 . No presente artigo abor<strong>da</strong>remos a fantasia e sua relação com o<br />

sintoma nessas duas últimas acepções.<br />

O SINTOMA FAZ EXISTIR A RELAÇÃO SEXUAL<br />

“A relação sexual não e<strong>xi</strong>ste”, porque a linguagem não dispõe <strong>de</strong> um significante que<br />

represente o gozo <strong>do</strong> Outro sexo, o que levou Lacan a concluir, “A Mulher não e<strong>xi</strong>ste”. A<br />

falta <strong>de</strong>sse significante foi o que Lacan 8 <strong>de</strong>signou como a falha nos nós borromeanos,<br />

responsável por tornar os sexos equivalentes. O sintoma faz suplência à falta <strong>de</strong>sse<br />

significante <strong>do</strong> Outro gozo, S(Ⱥ), ou seja, ao significante <strong>do</strong> Outro sexo, provocan<strong>do</strong> a não<br />

equivalência entre os sexos e fazen<strong>do</strong> e<strong>xi</strong>stir a relação sexual. Para explicar como o sintoma<br />

realiza essa suplência, cito Gerbase em Sintoma e fantasia 9 , on<strong>de</strong> ele propõe uma releitura <strong>do</strong><br />

texto freudiano <strong>de</strong> 1908, “A Histeria e sua relação com a bissexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, mostran<strong>do</strong> como a<br />

fantasia está implica<strong>da</strong> no sintoma, e como ela contribui na sua função <strong>de</strong> amarração. Nesse<br />

artigo Freud afirma que "o sintoma histérico é a expressão simultânea <strong>de</strong> uma fantasia sexual<br />

5 LACAN, J. Seminário, livro 22: RSI, 1975 – Inédito.<br />

6 LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma, [1975/76]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 98.<br />

7 SOLER, C. Corpo falante Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, EPFCL, 2010, p.23.<br />

8 Id, ibid, 2007, p. 97.<br />

8 Gerbase, J. Sintoma e fantasia. Inédito<br />

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inconsciente masculina, e <strong>de</strong> uma fantasia sexual inconsciente feminina, introduzin<strong>do</strong> a<br />

significação bissesexual <strong>do</strong> sintoma. Fazen<strong>do</strong> coincidir o lé<strong>xi</strong>co fantasia com significação,<br />

Gerbase afirma que “Uma fantasia é uma significação fun<strong>da</strong>mental porque é o âmago <strong>do</strong><br />

sintoma, o último senti<strong>do</strong> a que posso reduzir o sintoma, a frase simbólica que o sintoma<br />

expressa”. Deduzin<strong>do</strong> que “uma fantasia sexual inconsciente masculina é uma significação<br />

fálica, e “uma fantasia sexual inconsciente feminina é uma significação não-to<strong>da</strong> fálica, uma<br />

significação não-to<strong>da</strong>”. Desta forma, o autor propõe reescrever esta fórmula freudiana: “O<br />

sintoma histérico é a expressão simultânea <strong>de</strong> uma significação fálica e <strong>de</strong> uma significação<br />

não-to<strong>da</strong>". De mo<strong>do</strong> que o sintoma histérico, mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sintoma por excelência, é composto<br />

pelos <strong>do</strong>is significantes que nomeiam o gozo, o significante fálico, [Φ], ou seja, aquele que se<br />

po<strong>de</strong> escrever e pelo significante <strong>do</strong> Outro gozo, aquele que não se po<strong>de</strong> escrever. Dizer que<br />

não se po<strong>de</strong> escrevê-lo não quer dizer que ele não e<strong>xi</strong>sta.<br />

O sintoma faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual porque ele faz semblante ao significante <strong>do</strong><br />

Outro gozo, e a fantasia, ao possibilitar uma significação <strong>do</strong> Outro gozo e <strong>do</strong> gozo fálico,<br />

au<strong>xi</strong>lia o sintoma na sua função <strong>de</strong> fazer suplência à ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual. A<br />

fantasia, portanto, colabora com o sintoma, tornan<strong>do</strong> sua tarefa menos “árdua”, na medi<strong>da</strong> em<br />

que o gozo liga<strong>do</strong> à fantasia toma a via <strong>do</strong> prazer, enquanto que, no sintoma, o gozo se<br />

escreve pela vertente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sprazer. Por esta razão a fantasia vai se constituir numa recor<strong>da</strong>ção<br />

encobri<strong>do</strong>ra. E assim Gerbase conclui que a fantasia enuncia a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação<br />

sexual, enquanto que o sintoma, ao compensá-la, possibilita sua e<strong>xi</strong>stência. O sintoma faz<br />

suplência a essa falta, justamente porque ele traz, em sua essência, na fantasia, a significação<br />

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a essa falta. “A fantasia é uma significação a essa falta, a esse enuncia<strong>do</strong> – para to<strong>do</strong> falasser<br />

falta um significante, aquele que nomeia o gozo d’Ⱥ Mulher”.<br />

O SINTOMA É UM PRODUTO DE ALÍNGUA<br />

Para enten<strong>de</strong>r o sintoma como produto <strong>de</strong> alíngua, partiremos <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong> Lacan,<br />

o sintoma é um “acontecimento <strong>do</strong> corpo” 10 , afirmação que só po<strong>de</strong> ser explica<strong>da</strong> a parir <strong>da</strong><br />

articulação entre significante e gozo. O significante passa <strong>de</strong> representante <strong>do</strong> sujeito, sígno<br />

<strong>de</strong> sua falta-a-ser à sígno <strong>do</strong> seu ser <strong>de</strong> gozo 11 . Quanto ao gozo, em sua tese inicial, ele é<br />

afeta<strong>do</strong> pela linguagem, operação que produz como efeito, uma subtração <strong>de</strong> gozo. Na tese<br />

posterior, o significante está no nível <strong>do</strong> gozo, o significante é objeto <strong>de</strong> gozo, ele é goza<strong>do</strong>.<br />

Ao juntar esses <strong>do</strong>is elementos heterogêneos, significante e gozo, Lacan provoca uma vira<strong>da</strong><br />

na teoria, e, segun<strong>do</strong> Soler, para acompanhá-la, faz-se necessário partir <strong>da</strong> noção <strong>do</strong><br />

inconsciente forma<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong> alíngua, ou seja, o inconsciente em sua dimensão<br />

real. E assim, o gozo, inicialmente afeta<strong>do</strong> pela linguagem, passa a ser afeta<strong>do</strong> pela alíngua, e<br />

o inconsciente, antes estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem, torna-se um saber no nível <strong>do</strong> corpo<br />

substância, saber manifesta<strong>do</strong> pelo sintoma. Isso levou Lacan a consi<strong>de</strong>rar os efeitos <strong>de</strong><br />

alíngua e não mais <strong>da</strong> linguagem, como prioritários e primordiais na formação <strong>do</strong>s sintomas 12 .<br />

Os significantes <strong>de</strong> alíngua tomam o corpo, fixan<strong>do</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo e<br />

produzin<strong>do</strong> o sintoma. A alíngua é forma<strong>da</strong> pelos significantes antes <strong>de</strong> sua apreensão <strong>de</strong><br />

senti<strong>do</strong>, e seus efeitos são os afetos, posto que a alíngua afeta primariamente o gozo 13 . O<br />

10 SOLER, C. Corpo falante Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus, EPFCL, 2010, p.11.<br />

11 Id. Ibid., p.13.<br />

12 Id, ibid., p.15.<br />

13 Id, ibid., p.19.<br />

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sintoma é constituí<strong>do</strong> numa i<strong>da</strong><strong>de</strong> precoce, antes <strong>da</strong> aquisição <strong>da</strong> linguagem, através <strong>de</strong> uma<br />

combinação entre a alíngua e o <strong>encontro</strong> com o gozo primeiro, entre significante e gozo.<br />

“Diante <strong>do</strong> que é ouvi<strong>do</strong>, o sujeito apreen<strong>de</strong> significantes que ain<strong>da</strong> não dispõem <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

restan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa operação, o que Lacan chamou <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>tritos, cacos”. “... os cacos são <strong>do</strong><br />

real, fora <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, sob a forma <strong>do</strong> Um sonoro, recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que foi ouvi<strong>do</strong>”. Esses <strong>de</strong>tritos<br />

são os significantes <strong>de</strong> alíngua, que se <strong>de</strong>positam como mal-entendi<strong>do</strong>s, fixan<strong>do</strong> uma<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo e produzin<strong>do</strong> a matriz <strong>do</strong> sintoma. Entretanto, sabemos com Lacan que a<br />

formação <strong>do</strong> sintoma <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma contingência entre aquilo que é fala<strong>do</strong> pelo Outro e o<br />

que é ouvi<strong>do</strong> pelo sujeito.<br />

Para Soler 14 , dizer que o sintoma não po<strong>de</strong> mais ser compreendi<strong>do</strong> a partir “<strong>da</strong> lógica<br />

<strong>da</strong> linguagem nem mesmo <strong>da</strong> fantasia, mas no nível <strong>da</strong> contingência <strong>do</strong> <strong>encontro</strong>”, contesta a<br />

tese freudiana <strong>de</strong> que as fantasias inconscientes são precursoras <strong>do</strong>s sintomas histéricos. O<br />

sintoma vem <strong>do</strong> real e o inconsciente é re<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como real, fora <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, liga<strong>do</strong> à alíngua.<br />

Entretanto, ela complementa 15 , que há o inconsciente que permite ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>, e há o<br />

inconsciente real, inapreensível, forma<strong>do</strong> pelo significante real, sem senti<strong>do</strong> e contingente,<br />

que marca o corpo com o saber <strong>de</strong> alíngua. Qual a relação entre a fantasia fun<strong>da</strong>mental e o<br />

sintoma fun<strong>da</strong>mental, aquele forma<strong>do</strong> pelos significantes <strong>de</strong> alíngua?<br />

Freud se referiu à fantasia, como aquilo “que substitui o trauma”, e se o trauma para<br />

Freud é o que não é representa<strong>do</strong>, tem, para Lacan a dimensão <strong>de</strong> real. Então, se a fantasia<br />

14 Id, ibid., p.27.<br />

15 Id, ibid., p.29.<br />

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substitui o trauma, ela é real e vem ocupar o lugar <strong>do</strong> impossível <strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> 16 . Sen<strong>do</strong><br />

o sintoma uma resposta <strong>do</strong> sujeito frente ao real que é traumático, a fantasia, ao substituir o<br />

trauma, torna-se, juntamente com o sintoma, um recurso <strong>do</strong> sujeito frente ao real. Entretanto,<br />

o conceito <strong>de</strong> trauma <strong>de</strong>ve ser toma<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is momentos distintos <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong> Lacan. A<br />

princípio o traumático dizia respeito à falta no Outro, ou seja, ao significante <strong>da</strong> falta no<br />

Outro, S(Ⱥ), justamente ali on<strong>de</strong> o sujeito se confrontava com o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro. Diante <strong>da</strong><br />

falta no Outro, é na condição <strong>de</strong> objeto que o sujeito é <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> e convoca<strong>do</strong> a tamponar.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, o traumático seria a falta no Outro. A partir <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong><br />

Outro, com o “Che Vuoi?", o sujeito respon<strong>de</strong> com a fantasia, ali on<strong>de</strong> ele se experimenta<br />

como objeto. A fantasia como um recurso <strong>do</strong> sujeito para proteger-se <strong>da</strong> difícil condição <strong>de</strong><br />

objeto que representa no <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro e <strong>da</strong> traumática constatação <strong>da</strong> falta no Outro. No<br />

segun<strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> seu ensino, como já foi menciona<strong>do</strong>, Lacan não separou o significante <strong>do</strong><br />

gozo, para ele, significante é gozo e, segun<strong>do</strong> Gerbase 17 , o traumático agora aponta para duas<br />

vertentes: a alíngua traumática e o trauma <strong>do</strong> sexo. O traumático <strong>de</strong> alíngua é ter acesso ao<br />

significante antes <strong>de</strong> se ter acesso ao senti<strong>do</strong>, geran<strong>do</strong> mal-entendi<strong>do</strong>s. A alíngua é real porque<br />

exclui o senti<strong>do</strong>, e é exatamente a anteriori<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica <strong>de</strong> alíngua que possibilita o trauma.<br />

Quanto ao trauma <strong>do</strong> sexo, por não haver na linguagem um significante que nomeie o Outro<br />

gozo, um <strong>do</strong>s gozos não po<strong>de</strong> ser escrito no inconsciente, impossibilitan<strong>do</strong> a relação sexual.<br />

Não há relação sexual visto que não é possível estabelecer uma relação biunívoca entre o<br />

16 Gerbase, J. (1987). Fantasia ou fantasma. Falo 1 , p. 50.<br />

17 GERBASE, J. Curso: Être humain, Associação Científica Campo Psicanalítico <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, 2010.<br />

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significante fálico, o que se escreve, e o significante <strong>do</strong> Outro gozo, o que não se escreve.<br />

Concluin<strong>do</strong> Lacan 18 , que o traumático é o a (sexo).<br />

Se o sintoma é o que torna possível a relação sexual, o sintoma é uma suplência ao<br />

trauma <strong>do</strong> sexo, na medi<strong>da</strong> em que ele faz semblante ao significante <strong>do</strong> Outro gozo. Quanto<br />

ao traumático <strong>de</strong> alíngua, é também o sintoma que faz suplência ao trauma <strong>do</strong> <strong>de</strong>samparo <strong>do</strong><br />

humano ante a contingência <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o significante sem senti<strong>do</strong>. O sintoma<br />

respon<strong>de</strong> ao equívoco <strong>do</strong> significante <strong>de</strong> alíngua, fixan<strong>do</strong> no corpo uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo.<br />

Sen<strong>do</strong> a fantasia o que substitui o trauma, como a fantasia po<strong>de</strong> substituir a falta <strong>do</strong><br />

significante <strong>do</strong> Outro gozo, (trauma <strong>do</strong> sexo) e também o efeito produzi<strong>do</strong> pelo equívoco <strong>do</strong><br />

significante <strong>de</strong> alíngua, (trauma <strong>de</strong> alíngua)? O sintoma faz suplência ao trauma <strong>do</strong> sexo e ao<br />

trauma <strong>de</strong> alíngua, e a fantasia, com seu caráter <strong>de</strong> frase, colabora com o sintoma,<br />

substituin<strong>do</strong> o real <strong>do</strong> trauma por uma ficção. Mas, se no final <strong>de</strong> uma análise nos <strong>de</strong>paramos<br />

com o irredutível <strong>do</strong> sintoma, o que acontece com a fantasia? Uma vez que o sujeito se <strong>de</strong>para<br />

com sua essência <strong>de</strong> gozo, ao i<strong>de</strong>ntificar-se ao sintoma, a fantasia per<strong>de</strong> sua função, e o que<br />

surge em seu lugar é um significante novo, a ficção <strong>da</strong> fantasia é substituí<strong>da</strong> por uma criação,<br />

uma invenção <strong>do</strong> sujeito. Freud se refere à fantasia inconsciente como um ponto <strong>de</strong> fixação <strong>de</strong><br />

gozo, e, se para Lacan os significantes <strong>de</strong> alíngua produzem fixação <strong>de</strong> gozo, propomos<br />

pensar que, num “só <strong>de</strong>pois”, a fantasia fun<strong>da</strong>mental seria uma forma <strong>de</strong> sustentar o sintoma,<br />

o sintoma fun<strong>da</strong>mental, e respon<strong>de</strong>r ao trauma <strong>de</strong> alíngua tanto quanto ela o faz no trauma <strong>do</strong><br />

18 Lacan, J. (1978). Seminário, livro 25: o momento <strong>de</strong> concluir. Inédito.<br />

158


sexo. A fantasia fun<strong>da</strong>mental seria uma frase capaz <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> aos equívocos<br />

produzi<strong>do</strong>s pelos significantes sem senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> alíngua?<br />

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O Nome <strong>do</strong> Sintoma<br />

Gracia Azeve<strong>do</strong> 1<br />

A filosofia aristotélica <strong>de</strong>senvolveu um sistema próprio, rejeitan<strong>do</strong> a teoria <strong>da</strong>s<br />

i<strong>de</strong>ias e o dualismo platônico. Ao propor sua Metafísica, Aristóteles propõe uma<br />

concepção <strong>de</strong> real que parte <strong>da</strong> substância individual, composta <strong>de</strong> matéria e forma. Os<br />

Estoicos viam nos corpos, as únicas reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, aquela que age e aquela que sofre a ação.<br />

O incorpóreo não toca o corpo. A i<strong>de</strong>ia incorpórea é priva<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong> eficácia e <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, não se encontran<strong>do</strong> aí mais que o vazio absoluto <strong>do</strong> pensamento e <strong>do</strong><br />

ser. 1 Fatos ou acontecimentos foram admiti<strong>do</strong>s como causa pelos estoicos. To<strong>do</strong> corpo<br />

se torna causa para outro corpo (quan<strong>do</strong> age sobre ele) <strong>de</strong> alguma coisa incorpórea. São<br />

quatro as espécies <strong>de</strong> incorpóreos: os exprimíveis, o lugar, o vazio e o tempo. Para<br />

Aristóteles a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> lógica é o conceito. A isto os estoicos chamam <strong>de</strong> exprimível.<br />

Acontecimento, som, letra, palavra. O atributo <strong>de</strong> ser significa<strong>do</strong> pela palavra é o<br />

exprimível, o lecton que fica entre o pensamento e a coisa. O lecton “tradiz” um<br />

acontecimento no que este po<strong>de</strong> ser corporifica<strong>do</strong>, trazi<strong>do</strong> à significantização, à cena.<br />

É <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> lecton que Lacan parte, para abor<strong>da</strong>r a “significância” <strong>do</strong> significante.<br />

Cito Lacan em Radiofonia 2 : “O lecton torna legível um significa<strong>do</strong>... Deixo para lá: isso é o<br />

1 Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Recife - IF-EPFCL Brasil – Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>. Nutricionista. graciazeve<strong>do</strong>@gmail.com<br />

160


que <strong>de</strong>nominei ponto <strong>de</strong> basta, para ilustrar o que chamarei <strong>de</strong> efeito Saussure <strong>de</strong><br />

ruptura <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> pelo significante...”.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a origem remota <strong>do</strong> significante no pensamento estoico, Lacan o<br />

coloca como o representante <strong>de</strong> um acontecimento primordial no processo <strong>de</strong> divisão <strong>do</strong><br />

sujeito quan<strong>do</strong>, surge, cai o objeto a para um ser <strong>de</strong> puro gozo. Momento <strong>de</strong> angústia,<br />

frustração, castração simbólica. É o ingresso para o simbólico on<strong>de</strong> a partir <strong>da</strong>í o sujeito<br />

seguirá dividi<strong>do</strong> valen<strong>do</strong>-­‐se <strong>do</strong> seu significante mestre tentan<strong>do</strong> recuperar o que foi<br />

perdi<strong>do</strong> na forma <strong>de</strong> objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

A linguagem é a condição <strong>do</strong> inconsciente. O efeito <strong>de</strong> linguagem só se produz<br />

pela linguística. O discurso <strong>de</strong>sloca-­‐se em uma topologia estrutura<strong>da</strong> que <strong>de</strong>termina o<br />

sujeito e seus efeitos.<br />

Na psicanálise o homem na<strong>da</strong> sabe <strong>da</strong> mulher, nem a mulher <strong>do</strong> homem. O falo<br />

faz surgir o significante <strong>da</strong> diferença e o sexual passa a ser a querela <strong>do</strong> significante. O<br />

sujeito atingi<strong>do</strong> pela linguagem percorre o “cristal linguístico”, assim chama<strong>do</strong> por<br />

Lacan, em busca <strong>de</strong> resolver essa diferença que só se resolve pela lógica <strong>do</strong> ou um, ou<br />

outro. A alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> divi<strong>de</strong> o sujeito e o aliena à e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Outro.<br />

O simbólico incorpora-­‐se ao corpo <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o faz e<strong>xi</strong>stir. È assim que o<br />

incorpóreo tem a ver com o corpo. É incorpora<strong>da</strong> que a estrutura faz o afeto, a partir <strong>de</strong><br />

seus efeitos no ser <strong>do</strong> que é fala<strong>do</strong> e <strong>do</strong> que não é fala<strong>do</strong>, dito <strong>de</strong> algum lugar. O corpo<br />

habita<strong>do</strong> pela fala vira puro cadáver. O sujeito e<strong>xi</strong>stirá enquanto falasser, faltante, Um-­‐a-­‐<br />

161


Menos, marca<strong>do</strong> pelo significante, sexua<strong>do</strong>. Fazer sexo com as palavras. É assim que a<br />

histérica <strong>de</strong>safia o mestre, <strong>de</strong>smascaran<strong>do</strong> a sua falta, sua incompletu<strong>de</strong>, por estruturar-­‐<br />

se a partir <strong>do</strong> vazio. Esse sexo surgi<strong>do</strong>, causa<strong>do</strong> exatamente a partir <strong>de</strong>sse na<strong>da</strong><br />

impossível <strong>de</strong> ser fala<strong>do</strong> e coloca<strong>do</strong> na cena. A linguagem traz à cena o que <strong>do</strong> sujeito<br />

carece <strong>de</strong> ser enterra<strong>do</strong> sob a forma <strong>de</strong> palavras e colocan<strong>do</strong> sua e<strong>xi</strong>stência no corpo,<br />

para ser imaginariamente incluí<strong>do</strong> na ro<strong>da</strong> <strong>do</strong>s vivos. O que o conduz à morte.<br />

A angustia presente no processo <strong>de</strong> divisão <strong>do</strong> sujeito torna-­‐se conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

significante que faz e<strong>xi</strong>stir um sujeito por ele representa<strong>do</strong> e, portanto seu refém no que<br />

diz respeito ao gozo. Através <strong>da</strong>s formações <strong>do</strong> inconsciente, através <strong>do</strong> sintoma.<br />

O sintoma é o que vem <strong>do</strong> Real. Há o traço, inscrito para representar o<br />

acontecimento <strong>do</strong> corpo e há o apagamento <strong>do</strong> traço que será representa<strong>do</strong> pelo<br />

significante fazen<strong>do</strong> surgir um falasser. O que <strong>do</strong> significante representará esse falasser<br />

para outro significante será sempre insuficiente para <strong>da</strong>r conta <strong>do</strong> acontecimento. A<br />

mancha on<strong>de</strong> antes era o traço terá sua <strong>de</strong>signação como letra, resto <strong>de</strong> gozo, a ser<br />

sempre um pacote carrega<strong>do</strong> pelo significante que traz à cena o objeto que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>composto, <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa os seus restos que se inscrevem como a pedra no caminho,<br />

o que não cessa <strong>de</strong> não se escrever. O inconsciente real que se serve <strong>de</strong> lalangue.<br />

No campo <strong>da</strong> fala e <strong>da</strong> linguagem se apresenta o sintoma que traz à cena os<br />

efeitos <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente. O que não vai bem para o sujeito surge a partir <strong>de</strong> seu<br />

discurso en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao Outro. É <strong>de</strong>ssa fala, <strong>de</strong>sse discurso que a psicanálise se serve<br />

para <strong>de</strong>cifrar o sintoma. O equívoco é com o que se joga na interpretação. Ao esgotar o<br />

162


seu senti<strong>do</strong> é a partir <strong>da</strong> lalangue que opera o ato psicanalítico. Lalangue é resto, é letra<br />

pura, é sem senti<strong>do</strong> com fixação <strong>de</strong> gozo. Quan<strong>do</strong> Lacan fala <strong>de</strong> interpretação está <strong>de</strong> fato<br />

pontuan<strong>do</strong> o limite <strong>do</strong> sujeito em relação ao seu saber. O saber se interpreta, não se<br />

chega a ele através <strong>da</strong> letra. A letra obstrui o saber e impe<strong>de</strong> a sua apreensão. São seus<br />

efeitos que operam na psicanálise.<br />

Em A Terceira 3 (1974), Lacan parte <strong>da</strong> lalangue para introduzir o gozo <strong>do</strong><br />

sintoma. Citan<strong>do</strong> Descartes e seu discurso <strong>do</strong> mestre com o ‘penso logo sou’, ele brinca<br />

com o significante e o transforma em “gossou”. E diz: esse é o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito <strong>da</strong><br />

psicanálise.<br />

Ao usar o nó borromeu como representação esquemática <strong>do</strong> eno<strong>da</strong>mento entre o<br />

real, simbólico e o imaginário, Lacan parte <strong>do</strong> neologismo gossou para ilustrar essa<br />

topologia. On<strong>de</strong> o real é o impossível, é a pedra no caminho, o que não po<strong>de</strong> ser<br />

representa<strong>do</strong>. Ao campo <strong>do</strong> imaginário pertence to<strong>do</strong> o conhecimento. O mun<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />

representações apenas alimenta a ciência e tenta <strong>da</strong>r conta <strong>do</strong> real, que sempre estará<br />

alhures, impossível <strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong>. E o simbólico, como a tentativa <strong>de</strong> fazer laço<br />

social, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> o mal-­‐estar <strong>do</strong> sintoma que se serve <strong>do</strong> significante e seu objeto a,<br />

<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> os restos não exprimíveis <strong>do</strong> real.<br />

A psicanálise surgiu <strong>de</strong>sse mal-­‐estar, e como tal é um sintoma. As histéricas <strong>de</strong><br />

Freud com seu inconsciente que não entrava em acor<strong>do</strong> com as e<strong>xi</strong>gências <strong>da</strong> civilização<br />

colocaram a psicanálise como o caminho para <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong>ste sintoma. Mas havia um<br />

resto pulsional que o sintoma não dissipava, ao contrário, carregava como se fosse<br />

163


pombo-­‐correio, mensageiro <strong>do</strong> gozo. O sintoma é o próprio pretexto <strong>do</strong> gozo, e o sujeito<br />

não po<strong>de</strong> abrir mão <strong>de</strong>le. No má<strong>xi</strong>mo po<strong>de</strong> dissecá-­‐lo e saber que há restos sem<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração. Depois tentar colocar o gozo a serviço <strong>da</strong> criação <strong>de</strong> novos<br />

laços. Saber o que fazer com isso.<br />

É essa a constatação <strong>da</strong> psicanálise, a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma articulação com o<br />

real. O impossível <strong>do</strong> real é condição <strong>do</strong> sujeito e isso não faz negociação. O real se<br />

configura como o início e o fim, última para<strong>da</strong>. E a psicanálise como sintoma <strong>de</strong>sse<br />

mesmo mal-­‐estar.<br />

O real retorna sempre ao mesmo lugar, diz Lacan. É vã to<strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> um coito<br />

com o mun<strong>do</strong>. O objeto a, que fen<strong>de</strong> o sujeito e o transforma em <strong>de</strong>jeto ex-­‐sistin<strong>do</strong> ao<br />

corpo, é o que há no mun<strong>do</strong>. Como fazer para que esse objeto se torne semblante,<br />

semblante <strong>de</strong> falo? Para o homem isso é mais fácil. Ser objeto a para um homem é a saí<strong>da</strong><br />

para a mulher. Isso po<strong>de</strong> acontecer.<br />

Seio, fezes, olhar e voz. Isso fica no lugar <strong>do</strong> acontecimento para ser fala<strong>do</strong>, busca<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>smonta<strong>do</strong> até o osso. Ao falar o sujeito vai produzin<strong>do</strong> seus objetos a partir <strong>da</strong> sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. A partir <strong>do</strong>s quatro discursos que fazem laço social Lacan colocou a<br />

estrutura <strong>da</strong> fala dirigi<strong>da</strong> ao outro em um esquema on<strong>de</strong> o significante, a castração, o<br />

saber como gozo <strong>do</strong> Outro, e o objeto a como per<strong>da</strong> surgi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse trajeto <strong>do</strong> discurso,<br />

se articulam simulan<strong>do</strong> as formas <strong>de</strong> posição subjetiva, no que faz laço na cultura.<br />

164


Na busca <strong>do</strong> saber sobre o gozo <strong>do</strong> Outro o sujeito encontra a sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que se<br />

constitui pela castração, no discurso <strong>do</strong> mestre. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> chega até on<strong>de</strong> o significante<br />

alcança como representante <strong>de</strong>sse saber constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> real. Dessa forma o<br />

sujeito vai utilizan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o seu acervo significante, que <strong>de</strong>pois ele percebe como um só,<br />

e gasta até chegar aon<strong>de</strong> ele já sabia que não sabia. O saber não sabi<strong>do</strong>.<br />

Resta a letra, o nome próprio on<strong>de</strong> o sujeito olha para o campo <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong> e parte<br />

para construir a própria história que já tem nome mas po<strong>de</strong>rá produzir outros<br />

caminhos, novas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A letra faz litoral entre gozo e saber, é o que Lacan<br />

afirma em Lituraterra 4 . O furo no saber como acontecimento produz a letra que faz<br />

bor<strong>da</strong>, linguagem, habita<strong>da</strong> pelo sujeito que fala.<br />

O nome litura quer dizer: rasura, mancha, borrão, apagamento <strong>do</strong> que foi feito. A<br />

letra faz terra marcan<strong>do</strong> o litoral. Produzir a rasura é produzir a meta<strong>de</strong> com que o<br />

sujeito subsiste.<br />

Entre centro e ausência, entre saber e gozo há litoral que po<strong>de</strong> se tornar literal. O<br />

sujeito que fora marca<strong>do</strong> pelo traço que se apaga, passa então a ser representa<strong>do</strong> pelo<br />

significante. Ao se romper o semblante, o sujeito <strong>de</strong>para-­‐se com seu gozo que evoca o<br />

real, o acontecimento, o apagamento <strong>do</strong> traço, a mancha. Este é o lugar <strong>da</strong> letra. O<br />

significante está no simbólico.<br />

Singular, próprio, solitário, marca <strong>do</strong> sujeito que o situa em sua própria história.<br />

O nome ancora o sujeito no Um-­‐ a-­‐Mais <strong>da</strong> cultura. Um lugar que o incluirá na sequência<br />

165


<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo simbólico. Um lugar <strong>de</strong> repetição, <strong>de</strong> equívocos, <strong>de</strong> gozo. Um<br />

lugar na cena on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>samparo o faz surgir como objeto <strong>do</strong> Outro gozo. O<br />

en<strong>de</strong>reçamento <strong>do</strong> sujeito ao Outro será <strong>do</strong>ravante <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo significante,<br />

produzi<strong>do</strong> pelo corte, que representará o objeto perdi<strong>do</strong>.<br />

É a partir <strong>de</strong>sse en<strong>de</strong>reçamento, <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>man<strong>da</strong> surgi<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> uma falta, que<br />

a psicanálise opera, faz cortes, aponta para o significante <strong>de</strong>snu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> , <strong>de</strong>stituin<strong>do</strong> o<br />

discurso <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. A repetição <strong>do</strong> que não po<strong>de</strong> ser simboliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> impossível <strong>de</strong> dizer<br />

coloca o sujeito <strong>de</strong> cara com o real, com o gozo <strong>do</strong> inconsciente. O que fazer com esse<br />

gozo, forma <strong>de</strong> sinthome <strong>do</strong> sujeito? Diante <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inscrever a relação<br />

sexual, como o sujeito po<strong>de</strong>ria nomear-­‐se, distinguir-­‐se? Lacan fala <strong>do</strong> sinthome em seu<br />

seminário <strong>de</strong> 1975 5 , o quarto nó, como uma resposta <strong>do</strong> Real frente à incompletu<strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

relação com o outro sexo, permitin<strong>do</strong> ao sujeito a criação <strong>de</strong> um laço social através <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação a seu sinthome.<br />

Para o sujeito a relação sexual nunca e<strong>xi</strong>stiu porque o Um não tem parceiro; o<br />

Um é o lugar <strong>do</strong> zero: serve para fazer surgir o um a um. O Um é o que tentamos dizer. É<br />

o impossível não entra na falta, ou ausência, ou vazio; é sem objeto. A partir <strong>de</strong> um lugar<br />

na ca<strong>de</strong>ia significante o sujeito po<strong>de</strong> ‘se fazer ser’ como afirma Colette Soler 6 . Sair <strong>da</strong><br />

posição narcísica <strong>do</strong> ‘melhor não ser’ e se ocupar <strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>sejo reescreven<strong>do</strong> a sua<br />

história a partir <strong>do</strong> nome próprio.<br />

Para que isso seja possível é necessário <strong>de</strong>stituir o Outro <strong>do</strong> lugar que outrora lhe<br />

colocamos. Em um processo <strong>de</strong> análise isso significaria dizer: ‘agora vou arrumar os<br />

166


meus falta-a-ser na mala e vou partir’. Partir com o próprio nome e trabalhar para se<br />

fazer ser partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> menos-­‐um (que é o ‘recalque originário’ para Freud e não há ‘to<strong>do</strong>s<br />

os significantes’ para Lacan). O amor <strong>de</strong> transferência pelo sujeito suposto saber se<br />

metamorfoseia em amor <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> trabalho. O sujeito com a sua malinha <strong>de</strong><br />

falta-a-ser passa a trabalhar pela causa <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sejo a partir <strong>de</strong> sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>do</strong><br />

seu saber sobre o impossível <strong>do</strong> real. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> analista agora surge a partir <strong>de</strong> uma<br />

escuta que mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição. É fican<strong>do</strong> no lugar <strong>de</strong> causa <strong>do</strong> discurso, que o analista po<strong>de</strong><br />

vislumbrar os <strong>de</strong>slizamentos <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> sujeito com to<strong>do</strong>s os seus significantes,<br />

como se fossem bun<strong>da</strong> <strong>de</strong> vaga-­‐lume numa noite escura.<br />

Notas:<br />

1. Bréhier, Émile (1908). A Teoria <strong>do</strong>s Incorporais no Antigo Estoicismo. Tradução <strong>de</strong><br />

Alduisio M. <strong>de</strong> Souza. Cópia pessoal, Recife,2008.<br />

2. Lacan, Jacques (1970). Outros Escritos. Radiofonia, Jorge Zahar Ed. 2003.<br />

3. Lacan, Jacques (1974). A Terceira. Tradução <strong>da</strong> Association Lacanienne<br />

Internationale, 2008.<br />

4. Lacan, Jacques (1971). De Um Discurso que Não Fosse Semblante. Sem. 18. Jorge<br />

Zahar Ed. 2009.<br />

5. Lacan, Jacques (1975). O Sinthoma. Sem. 23, Jorge Zahar Ed. 2007.<br />

6. Soler, Colette (1989). A <strong>Psicanálise</strong> na Civilização. Que final para o analista? Contra<br />

Capa Livraria, 1998.<br />

167


A arte é o que há <strong>de</strong> mais real<br />

Sonia Borges 1<br />

“Eu pinto a violência <strong>do</strong> real”, dizia Bacon. Em seu trabalho com os pincéis, Bacon<br />

não dispensa Apolo, mas, serve a Dionísio. Ele próprio reconhece a sua filiação à tragédia<br />

grega, e ao teatro <strong>de</strong> Beckett, trágico mo<strong>de</strong>rno. Nas entrevistas que conce<strong>de</strong>u ao crítico <strong>de</strong> arte<br />

David Sylvester (2007), por mais <strong>de</strong> vinte anos, Bacon <strong>de</strong>screve a gênese <strong>de</strong> suas pinturas,<br />

enfatizan<strong>do</strong> o que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar como o seu “méto<strong>do</strong>”: pintar sensações. “Pintar<br />

sensações” seria, para ele, uma maneira <strong>de</strong> fazer frente à “violência <strong>do</strong>s clichês”na<br />

constituição <strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nas formas capitalistas <strong>de</strong> economia. “ Porque a sensação,<br />

afirmava, dirige-se à carne, ao corpo, e menos ao intelecto”( Sylvester, 2007:167). “A arte<br />

abre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim as válvulas <strong>da</strong>s sensações que me jogam <strong>de</strong> novo à vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma forma<br />

ain<strong>da</strong> mais violenta.” (141) Deleuze, em seu belo livro, “ A lógica <strong>da</strong>s sensações em Francis<br />

Bacon”, recorre à arte <strong>de</strong>ste para <strong>de</strong>senvolver as suas posições filosóficas. A sensação, diz<br />

Deleuze, “é ser – no – mun<strong>do</strong>”: ao mesmo tempo eu me torno na sensação, e alguma cosa<br />

acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. Em última análise, diz o filósofo, é o<br />

mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto, quanto sujeito.”(2007:142)<br />

Esta critica à visão intelectualista <strong>da</strong> arte se presentifica, antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, por sua<br />

recusa <strong>da</strong> pintura com pretensões <strong>de</strong> ilustração, figuração ou narração: “Gostaria muito, dizia<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano -­‐ Brasil<br />

168


ele, <strong>de</strong> fazer o que Valery preconizava: proporcionar, com minha pintura, emoções sem o<br />

tédio <strong>da</strong> comunicação” (Deleuse, ibid, p. 43)<br />

No entanto, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> absolutamente original, é pela via <strong>do</strong> trabalho figurativo, que<br />

Bacon faz a crítica <strong>da</strong> figuração: apresenta figuras, mas <strong>de</strong>sfigura<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>forma<strong>da</strong>s, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> –<br />

se pensar que, sen<strong>do</strong> uma crítica ao realismo, criam um novo realismo. Como ele mesmo<br />

anuncia, “O que quero fazer é <strong>de</strong>formar a coisa, <strong>de</strong>scartar a sua aparência, mas, nesta<br />

<strong>de</strong>formação reconduzi-la ao registro <strong>da</strong> aparência”. (Sylvester, op.cit., p. 83). Nisto está a<br />

radicali<strong>da</strong><strong>de</strong> e cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Bacon, o materialismo radical que suporta o seu ato<br />

criativo. 3 IMAGENS<br />

O movimento corta<strong>do</strong>, o permanente efeito <strong>de</strong> mutilação, imagens como que<br />

arranca<strong>da</strong>s aos pe<strong>da</strong>ços <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que vão ornamentar. Massas se concentram, <strong>de</strong>pois se<br />

prolongam, figuran<strong>do</strong> corpos contra to<strong>da</strong> lógica anatômica. Corpos histéricos, po<strong>de</strong>ríamos<br />

dizer. A carne mole, informe, inva<strong>de</strong> o universo <strong>da</strong> pintura baconiana. O envelope corporal<br />

não é impermeável, a carne <strong>de</strong>snu<strong>da</strong><strong>da</strong> é ameaça <strong>de</strong> ferimentos, a epi<strong>de</strong>rme se confun<strong>de</strong> com<br />

as vísceras. A torção <strong>da</strong>s figuras, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> ambivalente, remete a excesso e a falta: a<br />

<strong>de</strong>smedi<strong>da</strong> dionisíaca <strong>da</strong> apresentação <strong>de</strong> corpos e carne faz exceção à razão, mas é<br />

contrabalança<strong>da</strong> pela estrutura apolínea, com ares <strong>de</strong> geometria, com que amarra as figuras<br />

(ou o gozo), e que se repete em to<strong>da</strong>s as telas.<br />

Neste trabalho busco abor<strong>da</strong>r, pela via <strong>da</strong> psicanálise, o que chamei <strong>de</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

Bacon, “pintar sensações”. Para isto, tomo como referência principa, <strong>de</strong> Freud, l a “Carta 52”<br />

169


e “Em busca <strong>do</strong> tempo pedi<strong>do</strong>”, <strong>de</strong> Proust”, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar este<br />

romance como uma ilustração <strong>do</strong> que Freud nos traz na Carta.<br />

Neste texto, Freud parte <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> uma estratificação sucessiva <strong>do</strong> psiquismo: O<br />

essencialmente novo, diz Freud, nesta teoria, é a tese <strong>da</strong> “e<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> memória <strong>da</strong><br />

experiência [...]como uma série <strong>de</strong> inscrições sucessivas e coe<strong>xi</strong>stentes [...]Estas impressões<br />

estão no extremo <strong>do</strong> aparelho, e <strong>de</strong>vem ser recupera<strong>da</strong>s, ou não, em inscrições posteriores”.<br />

Com Lacan, po<strong>de</strong>-se pensar nesta escritura como o registro <strong>da</strong> experiência, ou seja, <strong>do</strong> real<br />

tal como cai e marca um ser que recebe o seu impacto, mas, <strong>do</strong> qual não conserva a memória.<br />

Mas, que marcas seriam estas? Impressões assubjetivas, acéfalas, matrizes <strong>de</strong> uma escrita <strong>da</strong><br />

qual o sujeito advirá. Inequívoca manifestação <strong>de</strong> um real originário <strong>do</strong> sujeito, anterior à<br />

simbolização. São marcas inscritas no corpo, ou melhor, na carne, que se tornará corpo, por<br />

obra e graça <strong>de</strong>sta cunhagem. Lacan as compara às pedras <strong>da</strong> loteria a que só o sorteio, ou<br />

seja, a que só o jogo <strong>do</strong>s significantes (Escritos, p. 58). po<strong>de</strong>rá instaurar uma or<strong>de</strong>m.<br />

Em Proust, esta idéia, conforme Brainstein (2007), po<strong>de</strong> ser esclareci<strong>da</strong> nas<br />

<strong>de</strong>scrições minuciosas <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r sobre o que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar como epifanias<br />

proustianas. O “tempo re<strong>de</strong>scoberto”, <strong>do</strong> último volume <strong>de</strong> sua obra, po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> como a<br />

re<strong>de</strong>scoberta, a recuperação <strong>do</strong> gozo perdi<strong>do</strong>. Gozo ressucita<strong>do</strong> pelo súbito ree<strong>encontro</strong> <strong>de</strong>stas<br />

“marcas e<strong>xi</strong>stenciais ” que se faz acompanhar <strong>de</strong> sensação <strong>de</strong> júbilo:o sabor <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>leine<br />

submersa no chá, uma breve frase musical, a rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong> tato <strong>de</strong> um guar<strong>da</strong>napo engoma<strong>do</strong>, são<br />

impressões sensíveis esvazia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> significação fálica, restan<strong>do</strong> ao artista fazer <strong>de</strong>las letras,<br />

<strong>do</strong>mestican<strong>do</strong> o real.<br />

170


Qual o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>stas experiências sensíveis? Com relação às ma<strong>de</strong>leines, no relato<br />

<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r no romance, em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento, surge a pergunta: “De on<strong>de</strong> me teria<br />

vin<strong>do</strong> aquela po<strong>de</strong>rosa alegria? E, <strong>de</strong> súbito a lembrança apareceu: “Aquele gosto era <strong>do</strong><br />

pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>leine <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tê – lo mergulha<strong>do</strong> no chá <strong>da</strong> índia ou <strong>de</strong> tília que, aos<br />

<strong>do</strong>mingos, minha tia Leonie me oferecia quan<strong>do</strong> ia cumprimentá-la em seu quarto” . E, ao lhe<br />

retornar o gosto <strong>do</strong> pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine molha<strong>do</strong> no chá, o momento epifanico, com ele<br />

também surge a velha casa on<strong>de</strong> moravam, e com ela to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Combray. Impossível<br />

não pensarna e<strong>xi</strong>gência <strong>de</strong> associação livre no tratamento.<br />

A <strong>de</strong>scrição que Bacon nos oferece <strong>da</strong> gênese <strong>de</strong> suas telas, também nos remete a<br />

esta ressurreição <strong>de</strong> marcas cuja vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> foi apaga<strong>da</strong> pelos processos secundários <strong>de</strong><br />

pensamento. Estas só lhe parecem satisfatórias quan<strong>do</strong> mostram “um tipo <strong>de</strong> imagem<br />

sensorial que faz parte <strong>da</strong> própria estrutura <strong>do</strong> ser e na<strong>da</strong> tem a ver com uma imagem mental”<br />

(160):<br />

Sei que na minha obra, o melhor me veio por acaso – quan<strong>do</strong> fui toma<strong>do</strong> por<br />

imagens que não antecipei. Não sei o que é o inconsciente, mas, há<br />

momentos em que algo emerge em nós. É muito pomposo falar <strong>de</strong><br />

inconsciente, é melhor dizer acaso. Creio na e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> um caos<br />

profun<strong>da</strong>mente organiza<strong>do</strong>, e na importância <strong>do</strong> acaso. (Sylvester, op.cit.,<br />

p.81)<br />

[...] a única razão para esta irracionali<strong>da</strong><strong>de</strong>, afirma, é que ela trará muito<br />

mais vigorosamente a força <strong>da</strong> imagem.”<br />

Como exemplo <strong>da</strong> força <strong>da</strong>s sensações e <strong>do</strong> acaso, <strong>de</strong>screve a gênese <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas pinturas<br />

mais importantes. Ain<strong>da</strong> que lhe ocorresse pintar um pássaro, em gesto rápi<strong>do</strong>, jogou as tintas<br />

sobre a tela, os borrões tomaram uma forma tal que, <strong>de</strong> forma súbita, surgiu-lhe o Papa<br />

Inocêncio,imortaliza<strong>do</strong> em tela <strong>de</strong> Velásquez, mas que na sua surge em nova configuração,<br />

la<strong>de</strong>a<strong>do</strong> por imensas e sangrentas costelas bovinas.<br />

Imagem 4: “Pintura 1946”<br />

171


Essa <strong>de</strong>sfiguração <strong>de</strong> corpos, cabeças, faces, não po<strong>de</strong> ser vista como representação <strong>de</strong><br />

objetos, mas como mostração <strong>de</strong> “velhas” experiências sensíveis: “Não pinto esta<strong>do</strong>s d’alma,<br />

mas, esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser”, insistia Bacon, numa clara crítica à psicologia <strong>do</strong>s afetos. Para falar<br />

disso, o pintor usa uma linguagem que nos remete à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> pulsional: “níveis sensitivos”,<br />

“<strong>do</strong>mínios sensíveis”, “or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> sensações”, “sequências moventes”.<br />

Voltan<strong>do</strong> à “Carta 52”, Braunstein postula que o primeiro sistema <strong>de</strong> inscrições é o<br />

Isso <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> tópica, cujas características nos permitem distingui-lo <strong>do</strong> inconsciente que já<br />

seria um <strong>de</strong>ciframento <strong>de</strong>ssa escrita primária <strong>de</strong> marcas <strong>de</strong> gozo. O Isso é o conjunto <strong>de</strong><br />

grafismos, império <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> ser, anterior, pois, à organização subjetiva, sen<strong>do</strong> esta efeito<br />

<strong>do</strong> que, no reino <strong>do</strong> significante, consiste na metáfora paterna. O Outro <strong>da</strong> linguagem e <strong>do</strong><br />

senti<strong>do</strong> vem perturbar, obstaculizar e proíbir o gozo.<br />

Mas, assim sen<strong>do</strong>, para o sujeito habita<strong>do</strong> pela palavra, o que restaria <strong>da</strong>quele real<br />

perdi<strong>do</strong>, empali<strong>de</strong>ci<strong>do</strong> pelos processos psíquicos a que é submeti<strong>do</strong>?<br />

É no sistema <strong>de</strong> alíngua que o gozo é cifra<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> alheio à bateria <strong>de</strong> significantes<br />

com significação convencional, que é o muro que obstaculiza o gozo bloquea<strong>do</strong> nos sistemas<br />

<strong>de</strong> inscrição não <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>s, impedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> serem subjetiva<strong>do</strong>s. “A alingua está morta, diz<br />

Soler, mas, vem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Como po<strong>de</strong>, então, esta multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> inconsistente, inapreensível,<br />

se precipitar na letra, única capaz <strong>de</strong> fixar uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo?” (p.19)<br />

Isto que parece tão lacaniano, está já evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> na “Carta 52”. Em resumo, o<br />

sistema chama<strong>do</strong> por Freud <strong>de</strong> signos perceptivos (WZ) é um sistema <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong><br />

impressões corporais(W) para uma escritura <strong>de</strong>sorganiza<strong>da</strong>, um ciframento caótico em que<br />

não opera a língua <strong>do</strong>s lingüistas, mas a alíngua, cuja significação não é <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, mas, <strong>de</strong><br />

172


gozo. Matéria prima para que nela opere o significante, ou seja, a bateria <strong>do</strong>s significantes, ou<br />

seja, a bateria <strong>da</strong>s diferenciações e valores que introduz a língua.<br />

Sabemos, pela experiência clínica, que o gozo con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong> à escuta, à or<strong>de</strong>nação em<br />

uma ca<strong>de</strong>ia temporal diacrônica, ou seja, a uma escrita on<strong>de</strong> o caos <strong>do</strong> Isso, no qual o gozo<br />

está cifra<strong>do</strong>, abre-se à <strong>de</strong>cifração pela via <strong>do</strong>s processos primários que já produzem discurso,<br />

carente <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, absur<strong>do</strong>, mas, que já se presta a ganhar senti<strong>do</strong>. O UMBEWUST (UBW),<br />

o inconsciente, é, na Carta 52, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como uma segun<strong>da</strong> inscrição em que já não primam<br />

as associações por simultanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas, “outros nexos causais.” O tratamento po<strong>de</strong>, então,<br />

fazer com que o reti<strong>do</strong> em inscrições anteriores seja transferi<strong>do</strong> para novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> leitura.<br />

O inconsciente se escuta, ain<strong>da</strong> que constituí<strong>do</strong> por palavras avessas ao pensamento em que<br />

pre<strong>do</strong>minam sintaxes lógicas. Para<strong>do</strong>xalmente, o gozo <strong>do</strong> corpo marca<strong>do</strong> apenas po<strong>de</strong> ser<br />

recupera<strong>do</strong> mediante o recurso ao Outro,<br />

Esta possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> releitura <strong>de</strong>stas inscrições primeiras, próprias ao tratamento, a<br />

nosso ver, po<strong>de</strong>ria ser estendi<strong>da</strong>s ao processo <strong>de</strong> criação artística. Guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as diferenças, na<br />

criação, e talvez <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> especial a artística, não se trataria <strong>de</strong> se furar o muro <strong>da</strong> linguagem?<br />

De se furar o muro <strong>da</strong>s convenções, <strong>do</strong>s clichês sociais, única finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> arte, como insistia<br />

Bacon?<br />

Para Braunstein, “arma<strong>do</strong>s com a distinção lacaniana ente prazer e gozo, é difícil não<br />

reconhecer em Freud, e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, que o psiquismo está <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelo gozo, pelo<br />

gozo como perdi<strong>do</strong> e como recuperável.” ( 198), sen<strong>do</strong> possível a sua recuperação, não pela<br />

via <strong>da</strong> nostalgia, mas a partir <strong>de</strong> um <strong>encontro</strong> casual, <strong>da</strong> tiquê, <strong>de</strong> momentos epifânicos, como<br />

173


Proust o <strong>de</strong>screveu. Está aí em jogo a função <strong>do</strong> real. Lacan nos traz também que o real está<br />

além <strong>do</strong> automatón, <strong>do</strong> retorno insistente <strong>do</strong>s signos que nos conduzem ao princípio <strong>do</strong><br />

prazer. O gozo que emerge como ressurreição <strong>do</strong> próprio ser. E não se trata <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

mas, <strong>da</strong> superação/<strong>de</strong>stituição <strong>do</strong> sujeito pelo real, que supõe a per<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as suas balisas:<br />

as narcísicas e mesmo as <strong>da</strong> fantasia.<br />

As epifanias po<strong>de</strong>m ser pensa<strong>da</strong>s como estes momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição subjetiva, não a<br />

<strong>de</strong>stituição <strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise, mas, a experimenta<strong>da</strong> pelos artistas em seu processo <strong>de</strong><br />

criação, quan<strong>do</strong> os objetos se carregam, para eles, <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s ocultos que assumem o caráter<br />

<strong>de</strong> hieróglifos que pe<strong>de</strong>m para ser <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>s. O sabor <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>leine para Proust, a força <strong>do</strong>s<br />

corpos para Bacon, o matiz <strong>do</strong>s girassóis para Van Gogh, experiências gozosas recupera<strong>da</strong>s<br />

pelos procedimentos artísticos? A criação artística po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, parodian<strong>do</strong> Proust,<br />

como busca <strong>do</strong> gozo perdi<strong>do</strong>?<br />

Se pu<strong>de</strong>rmos consi<strong>de</strong>rar a criação artística como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação <strong>do</strong><br />

gozo perdi<strong>do</strong>, a arte seria, então, para o artista uma escritura <strong>de</strong> si mesmo, mas, sobre a qual<br />

se po<strong>de</strong>ria afirmar o que Lacan disse <strong>do</strong> inconsciente: que nem é, nem não é, pois pertence à<br />

or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> não realiza<strong>do</strong>; é a escritura que cria o sujeito. e ao criá-lo o projeta retroativamente<br />

no tempo, o faz aparecer num passa<strong>do</strong> que nunca e<strong>xi</strong>stiu. E, mais, cria este passa<strong>do</strong> com<br />

aquilo que é recupera<strong>do</strong> como escritura.<br />

174


Os usos <strong>do</strong> corpo e a política <strong>do</strong> sintoma: o caso <strong>da</strong> transformação<br />

corporal<br />

Andréa Franco Milagres 1<br />

Por ocasião <strong>da</strong> IV Jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> Trabalhos <strong>do</strong> Fórum-­‐BH, <strong>de</strong>frontei-­‐me com algumas<br />

questões a respeito <strong>do</strong>s termos com os quais fizemos nosso convite. Demarcamos uma<br />

hipótese <strong>de</strong> trabalho: há uma política <strong>do</strong> sintoma e no bojo <strong>de</strong>sta, o sujeito faz suas<br />

escolhas. Sabemos que a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> sintoma não traz, em princípio univoci<strong>da</strong><strong>de</strong> e,<br />

po<strong>de</strong>mos, tanto em Freud como em Lacan tomá-­‐lo em mais <strong>de</strong> uma vertente, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />

com o momento <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Numa perspectiva freudiana, é possível<br />

primeiramente <strong>de</strong>finir o sintoma como aquilo que nos permite algum acesso à satisfação<br />

proibi<strong>da</strong> -­‐ uma solução <strong>de</strong> compromisso. Neste caso, o sintoma seria uma metáfora. É<br />

uma <strong>de</strong>finição clássica em psicanálise, a tal ponto que se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> uma vulgata <strong>do</strong><br />

sintoma: até mesmo o leigo, na banali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, usa o termo sintoma como<br />

aquilo que há <strong>de</strong> mais íntimo e que o faz sofrer. To<strong>da</strong>via, constata o leigo, estranho<br />

mesmo é que não possa aban<strong>do</strong>ná-­‐lo, não possa <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> repeti-­‐lo. Não há, portanto,<br />

neurótico que não experimente isso... O que nos permitiria então supor que não só há<br />

uma política <strong>do</strong> sintoma, como esta política é conciliatória. Concilia o impossível <strong>da</strong><br />

satisfação com alguma satisfação possível. Aqui po<strong>de</strong>ríamos dizer que há uma política <strong>do</strong><br />

sintoma, mas também que o sintoma é político.<br />

1 Psicanalista, Membro <strong>do</strong> Fórum-­‐BH, Mestre em Psicologia pela UFMG, Professora <strong>da</strong> PUC Minas,<br />

coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Especialização em Clínica Psicanalítica nas Instituições <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>da</strong> PUC Betim.<br />

175


Ocupan<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong>sta vertente é que a psicanálise talvez tenha inaugura<strong>do</strong> seu laço com o<br />

mun<strong>do</strong>. Sua missão era assim restituir ao sintoma seu lugar <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>cifran<strong>do</strong>-­‐o<br />

com a arma <strong>da</strong> interpretação. Tratava-­‐se assim <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um senti<strong>do</strong> ao sintoma, tal como o<br />

texto homônimo <strong>de</strong> Freud nos indicou: a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> esqueci<strong>da</strong> que retorna no sintoma é<br />

que ele é sempre referi<strong>do</strong> ao sexual. No entanto, a <strong>de</strong>scoberta freudiana conheceu<br />

tortuosos caminhos. A tentação <strong>do</strong>s psicanalistas <strong>do</strong>ravante, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Freud, seria <strong>da</strong>r<br />

senti<strong>do</strong> ao sintoma. O que não se sabia, e para isto foi preciso aguar<strong>da</strong>r Lacan, é que <strong>da</strong>r<br />

senti<strong>do</strong> ao sintoma é como alimentar um pei<strong>xi</strong>nho voraz: sua boca nunca se fecha;<br />

quanto mais o alimentamos, mais ele prolifera... (Lacan, 1975a). É uma outra vertente<br />

para pensar o sintoma: não mais como substituto, mas como índice <strong>da</strong>quilo que vem <strong>do</strong><br />

real. Diante disso, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar que a política <strong>do</strong> sintoma é concernente a uma<br />

toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> posição, um recurso a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo sujeito para fazer objeção à norma. Nesta<br />

segun<strong>da</strong> vertente, o sintoma é sempre correlato a um coman<strong>do</strong>, no caso, à ditadura <strong>de</strong><br />

um significante mestre.<br />

A civilização contemporânea é agencia<strong>da</strong> por alguns significantes-­‐mestres que<br />

não apenas nos representam para outros significantes, mas fun<strong>da</strong>mentalmente afetam<br />

nosso corpo: este <strong>de</strong>ve se mostrar sara<strong>do</strong>, sem <strong>do</strong>bras, barriga chapa<strong>da</strong>, pele estica<strong>da</strong>.<br />

Quase to<strong>do</strong>s nos curvamos a este coman<strong>do</strong>: ser gor<strong>do</strong> ou feio, estar acima <strong>do</strong> peso,<br />

<strong>de</strong>ixar entrever as marcas <strong>do</strong> tempo na pele ou nos cabelos soa como uma afronta aos<br />

i<strong>de</strong>ais partilha<strong>do</strong>s. Assim, como diz Soler (1998b p. 259) “nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> fabrica<br />

semblantes a gozar para to<strong>do</strong>s, ain<strong>da</strong> que isto nunca seja inteiramente alcança<strong>do</strong>”. Em<br />

176


ca<strong>da</strong> esquina, clínicas e tratamentos prometem apagar as gran<strong>de</strong>s e as pequenas<br />

diferenças entre os corpos. A norma é Gisele: seu corpo nu e esguio <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>mente<br />

pinta<strong>do</strong> sob o pretexto <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r sandálias nos faz encolher na ca<strong>de</strong>ira quan<strong>do</strong><br />

folheamos a revista. O corpo perfeito <strong>de</strong> Gisele torna-­‐se mais que um i<strong>de</strong>al: ele é<br />

persecutório! Na sala <strong>de</strong> espera <strong>do</strong> <strong>de</strong>ntista, folheamos a revista Caras com a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sôfrega <strong>de</strong> quem procura encontrar algo que torne a celebri<strong>da</strong><strong>de</strong> um pouco mais<br />

simétrica conosco: quem sabe um paparazzi possa flagrar um furinho <strong>de</strong> celulite em<br />

Gisele que a “mulherize”, transforman<strong>do</strong>-­‐a em mortal? Enfim, po<strong>de</strong>mos fazer <strong>do</strong> corpo<br />

um sintoma na tentativa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r positivamente a tais i<strong>de</strong>ais, mas lembro que a<br />

imagem que ilustrava o fol<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nossa IV Jorna<strong>da</strong> não era <strong>do</strong> corpo <strong>de</strong> Gisele: era <strong>de</strong><br />

uma armadura, uma espécie <strong>de</strong> versão <strong>de</strong> Dom Quixote.<br />

Escolhemos tal imagem, pois assim nos pareceu a política <strong>do</strong> sintoma: uma<br />

armadura singular inventa<strong>da</strong> por ca<strong>da</strong> sujeito para respon<strong>de</strong>r aos i<strong>de</strong>ais ou coman<strong>do</strong>s<br />

<strong>da</strong> civilização. Se na política <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> mestre temos uma proposta <strong>de</strong> governança<br />

ou orientação coletiva <strong>do</strong> gozo e a maioria respon<strong>de</strong>, portanto, positivan<strong>do</strong> os i<strong>de</strong>ais, é<br />

preciso lembrar que nem to<strong>do</strong> gozo encontra nesse discurso um abrigo. E<strong>xi</strong>ste um gozo<br />

que não encontra guari<strong>da</strong>, para o qual não e<strong>xi</strong>ste um porto-­‐seguro. Há gozos que<br />

interrogam a civilização. Tal questão me veio à mente quan<strong>do</strong> assisti, muito intriga<strong>da</strong>, à<br />

série Tabu América Latina e<strong>xi</strong>bi<strong>da</strong> pela National Geographyc, cujo tema era “Corpos<br />

Transforma<strong>do</strong>s”. A transformação corporal implica uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> técnicas,<br />

procedimentos cirúrgicos e intervenções, cujo objetivo é modificar a aparência para<br />

177


diferenciar-­‐se <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais. Dentre as técnicas estão as escarificações, os implantes<br />

subcutâneos e as mutilações.<br />

Creio que não po<strong>de</strong>mos fazer uma generalização a ponto <strong>de</strong> dizer que to<strong>do</strong>s os<br />

que se submetem à transformação corporal teriam as mesmas motivações. To<strong>da</strong>via, os<br />

testemunhos <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses sujeitos <strong>de</strong>monstram, numa versão contemporânea, como<br />

o sintoma faz impedimento a que as coisas an<strong>de</strong>m, e por isto Lacan (1975a, p. 84) po<strong>de</strong><br />

dizer que “(...) o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma é o real, o real enquanto se põe em cruz para<br />

impedir que as coisas an<strong>de</strong>m, que an<strong>de</strong>m no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> si mesmas <strong>de</strong><br />

maneira satisfatória, satisfatória ao menos para o mestre” (...)<br />

Tomemos <strong>do</strong>is casos. O primeiro é <strong>de</strong> Emílio Gonzalez, um profissional <strong>da</strong><br />

transformação corporal que não apenas modifica o corpo <strong>de</strong> terceiros, mas o seu<br />

próprio.<br />

Mantém seu estúdio em Bogotá e preten<strong>de</strong> ficar conheci<strong>do</strong> como o Dr. Freak 2 ,<br />

pois faz justamente aquilo que os médicos rejeitam fazer: “imagina se você pedir ao<br />

médico para cortar sua língua em <strong>do</strong>is: ‘vá procurar um psicólogo, é o que ele lhe dirá”...<br />

2 Literalmente freak quer dizer <strong>de</strong>formação, aberração. Durante o século XIX e mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> XX encontramos na<br />

Europa e nos EUA até o perío<strong>do</strong> entre-­‐guerras uma multiplicação <strong>do</strong>s freaks shows nos circos, casas <strong>de</strong><br />

espetáculos e museus <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Tratava-­‐se <strong>de</strong> e<strong>xi</strong>bir as <strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e bizarrices <strong>do</strong> corpo humano<br />

como numa aula <strong>de</strong> zoologia: homens-­‐tronco, gêmeos siameses, a mulher mais gor<strong>da</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... O exemplo<br />

mais conheci<strong>do</strong> encontra-­‐se no filme “O homem elefante”, <strong>de</strong> David Linch, on<strong>de</strong> o protagonista John Merrick, é<br />

exposto num pequeno circo <strong>de</strong> aberrações para satisfazer a curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> escópica <strong>do</strong> público. Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> estranho<br />

para a época até que um médico, Dr.Treves, imbuí<strong>do</strong> <strong>de</strong> boa-­‐vonta<strong>de</strong> e nascente espírito científico <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

retirar Merrick <strong>do</strong> circo, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> com seu ato a estreita relação que será sela<strong>da</strong> <strong>do</strong>ravante entre a<br />

compaixão e a entra<strong>da</strong> no discurso médico. A cultura <strong>do</strong> voyeurismo será então substituí<strong>da</strong> pela observação<br />

178


“Eu sou um transforma<strong>do</strong>r corporal <strong>de</strong> alto gabarito”, “Fiz (este braço) para ser Emílio<br />

Gonzalez, o mais famoso transforma<strong>do</strong>r corporal”. Gonzalez percorre o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong><br />

seu lega<strong>do</strong> e é com orgulho que fala <strong>da</strong> sua obra: “Eu fiz o braço <strong>de</strong>le há muito tempo.<br />

Um braço espetacular: meu trabalho não se compara ao <strong>de</strong> ninguém”, testemunha<br />

Gonzalez a respeito <strong>do</strong>s implantes subcutâneos que havia feito num “paciente”. Satisfeito<br />

com o resulta<strong>do</strong>, seu paciente comenta: “Meu braço representa um braço único. Se você<br />

apalpar, você nunca vai esquecer, é único”.<br />

Assim, Gonzalez preten<strong>de</strong> fazer seu nome, encarregan<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong> fabricar a<br />

diferença ao acolher em seu estúdio os que não compartilham <strong>da</strong>s vias prescritas pelo<br />

saber <strong>do</strong> nosso tempo. O discurso que orienta e civiliza o gozo numa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />

cultura prescreve um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> comportamento para o corpo: um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vestir, <strong>de</strong><br />

an<strong>da</strong>r, <strong>de</strong> apresentar-­‐se, até mesmo um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> sentar-­‐se à mesa. Por isto, às vezes, os<br />

costumes <strong>de</strong> outras culturas po<strong>de</strong>m nos parecer tão aberrantes.<br />

Se a política é uma tentativa <strong>de</strong> fazer funcionar um “para to<strong>do</strong>s” propon<strong>do</strong> uma<br />

gestão universal <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gozo, uma a<strong>da</strong>ptação à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser<br />

coletiviza<strong>da</strong> -­‐ e nisso sem dúvi<strong>da</strong> há uma ditadura -­‐ o médico <strong>do</strong>s freaks se coloca <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s contraditores <strong>do</strong> gozo, <strong>da</strong>queles que po<strong>de</strong>riam ser chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> recalcitrantes<br />

com relação à norma.<br />

científica. Na disputa entre o e<strong>xi</strong>bi<strong>do</strong>r e o médico pelo mesmo objeto, o médico levará a melhor. A<br />

<strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong> torna-­‐se tema <strong>da</strong> observação médica e objeto <strong>de</strong> amor moral.<br />

Conferir texto <strong>de</strong> Jean-­‐Jacques Courtine. “O corpo anormal. História e antropologia culturais <strong>da</strong> <strong>de</strong>formi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />

In: História <strong>do</strong> corpo: as mutações <strong>do</strong> olhar. O século XX. Petrópolis, RJ, Vozes, 2008.p.253-­‐340.<br />

179


O corpo civiliza<strong>do</strong> é, portanto, programa<strong>do</strong> pelo discurso. Ele <strong>de</strong>ve ser dócil a estas<br />

prescrições para entrar nas trocas. Encontramos assim no mun<strong>do</strong> atual o que Colette<br />

Soler (2002, p.100-­‐101) chamou <strong>de</strong> “opressão homogeneizante <strong>da</strong> normali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Esta<br />

autora observa um fato clínico importante: se antes os sujeitos vinham à análise porque<br />

tinham dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para sustentar sua diferença, e isto os dividia, agora temos também<br />

os sujeitos que chegam para pedir a redução <strong>da</strong> sua diferença, pois querem ser como os<br />

<strong>de</strong>mais: belos como Gisele, bem sucedi<strong>do</strong>s como o chefe, eloquentes e <strong>de</strong>senvoltos como<br />

os artistas <strong>de</strong> telenovela...<br />

Curioso é que Gonzalez au<strong>xi</strong>lia seus “pacientes” a se distinguir, a se fazer ímpar,<br />

face à indiferenciação promovi<strong>da</strong> pela “opressão <strong>da</strong> normali<strong>da</strong><strong>de</strong>”. Portanto,<br />

encontramos inúmeras maneiras <strong>de</strong> reagir e fabricar o “fora <strong>do</strong> par” para respon<strong>de</strong>r à<br />

“indiferenciação que nossas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s promovem” (SOLER,1990 [1998], p. 289).<br />

To<strong>da</strong>via, Gonzalez não escapa <strong>da</strong> cila<strong>da</strong>: quer fun<strong>da</strong>r a diferença, mas mesmo para isto é<br />

preciso que seja reconheci<strong>do</strong>. Que não seja pela massa, mas pela tribo <strong>do</strong>s freaks. Isto faz<br />

um laço, isto tem um en<strong>de</strong>reço: quer ser o melhor <strong>de</strong>ntre aqueles que promovem a<br />

diferença. Assim, perguntamos se Gonzalez fun<strong>da</strong> um novo S1: não mais “to<strong>do</strong>s belos ou<br />

to<strong>do</strong>s magros”, mas agora “to<strong>do</strong>s diferentes”. Outra tribo, outra ditadura, outro S1, mas<br />

ain<strong>da</strong> S1!<br />

Ao que parece, não po<strong>de</strong>mos mais falar <strong>de</strong> uma política <strong>do</strong> sintoma, senão<br />

políticas <strong>do</strong> sintoma: substituto <strong>de</strong> uma satisfação, índice <strong>do</strong> real, dissi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m,<br />

180


mas também como aquilo que amarra e enlaça à mesma or<strong>de</strong>m que o sujeito crê<br />

protestar contra.<br />

Vejamos outro caso. Trata-­‐se <strong>de</strong> Caim, que transformou seu corpo com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

Gonzalez. Seu corpo é totalmente tatua<strong>do</strong>, tem quatro expansões nos lóbulos, seis<br />

implantes na testa em forma <strong>de</strong> coroa, removeu o umbigo, possui a língua bifurca<strong>da</strong>,<br />

mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z piercings no rosto, mutilou as orelhas para que ficassem em ponta. Seu<br />

objetivo é ficar pareci<strong>do</strong> com o diabo e com o vilão Val<strong>de</strong>mort. Gonzalez não vacila em<br />

acompanhar o projeto <strong>de</strong> seu ‘paciente’: “vou on<strong>de</strong> ele quiser para fazer o trabalho”.<br />

Parece-­‐me, to<strong>da</strong>via, que cria<strong>do</strong>r e a criatura tomam aqui rumos diferentes. Seus<br />

projetos com relação ao tratamento <strong>do</strong> gozo diferem. Enquanto Gonzalez, anima<strong>do</strong> pelo<br />

S1-­‐ ser “o médico <strong>do</strong>s freaks”-­‐ se esforça para encontrar um lugar na civilização ain<strong>da</strong><br />

que seja pelo avesso, Caim faz uma ruptura mais radical. No referi<strong>do</strong> programa, constato<br />

que Caim quase não fala, persegue seu objetivo silenciosamente. Apenas oferece seu<br />

corpo à transformação, mas também a uma subtração. Quanto mais perto <strong>de</strong> seu<br />

objetivo, mais a fazer: é um projeto sem fim, quase como um problema <strong>de</strong> solução<br />

elegante. Para se parecer com o diabo é preciso ficar com menos carne: corta as pontas<br />

<strong>da</strong>s orelhas, a língua, parte <strong>do</strong> nariz. Mas nunca é o bastante: “Quan<strong>do</strong> me olho no espelho<br />

sinto um pouco <strong>de</strong> tristeza porque ain<strong>da</strong> há muitas mu<strong>da</strong>nças a fazer em meu corpo. Mas<br />

sei que é um processo. O importante é que eu me sinta bem com as mu<strong>da</strong>nças que faço.<br />

Des<strong>de</strong> que eu não faça mal a ninguém posso fazer com meu corpo o que eu quiser”.<br />

181


Diferem assim as soluções <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Gonzalez <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> faz força para<br />

contestar o discurso <strong>do</strong>minante, mas mal sabe ele que dá uma volta <strong>de</strong> 360 graus para<br />

voltar ao mesmo lugar. Contesta os i<strong>de</strong>ais, mas fun<strong>da</strong> outro: “to<strong>do</strong>s diferentes”. No fim<br />

<strong>da</strong>s contas <strong>de</strong>nuncia: “somos to<strong>do</strong>s freaks. As mulheres no meu país to<strong>da</strong>s colocam<br />

ná<strong>de</strong>gas, mega-­‐seios, peitos imensos...”.<br />

Para terminar, proponho que a diferença entre Gonzalez, o cria<strong>do</strong>r, e Caim, a<br />

criatura, é abissal. Gonzalez, quiçá neurótico, interroga o pai e os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> seu<br />

fracasso em or<strong>de</strong>nar o campo <strong>do</strong> gozo. Ele, to<strong>da</strong>via, au<strong>xi</strong>lia os que não po<strong>de</strong>m contar com<br />

este recurso. Com isso, faz seu nome e ganha seu pão <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia. Ele entra nas trocas, e<br />

justamente por isto não está livre....<br />

Quanto a Caim, livre para fazer o que quiser <strong>de</strong> seu corpo, ele propõe à<br />

psicanálise algumas perguntas. A mais importante é por qual razão somos sempre<br />

feu<strong>da</strong>tários <strong>da</strong> imagem, pouco importan<strong>do</strong> em qual estrutura... De Gisele a Caim há um<br />

ponto em comum: nos <strong>do</strong>is casos o corpo é aquilo que se impõe, que se mostra, provoca<br />

arrepios. A bela e a fera. O corpo é esta coisa que carregamos conosco, como uma mala,<br />

às vezes sem alça. Ca<strong>da</strong> um, a seu mo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>monstra como o corpo faz leito para o Outro,<br />

como o corpo é propício para fazer sintoma ou sinthome.<br />

Bibliografia<br />

LACAN, J. La tercera (1975a). In: ________________________. Intervenciones y textos 2. Buenos<br />

Aires, Manancial, 2001.<br />

__________. Conferencia em Genebra sobre el sintoma. (1975b).In: __________. Intervenciones<br />

y textos 2. Buenos Aires, Manantial, 2001.<br />

182


SOLER, C. Los ensamblajes <strong>de</strong>l cuerpo. Me<strong>de</strong>lin, Associación Foros <strong>de</strong>l Campo<br />

Lacaniano Me<strong>de</strong>llín, 2002.<br />

_________. O “Corpo falante”. In: Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus n. 1. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Internacional<br />

<strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano-­‐<strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo<br />

Lacaniano, 2010.<br />

__________. Os direitos <strong>do</strong> sujeito. In: _______________. A <strong>Psicanálise</strong> na civilização.<br />

Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998a.<br />

__________. Incidência política <strong>do</strong> psicanalista. In: ________. A <strong>Psicanálise</strong> na Civilização.<br />

Tradução: Vera Ribeiro, Manoel Motta. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Contra Capa Livraria, 1998b.<br />

183


O Real Do Sintoma: Sua Política Na Cura<br />

Andréa Hortélio Fernan<strong>de</strong>s 1<br />

Em 1975 no Seminário R.S.I., Lacan afirma que to<strong>do</strong> àquele que procura uma análise<br />

o faz por acreditar que o sintoma diz alguma coisa que <strong>de</strong>man<strong>da</strong> ser <strong>de</strong>cifra<strong>da</strong>. Ele também<br />

apresenta o sintoma como o que há <strong>de</strong> mais real em ca<strong>da</strong> um, portanto, neste senti<strong>do</strong>, o<br />

sintoma analítico interroga a não-relação sexual. Surge então, neste mesmo Seminário, outra<br />

afirmação contun<strong>de</strong>nte segun<strong>do</strong> a qual o “Inconsciente é o Real”. O real como aquilo que não<br />

cessa <strong>de</strong> não se escrever, promove a associação livre, trabalho <strong>do</strong> analisante, via transferência.<br />

Logo, nosso trabalho preten<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r as mu<strong>da</strong>nças nas crenças <strong>do</strong> sujeito que procura uma<br />

análise levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração o real <strong>do</strong> sintoma e sua política na clínica.<br />

O real próprio ao sintoma como aquilo que não cessa <strong>de</strong> não se escrever convoca<br />

mu<strong>da</strong>nças nas crenças <strong>do</strong> sujeito. Acreditar que um sintoma diz alguma coisa está associa<strong>do</strong> à<br />

vacilação <strong>de</strong> outras crenças <strong>do</strong> sujeito, entre elas na religião e na ciência. Com relação à<br />

religião, Lacan diz que “ela é feita para curar os homens, isto é, para que não percebam o que<br />

não funciona” 2 , para recalcar o sintoma. Com relação à ciência, sabemos que a busca <strong>da</strong><br />

cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong> termina por foracluir o sujeito por <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rá-lo naquilo em que ele se<br />

presentifica e, isso está articula<strong>do</strong> ao tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> ao sintoma.<br />

1 Psicanalista, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, Doutora em Psicopatologia e <strong>Psicanálise</strong> (Paris 7), Profa <strong>da</strong> graduação e pós-­‐<br />

graduação <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>da</strong> Bahia. E-­‐mail-­‐ ahfernan<strong>de</strong>s@terra.com.br<br />

2 Lacan, J., O triunfo <strong>da</strong> religião. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2005, p. 72.<br />

184


A psicopatologia explicativa, comunicativa e fenomenológica <strong>de</strong> Karl Jaspers seria um<br />

exemplo <strong>da</strong> foraclusão <strong>do</strong> sujeito fomenta<strong>da</strong> pela e<strong>xi</strong>gência <strong>de</strong> cientifici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A percepção e a<br />

compreensão orientam a perspectiva jasperiana ao <strong>de</strong>finir o <strong>de</strong>lírio como juízo<br />

patologicamente falsea<strong>do</strong> e incompreensível. A busca <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> aponta para quão distante<br />

estão Jaspers e Lacan que afirma que “o falasser é uma forma <strong>de</strong> exprimir o inconsciente” 3 , e<br />

que, portanto, ao analista interessa o sem-senti<strong>do</strong>.<br />

Longe <strong>de</strong> propor uma hermenêutica <strong>do</strong> inconsciente, Lacan, no Seminário XI, irá<br />

<strong>de</strong>ter-se na interpretação ressaltan<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong>la “não está aberta a to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s” 4 já que<br />

“ela mesma é um não-senso”. Para Lacan, “quan<strong>do</strong> se trata <strong>do</strong> inconsciente <strong>do</strong> sujeito” está<br />

em questão “fazer surgir elementos significantes irredutíveis, non-sense, feitos <strong>de</strong> não-<br />

senso” 5 . Temos já aí uma apro<strong>xi</strong>mação <strong>do</strong> inconsciente real, irredutível, feito <strong>de</strong> não-senso.<br />

Se o falasser é como uma forma <strong>de</strong> exprimir o inconsciente 6 , o saber em questão é um<br />

saber sem-sujeito. O inconsciente só po<strong>de</strong> ser abor<strong>da</strong><strong>do</strong> na análise on<strong>de</strong> não é questão <strong>de</strong><br />

lembrar-se <strong>do</strong> que se sabe, mas <strong>de</strong> um “não me lembro mais disso. Não me re<strong>encontro</strong><br />

nisso” 7 . É nisso que o inconsciente interpreta o analisante e faz <strong>de</strong>le seu interprete.<br />

Ain<strong>da</strong> sobre a interpretação, nos anos 70, Lacan diz que ela não é feita para ser<br />

compreendi<strong>da</strong> já que ela <strong>de</strong>ve ser equivoca 8 . É <strong>de</strong>sta forma que a interpretação age na contra<br />

3<br />

I<strong>de</strong>m.<br />

4<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 11. RJ: Zahar, p. 236.<br />

5<br />

I<strong>de</strong>m.<br />

6<br />

Lacan, J., O triunfo <strong>da</strong> religião. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,2005, p. 72.<br />

7<br />

Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967). In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 337.<br />

8<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 35.<br />

185


corrente <strong>do</strong> efeito <strong>de</strong> tapeação próprio à transferência 9 , apontan<strong>do</strong> para o engano <strong>do</strong> sujeito<br />

suposto que se explicita na pergunta: “o saber que só se revela no engano <strong>do</strong> sujeito, qual<br />

po<strong>de</strong> ser o sujeito que o sabe <strong>de</strong> antemão?” 10 .<br />

Logo, entre o analisan<strong>do</strong> e analista e<strong>xi</strong>stiria uma “divergência <strong>de</strong> suposição” 11 . Do<br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>, a suposição <strong>de</strong> saber própria <strong>da</strong> transferência, enquanto que <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

analista, o postula<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito suposto saber caberia ser aboli<strong>do</strong> no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma análise.<br />

A divergência <strong>de</strong> suposição aponta para a relação entre saber e crença, no que “três quartos <strong>do</strong><br />

dito saber não são na<strong>da</strong> mais que crenças” 12 .<br />

A relação entre saber e crença, interessou bastante Lacan, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> sessenta 13 .<br />

Nesta época, ele chamava atenção <strong>do</strong>s analistas que tentaram tratar <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong><br />

inconsciente fora <strong>da</strong> psicanálise e, assim <strong>de</strong>ram um tom “tranqüiliza<strong>do</strong>r” 14 <strong>do</strong> inconsciente.<br />

Lacan diz então que irá “no cerne <strong>da</strong> prática que fez empali<strong>de</strong>cer o inconsciente buscar o seu<br />

registro” 15 . À prática <strong>da</strong> análise atrela<strong>da</strong> a <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong> ao inconsciente, Lacan promulga<strong>da</strong><br />

seguir a política <strong>do</strong> sintoma no que ele mantém um senti<strong>do</strong> no real que aponta para o ser <strong>de</strong><br />

gozo <strong>do</strong> sujeito.<br />

9<br />

I<strong>de</strong>m, p. 240.<br />

10<br />

Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 337.<br />

11<br />

Lacan, J., “A psicanálise. Razão <strong>de</strong> um fracasso” (15/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p.<br />

337.<br />

12<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 12.<br />

13<br />

Em especial, nos Seminários <strong>da</strong> Transferência e Os Quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise e, também<br />

na Proposição <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1967 como nas conferências proferi<strong>da</strong>s em Roma, no mesmo ano.<br />

14<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns dês universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 25.<br />

15<br />

Lacan, J., “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber” (14/12/1967) In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 332.<br />

186


É nesta perspectiva que em 1975, Lacan dirá que “O sintoma é real. É a única coisa<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente real, que conserva um senti<strong>do</strong> no real. É por essa razão que a psicanálise<br />

po<strong>de</strong>, se e<strong>xi</strong>ste a chance, intervir simbolicamente” 16 no real.<br />

Para tratar <strong>da</strong> afirmação segun<strong>do</strong> a qual o sintoma é real, é importante nos <strong>de</strong>termos na<br />

orientação clínica <strong>de</strong> Lacan sobre intervir simbolicamente no sintoma. Para tanto surge uma<br />

nova acepção <strong>do</strong> sintoma, o sintoma vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> real, o sintoma como “acontecimento <strong>de</strong> corpo,<br />

que correspon<strong>de</strong> ao saber fala<strong>do</strong>, ao saber fala<strong>do</strong> fixa<strong>do</strong> precocemente” 17 . O sintoma como<br />

encarnação <strong>do</strong> real comporta uma incerteza por, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, permanecer “in<strong>de</strong>ciso entre o<br />

fonema, a palavra, a frase, mesmo to<strong>do</strong> pensamento” 18 . Isto porque “a linguagem, <strong>de</strong> começo,<br />

ela não e<strong>xi</strong>ste”. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função <strong>de</strong> alíngua” 19 .<br />

Desse mo<strong>do</strong>, o sintoma tem um lugar privilegia<strong>do</strong> entre as formações <strong>do</strong> inconsciente sen<strong>do</strong><br />

imprescindível para que uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> análise possa ocorrer.<br />

Numa conferência <strong>de</strong> Lacan na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Yale, o tratamento <strong>da</strong><strong>do</strong> ao sintoma e<br />

ao saber é evoca<strong>do</strong> no percurso <strong>de</strong> uma análise. Nesta conferência, o início <strong>do</strong> tratamento é<br />

<strong>de</strong>scrito como o analista <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> “<strong>de</strong>ixasse guiar pelos termos verbais” 20 . A expressão<br />

“termos verbais” propomos apro<strong>xi</strong>mar <strong>do</strong> significante fora <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia, fora senti<strong>do</strong>, como um<br />

16<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 14. L’insu-­‐que-­‐sait <strong>de</strong> l’ une bévue s’aile a mourre. Lição <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> março <strong>de</strong><br />

1977, inédito.<br />

17<br />

Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p, 23.<br />

18<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 196.<br />

19<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. RJ: Zahar, p. 189.<br />

20<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 17.<br />

187


to<strong>do</strong> só, errático, <strong>do</strong> S1( S1( S1(S1 → //S2))) “que soa em francês essaim 21 , um enxame<br />

significante, um enxame que zumbe” 22 e “que garante a uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> copulação <strong>do</strong> sujeito<br />

com o saber” 23 . É importante aqui “conceber que o S2 <strong>de</strong> alíngua é ele próprio composto <strong>de</strong><br />

S1”, e que “o sujeito não virá no nível <strong>de</strong>ste S2” 24 . É assim que Lacan diz que “os efeitos <strong>de</strong><br />

alíngua que já estão lá como saber, vão bem mais longe <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que o ser falante é suscetível<br />

<strong>de</strong> enunciar” 25 trata-se, portanto, <strong>de</strong> um saber que ultrapassa o sujeito.<br />

A partir <strong>da</strong>í veremos o ensino <strong>de</strong> Lacan <strong>de</strong>marcar que “o significante é causa <strong>de</strong><br />

gozo” 26 e que somente pelo simbólico é possível abor<strong>da</strong>r o sintoma como acontecimento no<br />

corpo. Dito <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, o sintoma como mo<strong>do</strong> pelo qual o sujeito goza na medi<strong>da</strong> em que<br />

o inconsciente o <strong>de</strong>termina, aponta para o fato <strong>de</strong> que o saber inconsciente “está aloja<strong>do</strong> em<br />

outro lugar, ele está aloja<strong>do</strong> na substância gozante” 27 e aponta para uma fixão <strong>de</strong> gozo própria<br />

ao sujeito. Os uns erráticos que antece<strong>de</strong>m a linguagem conectam-se ao gozo corporal<br />

fazen<strong>do</strong> sintoma, entendi<strong>do</strong> como acontecimento no corpo, por trazerem aos traços <strong>do</strong> gozo<br />

<strong>do</strong> Outro. Como não se po<strong>de</strong> gozar <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> Outro, <strong>da</strong><strong>da</strong> ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual é<br />

através <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, que algo <strong>do</strong> sintoma po<strong>de</strong> ser toca<strong>do</strong> pela prática <strong>de</strong> falar em<br />

análise.<br />

21<br />

No dicionário Le Robert – essaim significa enxame, exemplo: “groupe d’abeilles d’insectes em vol ou posés.<br />

22<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 196.<br />

23<br />

I<strong>de</strong>m.<br />

24<br />

Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 19.<br />

25<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 191.<br />

26<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 36.<br />

27<br />

Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 18.<br />

188


Estan<strong>do</strong> trabalhan<strong>do</strong> o saber inconsciente aloja<strong>do</strong> na substância gozante, para Lacan<br />

“o que há <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>nte no sintoma ... é que se acredita” 28 . Logo, to<strong>do</strong> aquele que<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> uma análise acredita que o sintoma diz alguma coisa e basta apenas <strong>de</strong>cifrá-la. O<br />

analista convoca<strong>do</strong> a respon<strong>de</strong>r com o saber faz uma aposta que uma análise se dê, pela<br />

associação livre <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>. O <strong>de</strong>sejo adverti<strong>do</strong> <strong>do</strong> analista está suporta<strong>do</strong> na sua própria<br />

experiência <strong>de</strong> análise que <strong>de</strong>ve tê-lo leva<strong>do</strong> a um ponto <strong>de</strong> ateísmo que não se contradiz.<br />

Nisto o ateísmo po<strong>de</strong> ser apro<strong>xi</strong>ma<strong>do</strong> à questão <strong>do</strong> gozo.<br />

O ateísmo é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por Lacan como “a <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> crença em Deus” 29 , a crença que<br />

Deus não intervém no mun<strong>do</strong>. Assim to<strong>do</strong>s seriam religiosos, mesmo os ateus que<br />

acreditariam que Deus não tem nenhuma participação quan<strong>do</strong> estão <strong>do</strong>entes. No nível <strong>do</strong><br />

gozo, o analista leva<strong>do</strong> ao ponto <strong>do</strong> ateísmo durável, está adverti<strong>do</strong> que o sujeito neurótico é<br />

leva<strong>do</strong> a <strong>de</strong>legar o gozo ao Outro. Porém, a experiência <strong>da</strong> análise permite ao analista entrever<br />

que esta crença esta pauta<strong>da</strong> no ateísmo, a <strong>do</strong>ença <strong>da</strong> crença em Deus. Isto porque mesmo<br />

sen<strong>do</strong> o gozo o que falta ao Outro, na neurose e o que o torna inconsistente, o neurótico ten<strong>de</strong><br />

a <strong>de</strong>legá-lo ao Outro. Logo, o analista cuja à análise o levou a um ponto <strong>de</strong> ateísmo po<strong>de</strong> levar<br />

um sujeito a formular a seguinte questão: “este gozo, <strong>do</strong> qual a falta faz o Outro inconsistente,<br />

é ele meu?” 30 .<br />

28<br />

Lacan, J., O Seminário – Livro 20. R.S.I. Lição <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1975, p. 24. Inédito.<br />

29<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 32.<br />

30<br />

Lacan, J., “Subversão <strong>do</strong> sujeito e dialética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo no inconsciente freudiano” (1957) in: Escritos. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Zahar, p. 819.<br />

189


É necessário um percurso para que uma análise se dê, e ele está articula<strong>do</strong> àquilo que<br />

faz função <strong>de</strong> real no saber, ou seja, o impossível, a não-relação sexual. Uma análise começa<br />

com um sujeito supon<strong>do</strong> um saber ao analista. Ao analista cabe colocar a <strong>de</strong>stituição subjetiva<br />

em pauta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>da</strong> análise para, assim po<strong>de</strong>r manejar, com a suposição <strong>de</strong> saber a ele<br />

atribuí<strong>da</strong>. O algoritmo <strong>da</strong> transferência mostra o caráter <strong>de</strong> cifra <strong>de</strong> gozo, fora-senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

sintoma que convoca <strong>de</strong>cifração. Através <strong>do</strong> S significante <strong>da</strong> transferência o sujeito apresenta<br />

o sintoma como um “incompreensível corpo estranho a ele próprio e porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um senti<strong>do</strong><br />

obscuro que o representa” 31 . É aí que Lacan vai insistir que “Há Um e na<strong>da</strong> mais”. O Um que<br />

insiste em se escrever pelo viés <strong>da</strong> fala, sob transferência, <strong>de</strong>monstra indiretamente o que não<br />

se escreve 32 , a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever a relação sexual.<br />

A impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> está posta entre o S1 e S2 no discurso <strong>do</strong> mestre, S1 → S2, entre eles<br />

não há relação <strong>da</strong><strong>da</strong> a coalescência entre S1 e S2. O sintoma como o que <strong>de</strong> mais particular em<br />

ca<strong>da</strong> um, interroga a não-relação sexual e cria um intervalo entre S1 e S2, on<strong>de</strong> é possível<br />

situar o sintoma ( ∑ ) que faz e<strong>xi</strong>stir a relação sexual, faz e<strong>xi</strong>stir o discurso. A questão então é<br />

como um significante po<strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> a fazer sinal, a constituir signo 33 , sintoma para um<br />

sujeito.<br />

Lacan afirma que “o saber <strong>do</strong> um, por pouco que posamos dizer disto, vem <strong>do</strong><br />

significante Um” 34 <strong>de</strong> alíngua. E ain<strong>da</strong> que é <strong>da</strong> alíngua que é possível extrair o que é <strong>do</strong><br />

31 Soler, c. “Stan<strong>da</strong>rd e não stan<strong>da</strong>rd” in: Artigos Clínicos. Salva<strong>do</strong>r: Fator, 1991, p. 28.<br />

32 Soler, C., “De que mo<strong>do</strong> o real coman<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” in Stylus, nº 19. Rio <strong>de</strong> Janeiro: AFCL/EPCL, 2009, p. 17.<br />

33 J.Lacan, O Seminário – Livro 20. Mais, ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 195.<br />

34 I<strong>de</strong>m.<br />

190


significante 35 . Ao Lacan propor o Um encarna<strong>do</strong>, ele concebe que S2 é composto pelo S1. Do<br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong> S2 está o resto que permanece não <strong>de</strong>cifra<strong>do</strong>, não-significantizável, indizível, um<br />

saber fala<strong>do</strong> tal qual o Um encarna<strong>do</strong>. O S2 aponta para o que há <strong>de</strong> contingente no ouvir e<br />

põe em marcha to<strong>da</strong> a crença <strong>do</strong> sujeito no sintoma. A ponto <strong>de</strong> Lacan <strong>de</strong>clarar que “o<br />

significante Um não é significante qualquer. Ele é a or<strong>de</strong>m significante, no que ela se instaura<br />

pelo envolvimento pelo qual to<strong>da</strong> a ca<strong>de</strong>ia subsiste 36 .<br />

Para Lacan, a linguagem é feita <strong>de</strong> alíngua. A linguagem “é uma elucubrarão <strong>de</strong> saber<br />

<strong>de</strong> alíngua” 37 . Nesta época, Lacan vai apro<strong>xi</strong>mar o inconsciente <strong>de</strong> alíngua, propon<strong>do</strong> um<br />

inconsciente fora-senti<strong>do</strong>, anterior a linguagem. Segun<strong>do</strong> ele, “é porque há o inconsciente,<br />

isto é alíngua ... que o significante po<strong>de</strong> ser chama<strong>do</strong> a fazer sinal, a constituir signo” 38 , a<br />

fazer enigma, levan<strong>do</strong> ao cúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o sujeito ignora, o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

que ele não sabe suscita o amor ao saber, ou seja, transferência 39 . É neste contexto que, por<br />

contingência, ou seja, pela fala <strong>do</strong> sujeito em análise, algo po<strong>de</strong> vir a se escrever (S2) e é o que<br />

faz função <strong>de</strong> real no saber, um saber sem-sujeito, um saber que ultrapassa o sujeito e aponta<br />

para algo que cessa <strong>de</strong> não se escrever: o Um <strong>do</strong> gozo, a letra <strong>de</strong> gozo. Aponta, pois, para o<br />

sintoma como o que há <strong>de</strong> mais real em ca<strong>da</strong> um e para o inconsciente real que pelo cúmulo<br />

<strong>de</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Um encarna<strong>do</strong> que faz signo, enigma e leva o sujeito a acreditar que o sintoma<br />

possa ser traduzi<strong>do</strong>.<br />

35 I<strong>de</strong>m, p. 194.<br />

36 I<strong>de</strong>m, p. 197.<br />

37 I<strong>de</strong>m, p. 190.<br />

38 I<strong>de</strong>m, p. 195.<br />

39 Gerbase, J., “O discurso histérico”, curso O diagnóstico na psicanálise e na psiquiatria, inédito, 2010.<br />

191


Ao tratar <strong>da</strong> crença no sintoma, em 1975, Lacan marcará uma distinção entre acreditar<br />

no sintoma (“y croire”) como <strong>do</strong> campo <strong>da</strong> neurose e acreditar nele (“le croire”). Na psicose,<br />

sabemos, as vozes estão lá, o psicótico acredita nelas, <strong>da</strong>í porque Lacan formulou que na<br />

psicose o que foi foracluí<strong>do</strong> no simbólico, retorna no real. Porém, tanto na neurose como na<br />

psicose, o analista <strong>de</strong>verá manejar com a crença no sintoma.<br />

Na psicose trata-se <strong>de</strong> uma crença força<strong>da</strong>. O psicótico sofre o efeito <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia<br />

significante rompi<strong>da</strong> que faz com que a irrupção <strong>de</strong> um significante no real seja<br />

incontestável 40 , por exemplo: “porca”. De acor<strong>do</strong> com Bernard David 41 , o psicótico acredita<br />

na sua alucinação <strong>de</strong> forma re<strong>do</strong>bra<strong>da</strong>, ele utiliza a passagem <strong>da</strong> paciente entrevista<strong>da</strong> por<br />

Lacan que diz ter escuta<strong>do</strong> “porca” para <strong>de</strong>monstrar isso. A crença seria re<strong>do</strong>bra<strong>da</strong> pelo fato<br />

<strong>do</strong> significante “porca” surgi no real e, também, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao fato <strong>do</strong> significante interpretar a<br />

paciente. Este significante quer lhe dizer alguma coisa e, em alguns casos, já diz alguma<br />

coisa, apesar <strong>da</strong> paciente. Em razão <strong>da</strong> não-extração <strong>do</strong> objeto a, está veta<strong>do</strong> à paciente saber<br />

o que é o seu ser <strong>de</strong> gozo, o significante equivale a ela enquanto objeto <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> Outro.<br />

Entretanto, no <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>da</strong> psicose encontramos um percurso que vai <strong>do</strong><br />

acreditar no sintoma e acreditar nele. O significante real “porca” (S2), essa irrupção <strong>do</strong><br />

inconsciente real, <strong>de</strong> um saber sem sujeito, frente a ela a paciente não se vê representa<strong>da</strong> pelo<br />

significante alucina<strong>do</strong>, até aí ela sofre o efeito <strong>do</strong> cúmulo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que faz signo e <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />

40 Lacan, J., “De uma questão familiar à to<strong>do</strong> tratamento possível <strong>da</strong> psicose” in: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />

p. 542.<br />

41 Bernard, D. “Y croire, les croire” in: Pli, nº 4. Revue <strong>de</strong> Psychanalyse.<br />

192


interpretação. Somente com a formalização <strong>do</strong> <strong>de</strong>lírio que a paciente passa a acreditar nele,<br />

através <strong>da</strong> significação <strong>da</strong> significação.<br />

Na neurose, o sujeito acredita no sintoma e isso o impulsiona na direção <strong>de</strong> uma<br />

elaboração, pauta<strong>da</strong> na transferência. O significante que faz enigma seria real como o<br />

significante no real próprio à psicose, a diferença é que ele não é alucina<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser<br />

encarna<strong>do</strong>, inscrito no corpo, como nos ilustra a histeria. Esse significante é causa <strong>de</strong> gozo e<br />

objeto <strong>de</strong> gozo na medi<strong>da</strong> em que se goza <strong>de</strong>le, porém é um real que po<strong>de</strong> se converter em<br />

simbólico 42 . O tratamento <strong>do</strong> real <strong>do</strong> sintoma pelo simbólico é <strong>do</strong> que se ocupa uma<br />

psicanálise com especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s na neurose e na psicose.<br />

Na psicose e<strong>xi</strong>stiria a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> civilizar o gozo, possibilitan<strong>do</strong> que mesmo na<br />

psicose o sujeito possa fazer laço social. Um exemplo seria Joyce ao conciliar seu gozo<br />

autístico, o gozo <strong>do</strong> Um, ao gozo <strong>da</strong> letra, se impor ao mun<strong>do</strong> como artista fazen<strong>do</strong>-se<br />

promotor <strong>de</strong> seu nome <strong>de</strong> gozo. Os seus livros Retrato <strong>do</strong> artista quan<strong>do</strong> jovem ou Stephen, o<br />

herói, não se trata <strong>de</strong> um herói ou um artista, mas <strong>do</strong> herói e <strong>do</strong> artista que é uma crença <strong>da</strong><br />

mesma or<strong>de</strong>m que a crença <strong>de</strong> Schreber <strong>de</strong> ser A mulher <strong>de</strong> Deus 43 , apontan<strong>do</strong> que ele<br />

acredita nela.<br />

Na análise com neuróticos, teríamos na entra<strong>da</strong>, a crença no sintoma que o liga a<br />

ca<strong>de</strong>ia significante sob transferência e, “na saí<strong>da</strong>, a <strong>de</strong>scrença que o <strong>de</strong>sliga <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia<br />

42 Soler, C., “Les symptômes <strong>de</strong> transfert”, curso inédito <strong>de</strong> 1999.<br />

43 Soler, C., O inconsciente a céu aberto <strong>da</strong> psicose. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2007, p. 206.<br />

193


significante” 44 . Como já dizemos acreditar no sintoma é acreditar que ele diga alguma coisa.<br />

É nisso que o sintoma interroga a não-relação sexual. Acreditar no sintoma seria como lhe<br />

acrescentar reticências, acreditar que ao S1 po<strong>de</strong> juntar um S2 que faria sintoma retornar <strong>do</strong><br />

real para o senti<strong>do</strong>. Aí está à própria crença no inconsciente. Em contraparti<strong>da</strong>, a i<strong>de</strong>ntificação<br />

com o sintoma presume que o sujeito tenha <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> esperar que a tradução pelas<br />

reticências, <strong>de</strong>ixa-se, pois <strong>de</strong> acreditar, “a letra <strong>do</strong> sintoma resolve o vazio <strong>do</strong> sujeito que<br />

acabou com a questão <strong>do</strong> ser e com a elucubração <strong>de</strong> saber relaciona<strong>da</strong> a ela” 45 .<br />

Por fim, Lacan ao afirmar que “o real, tal como nos falamos <strong>de</strong>le, é completamente<br />

<strong>de</strong>snu<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>”... “porque não é escrito com palavras. E sim com pequenas letras” 46<br />

aponta para o que seria a infinitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> análise. Na qual “o sujeito ao acreditar no sintoma,<br />

acredita que o “um” <strong>da</strong> letra po<strong>de</strong> retornar ao “<strong>do</strong>is “ <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia” 47 , e assim alimentar o gozo<br />

<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> atrela<strong>do</strong> ao real <strong>do</strong> sintoma, política cujo manejo o analista é convoca<strong>do</strong> a operar.<br />

44<br />

I<strong>de</strong>m, p. 198.<br />

45<br />

Soler, C., O que Lacan dizia <strong>da</strong>s mulheres. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 198.<br />

46<br />

Lacan, J., “Conférénces et entretiens <strong>da</strong>ns <strong>de</strong>s universitaires nord-­‐américaines”.In: Scilicet nº 6/7. Paris: Seuil,<br />

1976, p. 29.<br />

47<br />

Soler, C., O que Lacan dizia <strong>da</strong>s mulheres. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, p. 197.<br />

194


Sintoma ou Fenômeno Psicossomático? Decifra-me ou te <strong>de</strong>voro!<br />

Roberta Luna <strong>da</strong> Costa Freire 1<br />

Neste trabalho trazemos reflexões, a partir <strong>da</strong> clínica, em torno <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser<br />

leva<strong>do</strong> em conta - no caso em que se apresenta uma lesão num órgão – para se dizer se se<br />

trata <strong>de</strong> um sintoma ou <strong>de</strong> um fenômeno psicossomático. É possível falar-se <strong>de</strong> sintoma na<br />

psicossomática? Sen<strong>do</strong> a fenomenologia, para Lacan, tributária <strong>do</strong> registro <strong>da</strong> fala, será no<br />

campo <strong>da</strong> linguagem que situaremos nossa questão como uma questão <strong>de</strong> nome.<br />

Segun<strong>do</strong> Soller (2010, p.31), o sintoma é acontecimento <strong>do</strong> corpo, e o corpo se<br />

introduz na psicanálise pelo sintoma. Nesse senti<strong>do</strong>, é com o corpo, enquanto submeti<strong>do</strong> à<br />

or<strong>de</strong>m simbólica - afeta<strong>do</strong> pela linguagem - que é possível esvanecer a diferença, tão cara às<br />

ciências filosóficas, entre mente e corpo. Assim, aponta Garcia-Roza (1936), a dicotomia não<br />

se inscreve como mente-corpo, mas como corpo linguagem/pulsões anárquicas.<br />

Em “Radiofonia” (1970, p.406), Lacan afirma que o corpo simbólico é aquele sobre o<br />

qual o ser que nele se apóia não sabe que é a linguagem que lhe confere,a tal ponto que ele<br />

não e<strong>xi</strong>stiria, se não pu<strong>de</strong>sse falar. Assim, é o corpo fala<strong>do</strong> no divã que pertence à<br />

psicanálise. Corpo <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>do</strong> organismo. O corpo <strong>do</strong> qual falamos é o corpo em sua<br />

consistência imaginária e simbólica, e separa<strong>do</strong> <strong>da</strong> carne. Ele, como sintoma, afeta<strong>do</strong> pelo<br />

significante, e<strong>xi</strong>la o gozo e adquire consistência imaginária, prestan<strong>do</strong>-se ao equívoco; ao<br />

1 Psicanalista. Membro <strong>da</strong> EPFCL – Brasil/ AFCL – Fórum Natal<br />

195


passo que o organismo é pulsional, coisa bruta e real. Não há <strong>encontro</strong> com o significante: o<br />

organismo é o não <strong>encontro</strong>.<br />

Como <strong>de</strong>stino <strong>da</strong> pulsão, o sintoma é testemunho <strong>da</strong> pulsão captura<strong>da</strong> pela linguagem,<br />

fazen<strong>do</strong>-a e<strong>xi</strong>lar-se. Ser afeta<strong>do</strong> pelo significante dá ao corpo consistência, a mesma que<br />

Freud atribuiu ao <strong>encontro</strong> entre representação-coisa e representação-palavra.<br />

No texto “O Inconsciente”(1915), Freud refere-se ao afeto e à representação como<br />

representantes pulsionais. Pela ação <strong>do</strong> recalque, o afeto é <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua representação<br />

original, a qual Freud <strong>de</strong>signou como representação coisa, para outra representação. A<br />

apresentação consciente abrange a apresentação <strong>da</strong> coisa mais a apresentação <strong>da</strong> palavra que<br />

pertence a ela, ao passo que a apresentação inconsciente é a apresentação <strong>da</strong> coisa apenas. A<br />

apresentação <strong>da</strong> coisa mais a apresentação <strong>da</strong> palavra dizem respeito à captura <strong>da</strong> pulsão,<br />

impon<strong>do</strong> a esta a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> linguagem. A essa transformação, Freud <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong><br />

representante-representação.<br />

Em termos significantes, a representação palavra seriam os significantes, e a<br />

representação coisa o corpo pulsional. Nesse <strong>encontro</strong>, segun<strong>do</strong> Freud, uma parte fica no<br />

inconsciente e outra na consciência. Portanto, algo se per<strong>de</strong>, isto é, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar<br />

livremente; o gozo é e<strong>xi</strong>la<strong>do</strong> e “educa<strong>do</strong>”. Em termos lingüísticos, significa a dialética <strong>do</strong> par<br />

S1- S2, no que ele representa o sujeito para um outro significante, o qual o outro<br />

significante tem por efeito a afânise <strong>do</strong> sujeito (Lacan, 1964, p.207)<br />

Contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> esse <strong>encontro</strong> entre o afeto e um substituto <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong> não se<br />

estabelece, um quantum <strong>de</strong> afeto fica solto, e o excesso é senti<strong>do</strong> como angústia. Isso<br />

196


significa dizer que o <strong>encontro</strong> entre a representação coisa e a representação palavra não se<br />

efetivou. O afeto franquea<strong>do</strong> se tornará então não simboliza<strong>do</strong>, não encontran<strong>do</strong> uma<br />

linguagem para seu escoamento. Em termos lacanianos, trata-se <strong>de</strong> um excesso <strong>de</strong> gozo, isto<br />

é, <strong>do</strong> real.<br />

Nessa perspectiva, po<strong>de</strong>remos situar a psicossomática: o afeto <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>da</strong> escritura<br />

é real; e, como tal, ataca o corpo sem mediação simbólica. Seus efeitos se mostram na marca<br />

impressa no corpo, que, no dizer <strong>de</strong> Lacan, não po<strong>de</strong> ser li<strong>da</strong>. No “Seminário 11”, Lacan situa<br />

a psicossomática, em termos linguisticos, com a fórmula <strong>da</strong> holófrase, na qual não há<br />

intervalo significante. Ele diz que a psicossomática é algo que não é um significante, mas que<br />

mesmo assim, só é concebível pela indução significante, no nível <strong>do</strong> sujeito, se passou <strong>de</strong><br />

maneira que não põe em jogo a afânise <strong>do</strong> sujeito (Lacan, 1964, p.215)<br />

Lacan não <strong>de</strong>signa a psicossomática como estrutura, mas, antes, como efeito <strong>de</strong><br />

linguagem, sen<strong>do</strong>, portanto, um fenômeno, o que nos permite afirmar que um sujeito<br />

neurótico, psicótico ou perverso po<strong>de</strong> apresentar lesões psicossomáticas. Segun<strong>do</strong> Soller<br />

(2010, p11), para gozar é preciso um corpo e não um sujeito. O corpo <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

organismo, atravessa<strong>do</strong> pelas pulsões.<br />

No senso comum e no discurso especializa<strong>do</strong> <strong>da</strong> psicologia e <strong>da</strong> psiquiatria, a<br />

psicossomática é compreendi<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong> um fun<strong>do</strong> emocional – termo <strong>de</strong>scritivo e genérico<br />

que revela a confusão aponta<strong>da</strong> por Freud (1915), quan<strong>do</strong> diz que o fato <strong>de</strong> não se levar em<br />

conta o inconsciente é supor que tu<strong>do</strong> que é mental é consciente. Nesses <strong>do</strong>is campos, quem<br />

tem o saber é o especialista. Satisfeito, o paciente sai com uma receita química <strong>da</strong> consulta <strong>do</strong><br />

197


psiquiatra, ou com uma receita comportamental <strong>da</strong> consulta com o psicólogo e, <strong>de</strong> quebra, sua<br />

<strong>do</strong>ença ain<strong>da</strong> ganha um nome, o nome <strong>da</strong> <strong>do</strong>ença.<br />

Nesses casos, por exemplo, uma <strong>do</strong>r <strong>de</strong> cabeça é sinal <strong>de</strong> estresse, excesso <strong>de</strong><br />

trabalho, frustração,etc. Esses males são <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> somatização, como resulta<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

influência <strong>da</strong> mente sobre o corpo. Na psicanálise, um sintoma é uma formação <strong>do</strong><br />

inconsciente, um representante linguistico <strong>do</strong> sujeito, um nome que afeta o corpo e o a<strong>do</strong>ece,<br />

uma <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> nome, a qual po<strong>de</strong> ser substituí<strong>da</strong> ou <strong>de</strong>sloca<strong>da</strong>. Assim, como sintoma<br />

psicanalítico, precisa ser conta<strong>do</strong>, fala<strong>do</strong>, para dizer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, sem <strong>de</strong>la saber, apenas pela<br />

emergência <strong>de</strong> seus efeitos. É inapreensível, enigmático, estratégico, joga a parti<strong>da</strong>, na qual a<br />

posição <strong>do</strong> sujeito varia por sua condição <strong>de</strong> estrutura.<br />

Vanessa, 42 anos, chega à sessão <strong>de</strong> psicanálise dizen<strong>do</strong> que sua voz está rouca e<br />

baixa, que está quase sem voz. Conta que ficou assim após uma discussão no trabalho na qual<br />

sua colega lhe gritou e ela respon<strong>de</strong>u em voz baixa. Vanessa diz também que, no dia seguinte,<br />

soube que sua sobrinha fora embora para a França com um estranho que conhecera há pouco<br />

tempo, e, que, ao saber <strong>de</strong>ssa notícia, ficou sem voz. Vanessa foi ao médico, e ele<br />

diagnosticou que ela estava com calo nas cor<strong>da</strong>s vocais. Sua <strong>do</strong>ença ganhou nome, tratamento<br />

específico e localiza<strong>do</strong>.<br />

Ao referir-se à paciente <strong>de</strong> Tausk, Freud ressaltou que os comentários <strong>de</strong>ssa paciente<br />

tinham o valor <strong>de</strong> uma análise. Isso significa dizer que o sintoma psicanalítico é aquele<br />

“tagarela<strong>do</strong>” pelo paciente.<br />

198


Vanessa queixa-se também <strong>de</strong> ter perdi<strong>do</strong> suas digitais, diagnóstico <strong>da</strong><strong>do</strong> pelo médico.<br />

Ela não sabe dizer o porquê, não consegue construir um saber: não há bateria <strong>de</strong> significantes<br />

disponível; <strong>de</strong>le apenas interroga o porquê. Sua questão orbita em torno <strong>da</strong> causali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e não<br />

<strong>do</strong> saber. Ela não supõe um saber sobre ele.<br />

Lacan nos ensina que, na psicossomática, há um gozo localiza<strong>do</strong>, que retorna ao corpo<br />

e induz a lesão; um gozo não <strong>do</strong>ma<strong>do</strong> pelo significante, o qual consiste em um ataque que<br />

<strong>de</strong>ixa sua marca, uma marca que é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> número, o que aponta para um quantum <strong>da</strong><br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cifração. O gozo <strong>de</strong>ixa seu rastro para não ser li<strong>do</strong>; a lesão atesta a sepultura<br />

cava<strong>da</strong> pelo gozo; e o número, o seu epitáfio. O ataque <strong>do</strong> gozo ao corpo e seu <strong>de</strong>voramento<br />

local <strong>de</strong>volvem-lhe o seu estatuto <strong>de</strong> carne, pois cortam na própria carne.<br />

Mas, na prática, consi<strong>de</strong>rar um como sintoma e o outro como fenômeno a que nos<br />

remete? O que ensinam os fenômenos psicossomáticos, a que eles respon<strong>de</strong>m, ou, ain<strong>da</strong>, que<br />

pergunta nos en<strong>de</strong>reçam?<br />

Se o discurso especializa<strong>do</strong> dá nome à <strong>do</strong>ença, po<strong>de</strong>ríamos dizer que, na psicanálise, o<br />

sintoma é a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong> nome, e os fenômenos psicossomáticos seriam a <strong>do</strong>ença sem nome.<br />

No “Discurso <strong>de</strong> Genebra” (1975), Lacan disse que a contribuição <strong>de</strong> Freud em<br />

relação ao consciente <strong>da</strong> consciência foi a idéia <strong>de</strong> que “não há necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saber que se<br />

sabe para gozar um saber”. Ora, Vanessa não sabe, ao dizer que ficou afônica após a<br />

discussão e a notícia. Aliás, na primeira há um dito em excesso, e na segun<strong>da</strong> um excesso <strong>do</strong><br />

dito. Em seu trabalho ela <strong>de</strong>sloca, faz <strong>de</strong>slizarem palavras metonimicamente, o que sabe sobre<br />

199


sua rouquidão. Agora, banha<strong>da</strong> pela linguagem, as cor<strong>da</strong>s vocais lesa<strong>da</strong>s tomam valor <strong>de</strong><br />

senti<strong>do</strong>. Talvez possamos consi<strong>de</strong>rar que, diante <strong>da</strong> lesão orgânica, ela constrói um saber.<br />

O sujeito articula-se na ca<strong>de</strong>ia fala<strong>da</strong>, como diz Lacan (1964, p.198): a característica<br />

<strong>do</strong> sujeito inconsciente é <strong>de</strong> estar, sob o significante que <strong>de</strong>senvolve suas re<strong>de</strong>s, suas ca<strong>de</strong>ias<br />

e sua história. Nesse senti<strong>do</strong>, o importante é o que <strong>de</strong> gozo po<strong>de</strong> ser barra<strong>do</strong> pela emergência<br />

<strong>do</strong> saber, o qual só po<strong>de</strong> ser produzi<strong>do</strong> pelo sujeito dividi<strong>do</strong>, divisão, essa, que permitiu o<br />

exílio <strong>do</strong> gozo.<br />

Lacan, no “Discurso <strong>de</strong> Genebra” (1975), concor<strong>da</strong> com o Sr. Vautier quan<strong>do</strong> este<br />

assinala que quan<strong>do</strong> se tem a impressão <strong>de</strong> que a palavra gozo recupera um senti<strong>do</strong> com um<br />

psicossomático, este já não é mais psicossomático. Eis a diferença: há um gozo, <strong>do</strong> qual se<br />

extrai um saber. Há uma nomeação, uma afetação <strong>da</strong> linguagem, uma <strong>do</strong>ença por efeito <strong>do</strong><br />

nome. No segun<strong>do</strong> exemplo, não há nomeação.<br />

Supomos que, no primeiro exemplo tem-se um sintoma e, no segun<strong>do</strong>, um fenômeno<br />

psicossomático. No primeiro, quan<strong>do</strong> Vanessa en<strong>de</strong>reçou sua queixa ao médico, a <strong>do</strong>ença<br />

ganhou um nome: contu<strong>do</strong>, ao en<strong>de</strong>reçá-la ao psicanalista, ela construiu um saber sobre o<br />

nome que a a<strong>do</strong>ecia.<br />

Em relação ao segun<strong>do</strong> exemplo, não po<strong>de</strong>mos furtar-nos a apontar o caráter<br />

emblemático <strong>de</strong>ssa lesão; ou seja, per<strong>de</strong>r as digitais significa per<strong>de</strong>r o que, no registro <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> civil , constitui a marca <strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência singular. Sua lesão ganhou nome, no entanto<br />

não há nome <strong>de</strong> fato que a nomeie. É palavra vazia, sem nomeação que sustente uma história.<br />

Sem nome, sua lesão <strong>de</strong>vora seu ser <strong>de</strong> sujeito, produzi<strong>do</strong> pela não afânise, não representação<br />

200


significante, ausência <strong>da</strong> representação-palavra. Devora<strong>da</strong> por sua lesão, ela se situa ante a<br />

questão <strong>de</strong> ter que <strong>de</strong>cifrá-lo, para que possa <strong>de</strong>le livrar-se e, assim, po<strong>de</strong>r representar-se<br />

metonimicamente.<br />

Referências:<br />

FREUD, Sigmund. O Inconsciente. (1915). Obras Completas. Vol XIV. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

IMAGO, 1980.<br />

GARCIA-ROZA, Luis Alfre<strong>do</strong>. O Mal Radical em Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,<br />

1990.<br />

LACAN, Jacques. Conferência <strong>de</strong> Genebra sobre o sintoma. Mimeo.1975.<br />

______________ O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise<br />

(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

______________.Radiofonia. In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003.<br />

SOLER, Colette. O “Corpo Falante”. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Stylus. Rio <strong>de</strong> Janeiro: IF/EPFCL, 2010.<br />

201


Consi<strong>de</strong>rações topológicas <strong>da</strong> passagem <strong>do</strong> sintoma ao sinthoma<br />

Conra<strong>do</strong> Ramos 1<br />

Com o objetivo <strong>de</strong> tentar formalizar algumas questões sobre o sintoma, apresento<br />

fragmentos clínicos <strong>de</strong> um caso e, em segui<strong>da</strong>, meu trabalho <strong>de</strong> teorização <strong>do</strong> mesmo.<br />

Um analisante passou seus anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração em torno <strong>da</strong> relação entre três questões:<br />

o que é ser um filho, o que é ser um pai, e como isso se articulava nos seus laços amorosos e<br />

<strong>de</strong> trabalho. Ele fazia <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> um morrer <strong>de</strong> trabalhar pelo qual repetia o esforço, por um<br />

la<strong>do</strong>, <strong>de</strong> ser reconheci<strong>do</strong> e ama<strong>do</strong> pelo pai cruel e insaciável que teve e, por outro la<strong>do</strong>, um<br />

meio <strong>de</strong> fazer diferente <strong>de</strong> seu pai, toman<strong>do</strong> por filhos aqueles implica<strong>do</strong>s nos efeitos <strong>de</strong> seu<br />

trabalho. Morrer <strong>de</strong> trabalhar era um sintoma que atravessava a sua história significan<strong>do</strong> suas<br />

posições, ora <strong>de</strong> filho, ora <strong>de</strong> pai. Durante anos tomou remédios psiquiátricos por estar sempre<br />

uma pilha <strong>de</strong> nervos. De tanto querer livrar-se <strong>de</strong>sta situação, concluiu que foi por meio <strong>de</strong>la<br />

que se constituiu e que tentava fazer <strong>do</strong> morrer <strong>de</strong> trabalhar uma forma para<strong>do</strong>xal <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Começou a referir-se ao trabalho como uma estranha satisfação que o fazia sentir-se pilha<strong>do</strong><br />

(<strong>de</strong> pilha, bateria). Pilha<strong>do</strong>, significante que se repetiu em outro momento <strong>de</strong> sua análise,<br />

quan<strong>do</strong> ele se dizia trabalhan<strong>do</strong> sempre para o Outro, que o fazia sentir-se pilha<strong>do</strong> (isto é,<br />

rouba<strong>do</strong>). No início <strong>do</strong> tratamento, ele fazia constantes referências à pilha <strong>de</strong> coisas que tinha<br />

para fazer, mo<strong>do</strong> pelo qual apresentava, angustia<strong>do</strong>, o peso gigantesco <strong>de</strong> suas intermináveis<br />

tarefas. Mas eis que um dia veio a seguinte construção: “acho que não tenho como mu<strong>da</strong>r a<br />

minha relação com o trabalho: eu sempre pilho”. E então eu pontuo: “pai e filho, pilho?!”, ao<br />

1 Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum São Paulo<br />

202


que ele respon<strong>de</strong>: “É isso! Eu sempre pilho: pai e filho, pilho! Não tem jeito! E o que eu tenho<br />

que me perguntar é o que fazer com isso...”<br />

Essa interpretação <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> gozo a partir <strong>do</strong> equívoco introduzi<strong>do</strong> pelo<br />

significante pilho, trouxe <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos e fez, em algumas semanas, a análise trazer à tona<br />

o objeto <strong>da</strong> fantasia no sujeito cristaliza<strong>do</strong> no olho <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> pai: ocorreu-lhe, no<br />

meio <strong>de</strong> uma sessão, a recor<strong>da</strong>ção súbita <strong>da</strong> reprodução <strong>de</strong> um Sagra<strong>do</strong> Coração <strong>de</strong> Jesus, <strong>da</strong><br />

pare<strong>de</strong> <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> sua casa <strong>de</strong> infância, cujo olhar sagra<strong>do</strong>, refleti<strong>do</strong> no espelho <strong>de</strong> seu<br />

quarto, aterrorizava-o, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ele tirava os imperativos <strong>de</strong> seus sacro-ofícios (sacrifícios).<br />

Seguiu-se a isso um percurso <strong>de</strong> tentativas <strong>de</strong> <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong> e esse lugar: uma nova<br />

relação na qual ele se <strong>de</strong>scobriu agin<strong>do</strong> sempre como pai <strong>da</strong> namora<strong>da</strong>; um novo emprego<br />

(“agora vou fazer diferente”) em que quase morreu <strong>de</strong> trabalhar, colocan<strong>do</strong>-se diante <strong>do</strong><br />

patrão numa posição que julgou feminina; reatou laços com o filho <strong>do</strong> primeiro casamento e<br />

se <strong>de</strong>scobriu filho <strong>do</strong> próprio filho por ver que esse apren<strong>de</strong>u a se virar sem o pai (coisa que<br />

ele mesmo dizia jamais ter consegui<strong>do</strong>); tornou-se prove<strong>do</strong>r <strong>de</strong> parte <strong>da</strong> família e viu-se<br />

explora<strong>do</strong> no lugar <strong>do</strong> próprio pai faleci<strong>do</strong>... Enfim, pela tagarelice, i<strong>de</strong>ntificações foram<br />

cain<strong>do</strong> pelo caminho.<br />

Algum tempo <strong>de</strong>pois ele trouxe o seguinte numa sessão, referin<strong>do</strong>-se à religião como<br />

uma prática <strong>de</strong> <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong>s à sua submissão: “sem nunca ter si<strong>do</strong> religioso, aqui eu sempre fui<br />

religioso, porque eu sustentava minha loucura buscan<strong>do</strong> sempre um senti<strong>do</strong> para ela. Um<br />

senti<strong>do</strong> não <strong>da</strong>va certo, eu buscava outro; esse não <strong>da</strong>va certo, eu buscava outro. Agora eu<br />

vejo que meu erro não era não encontrar o senti<strong>do</strong> certo. Meu erro era ser religioso. A minha<br />

loucura não tem senti<strong>do</strong>. E se não tem senti<strong>do</strong>, por que eu preciso <strong>de</strong>la? Se eu não preciso<br />

203


mais ser religioso, não preciso mais também <strong>da</strong> minha loucura. Vai ver que a minha loucura<br />

era justamente este ‘ser religioso’: minha mania <strong>de</strong> achar que preciso me sacrificar pelo Pai.”<br />

Aqui veio um silêncio e hesitei quanto ao corte <strong>da</strong> sessão. Segurei um pouco mais e ele<br />

seguiu: “E por falar em Pai, ‘Fiat lux’... Eu me orientava pela luz <strong>do</strong> outro. Mas essa luz<br />

sempre foi minha: eu é que colocava a luz no outro. Não tem luz nenhuma lá.” Cortei a<br />

sessão.<br />

Depois <strong>de</strong>ssa sessão, ele re<strong>de</strong>scobre aos poucos o prazer <strong>da</strong> leitura e, admira<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />

arte, diz permitir-se levar adiante o que julga ser seu maior <strong>de</strong>leite, a experiência estética.<br />

Descobre ain<strong>da</strong> a satisfação que tem ao preparar suas aulas e, em relação ao <strong>da</strong>r aulas,<br />

comenta: “<strong>da</strong>r aulas não precisa ser um jogo <strong>de</strong> lugares – meus alunos não são meus filhos ou<br />

meu pai –, mas sinto ali uma estranha fruição... Engraça<strong>do</strong> dizer isto, mas se ali algo frui, é<br />

porque sou visto: tem ali um olhar que não é o olhar <strong>do</strong> meu pai, mas é um olhar... é só um<br />

olhar.”<br />

Cai o olhar <strong>do</strong> pai, o olhar que se pretendia ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e universal. O olhar que fica,<br />

esse que é só um olhar, já não é universal, mas esse olhar, embora não ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e não<br />

universal, nem por isso é uma mentira se ele tem o real por medi<strong>da</strong>.<br />

Este caso me faz questionar, entre outras coisas, se um sintoma não é aquilo que uma<br />

análise po<strong>de</strong> levar <strong>do</strong> morrer <strong>de</strong> trabalhar para o Outro ao fazer-se ver. O gozo parasita <strong>do</strong><br />

morrer <strong>de</strong> trabalhar pô<strong>de</strong>, no fazer-se ver, articular-se não-to<strong>do</strong> à ca<strong>de</strong>ia significante e entrar<br />

no laço sem precisar ser pela via <strong>do</strong> mais-gozar extraí<strong>do</strong> por meio <strong>da</strong> fantasia obsessiva <strong>de</strong><br />

servidão ao pai: <strong>do</strong> morrer <strong>de</strong> trabalhar enquanto sintoma (S1) que tenta, para capturar S2<br />

(tornar a relação sexual possível), fazer a coalescência entre a falta <strong>de</strong> um significante para o<br />

204


lugar <strong>de</strong> filho [S(A/)] e o olhar como objeto a, pô<strong>de</strong>-se chegar ao fazer-se ver como o<br />

incurável <strong>do</strong> sintoma que se <strong>de</strong>scolou <strong>da</strong> fantasia (<strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>) e po<strong>de</strong> ser goza<strong>do</strong> não-<br />

to<strong>do</strong>, isto é, saben<strong>do</strong>-se não recobrir o JA/ com o gozo <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong> JΦ. Isto po<strong>de</strong><br />

ser visto no grafo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo quan<strong>do</strong>, com a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> consistência <strong>do</strong> Outro, o circuito <strong>do</strong><br />

grafo faz passar <strong>do</strong> sintoma [s(A): morrer <strong>de</strong> trabalhar] para a pulsão [$ D: uma estranha<br />

fruição]: há, neste novo vetor, uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> estatuto <strong>do</strong> sintoma?<br />

Com o esvaziamento <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> pilho e com a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> objeto olhar<br />

onivi<strong>de</strong>nte (que carrega <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> o gozo <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> Pai 2 ), enten<strong>do</strong> ter havi<strong>do</strong> um<br />

<strong>de</strong>scolamento <strong>do</strong> sintoma em relação à fantasia.<br />

Com a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> consistência <strong>do</strong> Outro, o sintoma passa <strong>de</strong> uma resposta <strong>da</strong><br />

fantasia que visa sustentar esse Outro por meio <strong>do</strong> sacrifício, para uma pura função F(x)<br />

em relação ao objeto a como causa, como o corte que produz a bor<strong>da</strong> e transforma o<br />

sintoma em resposta <strong>do</strong> real (ou seja: uma pulsão). Enten<strong>do</strong> aqui o sintoma, como<br />

resposta <strong>do</strong> real, como aquilo que faz pura função em relação à bor<strong>da</strong> e que Lacan<br />

(1960) associou, em Posição <strong>do</strong> inconsciente, ao teorema <strong>de</strong> Stokes, como “um fluxo<br />

invariante ‘através’ <strong>de</strong> um circuito orificial, isto é, tal que a superfície inicial já não entra<br />

em consi<strong>de</strong>ração” (p.861). O que respon<strong>de</strong> por esta função <strong>de</strong> fluxo é a pulsão. Assim, <strong>do</strong><br />

furo real no toro (que não é o eixo!), para o qual a superfície já não conta, mas sim a<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> borromeana que <strong>da</strong>í surge, se faz passar <strong>do</strong> furo falso <strong>do</strong> sintoma [s(A)]<br />

para a pulsão [$ D] como função <strong>de</strong> sintoma real. Aí está: <strong>do</strong> sintoma ao sinthoma,<br />

temos topologicamente a passagem <strong>do</strong> eixo como furo falso <strong>da</strong> superfície sem furos <strong>do</strong><br />

2 Agra<strong>de</strong>ço à Sandra Berta por esta observação precisa.<br />

205


toro à proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> borromeana que advém <strong>do</strong> furo real, para o qual a superfície já não<br />

conta mais: por isso, sustento que o sinthoma foi posto por Lacan como um 4º nó apenas<br />

para mostrar que sua função implica a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> borromeana.<br />

No campo <strong>do</strong> falatório, <strong>da</strong> tagarelice, o sintoma <strong>de</strong>sse obsessivo não teve para<strong>da</strong>,<br />

continuou se <strong>de</strong>slocan<strong>do</strong> nas falhas <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, na insuficiência radical <strong>do</strong> significante.<br />

Para que houvesse algo que julguei apro<strong>xi</strong>mar-­‐se <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação com o sintoma, foi<br />

preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que não fosse <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> repetição que<br />

negava o real <strong>do</strong> furo na medi<strong>da</strong> em que tentava fazer a relação sexual ex-­‐sistir por um<br />

ser pai-­‐filho (pilho) que se repetia toricamente [S1(S1(S1(S1S2)))] na esperança <strong>de</strong><br />

gerar superfície e se transformar no signo <strong>do</strong> amor ao Pai. Para que houvesse uma<br />

i<strong>de</strong>ntificação com o sintoma foi preciso que seu gozo fosse além <strong>da</strong> petrificação que<br />

tentou fixar o corpo <strong>do</strong> Outro como signo <strong>do</strong> amor no olhar sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> Cristo visto no<br />

espelho <strong>do</strong> quarto [$a]. Para que fosse possível uma i<strong>de</strong>ntificação com o sintoma foi<br />

preciso que seu gozo encontrasse uma fixação que funcionasse como ponto <strong>de</strong> basta, o<br />

que pressupõe a dimensão <strong>da</strong> referência que toca o real <strong>da</strong> ine<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual<br />

(uma Be<strong>de</strong>utung) e que, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, por <strong>de</strong>ixar cair o senti<strong>do</strong> (S2, que<strong>da</strong> <strong>do</strong> SsS), acaba<br />

logicamente valen<strong>do</strong> por si mesma (S1=S1): faço menção aqui ao que se po<strong>de</strong> extrair <strong>da</strong><br />

tautológica formulação <strong>de</strong> que “tem ali um olhar que não é o olhar <strong>do</strong> meu pai, mas é um<br />

olhar... é só um olhar”. Além disso, se a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> última <strong>da</strong> pulsão é retornar à fonte,<br />

mais <strong>do</strong> que o gozo <strong>do</strong> objeto, ela visa a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> ser, não sem ecoar no la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

outro. É <strong>da</strong>í que enten<strong>do</strong> haver i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> no fazer-se ver final, sob o qual não inci<strong>de</strong> a<br />

206


consistência (a superfície) <strong>de</strong> um olhar universal, mas <strong>de</strong> um olhar que é só um olhar<br />

(objeto a como objeto evanescente).<br />

Este tocar o real é o que revela a condição <strong>de</strong> metáfora <strong>do</strong> sintoma: “[...] não é à<br />

toa que, em uma cor<strong>da</strong>, a metáfora advenha <strong>do</strong> que faz nó. O que tento é <strong>de</strong>scobrir a que<br />

se refere essa metáfora. Se há uma cor<strong>da</strong> vibrante <strong>de</strong> barrigas e <strong>de</strong> nós, é na medi<strong>da</strong> em<br />

que nos referimos ao nó. Quero dizer que usamos a linguagem <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que vai mais<br />

longe <strong>do</strong> que o que é efetivamente dito. Sempre reduzimos o alcance <strong>da</strong> metáfora como<br />

tal. Ou seja, ela acaba reduzi<strong>da</strong> a uma metonímia.” (Seminário 23, p.41). O sintoma<br />

simbólico, não passa <strong>de</strong> metonímia: [S1(S1(S1(S1S2)))]. Só o sintoma real faz<br />

metáfora, porque <strong>de</strong>ixa cair S2 e, então, po<strong>de</strong> fazer nó: [S1=S1//S2].<br />

É nesse senti<strong>do</strong> que sugiro pensar topologicamente o sintoma obsessivo <strong>do</strong> início<br />

<strong>do</strong> tratamento como uma ban<strong>da</strong> tripla, ou seja, como tagarelice, como metonímia sem<br />

fim, porque dá voltas infinitas com a impotência que carrega para mor<strong>de</strong>r o próprio rabo<br />

ou para ter uma referência acerca <strong>de</strong> que la<strong>do</strong> <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> se está: nestas voltas, só se<br />

reencontra a insuficiência radical <strong>do</strong> significante. Se a metáfora advém <strong>do</strong> que faz nó<br />

(LACAN, 1975-­‐76), isso se dá na passagem <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> tripla para o nó <strong>de</strong> trevo (o que<br />

Lacan só vai concretizar topologicamente na última aula <strong>do</strong> Seminário 25, em 11 <strong>de</strong> abril<br />

<strong>de</strong> 1978). É no nó <strong>de</strong> trevo que localizo a topologia <strong>do</strong> fazer-se ver, como tecitura<br />

pulsional <strong>do</strong> furo, a que a análise conduz o sintoma inicial. Somente quan<strong>do</strong> a superfície<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> contar, quan<strong>do</strong> a superfície calca<strong>da</strong> no senti<strong>do</strong> encontra o limite <strong>de</strong> sua<br />

condição <strong>de</strong> semblante e se revela uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa, é que a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

207


orromeana po<strong>de</strong> se escrever: metáfora real <strong>da</strong> estrutura. (Afinal, por que a metáfora<br />

tem que ser simbólica? Não é a escrita <strong>do</strong> nó uma metáfora real?)<br />

Se o analisante pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>senrolar o toro <strong>de</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong> mentirosa, <strong>de</strong>paran<strong>do</strong>-se sempre<br />

com uma volta não conta<strong>da</strong> em ca<strong>da</strong> “senti<strong>do</strong> que não <strong>da</strong>va certo”, foi para cingir um furo que<br />

se escreveu ao final como um nó, por um reviramento tórico, quan<strong>do</strong> ele <strong>de</strong>ixou cair o estofo<br />

<strong>da</strong> superfície ao se separar <strong>do</strong> que chamou <strong>de</strong> ser religioso. O que é isso que ele chamou <strong>de</strong><br />

ser religioso senão sua própria condição tórica vista <strong>de</strong> um outro lugar? O que restou, aí, não<br />

foi o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro como consistência, como medi<strong>da</strong>, mas a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> real, como orientação<br />

para o inconsciente real. A diferença entre o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> real é que o primeiro é<br />

feito <strong>de</strong> superfície, <strong>de</strong> consistência, <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, enquanto que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> real é feita <strong>da</strong><br />

geometria <strong>do</strong> fio: enquanto um nó mínimo, um nó <strong>de</strong> trevo, ela não tem senti<strong>do</strong> algum, mas<br />

dá senti<strong>do</strong> (orientação) quan<strong>do</strong>, ao passar por cima e por baixo <strong>de</strong> si mesma três vezes e voltar<br />

ao mesmo lugar, separa furos e, com eles, gozos (isto é, faz litoral). Para <strong>de</strong>ixar cair a<br />

superfície <strong>do</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e fiar-se nos furos <strong>do</strong> real, é preciso trocar <strong>de</strong> medi<strong>da</strong>: substituir o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> pelo senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> real. Daí que o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, no final, não po<strong>de</strong> mais<br />

coincidir com o real.<br />

De volta ao caso, mais recentemente, uma sessão foi interrompi<strong>da</strong> após a seguinte<br />

frase: “não sei por que nunca pu<strong>de</strong> reconhecer isso, mas o fato é que eu posso ter brilho”:<br />

filho, pilho, brilho. Acerca <strong>de</strong>ste significante brilho, menciono Lacan:<br />

Conhecer quer dizer saber li<strong>da</strong>r com esse sintoma, saber <strong>de</strong>sembaraçá-­‐lo,<br />

saber manipulá-­‐lo, saber – isso tem alguma coisa que correspon<strong>de</strong> ao que o<br />

homem faz com sua imagem – é imaginar a maneira pela qual a gente se vira<br />

com esse sintoma. Trata-­‐se aqui, certamente, <strong>do</strong> narcisismo secundário; o<br />

208


narcisismo radical, o narcisismo que chamamos primário estan<strong>do</strong>, nessa<br />

ocasião, excluí<strong>do</strong>. Saber se virar com o seu sintoma está aí o fim <strong>da</strong> análise; é<br />

preciso reconhecer que é conciso. (LACAN, 1976-­‐77, p. 8, aula <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1976).<br />

Enten<strong>do</strong> que este brilho aparece nesta análise marcan<strong>do</strong> o lugar <strong>do</strong> que Lacan<br />

(1975/2003) chamou <strong>de</strong> escabelo.<br />

Posso dizer, em resumo, que o sintoma <strong>do</strong> início, na forma <strong>do</strong> morrer <strong>de</strong> trabalhar, era<br />

um não saber que se gozava <strong>de</strong> um saber, enquanto o sintoma <strong>do</strong> fim, o fazer-se ver, é um<br />

saber gozar <strong>de</strong> um saber que não se sabe. Posso afirmar, assim, que houve uma mu<strong>da</strong>nça na<br />

posição <strong>de</strong>sse sujeito diante <strong>do</strong> gozo.<br />

REFERÊNCIAS<br />

LACAN, J. (1960) Posição <strong>do</strong> inconsciente. In: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 1998.<br />

LACAN, Jacques. (1975) Joyce, o sintoma. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,<br />

2003, p.560-­‐566.<br />

LACAN, J. (1975-­‐76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2007.<br />

LACAN, J. (1976-­‐77). O Seminário, livro 24: L’insu que sait <strong>de</strong> l’une bévue s’aile à mourre.<br />

Edição heReSIa (para circulação interna). Inédito.<br />

LACAN, J. (1977-­‐78) O Seminário 25: O momento <strong>de</strong> concluir. Tradução <strong>de</strong> Jairo Gerbase.<br />

Inédito.<br />

209


Um A<strong>do</strong>lescente em Cena<br />

Bela Malvina Szaj<strong>de</strong>nfisz 1<br />

A passagem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> infantil à adulta é uma experiência em que a força pulsional<br />

ultrapassa a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> simbolização, <strong>de</strong> historicização, <strong>de</strong> representação. A reativação <strong>do</strong><br />

complexo edipiano coloca o a<strong>do</strong>lescente frente a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras questões sobre sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

seu corpo, seu lugar, provocan<strong>do</strong>-­‐lhe um mal-­‐estar que o apro<strong>xi</strong>ma <strong>da</strong> psicose. Quem sou eu?<br />

O que o Outro quer <strong>de</strong> mim? O que quero pra mim? São questões com que o a<strong>do</strong>lescente se vê<br />

às voltas.<br />

Sob o efeito <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong> Outro, o a<strong>do</strong>lescente precisa se apropriar <strong>de</strong> uma imagem que<br />

lhe é estranha, atravessar um segun<strong>do</strong> tempo quan<strong>do</strong> se opera um <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> campo<br />

pulsional e que obe<strong>de</strong>ce a uma lei simbólica constitutiva <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Essa travessia<br />

e<strong>xi</strong>ge uma intensa elaboração <strong>do</strong> laço social a partir <strong>da</strong>s referências simbólicas transmiti<strong>da</strong>s<br />

pela cultura e representa<strong>da</strong>s pelos i<strong>de</strong>ais.<br />

O processo a<strong>do</strong>lescente se dá com um <strong>de</strong>sinvestimento nos pais <strong>de</strong> infância e com a<br />

busca <strong>de</strong> outros referenciais para a construção <strong>de</strong> um “nós”, uma i<strong>de</strong>ntificação imaginária<br />

temporária e necessária. É a lei <strong>do</strong> Pai que sustenta o sujeito na entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> a<strong>do</strong>lescência,<br />

travessia consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por Freud como o trabalho mais difícil para o sujeito.<br />

1 Mestre em <strong>Psicanálise</strong>, Saú<strong>de</strong> e Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> pela UVA/RJ e mestre em Psicologia <strong>da</strong> Educação pelo<br />

IESAE- FGV/RJ. Especialista em Psicope<strong>da</strong>gogia Clínica.pela UERJ.Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo<br />

Lacaniano <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>da</strong> IF-EPFCL e <strong>da</strong> AFCL/EPFCL. E-mail:bmal.trp@terra.com.br<br />

210


Ao se <strong>de</strong>parar com a falta <strong>do</strong> Outro, porque o Outro falta, o jovem precisa suportar o<br />

<strong>de</strong>samparo e sair em busca <strong>do</strong> que lhe falta, sustenta<strong>do</strong> nas marcas vin<strong>da</strong>s <strong>do</strong> campo <strong>de</strong>sse<br />

Outro primordial. A inconsistência <strong>do</strong> Outro vai permitir ao a<strong>do</strong>lescente <strong>de</strong>parar-­‐se com sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong>r voz a seu <strong>de</strong>sejo, propician<strong>do</strong> assim a efetivação <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> separação e a<br />

busca <strong>de</strong> novos laços sociais.<br />

Na clínica nos <strong>de</strong>paramos com muitas questões conflituosas. Uma <strong>de</strong>las é o<br />

a<strong>do</strong>lescente às voltas com o processo <strong>da</strong> separação, travessia que e<strong>xi</strong>ge uma elaboração<br />

intensa <strong>do</strong> sujeito frente aos impasses que se colocam diante <strong>de</strong>le. A ambivalência -­‐ em<br />

relação a essas referencias primordiais -­‐ <strong>de</strong> duas dimensões inerentes à vi<strong>da</strong> psíquica -­‐ amor<br />

e ódio -­‐ é não dialetiza<strong>da</strong>, situação fronteiriça que transbor<strong>da</strong> o psiquismo <strong>do</strong> sujeito.<br />

Carlos, o a<strong>do</strong>lescente que trago à cena, é um jovem <strong>de</strong> 19 anos, alegre, comunicativo,<br />

que a<strong>do</strong>ra praia, namorar, brincar, ir para a cama <strong>do</strong>s pais nos finais <strong>de</strong> semana e enroscar-­‐se<br />

neles. A irmã, muito diferente <strong>de</strong>le, sempre foi séria, muito distante, uma estranha, apesar <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>rmirem no mesmo quarto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequenos.<br />

Seus pais, um arquiteto e uma psicóloga, ambos funcionários públicos, dão muito valor<br />

à estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> no emprego. Nunca aceitaram que os filhos estu<strong>da</strong>ssem em Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

priva<strong>da</strong>. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-­‐os já encaminha<strong>do</strong>s, resolvem passar seus finais <strong>de</strong> semana em<br />

pousa<strong>da</strong>s pró<strong>xi</strong>mas, esquecen<strong>do</strong>-­‐se um pouco <strong>da</strong>s “crianças”.<br />

Ain<strong>da</strong> cursan<strong>do</strong> o Ensino Médio, Carlos, sem qualquer <strong>de</strong>finição profissional, foi<br />

buscar orientação vocacional para saber qual a sua inclinação, o que pouco adiantou. Isso<br />

211


porque respondia às perguntas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com seu interesse. Queria ingressar logo em uma<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> pública para aten<strong>de</strong>r ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong>s pais.<br />

A escolha <strong>do</strong> curso universitário <strong>de</strong>u-­‐se, segun<strong>do</strong> ele, pelo amor que tinha aos<br />

professores <strong>do</strong> colégio e também regi<strong>do</strong> pela lei <strong>do</strong> menor esforço. Não <strong>de</strong>u certo. Explica-­‐se:<br />

“A universi<strong>da</strong><strong>de</strong> estava horrível, não suportava mais aqueles professores. Foi como uma<br />

bomba em minha vi<strong>da</strong>. Aban<strong>do</strong>nei tu<strong>do</strong>. Fiquei perdi<strong>do</strong>. Não sei para on<strong>de</strong> quero ir! Só sei<br />

que não quero continuar a fazer o que fazia. Não sei nem o que quero. Não sou muito bom em<br />

na<strong>da</strong>. Mas sou bom em tu<strong>do</strong>”.<br />

Carlos, até então filho carinhoso, prestativo, estudioso, obediente, numa tentativa <strong>de</strong><br />

separar-­‐se <strong>da</strong>s figuras parentais, surpreen<strong>de</strong>-­‐as com um ato para além <strong>do</strong> sujeito, algo <strong>da</strong><br />

or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> real. Envolve-­‐se com drogas, rompe com a universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, com a namora<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ixa<br />

seus pais impacta<strong>do</strong>s.<br />

Sua irmã, <strong>do</strong>is anos mais velha, está concluin<strong>do</strong> um curso superior, estagia e se<br />

prepara para tentar o mestra<strong>do</strong>. Carlos fica envergonha<strong>do</strong> perante a irmã e os amigos já<br />

estagian<strong>do</strong>, pois ele agora, ter que voltar para cursinho e tentar outra universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, pública,<br />

naturalmente. Não sabe o que fazer: comunicação social, engenharia ambiental... “Vou fazer<br />

20 anos, quero escolher mais as minhas coisas. Quero ter minha in<strong>de</strong>pendência. Já pensei em<br />

ter meu próprio negócio (brincan<strong>do</strong>: quem sabe até em plantar maconha?), controlar minhas<br />

coisas, mas minha mãe diz: ‘nem pensar’. Estou me sentin<strong>do</strong> no vazio.“<br />

Carlos é um sujeito dividi<strong>do</strong> que <strong>de</strong>svela um real impossível <strong>de</strong> dizer. Sentin<strong>do</strong>-­‐se no<br />

212


<strong>de</strong>samparo, sai em busca <strong>de</strong> análise. Esse jovem ocupa o lugar <strong>de</strong> quem sofre com a estrutura.<br />

A que esse sintoma está respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong>? Alberti (1996) refere-­‐se ao sintoma como o elo<br />

necessário que se cria entre simbólico, real e imaginário no sujeito <strong>da</strong> neurose.<br />

Uma <strong>da</strong>s razões que leva o sujeito neurótico a buscar um analista para sua queixa, na<br />

qual o Outro goza, é a falha na solidificação <strong>da</strong> metáfora paterna. Po<strong>de</strong>mos, no caso, pensar<br />

numa lei simbólica frouxa?<br />

O pai <strong>de</strong> Carlos é um sujeito jovem, joga futebol nos finais <strong>de</strong> semana com os amigos e<br />

<strong>de</strong>pois sai para beber. Não raro se infiltra na turma <strong>do</strong> filho. O tio materno, único irmão <strong>da</strong><br />

mãe, inteligente igual a ele, também fez um curso técnico. Ambos foram jubila<strong>do</strong>s a seu<br />

tempo. Esse tio mora atualmente em outro Esta<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> também é funcionário público, como<br />

seus pais. Ele e a mãe <strong>de</strong> Carlos tinham um negócio comercial e ele sujou o nome <strong>de</strong>la,<br />

<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> uma enorme dívi<strong>da</strong> para ela pagar. Até hoje não se falam. A mãe compara-­‐se o<br />

tempo to<strong>do</strong> com o filho, no que diz respeito ao estu<strong>do</strong>. Percebe divergências e contradições<br />

na fala <strong>da</strong> mãe, e comenta: “Tu<strong>do</strong> que faço sempre é pouco para ela!”<br />

Qual a relação <strong>do</strong> sujeito falante com o inconsciente e o <strong>de</strong>sejo? Esta é a questão formula<strong>da</strong><br />

por Lacan na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1960, para construir sua teoria <strong>do</strong>s discursos, discurso como estrutura que<br />

ultrapassa em muito a palavra, estatuto <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong> que intervém no campo estrutura<strong>do</strong> <strong>de</strong> um<br />

saber, gozo <strong>do</strong> Outro.<br />

A psicanálise opera sobre o sujeito dividi<strong>do</strong>, sujeito <strong>do</strong> discurso <strong>da</strong> histeria e <strong>da</strong> ciência. Ao<br />

testemunhar o sujeito como efeito <strong>de</strong> um discurso que, na neurose, faz laço social, a experiência<br />

psicanalítica entra como efeito indireto <strong>do</strong> discurso <strong>da</strong> ciência.<br />

213


Se nos reportarmos ao texto <strong>de</strong> Freud “Uma criança é espanca<strong>da</strong>” (1919), o pai lhe <strong>de</strong>ixa<br />

uma marca, gozo original que se constitui na sua singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e que se repete numa busca <strong>de</strong><br />

re<strong>encontro</strong> com esse gozo original perdi<strong>do</strong>. Lacan vai atrás <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que se escon<strong>de</strong> por trás <strong>da</strong><br />

marca <strong>do</strong> corpo, apontan<strong>do</strong> para nossa cegueira frente ao real, um real insuportável que se enuncia<br />

pelo meio dizer.<br />

Imbuí<strong>do</strong> <strong>do</strong> espírito <strong>de</strong> que o inconsciente é um discurso, Lacan foi buscar em Freud os<br />

discursos que marcam nossa civilização: governar, educar e analisar. Propõe no texto “De Nossos<br />

Antece<strong>de</strong>ntes” (1966) a retoma<strong>da</strong> <strong>do</strong> projeto freudiano pelo avesso , uma vez que a prática<br />

psicanalítica <strong>de</strong>svela pela palavra a produção incessante <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> pleno <strong>de</strong> gozo, satisfação<br />

pulsional a ser sustenta<strong>da</strong> pelo discurso analítico.<br />

“O avesso <strong>da</strong> psicanálise” foi proferi<strong>do</strong> em meio a um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> turbulência na França,<br />

nos anos 1969-1970, quan<strong>do</strong> os estu<strong>da</strong>ntes questionavam as instituições e o po<strong>de</strong>r, bem como suas<br />

bases, <strong>de</strong>ntre elas, o saber. Aos discursos <strong>de</strong>nominou “quadrípo<strong>de</strong>s”, termo com o qual alu<strong>de</strong> a essa<br />

peculiar formação <strong>de</strong> quatro lugares e quatro termos que giram em uma rotação calcula<strong>da</strong> para<br />

gerar quatro discursos, respectivamente, <strong>do</strong> mestre, <strong>do</strong> universitário, <strong>da</strong> histérica e <strong>do</strong> analista.<br />

No esquema <strong>de</strong> Lacan, ca<strong>da</strong> discurso tem um agente que frente a um outro caracterizam o<br />

laço social. Sustenta<strong>do</strong> por uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o agente age sobre alguém para obter um produto <strong>do</strong> laço<br />

social. No discurso <strong>do</strong> mestre o agente é o senhor (S1) que age sobre o escravo (S2), fazen<strong>do</strong>-o<br />

trabalhar. O produto (a) tem um valor ao qual o escravo renuncia em favor <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> senhor. Esse<br />

discurso é um saber que não sabe, ou seja, é um discurso que <strong>de</strong>nuncia o senhor transmutan<strong>do</strong> o<br />

saber <strong>do</strong> escravo no seu próprio saber. O princípio <strong>de</strong>sse discurso é acreditar-se unívoco, ou seja,<br />

214


discurso que admite apenas uma interpretação, ao que Lacan vai contrapor no seminário 17 (p.108)<br />

em relação ao discurso analítico. Para a psicanálise o sujeito não é unívoco, pois não há como<br />

apagar a divisão subjetiva e a indicação <strong>do</strong> gozo nas relações <strong>da</strong> linguagem com o corpo.<br />

O discurso <strong>do</strong> mestre é fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r para o sujeito. O a<strong>do</strong>lescente encontra esse saber, mas<br />

tenta subverter seu po<strong>de</strong>r, às vezes <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> histérico. Ante aos protestos <strong>de</strong> um sistema ditatorial,<br />

Lacan, ao lançar aos jovens em Vincennes, em 1969, a forma <strong>do</strong> sujeito se relacionar no mun<strong>do</strong>,<br />

coloca-os como sujeitos <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ter um mestre, situan<strong>do</strong>-os no discurso <strong>da</strong> histeria, condição<br />

básica para a entra<strong>da</strong> em análise.<br />

O discurso analítico é o laço social <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela prática <strong>de</strong> análise. Merece ser eleva<strong>do</strong><br />

à altura <strong>do</strong>s laços mais fun<strong>da</strong>mentais, <strong>de</strong>ntre os quais permanece, pois é o único laço social que<br />

trata <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. (Lacan, 1973). Ao entrar em análise, o sujeito supõe que o analista<br />

<strong>de</strong>tém o saber sobre o seu sintoma e o inclui no sintoma. O discurso <strong>do</strong> analista é o único que<br />

coloca no lugar <strong>do</strong> Outro um sujeito que tem como agente a causa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo. Quan<strong>do</strong> o saber é<br />

solicita<strong>do</strong> pelo analista a funcionar no lugar <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, histericiza o discurso. O discurso histérico<br />

que conduzirá o sujeito à ver<strong>da</strong><strong>de</strong> como saber, ao enigma <strong>do</strong> gozo, é essencial para <strong>de</strong>terminar a<br />

posição <strong>do</strong> sujeito. O analista, ao ser incluí<strong>do</strong> no sintoma <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>, ocupa o lugar <strong>de</strong> objeto<br />

mais-<strong>de</strong>-gozar (a) provocan<strong>do</strong> o sujeito barra<strong>do</strong> ($) a produzir seus próprios significantes (S1) que<br />

o alienam como sujeito.<br />

Na a<strong>do</strong>lescência o sujeito se abre para evidências <strong>de</strong> um sistema <strong>do</strong> qual ninguém se<br />

apropria, um discurso civilizatório que pertence a uma or<strong>de</strong>m social, <strong>de</strong>nuncian<strong>do</strong> o gozo<br />

como privilégio <strong>do</strong> senhor. Esta ver<strong>da</strong><strong>de</strong> faz cair por terra os pais que os filhos supunham<br />

215


infalíveis. Subvertem a or<strong>de</strong>m e saem em busca <strong>de</strong> um discurso em que possam se engajar,<br />

um discurso <strong>de</strong> autonomia. Essa é a causa <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Carlos.<br />

Pensan<strong>do</strong> com Alberti que é tecen<strong>do</strong> voltas e voltas em torno <strong>de</strong>sse real impossível <strong>de</strong><br />

dizer, que os nós vão se consoli<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, o recalque vai se medin<strong>do</strong> e o sujeito vai po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, enfim,<br />

exercer-se como agente, no que movimenta o laço social.<br />

Com o gozo <strong>do</strong> Outro suspenso pela presença <strong>do</strong> analista, Carlos é <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> <strong>do</strong> lugar <strong>de</strong><br />

objeto <strong>de</strong> gozo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> respon<strong>de</strong> como sintoma <strong>da</strong> família. Ao <strong>de</strong>ixar cair a fantasia <strong>de</strong> que o<br />

Outro é completo, Carlos vai po<strong>de</strong>r fazer o giro nos discursos sain<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse lugar <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> Outro<br />

e passan<strong>do</strong> a ocupar outras posições como sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

Referências<br />

ALBERTI, Sonia. Esse Sujeito A<strong>do</strong>lescente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumará, 1996.<br />

FREUD, Sigmund. (1919). Uma Criança é Espanca<strong>da</strong>: Uma Contribuição ao Estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> Origem <strong>da</strong>s<br />

Perversões Sexuais. In Edição Stan<strong>da</strong>rd <strong>da</strong>s Obras Completas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1976, v.<br />

17.<br />

LACAN, Jacques. (1966). De Nossos Antece<strong>de</strong>ntes. In: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1998.<br />

______________ (1969-1970) O Seminário, livro 17. O Avesso <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1992.<br />

______________ (1973). Televisão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1992.<br />

QUINET,Antonio. (1951) Psicose e Laço Social. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2006.<br />

RASSIAL, Jean-Jacques. O A<strong>do</strong>lescente e o Psicanalista. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>de</strong> Freud, 1999.<br />

216


Introdução<br />

A Relação <strong>do</strong> Sintoma com as Leis Morais<br />

Aline <strong>da</strong> Silva Gonçalves 1<br />

Segun<strong>do</strong> Freud (1926 [2001]) o sintoma é um sinal e um substituto <strong>de</strong> uma fantasia que<br />

permaneceu em esta<strong>do</strong> suspenso, sen<strong>do</strong> conseqüência <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> recalque. Não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />

realizar um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, o sujeito o substitui por outra coisa que seja mais aceita<br />

diante <strong>da</strong> moral sexual civiliza<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> qual o sujeito se vê embaraça<strong>do</strong>.<br />

Em "O mal estar na civilização"(1929[1997]) enten<strong>de</strong>mos que a proibição imposta ao<br />

sujeito está <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> <strong>de</strong> questões morais e por este motivo muito nos interessa um estu<strong>do</strong> mais<br />

aprofun<strong>da</strong><strong>do</strong> sobre a ética na psicanálise e na cultura. Veremos que há diferenças. De acor<strong>do</strong><br />

com Lacan (1959-1960[1997], p.96), "A ética não é o simples fato <strong>de</strong> haver obrigações, um<br />

laço que enca<strong>de</strong>ia, or<strong>de</strong>na e constitui a lei <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>", mas ela vai para além disso, que é o<br />

que preten<strong>do</strong> discutir neste trabalho.<br />

A partir <strong>do</strong> levantamento <strong>de</strong>ssas questões, iniciamos uma discussão sobre a íntima<br />

relação entre o sintoma (em especial, o sintoma na neurose) e a ética.<br />

Sintoma<br />

Freud (1916-1917[1976]) afirma que os sintomas neuróticos começaram a serem<br />

estu<strong>da</strong><strong>do</strong>s por Josef Breuer (entre 1880 e 1882), quan<strong>do</strong> ele atendia um caso <strong>de</strong> histeria.<br />

Ele salienta a importância <strong>de</strong> não confundirmos o sintoma com a "<strong>do</strong>ença" em si, pois<br />

eliminar os sintomas não significa estar livre <strong>da</strong> "<strong>do</strong>ença", mas apenas estar livre para a<br />

formação <strong>de</strong> novos sintomas. O sintoma psíquico é, em essência, um fator prejudicial à vi<strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>s sujeitos que <strong>de</strong>les sofrem, pois causa sofrimento, prejudican<strong>do</strong> <strong>de</strong> alguma forma as suas<br />

1 Graduan<strong>da</strong> <strong>de</strong> psicologia <strong>da</strong> UERJ (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro). En<strong>de</strong>reço eletrônico:<br />

aline.goncalves17@yahoo.com.br<br />

217


vi<strong>da</strong>s na medi<strong>da</strong> em que não lhes permitem livre curso aos investimentos.<br />

“O sintoma é um sinal e um substituto <strong>de</strong> uma satisfação pulsional que permaneceu em<br />

jacente; é uma conseqüência <strong>do</strong> processo" <strong>de</strong> recalcamento <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo (FREUD,<br />

1926[1997], p.14). Não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> realizar tal <strong>de</strong>sejo, o sujeito o substitui por outra coisa que<br />

seja mais aceita em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. É o <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo que o torna um sintoma, pois se o<br />

<strong>de</strong>sejo pu<strong>de</strong>sse ser realiza<strong>do</strong> não haveria aquele sintoma. Em outras palavras, o sintoma surge<br />

como sustentação <strong>de</strong> uma fantasia proibi<strong>da</strong> pela moral social civiliza<strong>da</strong>, que dita o convívio<br />

em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> (FREUD, 1926[2001]).<br />

A fantasia tem uma relação <strong>de</strong> extrema importância com o surgimento <strong>do</strong>s sintomas,<br />

relação esta que se dá <strong>de</strong> forma bem complexa. O que po<strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong> no Caso Hans,<br />

retoma<strong>do</strong> por Freud em seu texto “Inibição, sintoma e angústia” (1926[2001]), é que Hans<br />

<strong>de</strong>sloca seu impulso hostil pelo pai para o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> cavalos. Em outras palavras, no contexto<br />

edípico <strong>do</strong> pequeno Hans, contexto que foi estruturar o <strong>de</strong>sejo no ser falante, a fantasia<br />

edípica não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser concretiza<strong>da</strong> – por causa <strong>da</strong> proibição social <strong>do</strong> incesto –, o levou ao<br />

recalcamento <strong>do</strong> impulso hostil contra o pai, transferin<strong>do</strong> tal impulso para o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> cavalos,<br />

uma forma <strong>de</strong> firmar um compromisso entre a proibição ética <strong>do</strong> incesto e o <strong>de</strong>sejo inicial.<br />

Razão <strong>de</strong> Freud também i<strong>de</strong>ntificar o sintoma como uma formação <strong>de</strong> compromisso. Freud<br />

(1908[1988])<br />

De acor<strong>do</strong> com Freud (1906-1908[1997]), enten<strong>de</strong>mos que o sintoma sempre se<br />

estabelece através <strong>de</strong> uma relação direta com a fantasia e em uma ligação indireta com a vi<strong>da</strong><br />

real <strong>do</strong>s sujeitos. Isso é conseqüência, aliás, <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que, sen<strong>do</strong> estrutura<strong>do</strong> a<br />

partir <strong>da</strong> fantasia inconsciente, que é sempre <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, ele necessariamente tem sua<br />

origem na infância, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> o sujeito estar na i<strong>da</strong><strong>de</strong> adulta ou não. O sintoma po<strong>de</strong> ter<br />

relação direta com experiências traumáticas, que na época em que aconteceram não ganharam<br />

a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> importância e que somente tempos <strong>de</strong>pois emergiram novamente, configuran<strong>do</strong>-se<br />

como trauma. Consi<strong>de</strong>ra-se como traumático o evento que não po<strong>de</strong> ser simboliza<strong>do</strong> à época<br />

em que ocorreu e que, num a posteriori retorna sem uma possível significação por falta <strong>de</strong><br />

simbolização. É justamente a fantasia que então procurará <strong>da</strong>r um <strong>de</strong>stino a esse evento,<br />

218


amarran<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> alguma forma na re<strong>de</strong> <strong>da</strong>s significações. Assim, po<strong>de</strong>mos dizer que o sintoma<br />

necessariamente se articula com algo que foi traumático para o sujeito e, por isso, articula<strong>do</strong> a<br />

uma fantasia. Se to<strong>do</strong> sintoma se sustenta numa fantasia, então to<strong>do</strong> sintoma é também<br />

<strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> que há o não possível <strong>de</strong> simbolizar. Mas, sabemos, que isso é para to<strong>do</strong><br />

ser falante – sempre há algo que não po<strong>de</strong> ser simboliza<strong>do</strong> – e, por isso, o sintoma em<br />

psicanálise não é somente o efeito <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>ença mas, sobretu<strong>do</strong>, um efeito necessário <strong>de</strong><br />

sujeito.<br />

Mas retomemos os sintomas que causam sofrimento e que são aqueles sobre os quais<br />

Freud mais se <strong>de</strong>bruçou em sua obra e acompanhemos o <strong>de</strong>senvolvimento teórico que ele<br />

po<strong>de</strong> construir em relação a estes, a partir <strong>de</strong> seu conceito <strong>de</strong> pulsão – ou seja, o que está na<br />

origem <strong>do</strong>s investimentos psíquicos que ficam inibi<strong>do</strong>s em função <strong>do</strong> conflito que cria este<br />

sintoma. Uma pulsão, que nasce no Isso, é ativa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo que foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong><br />

proibi<strong>do</strong>. FREUD (1926[2001]) afirma que tal pulsão não teve sua satisfação direta porque o<br />

que se buscava era o prazer e, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> proibição, o prazer foi substituí<strong>do</strong> por <strong>de</strong>sprazer.<br />

O processo <strong>de</strong> recalque, que age como uma força contrária ao Isso, funciona como uma<br />

tentativa <strong>de</strong> fuga <strong>da</strong> realização <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong> Isso. O sintoma como formação <strong>de</strong><br />

compromisso, é o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> entre forças em luta provenientes <strong>do</strong> Eu<br />

e <strong>do</strong> Isso. Devi<strong>do</strong> a essa luta <strong>de</strong> forças, o sintoma ganha resistência uma vez que ele satisfaz<br />

aos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s contrários.<br />

A questão <strong>da</strong> ética<br />

De acor<strong>do</strong> com Vázquez (2005), a ética é um termo muito antigo estu<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

origens <strong>da</strong> filosofia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Sócrates na antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> grega. Ain<strong>da</strong> hoje produzimos sobre a<br />

ética, fato que nos faz perceber que este é um tema <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância ao longo <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os<br />

tempos, sen<strong>do</strong> este um tema <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> múltiplas áreas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, incluin<strong>do</strong> a<br />

psicanálise.<br />

Para Lacan (1959-1960[1997]), só é possível haver ética porque há convívio em<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém há algo na ética que vai para além disso. Inician<strong>do</strong>-se no momento em que o<br />

sujeito põe o bem que buscava inconscientemente, na vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Porém o sujeito só<br />

219


precisa se preocupar com esse bem, por que o que estabelece a lei está diretamente liga<strong>da</strong> a<br />

estrutura <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, que segun<strong>do</strong> Freud é a lei <strong>de</strong> proibição <strong>do</strong> incesto.<br />

Freud (apud LACAN 1959-1960 [1997], p.20-23) interessa-se pela ética <strong>de</strong> maneira<br />

original, manten<strong>do</strong> alguns pré-supostos anteriores, mas principalmente inovan<strong>do</strong> a questão <strong>do</strong><br />

que é o bem. Em Aristóteles esse bem é supremo e por isso não <strong>de</strong>ve ser contesta<strong>do</strong>. Naquela<br />

época, o bem maior, ou seja, o que o homem buscava, era a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com um<br />

i<strong>de</strong>al moral. Freud apro<strong>xi</strong>ma-se <strong>do</strong> pensamento Aristotélico somente no que diz respeito à<br />

busca <strong>do</strong> homem pela felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém diferencia-se <strong>de</strong> tal pensamento na medi<strong>da</strong> que<br />

conceitua a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma forma bastante diferente, ou seja, não contém nenhuma<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é o prazer <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer, ou seja, a baixa <strong>da</strong>s excitações e sua<br />

homeostase. Freud vai afirmar que para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> não há na<strong>da</strong> prepara<strong>do</strong> nem no<br />

macrocosmo, nem no microcosmo, essa é a gran<strong>de</strong><br />

mu<strong>da</strong>nça no pensamento <strong>de</strong> Freud, pois o prazer aqui comporta to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>sejos <strong>do</strong><br />

homem, por mais bestiais que sejam.<br />

Em sua busca pela felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, o homem busca Das Ding, algo <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong><br />

satisfação que não po<strong>de</strong> ser simboliza<strong>do</strong>. O objeto é perdi<strong>do</strong>. Ele nunca po<strong>de</strong>rá ser encontra<strong>do</strong><br />

por mais que possamos acreditar estar pró<strong>xi</strong>mos <strong>de</strong>le e que po<strong>de</strong>remos vivenciá-lo<br />

novamente. O princípio <strong>do</strong> prazer vai, então, governar a busca <strong>de</strong>sse objeto, porém lhe<br />

impon<strong>do</strong> ro<strong>de</strong>ios que o manterão sempre à distância <strong>do</strong> seu i<strong>de</strong>al (LACAN, 1959-<br />

1960[1997]).<br />

A tese <strong>de</strong> Freud é que a lei moral se afirma contra o prazer, o que po<strong>de</strong> parecer um<br />

para<strong>do</strong>xo, segun<strong>do</strong> ele. Para vali<strong>da</strong>r tal tese, parte <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> oposição entre o<br />

princípio <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e o <strong>de</strong> prazer, mas ao longo <strong>de</strong> sua obra vai colocar a questão para além<br />

<strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer 2 .<br />

Como já foi dito, a ética só po<strong>de</strong> e<strong>xi</strong>stir no convívio em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, e Lacan consi<strong>de</strong>ra<br />

que Freud trouxe avanços com relação ao tema, nos introduzin<strong>do</strong> a lei primordial, o<br />

2 Ver 'Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer', FREUD, (1920[1998]).<br />

220


fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> moral, que é a lei <strong>da</strong> interdição <strong>do</strong> incesto, afirman<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os<br />

<strong>de</strong>senvolvimentos culturais são apenas conseqüências e ramificações <strong>de</strong>ssa lei primordial.<br />

A relação <strong>do</strong> sintoma com as leis morais<br />

O sintoma emerge como uma forma <strong>de</strong> satisfação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo que o sujeito colocou<br />

como inaceitável pelas leis morais que ele próprio internalizou, porém tal fato se dá por vias<br />

indiretas, substituin<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo inaceitável por outro mais aceito eticamente para ele mesmo, e<br />

por isso o sujeito não reconhece o sintoma como que fazen<strong>do</strong> parte <strong>de</strong>le mesmo, mas sim<br />

como algo que surge <strong>de</strong> fora, incomo<strong>da</strong> e <strong>de</strong>ve ser retira<strong>do</strong>. É improvável que os sujeitos<br />

percebam que essa é a forma que o recalque encontra <strong>de</strong> satisfazer a pulsão, pois a satisfação<br />

vem <strong>de</strong> algo que os próprios sujeitos repudiam moralmente.<br />

Freud (1906-1908[1988]) enten<strong>de</strong> por moral as normas sociais impostas aos sujeitos<br />

pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância, ele afirma ain<strong>da</strong> que o fator sexual recalca<strong>do</strong> é a base <strong>da</strong><br />

neurose. De mo<strong>do</strong> geral a nossa civilização repousa sobre a supressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong>sejos. Freud traz ain<strong>da</strong> uma importante observação, afirman<strong>do</strong> que aquelas pessoas que<br />

preten<strong>de</strong>m ser muito “bem-vistas” pela moral são mais atingi<strong>da</strong>s pela neurose, enquanto que<br />

po<strong>de</strong>riam ser mais saudáveis se lhes fosse menos importante a própria reputação.<br />

Em "O mal estar na civilização" (1929[1997]), Freud diz que a civilização nasceu como<br />

forma <strong>de</strong> controlar a pulsão <strong>de</strong> agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> natural ao homem. Porém o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong><br />

civilização lhe impõe restrições e<strong>xi</strong>gin<strong>do</strong> que ninguém fuja a ela, não importan<strong>do</strong> o quanto a<br />

a<strong>de</strong>quação custará ao sujeito. A privação <strong>da</strong> satisfação <strong>de</strong> uma pulsão não se dá impunemente,<br />

se essa per<strong>da</strong> não for economicamente recompensa<strong>da</strong> resultará em uma neurose.<br />

Como já foi dito, a busca <strong>do</strong> homem é pela felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, que nunca é obti<strong>da</strong> em sua<br />

plenitu<strong>de</strong>, mas sim em alguns momentos <strong>de</strong> satisfação. Tais momentos po<strong>de</strong>m ser obti<strong>do</strong>s<br />

através <strong>da</strong> realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos e até mesmo em ações repudiáveis pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém o<br />

homem civiliza<strong>do</strong> trocou parte <strong>de</strong> suas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> por uma parcela se<br />

segurança que a vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe oferece (Freud, 1929[1997]). Freud diz que a evolução<br />

<strong>da</strong> civilização "po<strong>de</strong> ser simplesmente <strong>de</strong>scrita como a luta <strong>da</strong> espécie humana pela vi<strong>da</strong>"<br />

(1929[1997]p.82). De acor<strong>do</strong> com Freud, concluo que o sintoma surge como efeito necessário<br />

221


para que o homem possa viver em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

vol. IX.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

FREUD, Sigmund. Além <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1998, vol. VIII.<br />

FREUD, Sigmund. Gradiva <strong>de</strong> Jensen e outros trabalhos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1988,<br />

FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 2001, vol. XX.<br />

FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1997, vol. XXI.<br />

FREUD, Sigmund. Teoria geral <strong>da</strong>s neuroses. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1976, vol. XVI.<br />

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7, A ética <strong>da</strong> psicanálise. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 1997.<br />

VÁZQUEZ, A<strong>do</strong>lfo. Ética. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.<br />

222


“Sinto Que Não Tom(a)es” – Sobre a Desimplicação Subjetiva na<br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Contemporânea<br />

Henrique Figueire<strong>do</strong> Carneiro 1<br />

Anne Jamille Ribeiro Sampaio 2<br />

A <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong> inconsciente foi o gran<strong>de</strong> marco inaugural <strong>da</strong> psicanálise, fato que<br />

inquietou a muitos, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a partir <strong>de</strong> então o homem não era mais tão <strong>do</strong>no <strong>de</strong> si<br />

quanto acreditava ser (LACAN, 1964). Isso, pois o acesso à ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito é alcança<strong>do</strong><br />

pela escansão significante, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a linguagem estrutura seu inconsciente. Nessa<br />

conjuntura, temos o sintoma como uma <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> acesso às formações inconscientes, este<br />

que é atravessa<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sejo, marca <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. (LACAN, 1957/1958)<br />

Pela via <strong>da</strong> culpa, o <strong>de</strong>ciframento significante <strong>do</strong> sintoma po<strong>de</strong> ser atingi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a<br />

culpabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, portanto, um lugar subjetivo que conce<strong>de</strong> coerência às condutas <strong>do</strong> sujeito. Tal<br />

fato po<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> através <strong>do</strong> mito fun<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o assassinato <strong>do</strong> pai <strong>da</strong><br />

hor<strong>da</strong> primitiva. Após a morte <strong>do</strong> pai os filhos foram toma<strong>do</strong>s pelo sentimento <strong>de</strong> culpa, ten<strong>do</strong><br />

1 Doutor pela Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Comillas – Madrid (1997); profº. titular <strong>do</strong> PPG-Psicologia <strong>da</strong> UNIFOR;<br />

coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> LABIO; presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> CLIO – Associação <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>; pesquisa<strong>do</strong>r Pq2 CNPq; secretário<br />

executivo e pesquisa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> ANPEPP - GT Psicopatologia e <strong>Psicanálise</strong>; membro fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>da</strong> AUPPF; editor <strong>da</strong><br />

Revista Mal-estar e Subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>do</strong> Latin American Journal of Fun<strong>da</strong>mental Psychopathology On-line; autor<br />

<strong>do</strong>s livros: AIDS A nova <strong>de</strong>srazão <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico<br />

CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/in<strong>de</strong>x.htm) e A Soberania <strong>da</strong> clínica na psicopatologia<br />

<strong>do</strong> cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). Lattes: http://lattes.cnpq.br/3235805127730480. E-mail:<br />

henrique@unifor.br<br />

2 Estu<strong>da</strong>nte <strong>do</strong> 10º semestre <strong>de</strong> graduação em Psicologia <strong>da</strong> UNIFOR – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza;<br />

membro <strong>do</strong> LABIO – Laboratório sobre as novas formas <strong>de</strong> inscrição <strong>do</strong> objeto; integrante <strong>do</strong> PAVIC –<br />

Programa Aluno Voluntário <strong>de</strong> Iniciação Científica. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9708214291342093. Email:<br />

annejamillesampaio@hotmail.com. Relatora <strong>do</strong> trabalho.<br />

223


introjeta<strong>do</strong> a lei e cria<strong>do</strong> laços sociais (FREUD, 1913). Como <strong>de</strong>corrência, tal sentimento é<br />

representante <strong>do</strong> mal-estar que ilustra o cenário <strong>de</strong> surgimento <strong>da</strong> civilização, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as<br />

renúncias pulsionais e<strong>xi</strong>gi<strong>da</strong>s por esta. Deriva<strong>do</strong> <strong>da</strong> internalização <strong>da</strong> lei houve a emersão <strong>do</strong><br />

supereu, responsável pela realização <strong>do</strong>s sacrifícios em prol <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. No <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

contexto, o sintoma é, então, fortifica<strong>do</strong> pelo sentimento <strong>de</strong> culpa, como forma <strong>de</strong> punição<br />

frente a condutas transgressoras (FREUD, 1930).<br />

Toman<strong>do</strong> como base o exposto, a culpa é ti<strong>da</strong> como resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um crime, através <strong>do</strong><br />

qual a lei foi estabeleci<strong>da</strong>. De tal circunstância <strong>de</strong>riva-se, portanto, uma lei que não é<br />

consistente, apresentan<strong>do</strong> falhas, consequências que propiciam campo para criações <strong>de</strong><br />

tentações que convocam ao gozo, à transgressão (GEREZ- AMBERTÍN, 2009).<br />

Diante <strong>de</strong> uma ação viola<strong>do</strong>ra <strong>da</strong> lei, comumente, a confissão é ti<strong>da</strong> como a postura<br />

mais sensata a ser toma<strong>da</strong> pelo sujeito. No entanto, ao tratar-se <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente, a<br />

confissão reclama maiores minúcias. Isso, pois ao confessar sua culpa, o sujeito afasta-se <strong>da</strong><br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo seu <strong>de</strong>sejo, este que é <strong>de</strong> origem inconsciente. (GOLDENBERG, 1994)<br />

Assim, a culpa é indício <strong>de</strong> virtuosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> a resposta concedi<strong>da</strong> pelo<br />

sujeito por seus atos. (GOLDENBERG, 2002). Sublinhan<strong>do</strong> a circunstância anuncia<strong>da</strong>, a<br />

culpabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, portanto, aniquila o <strong>de</strong>sejo, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a interdição que carrega consigo.<br />

(LACAN, 1957/1958)<br />

O sujeito engana-se ao pensar que é livre para escolher, graças à ine<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> um<br />

objeto que possa satisfazer o <strong>de</strong>sejo, fato que insere o sujeito em uma servidão voluntária<br />

(GOLDENBERG, 1994). Nesse contexto, o discurso capitalista advém com gran<strong>de</strong> força,<br />

revestin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> astúcia, prega promessas que se consumam, guia<strong>da</strong>s pelo imperativo <strong>de</strong><br />

224


consumo (LACAN, 1972). A condição <strong>de</strong> servidão voluntária <strong>do</strong> sujeito, portanto, favorece o<br />

revestimento <strong>do</strong> capitalismo <strong>de</strong> uma face tirânica que por meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>spotismo conduz à<br />

<strong>de</strong>vastação <strong>do</strong>s sujeitos, estes que estão envoltos por uma fascinação sacrificial <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong><br />

(GEREZ-AMBERTÍN, 2009).<br />

Os sujeitos contemporâneos, como efeito, estão filia<strong>do</strong>s a um novo pai que os afoga<br />

em um horror goza<strong>do</strong>r, propician<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>ssubjetivação. Isso, pois o discurso capitalista<br />

impera <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a castração, estan<strong>do</strong> o sujeito atravessa<strong>do</strong> por uma se<strong>de</strong> in<strong>do</strong>mável<br />

pelo gozo. (GEREZ-AMBERTÍN, 2009).<br />

Decerto, a presente época, conduz seus sujeitos à imuni<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto à culpa,<br />

resultan<strong>do</strong> em uma crescente vulnerabili<strong>da</strong><strong>de</strong> às múltiplas manifestações <strong>do</strong> trauma,<br />

estimula<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>ssimbolização que atravessa os laços sociais. Em acréscimo aos prejuízos<br />

trazi<strong>do</strong>s pela suspensão simbólica há uma diminuição <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar, fato que<br />

produz sujeitos acríticos, forma<strong>do</strong>s pelo vazio, abertos a qualquer um que queira preenchê-lo.<br />

Por conseguinte, <strong>da</strong> vivaz atuação <strong>do</strong> capitalismo provêm sintomas ausentes <strong>de</strong> signos, sen<strong>do</strong><br />

os objetos produzi<strong>do</strong>s promovi<strong>do</strong>s a representantes <strong>de</strong> referências baliza<strong>do</strong>ras <strong>da</strong>s condutas<br />

<strong>do</strong>s sujeitos (DUFOUR, 2005).<br />

A divulga<strong>da</strong> circunstância é nutri<strong>da</strong> por uma ética <strong>do</strong> malandro. Nesta, o sujeito<br />

<strong>de</strong>fine-se como livre, agin<strong>do</strong> conforme sua vonta<strong>de</strong>, buscan<strong>do</strong> formas benéficas para si que<br />

consigam contornar a lei. A predita condição ganha campo <strong>de</strong> expressão no contexto <strong>do</strong> mo<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> produção capitalista, este que é atravessa<strong>do</strong> pelo exce<strong>de</strong>nte, convocan<strong>do</strong> os sujeitos a um<br />

gozo excessivo. O discurso capitalista tem como meta, então, a produção <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, com o<br />

propósito <strong>de</strong> gerar vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo diante <strong>do</strong>s objetos que fabrica. O sucesso <strong>de</strong> tais<br />

225


objetivos po<strong>de</strong> ser comprova<strong>do</strong> na elevação <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r à categoria <strong>de</strong> adicto <strong>do</strong>s artefatos<br />

tecnológicos, estan<strong>do</strong> o inconsciente reduzi<strong>do</strong> a uma mera curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica<br />

(GOLDENBERG, 2002).<br />

Corroboran<strong>do</strong> com o exposto, a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea vivencia uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

paixão pelo gozo, refleti<strong>da</strong> no imperativo <strong>de</strong> consumo, observa<strong>do</strong> na vivaz elaboração <strong>de</strong><br />

signos estereotipa<strong>do</strong>s que objetivam <strong>do</strong>mesticar o sujeito, submeten<strong>do</strong> suas escolhas ao<br />

discurso capitalista. Para tal, as <strong>de</strong>man<strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s pelo merca<strong>do</strong> estão inserin<strong>do</strong> os objetos <strong>de</strong><br />

consumo na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> associações significantes, fato que os torna <strong>de</strong>sejáveis. Como resulta<strong>do</strong>,<br />

os laços sociais estão sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong>s por relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s sujeitos quanto aos<br />

objetos <strong>de</strong> consumo. (FERREIRA, 2001)<br />

Incluin<strong>do</strong> na discussão a presente formatação <strong>do</strong>s sintomas contemporâneos, po<strong>de</strong>mos<br />

observar que vigora uma autêntica insatisfação <strong>do</strong>s sujeitos com seus, estan<strong>do</strong> estes a<br />

falharem na regulação e distribuição <strong>do</strong> gozo. Embora alguns sujeitos sejam a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> um<br />

discurso referente a uma libertação sintomática, por vezes, no entanto, ocultam a satisfação<br />

que obtêm, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o sintoma atravessa<strong>do</strong> por justificativas encobri<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> mal-estar<br />

que o origina (DUNKER, 2002). Nessa conjuntura é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia ressaltar o elemento<br />

máscara que envolve o sintoma, traduzi<strong>do</strong> sob a forma ambígua que se apresenta o <strong>de</strong>sejo,<br />

fato que <strong>de</strong>nuncia a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> insatisfações que perpassam este último (LACAN,<br />

1957/1958)<br />

Em vias <strong>de</strong> concluir, nos remetemos, como outrora, à servidão voluntária e<br />

inconsciente que contempla a sobrevivência <strong>do</strong> sujeito mo<strong>de</strong>rno, o qual se encontra<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, órfão <strong>do</strong> Outro que o forma, questão que resulta em uma busca bastante plural<br />

226


por maneiras que possam remediar esta falta. No entanto, durante a <strong>da</strong><strong>da</strong> procura, os sujeitos<br />

tornam-se alvos <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, sucumbin<strong>do</strong> à sedução trazi<strong>da</strong> pelas imagens representativas <strong>do</strong>s<br />

objetos <strong>de</strong> consumo (DUFOUR, 2005). Tal questão conce<strong>de</strong> corpo à problemática na esfera<br />

<strong>do</strong>s laços sociais referente ao império <strong>do</strong> “eu” em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong> preocupação com o pró<strong>xi</strong>mo.<br />

Toman<strong>do</strong> por empréstimo um trecho <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire (2007), intitula<strong>da</strong> A<br />

Tampa, temos em mãos um recorte ilustrativo <strong>da</strong> época presente, a saber, “O Céu! A tampa<br />

negra <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> marmita/ Em que invisível ferve a vasta humani<strong>da</strong><strong>de</strong>” (p. 158). Face à<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozar <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ofertas <strong>do</strong> capitalismo, o homem contemporâneo está<br />

produzin<strong>do</strong> novos sintomas. Como resulta<strong>do</strong>, os sujeitos envere<strong>da</strong>m em uma contínua<br />

tentativa <strong>de</strong> obliterar a marca imposta pela castração, fato que conce<strong>de</strong> malogros para o laço<br />

social, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o narcisismo que perpassa a vigente socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Como conseqüência, o<br />

homem contemporâneo é atravessa<strong>do</strong> por uma <strong>de</strong>simplicação subjetiva, estan<strong>do</strong> inseri<strong>do</strong> em<br />

uma fervilhante gran<strong>de</strong> marmita, fato que representa a intolerância que contempla sua relação<br />

com o pró<strong>xi</strong>mo. Em acréscimo, temos a redução <strong>do</strong> céu a uma mera tampa, analogia que nos<br />

remete à vigente que<strong>da</strong> <strong>de</strong> referenciais consistentes. Assim, resta-nos, <strong>de</strong>certo, proclamar<br />

“Sinto que não tom(a)es”, como indicação <strong>da</strong> atuante invisibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que atravessa os sintomas<br />

(note o “sintoma” que po<strong>de</strong> ser localiza<strong>do</strong> na frase) <strong>do</strong> homem <strong>de</strong> nossa época, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />

seu encarceramento em uma lógica <strong>de</strong> gozo que apaga o <strong>de</strong>sejo, sua condição subjetiva,<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a residência original <strong>do</strong> sintoma, o inconsciente, logo, ocasionan<strong>do</strong> a<br />

presente <strong>de</strong>simplicação subjetiva na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea.<br />

Referências Bibliográficas<br />

BAUDELAIRE, C. As flores <strong>do</strong> mal. Coleção a obra-prima <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> autor, São Paulo: Martin<br />

Claret, 2007.<br />

227


DUFOUR, D.-R. A arte <strong>de</strong> reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> ultraliberal.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Companhia <strong>de</strong> Freud, 2005.<br />

DUNKER, C. I. L. O cálculo neurótico <strong>do</strong> gozo. São Paulo: Escuta, 2002.<br />

FERREIRA, N. P. A culpa na subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa época. In: Peres, Urânia T.<br />

(Org.). Culpa. São Paulo: Escuta, 2001.<br />

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas, ESB, v. XXI, Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Imago, 1996.<br />

________. Totem e Tabu (1913). Obras completas, ESB, v. XIII, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago,<br />

1996.<br />

GEREZ-AMBERTÍN, M. Entre dívi<strong>da</strong>s e culpas: sacrifícios – crítica <strong>da</strong> razão sacrificial. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Companhia <strong>de</strong> Freud, 2009.<br />

GOLDENBERG, R. D. No Círculo Cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos<br />

canalhas? 1. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumará, 2002.<br />

___________________. Ensaio sobre a moral <strong>de</strong> Freud. Salva<strong>do</strong>r: Álgama, 1994.<br />

LACAN, J. O Seminário – Livro 5 – As formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-1958). Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.<br />

________. O Seminário – Livro 11 – Os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise<br />

(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.<br />

________. Do discurso <strong>do</strong> psicanalista. Conferência em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1972 na Universita<br />

<strong>de</strong>gli Studio, Milão, inédita.<br />

________. Televisão (1974). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.<br />

228


A Função <strong>do</strong> Analista e a Política <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> na Política Pública <strong>de</strong><br />

Saú<strong>de</strong> Mental<br />

Francisca Mariana Abreu Senra 1<br />

Da imbricação entre clínica e política gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar <strong>do</strong>is vieses. De um<br />

la<strong>do</strong>, temos a relação moebiana, - como diz Lacan <strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro e fora em junção e disjunção<br />

simultâneas – que tentamos cernir entre uma e outra. Uma relação que faz atravessar a<br />

política <strong>da</strong> psicanálise, política <strong>da</strong> falta-a-ser, na direção mesma <strong>da</strong> clínica psicanalítica. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, temos apontamentos sobre a inserção <strong>da</strong> psicanálise, tanto na clínica quanto na<br />

política pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental. De que forma a política <strong>da</strong> psicanálise po<strong>de</strong> se fazer<br />

nortea<strong>do</strong>ra no exercício <strong>de</strong> uma função pública <strong>de</strong> gestão <strong>da</strong> clínica <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> mental?<br />

Paralelamente a essa questão nos move a tentativa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a uma outra: é possível<br />

governar eticamente, segun<strong>do</strong> a ética <strong>da</strong> psicanálise?<br />

Partimos tanto <strong>de</strong> nossa prática clínica na saú<strong>de</strong> mental e no consultório, com casos<br />

graves <strong>de</strong> submissão ao Outro, como o são psicoses e neuroses graves, quanto <strong>de</strong> nossa<br />

experiência atual na gestão pública <strong>da</strong> política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental <strong>de</strong> nosso município, o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro. Tomamos como ponto <strong>de</strong> referência a difícil tentativa <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma política<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização – como chamamos as concepções e práticas necessárias à oferta <strong>de</strong><br />

trabalho psíquico para pessoas longamente interna<strong>da</strong>s em instituições asilares.<br />

1 psicanalista, <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> pelo Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Pesquisa e Clínica em <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong><br />

Psicologia <strong>da</strong> UERJ/Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Assessora <strong>da</strong> Área Técnica <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental <strong>da</strong><br />

Secretaria Municipal <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Defesa Civil <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Instituição: Laço Analítico <strong>Escola</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Psicanálise</strong>. Email: mariana0307@hotmail.com<br />

229


Comecemos pensan<strong>do</strong> qual é a visa<strong>da</strong> <strong>da</strong> clínica. Sabe-se, com a leitura que <strong>de</strong><br />

Aristóteles faz Lacan no Seminário 7, que há um impossível na distribuição <strong>do</strong> bem ao outro.<br />

Ain<strong>da</strong> no Seminário 8, Lacan dirá:<br />

Não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong> nenhuma maneira, nem preconcebi<strong>da</strong>, nem permanente,<br />

colocar como primeiro termo <strong>do</strong> fim <strong>de</strong> sua ação o bem, pretenso ou não, <strong>de</strong><br />

seu paciente, mas precisamente o seu Eros (LACAN, 1992a, p. 17).<br />

Lembrança esta que nos recoloca na trilha <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> enlaçamento que o<br />

próprio sujeito será capaz <strong>de</strong> tecer. Essa mesma leitura será manti<strong>da</strong> no Seminário 17. Se, ao<br />

clinicarmos, seja on<strong>de</strong> seja, não é ao bem <strong>do</strong> outro que se <strong>de</strong>ve visar, ao que é?! Freud nos<br />

fala <strong>do</strong>s três ofícios impossíveis, Regieren, Erziehen, Kurieren, para vir a este último<br />

substituir por Analysieren. Lacan fará uma leitura precisa <strong>de</strong> Freud nesse ponto, nesse último<br />

Seminário cita<strong>do</strong>, nos esclarecen<strong>do</strong> que o impossível é o ser <strong>do</strong> psicanalista (LACAN, 1992b,<br />

p.188-189) , não sua função, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r que Freud refere-se assim, a partir<br />

<strong>do</strong> que seja impossível, às condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa função. Sen<strong>do</strong> essas condições<br />

possibilita<strong>da</strong>s pelo amor <strong>de</strong> transferência, ao qual Lacan se <strong>de</strong>dica em to<strong>do</strong> Seminário 8,<br />

chega-se com elas ao dispositivo clínico, que permite ao sujeito apostar na direção <strong>de</strong><br />

reconstruir laços nefastos para sua e<strong>xi</strong>stência e construir outros tantos que lhe garantam uma<br />

e<strong>xi</strong>stência menos sofri<strong>da</strong>, mais saudável, através <strong>de</strong> uma amarração <strong>do</strong>s registros real-<br />

simbólico-imaginário que lhe assegure um lugar. Lugar este estabeleci<strong>do</strong> sempre através <strong>do</strong><br />

laço, que implica a ex-sistência <strong>do</strong> sinthoma, como diz Lacan no Seminário 23: “Estabelecer<br />

o laço enigmático <strong>do</strong> imaginário, <strong>do</strong> simbólico e <strong>do</strong> real implica ou supõe a ex-sistência <strong>do</strong><br />

sinthoma” (LACAN, 2007, p.21). O que enten<strong>de</strong>mos como a <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> reconhecimento<br />

230


<strong>do</strong> sinthoma, <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, para que a clínica guar<strong>de</strong> seu lugar ético. Dan<strong>do</strong> um passo em<br />

relação ao governar, isto é, a exercer uma função política <strong>de</strong> gestão, <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong> prá<strong>xi</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> campo <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> mental pública, po<strong>de</strong>mos em linha direta<br />

afirmar que se visa então o mesmo, a oferta <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> laço para o<br />

sujeito, <strong>de</strong> uma amarração, <strong>de</strong>sse lugar, para to<strong>do</strong>s, como comumente se espera <strong>da</strong> política?<br />

Lacan, ao se referir, no Seminário 23, ao significante que <strong>de</strong>fine o sujeito, o chama<strong>do</strong><br />

S1, que representa “um sujeito como tal”, que sua função é “representá-lo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente”,<br />

impingin<strong>do</strong> ao ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente o valor <strong>de</strong> “conforme à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”: “O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro é dizer<br />

conforme à reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, reitera, com o que lembramos que “a relação analítica está fun<strong>da</strong><strong>da</strong> no<br />

amor à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, (...), o que quer dizer – no reconhecimentos <strong>da</strong>s reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, como disse<br />

poucos anos antes no Seminário 17 (LACAN, 1992b, p.128). Temos, é sabi<strong>do</strong>, uma herança<br />

histórico-meto<strong>do</strong>lógica respal<strong>da</strong><strong>da</strong> em teorias anteriormente aceitáveis, <strong>de</strong> isolamento <strong>da</strong><br />

loucura, que já não o são mais. Encontramo-nos, nesse ponto, com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vamos a ela:<br />

há em nosso país um sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que abarca, para além <strong>do</strong> já menciona<strong>do</strong> equívoco<br />

histórico em relação ao tratamento <strong>do</strong>s loucos, uma insuficiência generaliza<strong>da</strong> que foge<br />

completamente aos limites <strong>do</strong> aceitável. Não há vagas para to<strong>do</strong>s, não há... remédio para<br />

to<strong>do</strong>s, não há... tratamento digno para to<strong>do</strong>s, não há... Concluamos que há então uma<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> que faz <strong>do</strong> sistema um sistema perverso, na medi<strong>da</strong> em que o que se transmite na<br />

política não raras vezes é que há.<br />

Retoman<strong>do</strong> a pergunta anteriormente coloca<strong>da</strong>, sobre qual <strong>de</strong>ve ser o planejamento<br />

para to<strong>do</strong>s, se <strong>de</strong>ve ser manti<strong>da</strong> sempre, nunca foracluí<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ve no entanto ter um lugar bem<br />

231


preciso: um lugar lógico <strong>de</strong> direção, <strong>de</strong> horizonte, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, po<strong>de</strong>mos pensar. Lógico por ter <strong>de</strong><br />

realizar-se sempre, não só em ca<strong>da</strong> encaminhamento, mas realizar-se efetivamente como fato<br />

quan<strong>do</strong> as condições o permitem. O que isso implica? Que o para to<strong>do</strong>s seja pauta<strong>do</strong> no para<br />

um, este nunca subsumível no primeiro. É assim que, no caso a caso, construímos uma boa<br />

política para to<strong>do</strong>s. Pensemos então que há <strong>do</strong>is “para to<strong>do</strong>s”, um contingencial, on<strong>de</strong> se<br />

guar<strong>da</strong> o furo, e outro i<strong>de</strong>al, on<strong>de</strong> o furo é mascara<strong>do</strong>. É o que Lacan, no Seminário <strong>do</strong><br />

Sinthoma, chama <strong>de</strong> “furinho”: “A hipótese <strong>do</strong> inconsciente tem seu suporte justamente na<br />

medi<strong>da</strong> em que esse furinho possa, por si só, fornecer uma aju<strong>da</strong>” (LACAN, 2007, p. 131),<br />

referin<strong>do</strong>-se à interseção entre real e imaginário que comprova a ine<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> Outro <strong>do</strong><br />

Outro e portanto ao lugar on<strong>de</strong> o sujeito po<strong>de</strong> advir. É “furan<strong>do</strong>” o cita<strong>do</strong> empuxo à esfera, à<br />

totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que po<strong>de</strong>mos criar as condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> advento <strong>de</strong> uma boa prá<strong>xi</strong>s,<br />

tanto clínica quanto política.<br />

Deparamo-nos no cenário atualíssimo <strong>de</strong>sse Encontro com o man<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong> um juiz<br />

fe<strong>de</strong>ral que intima, como resulta<strong>do</strong> final <strong>de</strong> uma Ação Civil Pública, União, Esta<strong>do</strong> e<br />

municípios responsáveis a retirar os pacientes <strong>de</strong> uma instituição sob intervenção, instituição<br />

que foi outrora o maior hospício <strong>da</strong> América Latina e que guar<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> hoje inenarrável<br />

iatrogenia na internação infindável <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> pacientes. Que fazer diante <strong>de</strong> mais essa<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma resposta “total”? Essa pergunta não nos retira a afinação com a Justiça, - a<br />

qual tomamos como terceiro <strong>da</strong> Lei – mas, justamente, <strong>de</strong>volve à gestão pública a<br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo cumprimento <strong>de</strong> um compromisso que, se na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> atual é<br />

impossível <strong>de</strong> ser efetiva<strong>do</strong>, coloca-nos a injunção <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Isso guar<strong>da</strong>n<strong>do</strong> a<br />

direção <strong>do</strong> um a um, na medi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa mesma dita reali<strong>da</strong><strong>de</strong> – não sejamos ingênuos: a<br />

232


política, outro <strong>da</strong>quele que, frágil, vive à sua mercê, quer algum bem para o sujeito. Lembro-<br />

me nesse ponto <strong>do</strong> caso <strong>de</strong> uma paciente interna<strong>da</strong> há déca<strong>da</strong>s no Manicômio cita<strong>do</strong> acima.<br />

Ao iniciarmos o trabalho <strong>de</strong> atendimento à sua família, especialmente à sua mãe, que não a<br />

levava em casa há 11 anos, trabalho que incluía notícias <strong>da</strong><strong>da</strong>s a ela <strong>de</strong>sse mesmo<br />

atendimento, arriscou um apelo que po<strong>de</strong>ria lhe custar a vi<strong>da</strong>: passou a comer somente<br />

enquanto a mãe, que sempre lhe enchia <strong>de</strong> comi<strong>da</strong> durante as visitas, estivesse com ela. Foi<br />

interna<strong>da</strong> na Uni<strong>da</strong><strong>de</strong> Clínica <strong>da</strong> mesma instituição e, entre a vi<strong>da</strong> e a morte, sua mãe nos<br />

disse: “vou levar ela para casa, senão fizer isso, ela vai morrer”. O que me faz lembrar uma<br />

bonita passagem <strong>do</strong> Seminário 8, em que Lacan nos fala <strong>de</strong>ssa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> espécie<br />

humana em ir em direção ao gozo que traz a morte e ao mesmo tempo tenta evitá-la em<br />

direção à perpetuação:<br />

o homem aspira a aniquilar-se para se inscrever nos termos <strong>do</strong> ser. A<br />

contradição oculta, o <strong>de</strong>talhe a se compreen<strong>de</strong>r é que o homem aspira a<br />

<strong>de</strong>struir-se na própria medi<strong>da</strong> em que se eterniza (LACAN, 1992a, p.103).<br />

No lugar <strong>da</strong> castração não reconheci<strong>da</strong> – que aconteceria, por exemplo, se<br />

quiséssemos retirar <strong>da</strong> cita<strong>da</strong> instituição tais pacientes a qualquer custo, fora <strong>do</strong> caso a caso –<br />

impingiríamos um suposto bem ao outro gozan<strong>do</strong> <strong>do</strong> ultrapassamento <strong>do</strong> limite imposto<br />

exatamente pela castração, ao guiarmo-nos pelo cumprimento <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al. Essa paciente nos<br />

recoloca no que inspira a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que, nos ensina a psicanálise, é a morte, não o amor –<br />

morte que traz a separação entre gozo e corpo que então se mortifica pelo significante que dá<br />

lugar ao sujeito (LACAN, 1992b, p. 160). Se a tivéssemos tenta<strong>do</strong> retirar <strong>da</strong> referi<strong>da</strong><br />

instituição sem suportar esse tempo que oscila na cor<strong>da</strong> bamba <strong>da</strong> clínica, teríamos quiçá<br />

impedi<strong>do</strong> essa reconstrução possível <strong>de</strong> laço que foi feita. Diz Lacan: “a intrusão na política<br />

233


só po<strong>de</strong> ser feita reconhecen<strong>do</strong>-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não<br />

seja <strong>do</strong> gozo, pelo menos quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>le se espera o trabalho <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (ibi<strong>de</strong>m, p.74). Que ao<br />

menos o gozo seja interdita<strong>do</strong> a elidir o lugar <strong>de</strong> sujeito <strong>do</strong> outro, e o <strong>de</strong> objeto ao qual nos<br />

submetemos ocupan<strong>do</strong> o lugar <strong>de</strong> semblante <strong>de</strong> causa <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo.<br />

Assim, o homem, diz Aristóteles, “é naturalmente feito para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> política”, o<br />

que nos faz pensar que é mesmo <strong>de</strong>ssa relação com o outro que ele pa<strong>de</strong>ce em seus<br />

transtornos. Pensamos então que a ação política <strong>da</strong> governança <strong>de</strong> um campo clínico que se<br />

concebe a partir <strong>do</strong> “um” a “um”, incluin<strong>do</strong> inexoravelmente o coletivo, faz-se a partir <strong>da</strong><br />

castração – e, fun<strong>da</strong>mental, cria as condições <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> que o sujeito inventa em torno<br />

<strong>do</strong> impossível. Po<strong>de</strong>mos ler em Platão, na República, a castração advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> função política,<br />

presente igualmente na função clínica, nas quais não se “visa ou or<strong>de</strong>na o que é vantajoso a si<br />

mesmo, mas o que é vantajoso aos seus governa<strong>do</strong>s”. A que isso nos leva, senão à castração<br />

inerente não somente a to<strong>da</strong> prática, mas a to<strong>da</strong> e<strong>xi</strong>stência? A clínica psicanalítica e a<br />

política, num exercício <strong>de</strong> prá<strong>xi</strong>s no campo <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> mental, trazem-nos as relações <strong>do</strong><br />

singular no coletivo, <strong>do</strong> “sujeito” em sua política e <strong>da</strong> política para os “sujeitos”.<br />

Referências Bibliográficas<br />

LACAN, J. – O Seminário livro 8 – A transferência ([1960-1961] 1991). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Jorge<br />

Zahar Editor, 1992a.<br />

_________ . – O Seminário livro 17 – O Avesso <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> ([1969-1970] 1991). Jorge<br />

Zahar Editor, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1992b.<br />

_________. – O Seminário livro 23 – O Sinthoma ([1975-1976] 2005). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Ed., 2007.<br />

234


Os Impasses <strong>da</strong> Transmissão <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> e <strong>da</strong> Transmissão em<br />

<strong>Psicanálise</strong><br />

Michaella Carla Laurin<strong>do</strong> 1<br />

Miriam Izolina Pa<strong>do</strong>in Dalla Rosa 2<br />

O presente trabalho preten<strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r os impasses e questionamentos advin<strong>do</strong>s <strong>da</strong><br />

transmissão <strong>da</strong> psicanálise e <strong>da</strong> transmissão em psicanálise. Compreen<strong>de</strong>-se por “transmissão<br />

<strong>da</strong> psicanálise” o ensino realiza<strong>do</strong> na universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Lacan, coloca como<br />

agente o ‘saber’ e tem um viés educativo. Nota-se que no Discurso Universitário – assim<br />

como no discurso <strong>do</strong> Mestre, o sujeito <strong>do</strong> inconsciente fica recalca<strong>do</strong>, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> então ser<br />

coloca<strong>do</strong> em questão. Já a “transmissão em psicanálise” é emana<strong>da</strong> <strong>da</strong> experiência <strong>de</strong> análise,<br />

que se transmite <strong>de</strong> um por um, seu efeito <strong>de</strong> re-significação faz com que o analisante não<br />

necessite <strong>de</strong> outras evidências para comprovar sua eficácia, sua certeza é subjetiva.<br />

Dessa forma, as autoras <strong>de</strong>sse artigo (analistas, analisantes e <strong>do</strong>centes <strong>da</strong> psicanálise)<br />

formulam e estão concerni<strong>da</strong>s pela questão: que <strong>de</strong>sejo é esse <strong>de</strong> transmitir e ensinar àquele<br />

que não está em análise? Quais os efeitos <strong>de</strong> uma psicanálise apenas teórica e qual seria seu<br />

1 Psicanalista. Especialista em <strong>Psicanálise</strong> pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Marília. Mestre em Filosofia pela PUC/PR.<br />

Docente <strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Pós-­‐Graduação em <strong>Psicanálise</strong> Clínica, UNIPAR/Cascavel. Docente e Orienta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

Estágio na abor<strong>da</strong>gem psicanalítica <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica – Tole<strong>do</strong>/<br />

PR. Contato: michaella.laurin<strong>do</strong>@pucpr.br<br />

2 Psicanalista. Especialista em <strong>Psicanálise</strong> Clínica e Cultura. Mestre em Educação. Docente e Orienta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

Estágio na abor<strong>da</strong>gem psicanalítica no Curso <strong>de</strong> Psicologia na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Paranaense - UNIPAR - Cascavel –<br />

PR. Docente nos Cursos <strong>de</strong> Graduação na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Paranaense –UNIPAR - Tole<strong>do</strong>/PR. Contato:<br />

<strong>da</strong>llarosa@unipar.br.<br />

Agra<strong>de</strong>cimentos à Fun<strong>da</strong>ção Araucária, Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>da</strong> Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI-<br />

PR) e ao Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná, pelo apoio financeiro recebi<strong>do</strong> para viabilizar esta participação.<br />

235


alcance? O objetivo <strong>de</strong>sse escrito é abor<strong>da</strong>r a ética em relação ao laço social universitário e ao<br />

mesmo tempo conjecturar sobre a transmissão <strong>da</strong> psicanálise como uma formação<br />

sintomática.<br />

É notório que o laço entre o sujeito e o outro se dá pela via <strong>do</strong> sintoma, seria a ligação<br />

estabeleci<strong>da</strong> entre <strong>do</strong>cente e discente, também um laço social sintomático? E, se o sintoma é<br />

entendi<strong>do</strong> como um méto<strong>do</strong> para satisfazer a libi<strong>do</strong>, o que mantém este laço é o gozo obti<strong>do</strong><br />

nessa relação. Ou seja, o <strong>do</strong>cente po<strong>de</strong> passar a ocupar o lugar <strong>da</strong>quele que <strong>de</strong>tém o saber ao<br />

ensinar, e o discente passa a ocupar o lugar <strong>da</strong>quele que serve como objeto, apren<strong>de</strong> e<br />

i<strong>de</strong>ntifica-se com aquele que ensina, mas que na<strong>da</strong> quer saber <strong>de</strong> si neste processo. Assim, o<br />

engo<strong>do</strong> <strong>do</strong> gozo está instala<strong>do</strong> nesta relação.<br />

Essa posição <strong>do</strong> “psicanalista-educa<strong>do</strong>r” não <strong>de</strong>lataria sua necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

complemento? Não seria o dilema <strong>da</strong> relação puramente especular, ou seja, frente a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> saber sobre o A barra<strong>do</strong>, oferecer-se como o que completa? É nesse senti<strong>do</strong><br />

que interrogamos o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ensinar, pois Lacan aponta a ine<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> um Outro absoluto,<br />

consistente.<br />

A partir disso, po<strong>de</strong>mos citar Freud, que analisou os próprios sonhos e a<strong>do</strong>tou essa<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> subjetiva como base para a transmissão. Tomou a psicanálise em intensão como<br />

causa para a psicanálise em extensão. É possível conjecturar que aquele que se aventura em<br />

busca <strong>da</strong> prática analítica tem prova em si próprio <strong>da</strong>s manifestações <strong>do</strong> inconsciente, as sente<br />

como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Senão como po<strong>de</strong>ria apostar que há um Sujeito no outro?<br />

236


É preciso neste ponto consi<strong>de</strong>rar a questão <strong>da</strong> transferência que se estabelece com os<br />

discentes, assim como a transferência à Freud. Do contrário, a relação constitui-se como<br />

sintomática, on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sejo não conta. Então, muito mais <strong>do</strong> que o “psicanalista-educa<strong>do</strong>r”<br />

ensina, o que importa é o que ele <strong>de</strong>seja saber e como está concerni<strong>do</strong> no saber psicanalítico<br />

que se propõe transmitir. A relação com os discentes é feita <strong>do</strong> mesmo “barro” que a relação<br />

transferencial com os pacientes. Quanto a isso Freud (1914, p.185) dá a seguinte<br />

recomen<strong>da</strong>ção:<br />

O caminho que o analista <strong>de</strong>ve seguir (...) é um caminho para o qual não e<strong>xi</strong>ste<br />

mo<strong>de</strong>lo na vi<strong>da</strong> real. Ele tem <strong>de</strong> tomar cui<strong>da</strong><strong>do</strong> para não se afastar <strong>do</strong> amor<br />

transferencial, repeli-lo ou torná-lo <strong>de</strong>sagradável para a paciente; mas <strong>de</strong>ve, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />

igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme<br />

<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação<br />

que se <strong>de</strong>ve atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que<br />

po<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r a trazer tu<strong>do</strong> que se acha muito profun<strong>da</strong>mente oculto na vi<strong>da</strong> erótica <strong>da</strong><br />

paciente para sua consciência e, portanto, para <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> seu controle.<br />

A transmissão em psicanálise difere-se justamente no ponto em que é possível pensá-<br />

la como um processo não natural. Dessa forma, o que impera na prática <strong>da</strong> transmissão <strong>da</strong><br />

psicanálise na universi<strong>da</strong><strong>de</strong> é uma rigi<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais, na forma <strong>de</strong> que ‘to<strong>do</strong>s tem que<br />

apren<strong>de</strong>r’, no estilo <strong>da</strong> tirania infantil presente na transmissão sintomática, on<strong>de</strong> parece não<br />

haver lugar para o inconsciente.<br />

Nas universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s o ato <strong>de</strong> ensinar objetiva a compreensão, que é própria <strong>da</strong><br />

aprendizagem, então, fazer compreen<strong>de</strong>r bem a ciência que se estu<strong>da</strong> é a tarefa <strong>do</strong> <strong>do</strong>cente<br />

encarrega<strong>do</strong> <strong>da</strong> função <strong>de</strong> ensinar. Entretanto, aquele que transmite em psicanálise na<br />

237


universi<strong>da</strong><strong>de</strong> ou em qualquer outro espaço <strong>de</strong> transmissão precisa estar atento ao que Lacan<br />

(1994, p.90) aponta:<br />

(...) uma <strong>da</strong>s coisas que mais <strong>de</strong>vemos evitar é compreen<strong>de</strong>r muito, compreen<strong>de</strong>r<br />

mais <strong>do</strong> que e<strong>xi</strong>ste no discurso <strong>do</strong> sujeito. Interpretar e imaginar que se compreen<strong>de</strong>,<br />

não é <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> nenhum a mesma coisa. É exatamente o contrário. Eu diria que é na<br />

base <strong>de</strong> uma recusa <strong>de</strong> compreensão que empurramos a porta <strong>da</strong> compreensão<br />

analítica.<br />

O autor discute a transmissão <strong>da</strong> psicanálise na sua obra “Meu ensino” e interroga já<br />

nas primeiras páginas, “Será a psicanálise pura e simplesmente uma terapêutica, um<br />

medicamento, um emplastro, um pó <strong>de</strong> pirlimpimpim, tu<strong>do</strong> que cura?” (LACAN, 2006, p.20).<br />

E, respon<strong>de</strong> que não é absolutamente isso. Também interroga se a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> psicanalítica é a <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> sexual. Quanto a isso ele afirma “a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> coisa, os diários, os<br />

vestuários, a forma como nos comportamos, a forma como os meninos e as meninas fazem<br />

isso, um belo dia, ao ar livre, no merca<strong>do</strong>” (p.26).<br />

Do que trata a psicanálise então? Trata <strong>do</strong> sujeito, que é um conceito muito mais<br />

amplo, mas que também diz <strong>do</strong> sexual. Esse ponto trata <strong>da</strong> ética na transmissão, pois o que<br />

po<strong>de</strong> prometer a psicanálise aos discentes ávi<strong>do</strong>s por um diploma?<br />

Po<strong>de</strong>mos nos perguntar se o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um fim <strong>de</strong> tratamento psicanalítico é que um<br />

cavalheiro ganhe um pouco mais <strong>de</strong> dinheiro <strong>do</strong> que antes e que, na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> sexual, acrescente, à <strong>de</strong> sua companheira conjugal, a <strong>de</strong> sua secretária. É o que<br />

em geral é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um excelente <strong>de</strong>sfecho, quan<strong>do</strong> um indivíduo via-se<br />

atrapalha<strong>do</strong> naquele momento com este assunto,seja simplesmente porque tivesse<br />

uma vi<strong>da</strong> infernal, seja porque tenha pa<strong>de</strong>ci<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>ssas pequenas inibições<br />

que po<strong>de</strong>m acometer a qualquer um em diversos níveis, escritório, trabalho e, até<br />

mesmo, na cama, por que não? (LACAN, 2006, p.29)<br />

Ele prossegue nos orientan<strong>do</strong> quanto ao que <strong>de</strong>vemos vislumbrar ao transmitir na<br />

universi<strong>da</strong><strong>de</strong>: “O fim <strong>do</strong> meu ensino, pois bem, seria fazer psicanalistas à altura <strong>de</strong>sta função<br />

238


que se chama “sujeito”, porque se verifica que só a partir <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista se enxerga bem<br />

aquilo <strong>de</strong> que se trata na psicanálise” (LACAN, 2006, p.53).<br />

Assim, os universitários precisarão percorrer o longo caminho <strong>da</strong> análise, pois assim, e<br />

somente assim, ca<strong>da</strong> um po<strong>de</strong>rá saber o que é isso que se <strong>de</strong>fine como sujeito. Portanto,<br />

aquele que transmite <strong>de</strong>ve saber que nessa “introdução” o que fazemos é oferecer um<br />

arcabouço teórico que precisa se transformar em uma prá<strong>xi</strong>s, pois o conceito <strong>de</strong> sujeito se<br />

apreen<strong>de</strong> pela análise e não apenas pela teoria. Como diz Lacan no “Congresso Dito <strong>de</strong><br />

Psicanalistas <strong>de</strong> Língua Romântica”, em 1951, <strong>de</strong>vemos “<strong>do</strong>mesticar as orelhas para o termo<br />

sujeito” (LACAN, 1996, p.87), porém, isso não basta.<br />

São muitos os impasses sobre a transmissão. Entretanto, Lacan não titubeia diante<br />

eles, simplesmente diz: “não creio que haja muitos <strong>de</strong>ntre vocês que tenham acompanha<strong>do</strong> o<br />

que eu ensino (...) suponho pelo menos que as pessoas fingem ler esses Escritos, os quais,<br />

toma<strong>do</strong>s pela outra ponta, po<strong>de</strong>m se permitir se consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s ilegíveis” (2006 p.70-72). Nesse<br />

segun<strong>do</strong> trecho ele está se dirigin<strong>do</strong> aos críticos <strong>de</strong> sua obra, porém, se refere também a<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ler o que escreve já que ele não está interessa<strong>do</strong> em ditar as regras <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> fazer, e sim em <strong>de</strong>ixar claro que para o fazer em psicanálise é imprescindível um<br />

savoir-faire, que só se adquire subjetivamente. É pela análise que produz um sujeito. Ou seja,<br />

é necessário um esforço a mais para “compreen<strong>de</strong>r” o que ele escreve.<br />

Os impasses <strong>da</strong> transmissão estão na própria ‘natureza’ <strong>da</strong> linguagem. Ele diz: “Não<br />

me ilu<strong>do</strong>, um auditório, por mais qualifica<strong>do</strong> que seja, sonha enquanto estou aqui em vias <strong>de</strong><br />

esgrimir comigo mesmo. Ca<strong>da</strong> um pensa nas suas coisas, na namoradinha que vão encontrar<br />

239


<strong>da</strong>qui a pouco, no carro que soltou uma biela, alguma coisa fora <strong>do</strong> trilho” (2006, p.88). Está<br />

apontan<strong>do</strong> para a questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> quem se propõe praticar a psicanálise, e que está<br />

presente no ato e na posição <strong>do</strong> <strong>do</strong>cente e <strong>do</strong> discente.<br />

Esses questionamentos sobre o <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong>quele que transmite possibilitam submeter a<br />

experiência à crítica interna e externa. Pôr em contestação os rumos <strong>do</strong> ensino na<br />

universi<strong>da</strong><strong>de</strong> é fun<strong>da</strong>mental e a psicanálise não po<strong>de</strong> se isolar <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate científico<br />

contemporâneo, nem tratar seus conceitos teóricos como <strong>do</strong>gmas indiscutíveis.<br />

Para encerrar, nos concerne a questão proposta por Lacan (2005, p.26): "o que é<br />

ensinar, quan<strong>do</strong> se trata justamente <strong>de</strong> ensinar o que há por ensinar não apenas a quem não<br />

sabe, mas a quem não po<strong>de</strong> saber?"<br />

Referências:<br />

FORBES, J. A escola <strong>de</strong> Lacan: A formação <strong>do</strong> Psicanalista e a transmissão <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong>.<br />

São Paulo: Papirus, 1992.<br />

FREUD, Sigmund (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (novas<br />

recomen<strong>da</strong>ções sobre a técnica <strong>da</strong> psicanálise I). Obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund<br />

Freud. Edição Stan<strong>da</strong>rt Brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996. Vol. XII.<br />

JACQUES, Lacan. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />

_________. Seminário I. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1994.<br />

_________. Seminário X. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2006.<br />

_________. Meu Ensino. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2006.<br />

240


Aspectos <strong>da</strong> Relação entre Sintoma e Análise<br />

Rodney Soares 1<br />

Temos na psicanálise uma prá<strong>xi</strong>s cuja ética <strong>do</strong> inconsciente possibilita ao sujeito<br />

estabelecer uma relação junto a seu <strong>de</strong>sejo e ter acesso a uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é bastante<br />

particular para ca<strong>da</strong> um, posto que essa mesma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> se escon<strong>de</strong> no enigma <strong>do</strong> sintoma,<br />

cujo bojo carrega uma metáfora, submeti<strong>da</strong> às leis <strong>da</strong> linguagem. O sintoma é o representante<br />

<strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, contém um gozo em sua fantasia inconsciente, que o sustenta e o <strong>de</strong>fine<br />

sempre com um significa<strong>do</strong> sexual. O sintoma, na medi<strong>da</strong> em que opera o <strong>de</strong>sejo<br />

inconsciente, equivale ao enigma <strong>da</strong> diferença <strong>do</strong>s sexos, <strong>de</strong>rivan<strong>do</strong> <strong>da</strong> posição <strong>do</strong> sujeito<br />

frente ao sexual, sen<strong>do</strong> “expressão <strong>de</strong> uma fantasia sexual inconsciente masculina, por um<br />

la<strong>do</strong> e feminina, por outro” (CONSENTINO, 1996, p.18), ou seja, o significa<strong>do</strong> bissexual <strong>do</strong>s<br />

sintomas histéricos.<br />

Lacan nos ensina que o sintoma significa “o retorno como tal <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> na falha <strong>do</strong><br />

saber” (apud PIMENTEL, 2010, p.1) ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o sujeito <strong>de</strong> início na<strong>da</strong> quer saber, por isso<br />

compreen<strong>de</strong>-se que o sintoma apenas por si é insuficiente à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> para uma análise, mas<br />

sim quan<strong>do</strong> o mesmo falha e o sujeito se percebe diante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>samparo e <strong>de</strong> sua ignorância,<br />

não haven<strong>do</strong> na<strong>da</strong> mais a fazer a não ser procurar respostas a esse enigma. Nesse momento, o<br />

1 Membro <strong>da</strong> EPFCL - Brasil. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Fortaleza.rodneysoares01@gmail.com<br />

241


sintoma é captura<strong>do</strong> pela transferência e, portanto, o sujeito po<strong>de</strong> confrontar-se com a sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong> uma troca <strong>do</strong> gozo pelo saber, numa articulação entre o saber e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, na<br />

medi<strong>da</strong> mesmo que o sintoma já analítico, através <strong>da</strong> transferência, se direciona ao sujeito<br />

suposto saber, <strong>de</strong> quem espera significações – A castração produz uma per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo. Assim,<br />

“No discurso <strong>da</strong> psicanálise, o analista, na posição <strong>de</strong> objeto, convoca um sujeito particular a<br />

produzir um saber sobre sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>” (FONTENELE, 2002, p.12).<br />

Lacan, no Seminário XIV se refere ao sintoma como representante <strong>de</strong> uma estrutura:<br />

“O sintoma representa uma estrutura, é o ponto assombroso que nos indica Freud em<br />

estruturas diferentes” (apud CONDE, 2008, p.64) <strong>de</strong>ssa maneira, por revelar a forma <strong>de</strong><br />

satisfação <strong>do</strong> sujeito, o sintoma po<strong>de</strong> expor a estrutura <strong>de</strong> sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a forma pela qual<br />

o sujeito se enlaça.<br />

A técnica <strong>da</strong> psicanálise, que consiste na associação livre, solicita que o analisante fale<br />

o que lhe vier a mente, suspen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o recalcamento, produzin<strong>do</strong> o que Freud chamou <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>. Dito isso, o sujeito tem a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> romper a censura e acessar<br />

o material inconsciente. A associação livre possibilita um afrouxamento <strong>da</strong> censura,<br />

permitin<strong>do</strong> que conteú<strong>do</strong>s remotos inconscientes alcancem a consciência, sen<strong>do</strong> direciona<strong>do</strong>s<br />

ao analista, atribuin<strong>do</strong>-se o lugar <strong>de</strong> sujeito suposto saber. Destacan<strong>do</strong>-se a importância <strong>do</strong><br />

silencio <strong>do</strong> analista, cuja abstinência favorecerá o surgimento <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analisante, que<br />

então po<strong>de</strong>rá se manifestar.<br />

Quan<strong>do</strong> se procura uma análise, inicialmente, espera-se respostas, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong> fato o<br />

que se encontra são perguntas capazes <strong>de</strong> remeter o sujeito a um outro <strong>encontro</strong>, <strong>de</strong>sta feita<br />

242


com algo inespera<strong>do</strong>, o real. Sabemos que o horror <strong>do</strong> ato analítico é <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m e que <strong>de</strong><br />

forma lógica, produz efeitos “vem no lugar <strong>de</strong> um dizer pelo qual mu<strong>da</strong> o sujeito” (LACAN,<br />

J. Ornicar, n 24) Para o analista, é possível trabalhar o sintoma porque não é tu<strong>do</strong> que é puro<br />

real, mas efeito <strong>do</strong> simbólico sobre este, refleti<strong>do</strong> no imaginário. Aqui está o ponto em que o<br />

sintoma permite uma intervenção simbólica pelo analista, pois o tratamento <strong>do</strong> sintoma se<br />

efetiva em outro nível, já que é no âmbito <strong>do</strong> significante que po<strong>de</strong> ocorrer qualquer<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reformulação <strong>do</strong> fantasma que o sustenta. “O sintoma está sempre fun<strong>da</strong><strong>do</strong><br />

na e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong> significante como tal” (LACAN, 1988). Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que ao adquirir um<br />

valor simbólico ele passa a ter uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se modificar, o sujeito fala muitas vezes<br />

<strong>de</strong> um mesmo assunto, até que chega o momento em que sacrifica uma parte <strong>do</strong> gozo,<br />

utilizan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> significante para colocar uma barreira à esse gozo, sempre <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong><br />

excesso.<br />

O sintoma, enquanto porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um enigma, que contém a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, está<br />

submeti<strong>do</strong> às leis <strong>da</strong> linguagem, justamente por ser metafórico e com isso, possibilita uma<br />

per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo e conseqüentemente, uma diminuição <strong>do</strong> sofrimento. Importante ressaltar, no<br />

entanto, que há no sintoma uma característica <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> algo, porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma<br />

mensagem. Tal tentativa po<strong>de</strong> chamar a atenção <strong>do</strong> sujeito ou mesmo, incomodá-lo a ponto<br />

<strong>de</strong>le procurar uma análise. A partir <strong>de</strong>sse evento, o sintoma se constitui pois o sujeito ao<br />

pensá-lo, refere-se ao campo <strong>da</strong> linguagem, lugar <strong>de</strong> constituição <strong>do</strong> mesmo e via <strong>de</strong> acesso<br />

ao tratamento psicanalítico pois o inconsciente estrutura-se como uma linguagem.<br />

243


Em seu seminário I, trilhan<strong>do</strong> os caminhos <strong>de</strong> Freud, Lacan direciona-nos para a<br />

“forma <strong>de</strong>svia<strong>da</strong> <strong>de</strong> satisfação sexual” que indica o sintoma neurótico. O gozo, é sempre o <strong>do</strong><br />

sintoma, e é aqui que surge o <strong>de</strong>sejo, que se mostra para fazer algo contra esse gozo, negação<br />

<strong>da</strong> castração e sempre mais-<strong>de</strong>-gozar, capaz <strong>de</strong> produzir um incômo<strong>do</strong> no sujeito ao romper o<br />

regime <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> prazer e para que esse mal estar seja percebi<strong>do</strong>, é necessário que o<br />

sujeito tenha o registro <strong>da</strong> lei em operação. Para concluir, ressaltamos que é através <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito que a psicanálise irá operar, pois a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso a essa ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

está intimamente referi<strong>da</strong> ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saber e on<strong>de</strong> a escuta viabilizará<br />

uma disseminação <strong>da</strong>quilo que outrora se constituiu como excesso. On<strong>de</strong> e<strong>xi</strong>ste linguagem,<br />

ine<strong>xi</strong>ste gozo e on<strong>de</strong> há gozo, falta linguagem porquê a linguagem produz per<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo. A<br />

psicanálise é, portanto, uma experiência discursiva, na relação entre falantes, cuja melhora é<br />

uma conseqüência e nunca um objetivo.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CONDE, H. Sintoma em Lacan. São Paulo: Escuta, 2008.<br />

CONSENTINO, J. C. A concepção <strong>do</strong> sintoma em diferentes momentos <strong>da</strong> obra freudiana.<br />

In Revista <strong>da</strong> Letra Freudiana. Do sintoma ao Sinthoma, nº 17/18. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Revinter,<br />

1996.<br />

CORREA, I. A escrita <strong>do</strong> sintoma. Recife: Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Freudianos, 3ª Ed., 1997.<br />

FREUD, S. Mal-estar na civilização, Obras Psicológicas Completas, Ed. Stan<strong>da</strong>rd Brasileira,<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Editora, 1996.<br />

FONTELENE, L. A Interpretação. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 2002.<br />

LACAN, J. A direção <strong>do</strong> tratamento e os princípios <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r. In J. Lacan, Escritos. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1998.<br />

244


_________ Ornicar? n 24.<br />

_________(1953-54) O seminário. Livro I. Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1986.<br />

_________(1955-56) O seminário. Livro III. As psicoses. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1988.<br />

_________.(1956-57). O seminário. Livro IV. A relação <strong>de</strong> Objeto. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar,<br />

1995.<br />

__________(1962). O seminário. Livro IX. A i<strong>de</strong>ntificação.<br />

__________(1966-67). O seminário. Livro XIV. A lógica <strong>do</strong> fantasma.<br />

PIMENTEL, D. Transferência e ética: direção <strong>da</strong> cura. Aracajú, 2010. Disponível em:<br />

http://www.cbp.org.br Acesso em: 14.Set.10<br />

245


Psicoses Ordinárias e Atos Violentos<br />

Henrique Figuerei<strong>do</strong> Carneiro 1<br />

Ricar<strong>do</strong> Pinheiro Maia Júnior 2<br />

Na vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o Homem sempre presenciou situações violentas. Até<br />

mesmo sua constituição enquanto sujeito está carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e violência.<br />

Entretanto, nos últimos tempos, encontramos a violência vazia <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>, um<br />

esvaziamento simbólico <strong>do</strong> ato violento. A violência volta<strong>da</strong> para o próprio corpo <strong>do</strong> sujeito<br />

através <strong>do</strong>s distúrbios alimentares e <strong>do</strong>s efeitos <strong>da</strong> drogadicção e, também, a violência<br />

direciona<strong>da</strong> aos outros. Seriam resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>flação <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> significação <strong>do</strong><br />

sujeito, enfraquecimento <strong>do</strong> universo simbólico? Uma que<strong>da</strong> no Real? Acting-out ou<br />

passagens ao ato? Em muitos casos <strong>de</strong> violência é comum encontrarmos um funcionamento<br />

psíquico próprio <strong>de</strong> uma organização psicótica; mas, diferentemente <strong>da</strong>s psicoses clássicas,<br />

não observa-se manifestações sintomáticas características como <strong>de</strong>lírios ou alucinações. É<br />

nesse ponto que autores <strong>de</strong> orientação lacaniana levantam o conceito <strong>de</strong> psicose ordinária,<br />

pois esta se diferencia em várias questões <strong>da</strong> dita psicose clássica. Então, temos como<br />

1 Doutor pela Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> Comillas – Madrid (1997) e prof. titular <strong>do</strong> PPG-Psicologia <strong>da</strong> UNIFOR. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

LABIO e presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> CLIO – Associação <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>. Pesquisa<strong>do</strong>r Pq2 CNPq. Secretário Executivo e Pesquisa<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />

ANPEPP - GT Psicopatologia e <strong>Psicanálise</strong>. Membro fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>da</strong> AUPPF. Editor <strong>da</strong> Revista Mal-estar e Subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>do</strong><br />

Latin American Journal of Fun<strong>da</strong>mental Psychopathology On-line. Autor <strong>do</strong>s livros: AIDS A nova <strong>de</strong>srazão <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

(Ed. Escuta, 2000), Que Narciso é esse? (Livro eletrônico CNPq, 2007- http://www.cnpq.br/cnpq/livro_eletronico/in<strong>de</strong>x.htm)<br />

e A Soberania <strong>da</strong> clínica na psicopatologia <strong>do</strong> cotidiano - Org. - (Ed. Garamond, 2009). (Lattes:<br />

http://lattes.cnpq.br/3235805127730480) e-mail: henrique@unifor.br<br />

2 Graduan<strong>do</strong> em Psicologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza, curso inicia<strong>do</strong> em 2006. Bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica <strong>do</strong><br />

CNPq. Orientan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Prof. Henrique Figueire<strong>do</strong> Carneiro. Tema <strong>de</strong> Pesquisa Violência. Área Estu<strong>do</strong>s Psicanlíticos. Membro<br />

<strong>do</strong> LABIO - Laboratório sobre as novas formas <strong>de</strong> Inscrição <strong>de</strong> Objeto. (Lattes: http://lattes.cnpq.br/9193897293259480 ) email:<br />

ricar<strong>do</strong>pmaia@gmail.com<br />

246


objetivo <strong>de</strong>sse trabalho relacionar o conceito <strong>de</strong> psicoses ordinárias, caracterizan<strong>do</strong>-o, com as<br />

questões violentas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea, vistas como um clamor <strong>do</strong> sujeito por uma<br />

ancoragem simbólica.<br />

A psicose apresenta<strong>da</strong> por Freud e as contribuições <strong>de</strong> Lacan<br />

A partir <strong>da</strong>s consi<strong>de</strong>rações acerca <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Daniel Schreber, Freud (1969) lança<br />

o olhar sobre as psicoses e as estratégias que os psicóticos apresentam como mecanismos <strong>de</strong><br />

cura. Sen<strong>do</strong> o <strong>de</strong>lírio como uma <strong>da</strong>s principais tentativas <strong>de</strong>ssa cura ou <strong>de</strong> estabilização. Até<br />

então, a visão <strong>da</strong> clínica terapêutica <strong>da</strong>s psicoses estava estagna<strong>da</strong> na posição <strong>do</strong> psicótico em<br />

termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficitário ou como incapaz <strong>de</strong> formular associações.<br />

Freud (ibid) toma a paranóia apresenta<strong>da</strong> por Schreber como um mo<strong>do</strong> patológico<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa inconsciente. Aquilo encara<strong>do</strong> como traumático pelo psicótico não é possível <strong>de</strong><br />

uma representação e <strong>de</strong>ssa forma, esse fragmento insuportável <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é rejeita<strong>do</strong> e<br />

substituí<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>lírio. A saí<strong>da</strong> para o impasse diante <strong>da</strong> castração está no <strong>de</strong>lírio na psicose,<br />

assim como a fantasia na neurose.<br />

No entanto, Freud não avança muito na teorização sobre as psicoses, mas<br />

direciona o caminho que Lacan seguiu com a noção <strong>de</strong> que on<strong>de</strong> antes era localiza<strong>da</strong> a<br />

patologia, o <strong>de</strong>lírio em si, ali resi<strong>de</strong> a possível cura.<br />

Lacan (1988), por sua vez, fun<strong>da</strong> o mecanismo <strong>da</strong> psicose na não inscrição <strong>de</strong> um<br />

significante primordial e isso gera consequências nas funções simbólicas e suas operações<br />

posteriores. É a foraclusão <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai, essa não inscrição irá colocar o sujeito numa<br />

247


posição psicótica. Essa significação essencial ausente não permite ao sujeito nomear-se e<br />

quan<strong>do</strong> convoca<strong>do</strong> sobre o seu ser, ocorre o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento psicótico. Lacan (1998) afirma<br />

que essa condição fun<strong>da</strong>nte, quan<strong>do</strong> não inscrita, faz com que o sujeito coinci<strong>da</strong> com a<br />

imagem <strong>de</strong> si e que o Outro esteja no mesmo nível <strong>do</strong>s objetos com quais o sujeito se<br />

relaciona.<br />

A ausência <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai (Pº) e a não operação no campo <strong>da</strong> castração (Φº)<br />

provocam uma redução <strong>do</strong> sujeito ao seu organismo e sua imagem, uma apro<strong>xi</strong>mação entre os<br />

campos imaginário e simbólico. E aquilo que não se inscreve simbolicamente, retorna como<br />

alucinação no campo <strong>do</strong> real. Lacan aponta que i<strong>de</strong>ntificações imaginárias e a própria<br />

transferência po<strong>de</strong>m favorecer a uma estabilização <strong>da</strong>quilo que foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong> na psicose.<br />

Mas, qual a saí<strong>da</strong> para quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>para-se na clínica atual com diagnósticos<br />

confusos e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para i<strong>de</strong>ntificar a presença ou não <strong>de</strong> uma função paterna atuante ou<br />

<strong>de</strong> uma significação fálica?<br />

Psicose ordinárias e suas violências<br />

Há vários trabalhos que explicitam as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s vivi<strong>da</strong>s por analistas na clínica<br />

contemporânea; Campos, Gonçalvez e Amaral (2008) pontuam o quão fun<strong>da</strong>mental é o<br />

manejo transferencial nesses casos; Laen<strong>de</strong>r (2009) aponta a difícil tarefa que é chegar a um<br />

diagnóstico estrutural; e Miller (1999) realiza o apanha<strong>do</strong> geral <strong>do</strong>s casos ditos<br />

inclassificáveis para a psicanálise e aponta a <strong>de</strong>nominação <strong>da</strong>s psicoses ordinárias.<br />

248


Com os <strong>encontro</strong>s que ocorreram ao final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 90, houve uma gran<strong>de</strong><br />

troca <strong>de</strong> experiências e avanços na teoria psicanalítica, principalmente, neste campo <strong>do</strong>s casos<br />

raros e/ou difíceis. Casos que po<strong>de</strong>m apresentar pontos que tocam uma estrutura neurótica e<br />

que ao mesmo tempo apontam em direção a uma psicose (Miller, 1999).<br />

Nesses casos, não cabe pontuar a e<strong>xi</strong>stência ou não <strong>da</strong> foraclusão <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-<br />

Pai, observa-se as novas formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento, as maneiras como a transferência<br />

ocorre e as novas conversões. Os “neo<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amentos” se manifestam <strong>de</strong> forma gradual <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sligamento e <strong>de</strong>sengates <strong>do</strong> Outro e <strong>do</strong> laço social. Há um <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong>s relações <strong>do</strong> sujeito,<br />

um esvaziamento <strong>do</strong>s laços afetivos. As “neotransferências”, como aponta Rosa (2009), não<br />

estabelecem o mesmo vínculo consistente nas transferências vivi<strong>da</strong>s nas psicoses clássicas.<br />

Aqui, <strong>de</strong>ve-se estar atento para as novas maneiras <strong>de</strong> como o psicótico formaliza seus laços<br />

sociais, ocorre uma transferência fraca e fragmenta<strong>da</strong>.<br />

Já as “neoconversões” realizam a apro<strong>xi</strong>mação <strong>da</strong>s psicoses com os fenômenos<br />

liga<strong>do</strong>s ao corpo e as conversões histéricas presentes nas neuroses; entretanto, as<br />

neoconversões atuam mais numa lógica psicótica e não abrem espaços para intervenções<br />

significantes como as histéricas, são “fenômenos não interpretáveis à maneira freudiana”<br />

(ibid).<br />

Diferentemente <strong>da</strong>s psicoses clássicas, os efeitos <strong>da</strong> foraclusão <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />

não estão tão claros nas psicoses ordinárias, pois o sujeito está seguro nos suportes <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação imaginária. Há uma a<strong>de</strong>rência, uma colagem ao outro, mas sem a presença <strong>do</strong>s<br />

distúrbios <strong>da</strong> linguagem que ocorrem nas psicoses extraordinárias. Nestes casos, há uma<br />

249


presença turva <strong>do</strong> campo simbólico e que po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabar com a tamanha carga imaginária que<br />

há no inconsciente.<br />

Campos, Gonçalvez e Amaral (2008) pela sua leitura <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Miller apontam<br />

que as psicoses ordinárias apresentam quatro características essenciais: a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

sintoma – <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao funcionamento psicótico; o gozo – sempre relaciona<strong>do</strong> ao abuso <strong>do</strong>s<br />

excessos e <strong>da</strong>s omissões; a questão <strong>do</strong> corpo – as ações que atuam sobre o corpo, tais como a<br />

bulimia, anore<strong>xi</strong>a; e a quarta é o funcionamento <strong>do</strong> sujeito a partir <strong>de</strong> uma ine<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong><br />

Outro e <strong>da</strong> apro<strong>xi</strong>mação especular ao outro semelhante.<br />

Devi<strong>do</strong> a essas características que po<strong>de</strong>-se localizar, muitas vezes, uma violência<br />

volta<strong>da</strong> para si e para os semelhantes nesses casos. O gozo em excesso ou em <strong>de</strong>masia<strong>da</strong> falta<br />

repercute no real <strong>do</strong> corpo numa tentativa <strong>de</strong> localização. O sujeito ergue elementos que<br />

supram a potência fálica como na contemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>, através <strong>do</strong> discurso tecno-científico, as<br />

“bugigangas” tecnológicas estão aí para uma suplência <strong>de</strong>sse falo que ten<strong>de</strong> a zero (Φº).<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

Fica evi<strong>de</strong>nte que o analista <strong>de</strong>ve estar atento às posições que o sujeito ocupa nos<br />

laços sociais e <strong>da</strong>í li<strong>da</strong>r com os impasses encontra<strong>do</strong>s na clínica. Não <strong>de</strong>ve-se crer num<br />

esgotamento <strong>do</strong> simbólico ou num esvaziamento <strong>de</strong> significação <strong>do</strong> sujeito; ao contrário, o<br />

avanço teórico permite crer que o sujeito sempre vai tentar amarrar os campos a sua maneira.<br />

Observar as amarrações, a clínica borromeana, abre espaços para pensar que<br />

quan<strong>do</strong> o sujeito se <strong>de</strong>para com o inominável <strong>do</strong> real, ele irá usar <strong>da</strong>quilo que “tem às mãos”<br />

250


para respon<strong>de</strong>r. Ou seja, um ato violento não po<strong>de</strong> ser esgota<strong>do</strong> numa “passagem ao ato”,<br />

vazio <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve-se ter em mente que o sujeito está a procura <strong>de</strong> <strong>da</strong>r um significa<strong>do</strong><br />

àquilo.<br />

Quan<strong>do</strong> convoca<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r uma resposta sobre seu eu, o sujeito irá respon<strong>de</strong>r com<br />

aquilo que tem, seja uma significação fálica ou aquilo que ele utiliza neste senti<strong>do</strong>. O<br />

significante Φ somente ten<strong>de</strong> a zero, mas nunca se esgota, isto é, o sujeito buscará alguma<br />

potência para solucionar os impasses <strong>do</strong> eu.<br />

Referências<br />

CAMPOS, Sérgio <strong>de</strong>; GONCALVES, Sara; AMARAL, Tammy. Psicoses ordinárias. Mental,<br />

Barbacena, v. 6, n. 11, <strong>de</strong>z. 2008 . Disponível em<br />

. acessos em 16 out. 2010.<br />

FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong><br />

paranóia (<strong>de</strong>mentia paranoi<strong>de</strong>s) (1911). Obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund<br />

Freud, vol. XII. Direção <strong>de</strong> tradução Jayme Salomão, 2ª. Ed., Stan<strong>da</strong>rd Brasileira. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, Imago, 1969.<br />

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a to<strong>do</strong> tratamento possível <strong>da</strong> psicose (1959).<br />

Escritos. Tradução <strong>de</strong> Vera Ribeiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

______. O seminário. Livro 3. As psicoses (1955-1956). Tradução <strong>de</strong> Aluisio Menezes. 2ª<br />

ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1988.<br />

LAENDER, Nadja Ribeiro. Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?. Estud.<br />

psicanal., Belo Horizonte, n. 32, nov. 2009 . Disponível em<br />

. acessos em 16 out. 2010.<br />

MILLER, Jacques-Alain (Org.). La psicosis ordinária. Buenos Aires: Paidós, 1999.<br />

ROSA, Márcia. A psicose ordinária e os fenômenos <strong>de</strong> corpo. Rev. latinoam. psicopatol.<br />

fun<strong>da</strong>m., São Paulo, v. 12, n. 1, Mar. 2009 . Disponível em<br />

. acessos em 16 out. 2010.<br />

251


Entre a Síndrome e a Mãe: Marcela<br />

Esther Maynart P. Mikowski 1<br />

Este trabalho visa discutir a criança quan<strong>do</strong> vem ocupar um lugar <strong>de</strong> objeto<br />

ofereci<strong>do</strong> por aquele que exerce a função materna e <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> ela respon<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste<br />

lugar que se apresentou na clínica como consequência <strong>da</strong> história <strong>da</strong> mãe. Além disso,<br />

preten<strong>de</strong>-­‐se discutir como neste caso, a análise <strong>da</strong> criança se direcionou <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<br />

ajudá-­‐la a <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong> às suas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s às quais respondia com agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

mesmo passivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que foi possível também ao <strong>da</strong>r um lugar para que a mãe<br />

construísse um saber sobre a filha.<br />

Lacan (1968), em seu célebre texto “Nota sobre a criança” em que afirma que o<br />

sintoma <strong>da</strong> criança po<strong>de</strong> <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> mãe, diz:<br />

“...a distância entre a i<strong>de</strong>ntificação com o i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> eu e o papel<br />

assumi<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> mãe, quan<strong>do</strong> não tem mediação, <strong>de</strong>ixa a<br />

criança exposta a to<strong>da</strong>s as capturas fantasísticas. Ela se torna o<br />

'objeto' <strong>da</strong> mãe e não mais tem outra função senão a <strong>de</strong> revelar a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse objeto”.<br />

1 Membro <strong>do</strong> Projeto Freudiano – Aracaju/Se - esthermikowski@uol.com.br<br />

252


Isso posto, partimos para pensar em Marcela, 10 anos. Ela fora encaminha<strong>da</strong> para<br />

atendimento psicanalítico por conta <strong>de</strong> “dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s no relacionamento social, rebeldia e<br />

problemas com a auto-estima”. Tinha o diagnóstico médico <strong>de</strong> Síndrome <strong>de</strong> Moebius a<br />

qual é caracteriza<strong>da</strong> por uma paralisia congênita e não progressiva <strong>do</strong>s nervos cranianos<br />

VI e VII, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> atingir outros. Tal paralisia produz uma aparência facial pouco<br />

expressiva e estrabismo convergente, na maioria <strong>do</strong>s casos. Po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> também<br />

comprometer audição, visão e ocasionar disfagia e pés tortos, entre outros<br />

(FONTENELLE; ARAUJO; FONTANA, 2001). Em relação à Síndrome, Marcela apresentava<br />

paralisia facial esquer<strong>da</strong>, leve estrabismo e pés tortos.<br />

Para Julia, sua mãe, tais queixas e uma suposta limitação eram <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>ssa<br />

Síndrome. E ain<strong>da</strong> pareciam marcar Marcela como um produto <strong>da</strong> Síndrome e <strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />

que tanto a filha quanto a mãe tinham passa<strong>do</strong> na gestação. Julia engravi<strong>do</strong>u aos 17 anos<br />

<strong>de</strong> um ex-­‐namora<strong>do</strong>. Ao <strong>de</strong>scobrir a gravi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong>sespera<strong>da</strong> com este “problema nas<br />

costas” (SIC) – forma a qual Julia se referiu à gravi<strong>de</strong>z quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>scobriu, pois era assim<br />

que se sentia tão jovem–, tentou abortar fazen<strong>do</strong> uso <strong>de</strong> uma medicação conheci<strong>da</strong> pelos<br />

seus efeitos abortivos. Não abortou e só comunicou aos pais no sexto mês <strong>de</strong> gestação.<br />

Ain<strong>da</strong> nas primeiras entrevistas, Julia contou que quan<strong>do</strong> fazia ultrassonografias e<br />

segun<strong>do</strong> as mesmas o bebê estava “normal”, sabia que algo não viria “normal”. Ao<br />

nascimento <strong>de</strong> Marcela e a constatação <strong>da</strong> Síndrome <strong>de</strong> Moebius, tinha certeza que se<br />

relacionava à tentativa <strong>de</strong> aborto. Para corroborar esta sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, há indícios na<br />

253


medicina que tal síndrome talvez esteja liga<strong>da</strong> ao Misoprostrol, substância presente na<br />

medicação ingeri<strong>da</strong> por Julia.<br />

Sentin<strong>do</strong>-­‐se culpa<strong>da</strong> por to<strong>do</strong> mal e sofrimento causa<strong>do</strong> à filha, Julia tentou<br />

protegê-­‐la, cercan<strong>do</strong>-­‐a <strong>de</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s, preocupan<strong>do</strong>-­‐se <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente e como mesmo<br />

disse “crian<strong>do</strong> Marcela numa re<strong>do</strong>ma <strong>de</strong> vidro”. Acreditava ain<strong>da</strong> que sua filha seria<br />

sempre sua <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Era neste quesito que as supostas limitações apareciam: além<br />

<strong>de</strong> não avançar no <strong>de</strong>senvolvimento escolar, Marcela não casaria, não namoraria nem<br />

mesmo engravi<strong>da</strong>ria. Disse ain<strong>da</strong>: “por um tempo só <strong>de</strong>stinava 'amor <strong>de</strong> mãe' a Gabriel<br />

(seu outro filho), à Marcela, só cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e atenção, até que percebi que estava fazen<strong>do</strong> o<br />

mesmo que aconteceu comigo e tinha que mu<strong>da</strong>r”. Julia referia-­‐se a sua história -­‐ aqui<br />

assinala<strong>da</strong> para anunciar que lugar esta mãe oferecia a filha -­‐ também foi fruto <strong>de</strong> uma<br />

tentativa frustra<strong>da</strong> <strong>de</strong> aborto, nunca conheceu o pai, sua mãe lhe <strong>de</strong>ixou num colégio<br />

interno e só lhe visitava ocasionalmente, até que com 5 anos foi morar com a mãe e seu<br />

novo mari<strong>do</strong> a quem reconhecia como pai. Quan<strong>do</strong> seu irmão nasceu, não se sentia<br />

pertencente a esta família e acreditava que só ele era ama<strong>do</strong> pela mãe.<br />

Po<strong>de</strong>mos extrair <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong> Julia o que a materni<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe remetia e em<br />

consequência disso o lugar <strong>de</strong> filha que ela ofereceu à Marcela. Manter-­‐se grávi<strong>da</strong> e <strong>da</strong>r a<br />

luz a uma menina pareciam remeter às marcas <strong>do</strong> seu lugar <strong>de</strong> filha cuja relação<br />

imaginária com a materni<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>da</strong>va a partir <strong>de</strong> um “não amor <strong>de</strong> mãe” e aban<strong>do</strong>no,<br />

uma vez que, segun<strong>do</strong> ela, o amor <strong>de</strong> mãe só <strong>de</strong>stinara ao outro filho. Julia não<br />

aban<strong>do</strong>nou <strong>de</strong> fato Marcela, mas também não a consi<strong>de</strong>rou como um sujeito, <strong>de</strong>stinou a<br />

254


ela apenas cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s básicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e sobrevivência. No exercício <strong>de</strong> sua função,<br />

ofereceu a Marcela um lugar equivalente a sua extensão ou como diria Oliveira e<br />

Carvalho (1994, p. 26) uma célula narcísica <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> qual não há sensação <strong>de</strong> falta,<br />

como se um e outro estivessem completos. Tal re<strong>do</strong>ma, segun<strong>do</strong> as autoras, é possível<br />

quan<strong>do</strong> a figura materna empresta seus significantes e se apresenta como inseparável.<br />

Tal célula aqui pensa<strong>da</strong> na própria “re<strong>do</strong>ma <strong>de</strong> vidro” nomea<strong>da</strong> por Julia. A forma <strong>de</strong><br />

Marcela respon<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste lugar que lhe fora ofereci<strong>do</strong> era <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>da</strong> mãe para tu<strong>do</strong>,<br />

até mesmo escolher uma roupa ou pentear um cabelo, o que legitimava a fala <strong>de</strong> Julia:<br />

“tenho que fazer tu<strong>do</strong> por ela”. Porém, elas não estavam completas nem inseparáveis, e<br />

tal condição po<strong>de</strong> ter justamente causa<strong>do</strong> o incômo<strong>do</strong> <strong>de</strong> Júlia no tocante à materni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

pois ain<strong>da</strong> que não a tratasse tal como, Marcela era um sujeito.<br />

Portanto, Marcela nasce com uma Síndrome que remete à mãe a culpa e esta<br />

justifica assim to<strong>da</strong>s as suas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manter a filha neste lugar <strong>de</strong> objeto. Sauret<br />

(1998, p. 91) diz: “a patologia médica, a <strong>de</strong>svantagem, ganha um benefício secundário<br />

para ela, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com sua estrutura, 'para testemunhar' a culpa <strong>da</strong> mãe neurótica,<br />

servir <strong>de</strong> fetiche para a mãe perversa, encarnar uma recusa primordial <strong>da</strong> mãe<br />

psicótica”. A Síndrome <strong>de</strong> Moebius serviu por to<strong>do</strong> tempo como significante importante<br />

na constituição psíquica <strong>de</strong> Marcela. A Síndrome não só representava o Real <strong>de</strong> uma<br />

condição orgânica como ela sustentava imaginariamente a culpa <strong>da</strong> mãe por seus atos.<br />

Por sua vez, Marcela, em atendimento, <strong>de</strong>monstrou ser afetuosa, comunicativa<br />

capaz <strong>de</strong> construir vínculos sóli<strong>do</strong>s. Inicialmente, não conseguia ir além <strong>da</strong>s referências<br />

255


concretas <strong>do</strong> presente, contu<strong>do</strong>, podia ser ampara<strong>da</strong> à medi<strong>da</strong> que os outros a<br />

aju<strong>da</strong>ssem a elaborar idéias que estivessem conecta<strong>da</strong>s aos objetos já conheci<strong>do</strong>s por<br />

ela. Ou seja, aju<strong>da</strong>ssem-­‐na a perceber os objetos para além <strong>do</strong>s seus aparentes<br />

significa<strong>do</strong>s e funções. Desta forma, era possível perceber que Marcela se relacionava<br />

imaginariamente com os objetos ao re<strong>do</strong>r e tinha dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> simbolizá-­‐los. Tecla<strong>do</strong><br />

para Marcela era o <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r, o musical era um piano, não podia ser tecla<strong>do</strong><br />

também, embora analista indicasse numa sessão que esse também se chamava assim.<br />

Tinha dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s também em respon<strong>de</strong>r a perguntas que necessitassem <strong>de</strong><br />

pensamentos abstratos mais refina<strong>do</strong>s. Ela ficava extremamente ansiosa, muitas vezes<br />

nervosa, diante <strong>de</strong> perguntas caracteriza<strong>da</strong>s por ela como difíceis, por exemplo<br />

“porquês” ou <strong>de</strong>safios como <strong>de</strong>screver um <strong>de</strong>senho ou evento familiar durante o<br />

atendimento. A ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> relata<strong>da</strong>s pela escola e pela mãe se<br />

presentificavam nas sessões, ao mesmo tempo em que pareciam ser a forma que<br />

Marcela encontrava para se expressar e se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>da</strong>s situações que<br />

não sabia como li<strong>da</strong>r. Questionamentos produziam uma angústia que a <strong>de</strong>sorganizavam<br />

e sua forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar era com agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aliás, esta parecia ser carente <strong>de</strong><br />

senti<strong>do</strong>, o que por sua vez foi busca<strong>do</strong> na análise <strong>de</strong> Marcela: aju<strong>da</strong>-­‐la a construir senti<strong>do</strong><br />

ao invés <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r em ato tais dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Sobre a transferência <strong>da</strong> mãe, como foi dito, esta supunha que aquelas queixas<br />

ditas no início <strong>de</strong>ste trabalho referiam-­‐se à Síndrome <strong>de</strong> Moebius. Tal saber era<br />

direciona<strong>do</strong> à Instituição Médica como <strong>de</strong>tentor <strong>do</strong> saber sobre a mesma. Ain<strong>da</strong> nas<br />

256


primeiras entrevistas com a analista, a médica afirma a esta mãe em uma consulta que<br />

tais queixas na<strong>da</strong> tinham a ver com a Síndrome e que <strong>de</strong>veriam ser trata<strong>do</strong>s em um<br />

outro lugar (na análise).<br />

Assim, Julia chega à análise sem saber o que fazer e totalmente perdi<strong>da</strong> quanto<br />

aos cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s e limites <strong>da</strong><strong>do</strong>s à filha. A partir <strong>de</strong> então, fez <strong>de</strong> fato um pedi<strong>do</strong>: que<br />

aju<strong>da</strong>sse a ela a li<strong>da</strong>r com a filha, pois teria se <strong>da</strong><strong>do</strong> conta <strong>de</strong> que era ela quem não<br />

conseguia li<strong>da</strong>r com as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Marcela e as atribuía a Síndrome. O momento <strong>de</strong><br />

passagem <strong>de</strong>ste saber na análise é fun<strong>da</strong>mental como sinaliza<strong>do</strong>r <strong>da</strong> transferência <strong>da</strong><br />

mãe. Julia, então, fora incluí<strong>da</strong> enquanto Outro e agente <strong>da</strong> função materna. Isso pô<strong>de</strong> ser<br />

sustenta<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> analista e <strong>do</strong> laço transferencial entre esta e a mãe.<br />

A análise era <strong>de</strong> Marcela e o trabalho era incluí-la no discurso e no laço social, além<br />

<strong>de</strong> ajudá-la a <strong>da</strong>r senti<strong>do</strong> ao que lhe acontecia. No entanto, foi <strong>da</strong><strong>do</strong> também um lugar para a<br />

que mãe remetesse para si seu próprio discurso, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que isso se tornasse um projeto <strong>de</strong><br />

construção: ela construísse um saber sobre a filha e pu<strong>de</strong>sse por si encontrar outros meios <strong>de</strong><br />

li<strong>da</strong>r com as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>la. Aliás, dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>s duas, mãe e filha. A primeira em<br />

exercer a função materna diante <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> segun<strong>da</strong>. Além disso, <strong>de</strong> alguma forma,<br />

apostar em Marcela como sujeito à medi<strong>da</strong> que a analista apontava conquistas e mesmo<br />

escolhas <strong>da</strong> paciente para a mãe. Do mesmo mo<strong>do</strong> como com Marcela, foi preciso também<br />

aju<strong>da</strong>r a esta mãe a criar senti<strong>do</strong> no cotidiano e nas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> filha que apareciam como<br />

257


carentes <strong>de</strong>sse senti<strong>do</strong> e que ela acabava lhe oferecen<strong>do</strong> em atos sem senti<strong>do</strong> 2 , como amarrar o<br />

sapato que Marcela dizia não saber fazê-lo e Julia o fazia, sem se <strong>da</strong>r conta se <strong>de</strong> fato a filha<br />

tinha aprendi<strong>do</strong> ou porquê lhe pedia.<br />

Portanto, a partir <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma criança que respondia <strong>do</strong> lugar <strong>de</strong> objeto<br />

ofereci<strong>do</strong> por aquela que exerce a função materna, foi preciso uma escuta que privilegiasse<br />

Marcela e sua mãe. A análise se fazia possível para que através <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

Marcela pu<strong>de</strong>sse li<strong>da</strong>r com as coisas ao seu re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong>. E sua mãe se<br />

responsabilizar por isso foi fun<strong>da</strong>mental nessa construção <strong>da</strong> filha e para a relação entre as<br />

duas. É importante salientar que no caso discuti<strong>do</strong> uma síndrome pareceu representar um<br />

significante primordial na constituição psíquica <strong>da</strong> criança, uma vez que remeteu à mãe sua<br />

história e comprometeu com isso o exercício <strong>da</strong> função materna. Marcela parecia refletir o<br />

objeto <strong>de</strong> gozo que ela representava, o qual remetia ao fantasma materno, o que nos lembrar<br />

Sauret (1998, p. 62) ao falar sobre a condução <strong>da</strong> análise. Esta leva o analisante a <strong>de</strong>scobrir<br />

que ele mesmo é como o gozo, isto é, como objeção ao saber. Porém, estas últimas questões<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong>m um outro momento para serem discuti<strong>da</strong>s.<br />

Por fim, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> e Vieira (2002) se faz pertinente neste momento: a<br />

partir <strong>do</strong> relato <strong>do</strong> caso temos um texto que já faz o recorte <strong>do</strong> analista, com as passagens<br />

escolhi<strong>da</strong>s e privilegia<strong>da</strong>s em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento. Este caso marca a formação <strong>da</strong> analista,<br />

motivo pelo qual ele se constrói em meio a dúvi<strong>da</strong>s, anseios e <strong>de</strong>scobertas.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

FIGUEIREDO, A. C., VIEIRA, M. A. <strong>Psicanálise</strong> e ciência: uma questão <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>. In W. Beivi<strong>da</strong>s (Org.).<br />

2 A repetição <strong>do</strong> termo senti<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> que não coadune com a Língua Portuguesa, está nesta frase para<br />

enfatizar a falta <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que permeava atos e palavras <strong>de</strong>ste par mãe-criança.<br />

258


<strong>Psicanálise</strong>, pesquisa e universi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contra Capa Livraria, 2002.<br />

FONTENELLE, Lucia; ARAUJO, Alexandra Prufer <strong>de</strong> Q.C.; FONTANA, Rosiane S.. Síndrome <strong>de</strong> Moebius:<br />

relato <strong>de</strong> caso. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo, v. 59, n. 3B, Set. 2001 .<br />

LACAN, J. Nota sobre a criança. In: Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003.<br />

SAURET, Marie-­‐Jean. O infantil e a estrutura, Conferências em agosto <strong>de</strong> 1997, <strong>Escola</strong><br />

Brasileira <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>, São Paulo, 1998<br />

OLIVEIRA, B. S. A.; CARVALHO, L. B. C. O atendimento <strong>de</strong> crianças: questões sobre<br />

estrutura psicótica. In: BRAUER, J. F. (Org.). A Criança no discurso <strong>do</strong> outro: um<br />

exercício <strong>de</strong> psicanálise. São Paulo, Iluminuras. 1994<br />

259


O Homem Condutor: um Caso <strong>de</strong> Histeria Masculina?<br />

Michelle Barrocas Soares Esmeral<strong>do</strong> 1<br />

Júlio César D. Hoenisch 2<br />

O sintoma, tal como o sonho, é entendi<strong>do</strong> por Jeanneau e Perron (2005) como<br />

uma formação <strong>de</strong> compromisso por meio <strong>da</strong> qual o <strong>de</strong>sejo abre um caminho para a satisfação,<br />

mesmo que apenas parcial. Estu<strong>da</strong>r o sintoma histérico é permitir <strong>da</strong>r-se conta <strong>da</strong>s inúmeras<br />

formas com as quais se manifesta no sujeito – homem ou mulher. Os sintomas, na histeria,<br />

variam entre os mais corporais, em casos <strong>de</strong> conversão, e os mais psíquicos, nos relatos <strong>de</strong><br />

fobia (Schaeffer, 2005). Lacan (1985) afirma que “na<strong>da</strong> na anatomia nervosa recobre, seja o<br />

que for, <strong>do</strong> que é produzi<strong>do</strong> nos sintomas histéricos. É sempre <strong>de</strong> uma anatomia imaginária<br />

que se trata” (p. 204).<br />

O sintoma, fonte <strong>de</strong> gozo, basta a si mesmo. Para Nusinovici (2005), é necessário,<br />

portanto, que o sujeito perceba a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> um saber e uma causa que lhe dizem respeito, e<br />

para cujo conhecimento o analista vem a ser o suporte. Ocupan<strong>do</strong> um lugar na clínica-escola<br />

<strong>de</strong> uma universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, um homem <strong>de</strong> quarenta anos obteve esse suporte e a produção <strong>de</strong> um<br />

estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caso foi possível. As entrevistas iniciais sugeriram fortes indícios <strong>de</strong> que se tratava<br />

<strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> histeria masculina. Casa<strong>do</strong>, pai <strong>de</strong> <strong>do</strong>is filhos, ele se queixava frequentemente<br />

1 Psicóloga, Mestran<strong>da</strong> em Psicologia pela UFRN, michelleesmeral<strong>do</strong>@gmail.com<br />

2 Psicólogo, Mestre em Psicologia, Professor visitante <strong>da</strong> UEFS/BA, cesarhoenisch@gmail.com<br />

260


<strong>de</strong> me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ficar só em casa ou <strong>de</strong> sofrer violência fora <strong>de</strong>la. A busca por atendimento<br />

psicológico se <strong>de</strong>u também pelo relato <strong>de</strong> <strong>do</strong>res na cabeça, “uma sensação <strong>de</strong> estar flutuan<strong>do</strong>”<br />

(sic), e agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Freud (1974), discorren<strong>do</strong> sobre “Dostoievski e o parricídio”, analisa<br />

que “sua personali<strong>da</strong><strong>de</strong> reteve traços sádicos em abundância, os quais se mostram em sua<br />

irritabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, em seu amor <strong>de</strong> atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas<br />

que amava”. Assim também se <strong>da</strong>vam as relações entre o paciente e a família. O surgimento<br />

<strong>de</strong> tais sintomas foi associa<strong>do</strong> ao trabalho <strong>de</strong> motorista que exerceu, por <strong>do</strong>is anos, em uma<br />

empresa <strong>de</strong> ônibus. No caso <strong>do</strong> pintor Haizmann, Freud (1977) consi<strong>de</strong>ra que “ele ficara<br />

abati<strong>do</strong>, era incapaz ou não tinha disposição <strong>de</strong> trabalhar a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>mente, e estava preocupa<strong>do</strong><br />

sobre como ganhar a vi<strong>da</strong>; isso equivale a dizer que sofria <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão melancólica, com<br />

uma inibição em seu trabalho e temores (justifica<strong>do</strong>s) quanto ao seu futuro”. As preocupações<br />

<strong>do</strong> paciente com o retorno ao trabalho eram recorrentes.<br />

Alguns diagnósticos psiquiátricos lhe foram conferi<strong>do</strong>s em consultas médicas que<br />

antece<strong>de</strong>ram a entra<strong>da</strong> em atendimento: Síndrome <strong>do</strong> Pânico, Ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> e Estresse.<br />

Atualmente, uma crise <strong>de</strong> angústia po<strong>de</strong> ser rapi<strong>da</strong>mente confundi<strong>da</strong> com uma “síndrome <strong>do</strong><br />

pânico”, que, segun<strong>do</strong> Sterian (2001), aparece como a fase agu<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma neurose histérica,<br />

cujas origens estão na infância. Então, uma rápi<strong>da</strong> contextualização <strong>de</strong>ssa etapa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

sujeito faz-se imprescindível. Ain<strong>da</strong> criança, per<strong>de</strong>u a mãe e foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pelo pai, sen<strong>do</strong>,<br />

com isso, inseri<strong>do</strong> em um entorno <strong>de</strong> <strong>de</strong>safeto junto à avó e <strong>de</strong> trabalho precoce. “Guar<strong>da</strong><br />

mágoas” (sic) <strong>de</strong> muitos familiares e consi<strong>de</strong>ra difícil esquecê-las. A histeria <strong>do</strong> homem<br />

condutor po<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> na questão com o pai e na relação estabeleci<strong>da</strong> com sua<br />

posição feminina; conforme afirma Freud (1977), ain<strong>da</strong> na história <strong>de</strong> Haizmann, “com o luto<br />

261


<strong>do</strong> pintor pelo pai perdi<strong>do</strong> e a intensificação <strong>de</strong> seu anseio por ele, também suce<strong>de</strong> nele uma<br />

reativação <strong>de</strong> sua fantasia <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z há muito tempo reprimi<strong>da</strong>, e ele é obriga<strong>do</strong> a se<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>la com uma neurose e com aviltamento <strong>do</strong> pai”.<br />

As primeiras sessões eram marca<strong>da</strong>s por um silêncio inicial <strong>do</strong> paciente, quebra<strong>do</strong><br />

após a pergunta <strong>da</strong> analista sobre o que se passava em sua mente. Queixava-se <strong>da</strong> cabeça –<br />

<strong>do</strong>rmência e esquecimento – e <strong>de</strong> <strong>do</strong>res nos joelhos e pernas; alegou não dirigir a palavra ao<br />

outro até que este tome a iniciativa. Na sessão seguinte, o silêncio foi estabeleci<strong>do</strong> e a fala <strong>do</strong><br />

sujeito aguar<strong>da</strong><strong>da</strong>. Ele fitava o olhar à analista e ria, levantan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> assento e caminhan<strong>do</strong><br />

pela sala. Repetiu a cena algumas vezes, apro<strong>xi</strong>mou-se <strong>da</strong> pare<strong>de</strong> e <strong>de</strong>u golpes com a mão. A<br />

abor<strong>da</strong>gem <strong>do</strong> acting, para Sophie <strong>de</strong> Mijolla-Mellor (apud Mijolla, 2005), “avizinha-se <strong>da</strong><br />

noção <strong>de</strong> uma ação que se produz sob a pressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos inconscientes e leva a um<br />

comportamento inapropria<strong>do</strong>, até <strong>de</strong>strutivo”. A autora acrescenta que “cumpre ao<br />

psicanalista controlar, graças ao apego transferencial, os impulsos e os atos interativos <strong>do</strong><br />

paciente”.<br />

Nas sessões que se seguiram, o discurso se intensificou. O principal tema era o<br />

sofrimento por conta <strong>da</strong> empresa, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por ele como responsável central pelo<br />

a<strong>do</strong>ecimento. Levantava-se e caminhava pela sala, não interrompen<strong>do</strong> a fala. Segun<strong>do</strong> o<br />

paciente, estar senta<strong>do</strong> lembrava-lhe a função <strong>de</strong> motorista <strong>de</strong> ônibus e o angustiava mais<br />

ain<strong>da</strong>. Após questionamentos acerca <strong>da</strong> semelhança entre a ca<strong>de</strong>ira <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> atendimento e a<br />

<strong>do</strong> ônibus, ele percebeu que sua ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> era sem fun<strong>da</strong>mento, passan<strong>do</strong>, aos poucos, a<br />

permanecer senta<strong>do</strong> enquanto durasse a sessão. Em comparação com o caso <strong>do</strong> pintor<br />

Haizmann, Freud (1977) afirma que “a catástrofe nos negócios com que ele próprio se sente<br />

262


ameaça<strong>do</strong>, arremessa para cima a neurose, como um subproduto, e isso lhe conce<strong>de</strong> a<br />

vantagem <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ocultar suas preocupações sobre a vi<strong>da</strong> real por trás <strong>de</strong> seus sintomas”.<br />

Com rigor, o paciente obe<strong>de</strong>cia os horários estipula<strong>do</strong>s para ingestão <strong>do</strong>s<br />

medicamentos receita<strong>do</strong>s pelo último psiquiatra. Para aquele, o anti<strong>de</strong>pressivo, o<br />

benzodiazepínico e o neuroléptico eram os principais responsáveis por uma melhora no seu<br />

bem-estar. Quan<strong>do</strong> não mais faziam o efeito espera<strong>do</strong>, procurava trocá-los. Intervenções lhe<br />

foram feitas a fim <strong>de</strong> que compreen<strong>de</strong>sse que a ingestão <strong>de</strong> medicamentos era insuficiente,<br />

mu<strong>da</strong>nças em alguns aspectos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> também eram <strong>de</strong> suma importância. Sterian (2001)<br />

consi<strong>de</strong>ra que “fazer uma pessoa pensar em si mesma não apenas como um diagnóstico, um<br />

número ou uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, oferece-lhe a chance <strong>de</strong> reinserir-se em sua própria<br />

história <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> assumir-se enquanto sujeito <strong>de</strong> seus próprios <strong>de</strong>sejos, necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Para que, a partir <strong>da</strong>í, ela possa elaborar as limitações ou frustrações que sua<br />

e<strong>xi</strong>stência for lhe trazen<strong>do</strong>”.<br />

Sente-se faltante – “aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>” (sic) – por não ter o apoio <strong>do</strong>s pais, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />

por ele muito importantes em situações <strong>de</strong> crise. Em “Dostoievski e o parricídio”, Freud<br />

(1974) analisa que “se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume <strong>de</strong>le esses atributos<br />

e nas relações entre o ego e ele, a passivi<strong>da</strong><strong>de</strong> que se imaginava ter si<strong>do</strong> reprimi<strong>da</strong> é<br />

restabeleci<strong>da</strong>. O superego se tornou sádico e o ego se torna masoquista, isto é, no fun<strong>do</strong>,<br />

passivo, <strong>de</strong> uma maneira feminina”. Devi<strong>do</strong> ao sentimento <strong>de</strong> raiva, muito evi<strong>de</strong>nte no homem<br />

condutor, afetações com coceiras eram frequentes, ele, então, respondia ao estímulo, obtinha<br />

alívio, mas tornava a área feri<strong>da</strong>. Para Freud (1901), “nos casos mais graves <strong>de</strong> psiconeuroses,<br />

os ferimentos auto-infligi<strong>do</strong>s ocasionalmente aparecem como sintomas patológicos e, nesses<br />

263


casos, nunca se po<strong>de</strong> excluir o suicídio como um possível <strong>de</strong>sfecho <strong>do</strong> conflito psíquico”. Este<br />

último apareceu como conteú<strong>do</strong> manifesto em pelo menos duas sessões. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> suicídio<br />

seria uma forma <strong>de</strong> fuga e não enfrentamento <strong>do</strong> que lhe angustiava, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong>-se o<br />

<strong>de</strong>sinvestimento libidinal em si próprio.<br />

O contexto ao qual o paciente se submetia em seu exercício como motorista era<br />

<strong>do</strong>s mais estressantes: <strong>do</strong>rmia em média três horas diárias, testemunhava momentos <strong>de</strong><br />

assaltos e a ca<strong>da</strong> erro que cometia, ou com o passageiro ou com o ônibus, era cobra<strong>do</strong>,<br />

po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, inclusive, ter que ressarcir <strong>do</strong> salário para cobrir os gastos. Ele acreditava que estava<br />

“<strong>do</strong>ente <strong>do</strong>s nervos” (sic). Segun<strong>do</strong> Costa (1989), “a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong>s nervos estava sempre<br />

relaciona<strong>da</strong> com o trabalho: <strong>de</strong>sentendimentos com colegas ou patrões; má remuneração;<br />

condições <strong>de</strong> trabalho difíceis; ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego ou o próprio <strong>de</strong>semprego etc.”.<br />

Outros sintomas, como arrepios, tremores, agitação, insônia, irritabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, choro,<br />

foram relata<strong>do</strong>s enquanto manifestações <strong>do</strong> sentir-se ameaça<strong>do</strong> pelo outro ou pelo entorno. O<br />

homem condutor <strong>da</strong>va importância a to<strong>da</strong> ruin<strong>da</strong><strong>de</strong> circun<strong>da</strong>nte, <strong>da</strong> grama mal corta<strong>da</strong> em<br />

espaço público à poeira no móvel <strong>da</strong> casa. Com isso, não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> reclamar. Impunha-se ao<br />

outro sem pestanejar, manten<strong>do</strong>-se firme ain<strong>da</strong> se contraria<strong>do</strong>. O autor acima cita<strong>do</strong> alega que<br />

“a reação diretiva (conselhos, opiniões taxativas, discordâncias bruscas e peremptórias etc.)<br />

seria indicativa <strong>de</strong> uma intolerância sintomática à manifestação <strong>do</strong> conflito inconsciente”. A<br />

esposa tentava acalmá-lo em tais situações e partilhava <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o paciente<br />

enfrentava, como por exemplo, a impotência sexual. Embora se saiba que alguns<br />

medicamentos possam causar efeitos colaterais que atinjam a vi<strong>da</strong> sexual, Lucien Israël<br />

(1994, apud Alonso; Fuks, 2004) afirma que “os histéricos são ocasionalmente impotentes,<br />

264


mas permanentemente frígi<strong>do</strong>s: não sentem”. Quanto à frigi<strong>de</strong>z, logo no início <strong>do</strong> tratamento,<br />

ele relatou que, certa vez, o órgão peniano estava ereto e somente a parceira sentia prazer.<br />

A freqüência <strong>do</strong> paciente às sessões mostrava a falta <strong>de</strong> comprometimento com o<br />

cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> si, prejudican<strong>do</strong>, com isso, o seu quadro clínico. Duas sessões eram feitas<br />

semanalmente. Com o passar <strong>do</strong> tempo, ele aparecia na instituição apenas uma vez, e, em<br />

muitas semanas, não compareceu. Sempre teve uma justificativa para explicar a falta. Como<br />

afirma Costa (1989), “se o indivíduo crê realmente que a <strong>do</strong>ença <strong>do</strong>s nervos é uma afecção<br />

neurológica, então dificilmente aceitará a idéia <strong>de</strong> psicoterapia, e reivindicará muito<br />

naturalmente um tratamento exclusivamente medicamentoso. Estaria aí uma <strong>da</strong>s razões pelas<br />

quais se mostra tão rebel<strong>de</strong> à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> psicoterápica”.<br />

Os primeiros questionamentos incita<strong>do</strong>s sobre o homem condutor foram “o que se<br />

po<strong>de</strong> fazer com esse paciente?” e “como obter a melhora <strong>de</strong> sintomas tão emergentes?”. A<br />

agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> inicial <strong>de</strong>le era clara, temores houve acerca <strong>do</strong> uso <strong>da</strong> força física por parte <strong>do</strong><br />

paciente contra a pessoa <strong>da</strong> analista, já que a expressão <strong>de</strong> raiva transpassava a palavra. O<br />

sentimento <strong>de</strong> impotência diante <strong>de</strong>le se exten<strong>de</strong>u por muito tempo, o paciente falava<br />

repeti<strong>da</strong>mente <strong>do</strong> contexto limitante que vivenciava. Supunha o saber na analista e<br />

questionava se ficaria bom. Para ele, primeiramente, ela ocupou o lugar <strong>de</strong> irmã, para <strong>de</strong>pois,<br />

tornar-se uma amiga que o aju<strong>do</strong>u.<br />

O <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> escuta <strong>do</strong> caso propiciou àquele que busca um saber sobre si<br />

alguns momentos <strong>de</strong> retificação subjetiva e a consequente diminuição <strong>do</strong> sofrimento psíquico,<br />

uma vez que passou a vislumbrar alternativas <strong>de</strong> trabalho e manteve o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> concluir a<br />

construção <strong>da</strong> casa e <strong>da</strong> compra <strong>de</strong> um veículo, que promoveriam, assim, melhores condições<br />

265


para sua família. O manejo analítico foi cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so, ten<strong>do</strong> em vista a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

suporte que <strong>de</strong>sse conta <strong>da</strong> intensa angústia <strong>de</strong> um sujeito cujo corpo é lugar <strong>de</strong> um excessivo<br />

investimento libidinal e <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sassossego sobre sua posição no mun<strong>do</strong>.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

ALONSO, Silvia Leonor; FUKS, Mario Pablo. Histeria. São Paulo: Casa <strong>do</strong> Psicólogo, 2004.<br />

COSTA, Jurandir Freire. <strong>Psicanálise</strong> e contexto cultural: imaginário psicanalítico, grupos e<br />

psicoterapias. 2ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus, 1989. 167 pp.<br />

FREUD, Sigmund. (1901). Obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Imago. Vol. II. 1996.<br />

________ (1928). Dostoievski e o parricídio. Ed. Stan<strong>da</strong>rd Brasileira <strong>da</strong>s Obras Psicológicas<br />

Completas <strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1974, v. XXI.<br />

________ (1923a). Uma neurose <strong>de</strong>moníaca <strong>do</strong> século XVII. In Obras Completas (V. 19).<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1977.<br />

LACAN, Jacques. O seminário – Livro 3 – as psicoses. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar Ed,<br />

1985.<br />

MIJOLLA, Alain <strong>de</strong>. Dicionário internacional <strong>da</strong> psicanálise: conceitos, noções, biografias,<br />

obras, eventos, instituições. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago Ed., 2005. 2204 pp.<br />

STERIAN, Alexandra. Emergências Psiquiátricas: uma abor<strong>da</strong>gem psicanalítica. 3ª ed. São<br />

Paulo: Casa <strong>do</strong> Psicólogo, 2001.<br />

266


Da Ilusão <strong>de</strong> Completu<strong>de</strong> ao Encontro Simbólico: a Peregrinação<br />

Amorosa <strong>do</strong> Sujeito Desejante em “Uma Aprendizagem ou o Livro <strong>do</strong>s<br />

Prazeres”, <strong>de</strong> Clarice Lispector<br />

Daniel Migliani Vitorello 1<br />

Mariana Rodrigues Festucci Ferreira 2<br />

Não é mesmo com bons sentimentos que se faz Literatura: a vi<strong>da</strong> também não. Mas há algo que não é<br />

bom sentimento. É uma <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> que inclusive e<strong>xi</strong>ge a maior coragem para aceitá-la (...). Clarice<br />

Lispector em “Uma Aprendizagem ou o livro <strong>do</strong>s prazeres”, 1998 [1969], p.26.<br />

Este artigo propõe um diálogo entre a <strong>Psicanálise</strong> e a Literatura a partir <strong>do</strong> romance<br />

“Uma aprendizagem ou o livro <strong>do</strong>s prazeres”, escrito por Clarice Lispector; trata-se <strong>da</strong><br />

narrativa <strong>da</strong> peregrinação amorosa <strong>do</strong>s personagens Lóri e Ulysses, que segun<strong>do</strong> nossa leitura,<br />

metaforiza a constituição <strong>do</strong> sujeito faltante.<br />

Tanto a <strong>Psicanálise</strong> quanto a Literatura são campos <strong>do</strong> saber que se inscrevem<br />

culturalmente, li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com a experiência humana veicula<strong>da</strong> pela linguagem.<br />

A linguagem é a chave que abre as portas e que constitui a dimensão simbólica, on<strong>de</strong> é<br />

possível a ca<strong>da</strong> ser humano se diferenciar <strong>do</strong>s animais (na capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> postergar a obtenção<br />

<strong>do</strong> prazer) e mesmo entre seus semelhantes (no mo<strong>do</strong> como li<strong>da</strong> com os <strong>de</strong>s<strong>encontro</strong>s entre a<br />

linguagem e o <strong>de</strong>sejo), legitiman<strong>do</strong> um estatuto <strong>de</strong> sujeito que tem consciência acerca <strong>da</strong><br />

1 Professor <strong>do</strong> Centro Universitário Anhanguera <strong>de</strong> Santo André e Mestre em Comunicação e Semiótica<br />

pela PUC (Pontifícia Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Católica) <strong>de</strong> SP.e-mail: <strong>da</strong>nielmigliani@ig.com.br<br />

2 Graduan<strong>da</strong> em Psicologia pelo Centro Universitário Anhanguera <strong>de</strong> Santo André. e-mail:<br />

marianafestucci@yahoo.com.br / marianafestucci@hotmail.com<br />

267


própria e<strong>xi</strong>stência, e que encerra em seu âmago um conjunto <strong>de</strong> significâncias que<br />

ultrapassam qualquer saber, tornan<strong>do</strong>-o único.<br />

Em psicanálise, a linguagem opera sobre o sintoma (...) a criação literária po<strong>de</strong> ser um<br />

sintoma porque o sintoma por si só é uma invenção (...) e to<strong>da</strong> criação supõe que o<br />

simbólico suscitou uma falta no real, on<strong>de</strong> por <strong>de</strong>finição na<strong>da</strong> po<strong>de</strong> faltar (...). Assim,<br />

o sintoma cria a singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito, [submeti<strong>do</strong>, por sua vez] à gran<strong>de</strong> lei <strong>do</strong><br />

querer-ser, que (...) represa, crava o gozo, ao passo que o inconsciente o <strong>de</strong>saloja<br />

(Soler, 1998, p.16-7).<br />

A narrativa literária e a clínica psicanalítica são veículos que expressam o drama <strong>da</strong><br />

e<strong>xi</strong>stência humana, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> a falta estrutural <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong>sejante e os meios que ele<br />

utiliza para fazer suplência a esta falta, através <strong>de</strong> seus sintomas e suas construções<br />

fantasmáticas; mas ain<strong>da</strong> que se apro<strong>xi</strong>mem quanto ao campo <strong>de</strong> atuação, Literatura e<br />

<strong>Psicanálise</strong> guar<strong>da</strong>m suas especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s e autonomia.<br />

A <strong>Psicanálise</strong> apro<strong>xi</strong>ma-se <strong>do</strong> Real na leitura que faz <strong>do</strong>s sintomas que veiculam o<br />

gozo humano, a fim <strong>de</strong> produzir um saber para melhor situar o sujeito na relação com a sua<br />

falta.<br />

Já a Literatura subverte a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma criativa com a letra eleva-a<br />

<strong>de</strong> mera transmissora <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> à significante, abrin<strong>do</strong> uma litura na terra, ou seja, uma<br />

fen<strong>da</strong> para o Real, o que mobilizará ca<strong>da</strong> sujeito que entra em contato com ela a construir sua<br />

própria história.<br />

A Literatura constitui um sintoma que veicula o gozo <strong>de</strong> significa<strong>do</strong>, que retira<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

ca<strong>de</strong>ia significante, transmuta-se numa letra que é fora <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>, e conseqüentemente,<br />

real. Ela é capaz <strong>de</strong> constituir-se como um objeto, como algo novo que ultrapassa o<br />

significa<strong>do</strong>, e assim, o gozo que produz não é o gozo puro <strong>da</strong> letra, mas um gozo que,<br />

assemelhan<strong>do</strong>-se ao chiste, produz efeito <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> que irrompe <strong>do</strong> literal, in<strong>do</strong> além e<br />

268


confrontan<strong>do</strong> a intenção <strong>do</strong> sujeito; a Literatura constituiria então um “savoir-faire” <strong>da</strong> letra,<br />

que é capaz <strong>de</strong> mobilizar o conhecimento inconsciente, sem fazer o significa<strong>do</strong> ressoar<br />

(SOLER, 1998).<br />

Esse gozo, no entanto, não é pleno; ele não constitui um escu<strong>do</strong> impenetrável contra o<br />

sofrimento,pelo contrário, pois há um resto <strong>do</strong> movimento pulsional que resiste a ele, <strong>de</strong> tal<br />

forma que não se renuncia totalmente ao <strong>de</strong>sejo, mas também não se livra <strong>da</strong> angústia <strong>de</strong><br />

castração, <strong>da</strong> pulsão <strong>de</strong> morte, <strong>da</strong> atuação <strong>do</strong> supereu. Não se trata <strong>de</strong> uma conciliação simples<br />

entre o princípio <strong>do</strong> prazer e o <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e sim, <strong>de</strong> uma co-e<strong>xi</strong>stência, que se faz <strong>de</strong><br />

maneira conflituosa; trata-se <strong>de</strong> uma tentativa <strong>de</strong> se organizar em torno <strong>do</strong> vazio que marca o<br />

sujeito.<br />

Lacan postulava que a arte literária inscrevia a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito sem <strong>da</strong>r-se conta<br />

disso, e que buscar um senti<strong>do</strong> único para esta ver<strong>da</strong><strong>de</strong> constituía um reducionismo;<br />

reportan<strong>do</strong>-se a Freud (que afirmava que na matéria com a qual a <strong>Psicanálise</strong> li<strong>da</strong>va, o artista<br />

sempre a precedia) ele recomen<strong>do</strong>u portar-se perante o texto literário como um não-saber: “na<br />

berlin<strong>da</strong>, é pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>les [<strong>do</strong> que os textos literários veiculam] que espero” (Lacan, 2003<br />

[1971], p.13).<br />

A arte criativa vai além <strong>do</strong> sonho, e <strong>de</strong> outras formações <strong>do</strong> inconsciente; ela atua<br />

como uma saí<strong>da</strong> sublimatória que realiza uma <strong>de</strong>ssexualização <strong>da</strong>s pulsões sem recorrer aos<br />

processos <strong>de</strong> recalcamento, regressão e foraclusão, representan<strong>do</strong> uma saí<strong>da</strong> que universaliza<br />

a satisfação encontra<strong>da</strong> pelo artista, através <strong>da</strong> substituição <strong>de</strong> um objeto sexual por outro<br />

objeto, <strong>de</strong> valor social:<br />

Importa antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> dissimular o egoísmo <strong>do</strong>s pensamentos <strong>do</strong> sonho e a tendência<br />

natural <strong>do</strong> eu a neles atribuir a si mesmo o papel <strong>de</strong> herói, atrain<strong>do</strong> o leitor (...) através<br />

269


<strong>de</strong> um prazer puramente formal e que Freud chama <strong>de</strong> “prêmio <strong>da</strong> sedução”. Como o<br />

cria<strong>do</strong>r dá a impressão <strong>de</strong> que está se entregan<strong>do</strong> a um simples jogo, que parece<br />

exemplarmente lícito, a testemunha po<strong>de</strong> esquecer a que ponto esse jogo po<strong>de</strong> ser<br />

sério, isto é, a que ponto está carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> afetos (Kaufmann, 1996 [1993], p. 500-<br />

501).<br />

A arte criativa não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações transferenciais que lhe confiram senti<strong>do</strong>; ela<br />

não convoca um ouvinte, está lá por si mesma, para quem quiser <strong>de</strong>la se apropriar. Do contato<br />

com a arte, o sujeito se mobiliza a encontrar um senti<strong>do</strong> por si mesmo, toman<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

empréstimo as criações <strong>do</strong> artista para <strong>da</strong>r vazão aos seus próprios anseios.<br />

Além disso, o texto literário permite ao sujeito se confrontar com a castração, mas sem<br />

evocar to<strong>do</strong> o terror que o contato direto com o inominável suscitaria; ele o faz <strong>de</strong> maneira<br />

suaviza<strong>da</strong>, possibilitan<strong>do</strong> que o sujeito li<strong>de</strong> com o insuportável, relativize a <strong>do</strong>r <strong>da</strong> falta sem<br />

negar a castração, ou em outras palavras: finja a <strong>do</strong>r.<br />

Por isso é que perante a arte, bem como to<strong>do</strong> o sofrimento que o sujeito expressa, cabe<br />

a <strong>Psicanálise</strong> compartilhar <strong>do</strong> enigma, controlan<strong>do</strong> os impulsos <strong>de</strong> atribuir relações <strong>de</strong> causa e<br />

efeito, ou <strong>de</strong> cessar a causa <strong>da</strong> <strong>do</strong>r; a <strong>Psicanálise</strong> prima que o sujeito se haja com o seu<br />

sofrimento, ao invés <strong>de</strong> suprimi-lo; conforme aponta Lóri, personagem <strong>do</strong> romance “Uma<br />

aprendizagem...”:<br />

(...) não se podia cortar a <strong>do</strong>r — senão se sofreria o tempo to<strong>do</strong>. E ela havia corta<strong>do</strong><br />

sem sequer ter outra coisa que em si substituísse a visão <strong>da</strong>s coisas através <strong>da</strong> <strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />

e<strong>xi</strong>stir, como antes. Sem a <strong>do</strong>r, ficara sem na<strong>da</strong>, perdi<strong>da</strong> no seu próprio mun<strong>do</strong> e no<br />

alheio sem forma <strong>de</strong> contato (Lispector, 1998 [1969], p.18).<br />

O sujeito que recusa a incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> Outro, dispon<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa maneira o princípio <strong>do</strong><br />

prazer e o <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em pólos antagônicos, tenta a qualquer custo expulsar a angústia <strong>da</strong><br />

castração, o que só agrava o seu sofrimento; nesse senti<strong>do</strong>, tanto a Literatura quanto a<br />

270


<strong>Psicanálise</strong> propõem a reintegração <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo à e<strong>xi</strong>stência humana, conduzin<strong>do</strong> o sujeito a<br />

<strong>de</strong>scobrir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si mesmo formas <strong>de</strong> metaforizar sua falta constitutiva (KEHL, 2009).<br />

Clarice Lispector e Jacques Lacan, na estreita relação que mantinham com as Artes -<br />

mais intimamente com a Literatura, tentavam costurar em torno <strong>do</strong> vazio que gera a angústia.<br />

- “Eu tenho à medi<strong>da</strong> que <strong>de</strong>signo – este é o esplen<strong>do</strong>r <strong>de</strong> se ter uma linguagem. Mas<br />

eu tenho muito mais à medi<strong>da</strong> que não consigo <strong>de</strong>signar. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é a matériaprima,<br />

a linguagem é o mo<strong>do</strong> como vou buscá-la – e como não acho. Mas é <strong>do</strong> buscar<br />

e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A<br />

linguagem é o meu esforço humano. Por <strong>de</strong>stino tenho que ir buscar e por <strong>de</strong>stino<br />

volto com as mãos vazias: mas – volto com o indizível. O indizível só me po<strong>de</strong>rá ser<br />

<strong>da</strong><strong>do</strong> através <strong>do</strong> fracasso <strong>da</strong> minha linguagem. Só quan<strong>do</strong> falha a construção é que<br />

obtenho o que ela conseguia”.3<br />

- “É justamente por esse impossível que a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> provém <strong>do</strong> Real (...) digo sempre a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>: não to<strong>da</strong>, porque dizê-la to<strong>da</strong> não se consegue. Dizê-la to<strong>da</strong> é impossível,<br />

materialmente: faltam as palavras”.4<br />

- “Porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar a vi<strong>da</strong>. E sem<br />

mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> se ter<br />

a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> (...). Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar<br />

à enorme surpresa que sentirei com a pobreza <strong>da</strong> coisa dita”.5<br />

-“Para nós se trata <strong>de</strong> tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por<br />

ausência <strong>da</strong> única parte <strong>do</strong> real que não po<strong>de</strong> vir a se formar em ser”.6<br />

Num primeiro momento tem-se a impressão <strong>de</strong> que o trecho acima é o recorte <strong>de</strong> uma<br />

conversa entre <strong>do</strong>is sujeitos; tratam-se, entretanto, <strong>de</strong> excertos <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Lispector e Lacan,<br />

que ao sugerirem um diálogo, o fazem contigencialmente, pois ain<strong>da</strong> que estivessem inseri<strong>do</strong>s<br />

num mesmo perío<strong>do</strong> histórico, não há evidências <strong>de</strong> que tenham ti<strong>do</strong> contato com a obra um<br />

<strong>do</strong> outro. Ele pela clínica, ela pelo texto, tentavam tricotar uma teia <strong>de</strong> significantes em torno<br />

<strong>do</strong> vazio <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> por “<strong>da</strong>s Ding”, o objeto <strong>do</strong> gozo impossível, para sempre perdi<strong>do</strong>.<br />

3 Clarice Lispector, em “A Paixão segun<strong>do</strong> G.H.”, 1998.<br />

4 Jacques Lacan em “Televisão”, 1974.<br />

5 Clarice Lispector em “Água-viva”, 1973.<br />

6 Jacques Lacan, no seminário XX, “Mais-ain<strong>da</strong>”, 1982, 66p.<br />

271


Lacan concebe a falta como uma mola que mantém a relação <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong>sejante com<br />

o mun<strong>do</strong>; na busca por uma satisfação passa<strong>da</strong> e ultrapassa<strong>da</strong> “o novo objeto é procura<strong>do</strong> e<br />

encontra<strong>do</strong>, mas nunca é o mesmo objeto, nem po<strong>de</strong>ria sê-lo, pois é encontra<strong>do</strong> e apreendi<strong>do</strong><br />

em outra parte e não no ponto on<strong>de</strong> é procura<strong>do</strong>” (Plastino, 2008, p.70); ele é o objeto<br />

perdi<strong>do</strong>, “<strong>da</strong>s Ding”, a Coisa, representa<strong>do</strong> pela Mãe, a partir <strong>da</strong> on<strong>de</strong> se tricotará uma teia <strong>de</strong><br />

significantes que o ocultam.<br />

Diz Ulysses para Lóri em: “Uma aprendizagem...”:<br />

(...) uma <strong>da</strong>s coisas que aprendi é que se <strong>de</strong>ve viver apesar <strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong>, se <strong>de</strong>ve<br />

comer. Apesar <strong>de</strong>, se <strong>de</strong>ve amar. Apesar <strong>de</strong>, se <strong>de</strong>ve morrer. Inclusive muitas vezes é<br />

o próprio apesar <strong>de</strong> que nos empurra para a frente. Foi o apesar <strong>de</strong> que me <strong>de</strong>u uma<br />

angústia que insatisfeita foi a cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> minha própria vi<strong>da</strong> (Lispector, 1998 [1969],<br />

p.12).<br />

Em Eros, o sujeito inicialmente é marca<strong>do</strong> pela ilusão <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> que o remete ao<br />

esta<strong>do</strong> primordial <strong>do</strong> gozo absoluto, <strong>de</strong>pois evolui pela via simbólica, que o situa na sua<br />

incompletu<strong>de</strong>; tal percurso é atravessa<strong>do</strong> imaginariamente por Lóri e Ulisses, personagens <strong>de</strong><br />

“Uma Aprendizagem ou o livro <strong>do</strong>s Prazeres”.<br />

Lóri é uma professora primária que não se permitia envolver-se afetuosamente com as<br />

pessoas por me<strong>do</strong> <strong>de</strong> sofrer, viven<strong>do</strong> alheia; voltan<strong>do</strong>-se para si mesma, ela só se <strong>de</strong>parava<br />

com o vazio:<br />

Mas ah, a falta <strong>de</strong> se<strong>de</strong> (...). A humani<strong>da</strong><strong>de</strong> lhe era como morte eterna que no entanto<br />

não tivesse o alívio <strong>de</strong> enfim morrer (...).Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem<br />

contração. Não havia grito (...).. Dor? Nenhuma. Nenhum sinal <strong>de</strong> lágrima e nenhum<br />

suor(...). Na<strong>da</strong> escorria. A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> era uma coisa para<strong>da</strong>. E uma jóia diamante (...)<br />

tu<strong>do</strong> isso é a morte para<strong>da</strong>, é a Eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> trilhões <strong>de</strong> anos <strong>da</strong>s estrelas e <strong>da</strong> Terra, é<br />

o cio sem <strong>de</strong>sejo, os cães sem ladrar (Lispector, 1998 [1969], p.10-1).<br />

Ela então conhece Ulisses, professor universitário que casualmente aparece em sua<br />

vi<strong>da</strong>. Lór tenta seduzir Ulisses (lembremos que seu nome remonta a Loreley, figura mítica <strong>do</strong><br />

folclore alemão que seduzia os pesca<strong>do</strong>res e os levava para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar). Ela “sucumbia a<br />

272


uma completa irresponsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>: (...) ser possuí<strong>da</strong> por Ulisses sem ligar-se a ele, como<br />

fizera com os outros” (Lispector, 1998 [1969], p.20).<br />

Lóri na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> não seduz ninguém – pelo contrário, acha-se seduzi<strong>da</strong>, pois vive à<br />

procura <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> agra<strong>da</strong>r um homem e assim ver o <strong>de</strong>sejo por ela manifesta<strong>do</strong>.<br />

Ulisses (lembremos que seu nome remonta ao personagem <strong>da</strong> tragédia grega Odisséia,<br />

que venceu os obstáculos com o uso <strong>da</strong> inteligência e controle <strong>do</strong>s instintos) resiste ás<br />

investi<strong>da</strong>s sedutoras <strong>de</strong> Lóri e acaba mobilizan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> que nenhum <strong>do</strong>s cinco<br />

amantes que ela tivera até então haviam feito.<br />

Quan<strong>do</strong> Lóri conhece Ulisses, ela imagina que ele a completa, que ele seja o porta-voz<br />

<strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua e<strong>xi</strong>stência: “era como se Ulisses tivesse uma resposta para tu<strong>do</strong>”<br />

(Lispector, 1998 [1969], p.10).<br />

“Aquele sábio estranho que no entanto não parecia adivinhar que ela queria amor”<br />

(Lispector, 1998 [1969] p.8), como to<strong>da</strong> histérica, não correspon<strong>de</strong> a sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong>.<br />

Ten<strong>do</strong> naufraga<strong>da</strong> a esperança <strong>de</strong> que Ulisses <strong>de</strong>sse um senti<strong>do</strong> a sua e<strong>xi</strong>stência,<br />

conferin<strong>do</strong>-lhe a plenitu<strong>de</strong> – “Quan<strong>do</strong> esta [esperança] morreu, ao ver que ele não tinha a<br />

menor intenção <strong>de</strong> ensinar-lhe um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> viver”, Lóri se reconhece como sujeito <strong>de</strong>sejante<br />

– “já era tar<strong>de</strong>: estava presa a ele porque queria ser <strong>de</strong>seja<strong>da</strong>” (Lispector, 1998 [1969] p.18).<br />

Ulisses não correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> Lóri e assim lhe faz li<strong>da</strong>r com a sua própria<br />

falta. Lóri acaba reconhecen<strong>do</strong> que “um ser não transpassa o outro como sombras que se<br />

trespassam” (Lispector, 1998 [1969], p.20). De <strong>do</strong>is não se fazia um; ela seria para sempre<br />

273


faltante. E o reconhecimento <strong>de</strong>ssa falta colocou em causa o seu <strong>de</strong>sejo, impulsionan<strong>do</strong>-a a se<br />

movimentar: “Tu<strong>do</strong> isso ela já apren<strong>de</strong>ra através <strong>de</strong> Ulisses. Antes ela evitara sentir. Agora<br />

tinha (...) já (...) leves incursões pela vi<strong>da</strong>” (Lispector, 1998 [1969], p. 15).<br />

Antes <strong>de</strong> se apro<strong>xi</strong>mar <strong>de</strong> Ulisses, Lóri encarava a morte como algo que colocaria um<br />

termo ao vazio que representava a sua vi<strong>da</strong>; <strong>de</strong>pois que por amor colocou em causa o seu<br />

<strong>de</strong>sejo, ela “pensou por um instante se a morte interferiria no pesa<strong>do</strong> prazer <strong>de</strong> estar viva.<br />

(...) nem a idéia <strong>de</strong> morte conseguia perturbar o in<strong>de</strong>limita<strong>do</strong> campo escuro on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />

palpitava grosso, pesa<strong>do</strong> e feliz. A morte per<strong>de</strong>ra a glória” (Ibi<strong>de</strong>m, p.81). Lóri, que até então<br />

vivera alheia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, passa a estabelecer vínculos afetivos, se entregan<strong>do</strong> com prazer a<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ensinar seus alunos. Antes ela não sentia o “gosto” <strong>da</strong>s coisas, vivia<br />

automaticamente, mas agora:<br />

Lóri entrava, ela própria em agasalho com as crianças (...)falou-lhes que aritmética<br />

vinha <strong>de</strong> "arithmos" que é ritmo, que número vinha <strong>de</strong> "nomos" que era lei e norma,<br />

norma <strong>do</strong> fluxo universal <strong>da</strong> criança. Era ce<strong>do</strong> <strong>de</strong>mais para lhes dizer isso, mas gozava<br />

<strong>do</strong> prazer <strong>de</strong> falar-lhes, queria que eles soubessem, através <strong>da</strong>s aulas <strong>de</strong> português, que<br />

o sabor <strong>de</strong> uma fruta está no contato <strong>da</strong> fruta com o pala<strong>da</strong>r e não na fruta mesmo.Não<br />

havia aprendizagem <strong>de</strong> coisa nova: era só a re<strong>de</strong>scoberta. E chovia muito esse inverno.<br />

Então usou a outra mesa<strong>da</strong> <strong>do</strong> pai e procurou — com que prazer an<strong>da</strong>va pelas lojas<br />

procuran<strong>do</strong> até achar — e procurou e comprou para to<strong>do</strong>s os alunos e alunas <strong>de</strong> sua<br />

classe, guar<strong>da</strong>-chuvas vermelhos e meias <strong>de</strong> lã vermelha.Era assim que ela afogueava<br />

o mun<strong>do</strong> (Lispector, 1998 [1969], p.53-54).<br />

Lóri estava “caminhan<strong>do</strong> com as próprias pernas”; quan<strong>do</strong> vai ao <strong>encontro</strong> <strong>de</strong> Ulisses,<br />

ao contrário <strong>do</strong> que fazia antes (quan<strong>do</strong> colocava vesti<strong>do</strong>s sensuais e excesso <strong>de</strong> maquiagem,<br />

pensan<strong>do</strong> em formas <strong>de</strong> seduzí-lo) “Ela nem precisava pensar no que ia vestir (...) assim<br />

<strong>encontro</strong>u-a ele e olhou-a com admiração: ela estava extravagante e bela” (Lispector, 1998<br />

[1969], p.54).<br />

274


Ulisses consi<strong>de</strong>ra que Lóri está pronta e então manifesta o <strong>de</strong>sejo que tanto tempo<br />

guar<strong>da</strong>ra em silêncio: “Agora eu quero o que você é, e você quer o que eu sou” (Ibi<strong>de</strong>m,<br />

p.74).<br />

É aí que os <strong>do</strong>is amantes se entregam ao <strong>encontro</strong> amoroso,faltoso por excelência:<br />

Nunca um ser humano tinha esta<strong>do</strong> mais perto <strong>de</strong> outro ser humano. E o prazer <strong>de</strong><br />

Lóri era o <strong>de</strong> enfim abrir as mãos e <strong>de</strong>ixar escorrer sem avareza o vazio-pleno que<br />

estava antes encarniça<strong>da</strong>mente pren<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-a. E <strong>de</strong> súbito o sobressalto <strong>de</strong> alegria:<br />

notava que estava abrin<strong>do</strong> as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem<br />

perigo! Eu não estou per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> na<strong>da</strong>! Estou enfim me <strong>da</strong>n<strong>do</strong> e o que me acontece<br />

quan<strong>do</strong> eu estou me <strong>da</strong>n<strong>do</strong> é que recebo, recebo. Cui<strong>da</strong><strong>do</strong>, há o perigo <strong>do</strong> coração<br />

estar livre? Percebeu, enquanto alisava <strong>de</strong> leve os cabelos escuros <strong>do</strong> homem,<br />

percebeu que nesse seu espraiar-se é que estava o prazer ain<strong>da</strong> perigoso <strong>de</strong> ser. No<br />

entanto vinha uma segurança estranha também: vinha <strong>da</strong> certeza súbita <strong>de</strong> que sempre<br />

teria o que gastar e <strong>da</strong>r. Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a<br />

sua alma, e gastá-lo em nome <strong>de</strong> um homem e <strong>de</strong> uma mulher (...)Depois que Ulisses<br />

fora <strong>de</strong>la, ser humana parecia-lhe agora a mais acerta<strong>da</strong> forma <strong>de</strong> ser um animal vivo.<br />

E através <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Ulisses, ela enten<strong>de</strong>u enfim a espécie <strong>de</strong> beleza que<br />

tinha. Era uma beleza que na<strong>da</strong> e ninguém po<strong>de</strong>ria alcançar para tomar, <strong>de</strong> tão alta,<br />

gran<strong>de</strong>, fun<strong>da</strong> e escura que era. (Lispector, 1998 [1969] p.77-81).<br />

Há, portanto, um amor para além <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação, <strong>da</strong> ilusão <strong>de</strong> completu<strong>de</strong> que remete<br />

ao gozo primordial: “o ser ama<strong>do</strong> absoluto <strong>de</strong> quem o apaixona<strong>do</strong> passa a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

maneira tão completa que sua falta faz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>serto – este mun<strong>do</strong> po<strong>de</strong><br />

ganhar vi<strong>da</strong>” (Kehl, 2009, p.549).<br />

O amor, numa leitura lacaniana, implica na falta, no <strong>encontro</strong> sempre faltoso; ele visa<br />

atingir a falta que resi<strong>de</strong> no núcleo <strong>do</strong> objeto, objeto este trabalha<strong>do</strong> na dialética com o Outro,<br />

objeto que está mais-além <strong>de</strong> si mesmo, que se inscreve como falta simbólica, pois foi<br />

trabalha<strong>do</strong> pelo significante.<br />

“Uma Aprendizagem ou o livro <strong>do</strong>s prazeres” contextualiza a peregrinação <strong>do</strong>s<br />

amantes pelos <strong>de</strong>sertos <strong>do</strong> imaginário até o <strong>encontro</strong> <strong>do</strong> oásis simbólico, on<strong>de</strong> se tornam<br />

275


capazes <strong>de</strong> promoverem um <strong>encontro</strong> faltoso, se reconhecen<strong>do</strong> como sujeitos <strong>de</strong>sejantes; para<br />

tal <strong>encontro</strong> é que tanto Literatura quanto <strong>Psicanálise</strong> convergem com seus campos <strong>de</strong><br />

atuação.<br />

Referencial bibliográfico:<br />

KAUFMANN, p. Dicionário enciclopédico <strong>de</strong> psicanálise: o lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> freud a Lacan. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro:Jorge Zahar, 1996 [1993], 785p.;<br />

KEHL, M.R. A psicanálise e o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong>s paixões. In: NOVAES, A. Os senti<strong>do</strong>s <strong>da</strong> paixão.<br />

São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2009. 537-68p;<br />

LACAN, J. Lituraterra e Televisão. In: Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar, 2003;<br />

_______. Seminário XX: mais-ain<strong>da</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1982;<br />

LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro <strong>do</strong>s prazeres [versão digital]. 5ª ed. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Rocco, 1998 [1969];<br />

______. Água-viva. São Paulo: Círculo <strong>do</strong> Livro, 1973. 118p;<br />

________. A paixão segun<strong>do</strong> G.H. 6ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1998. 180p;<br />

MARCOS, C. Do que se po<strong>de</strong> ler em Clarice Lispector: sublimação e feminino. Disponível<br />

em: www.scielo.com.br. Acesso em: 10 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009;<br />

PLASTINO, G. O discurso <strong>da</strong> falta em Clarice Lispector: laços <strong>de</strong> família. 2ª ed. Osasco:<br />

Edifieo, 2008. 164p; SOLER, C. A psicanálise na civilização. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contracapa,<br />

1998.<br />

276


Sintoma, Sinthome e Final <strong>de</strong> Análise<br />

Roseane Freitas Nicolau 1<br />

O sinthome é a última escrita que Lacan propõe para o sintoma. A mu<strong>da</strong>nça na<br />

ortografia <strong>do</strong> termo recoloca o postula<strong>do</strong> <strong>do</strong> sintoma como formação <strong>do</strong> inconsciente,<br />

passan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>signá-lo como aquilo que bor<strong>de</strong>ja o buraco <strong>da</strong> castração, no qual o sujeito se<br />

sustenta. Sublinha também a diferença entre sintoma mórbi<strong>do</strong> e sinthome invenção. O<br />

sintoma mórbi<strong>do</strong> tem a estrutura <strong>de</strong> uma metáfora que vem suprir a metáfora <strong>do</strong> Pai. Já o<br />

sinthome é <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> invenção a partir <strong>da</strong> irredutível père-version, com a função <strong>de</strong><br />

compensar a carência <strong>do</strong> pai. Esta distinção tem conseqüências clínicas importantes para<br />

pensar a direção <strong>da</strong> cura e o final <strong>de</strong> análise, pois assinala a travessia <strong>da</strong> análise como marca<strong>da</strong><br />

pelo tempo <strong>do</strong> <strong>encontro</strong> com o real, on<strong>de</strong> um dizer se sustenta a partir <strong>do</strong> impossível.<br />

Proponho seguir os trilhamentos <strong>de</strong> Lacan sobre o sintoma para trabalhar a travessia <strong>de</strong> uma<br />

análise como correlativa à passagem <strong>do</strong>s sintomas mórbi<strong>do</strong>s ao sinthome, tronco <strong>da</strong> estrutura<br />

particular <strong>de</strong> um sujeito, lugar <strong>de</strong> sua sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

O sintoma <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como metáfora e concebi<strong>do</strong> como efeito <strong>da</strong> estrutura respon<strong>de</strong> à<br />

questão <strong>do</strong> inconsciente estrutura<strong>do</strong> como linguagem, conten<strong>do</strong> uma mensagem cifra<strong>da</strong> a qual<br />

po<strong>de</strong> ser dissolvi<strong>da</strong> graças à interpretação. Lacan dá ao sintoma estatuto <strong>de</strong> uma formação<br />

significante, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-o, como Freud, uma mensagem cifra<strong>da</strong> em código à espera <strong>de</strong><br />

1 Psicanalista, professora adjunta <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> UFPA e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Pesquisa<br />

“<strong>Psicanálise</strong>, sintoma e instituição”.<br />

277


interpretação. En<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> ao Outro, o sintoma recebia <strong>de</strong>ssa instância significação. Temos<br />

então que o sintoma é um saber que se lê, o que aponta a uma dimensão <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, mas que,<br />

enquanto saber, diz <strong>de</strong> um impossível. Por isso, mal gra<strong>do</strong> a interpretação, um sintoma não se<br />

dissolve. Porque o sintoma insiste? A resposta <strong>de</strong> Lacan é: por causa <strong>do</strong> gozo.<br />

Inicialmente, Lacan isolou a dimensão <strong>do</strong> gozo em termos <strong>de</strong> fantasma, que se<br />

encontra na origem <strong>da</strong> repetição sintomática. Assim, ele opôs sintoma e fantasma a partir <strong>de</strong><br />

traços distintivos, estabelecen<strong>do</strong> uma relação <strong>do</strong> sintoma com o significante e <strong>da</strong> fantasia com<br />

o objeto. A partir disso, na clínica, encontramos uma motili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sintoma, porque está<br />

inscrito na ca<strong>de</strong>ia significante, e uma fi<strong>xi</strong><strong>de</strong>z <strong>da</strong> fantasia, porque remete a uma cena. A<br />

fantasia é então o que há <strong>de</strong> real na experiência <strong>de</strong> uma análise, pois se trata <strong>de</strong> um resíduo,<br />

um resto <strong>do</strong> qual é impossível falar. Ela concerne à estrutura <strong>do</strong> sujeito, por isso não se<br />

modifica. Já o sintoma tem por função tamponar o fantasma, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> por ele e por<br />

isso mesmo é por ele que se po<strong>de</strong>rá ler algo <strong>da</strong> fantasia <strong>do</strong> sujeito. Por isso, o analista trata o<br />

sintoma sem o liqui<strong>da</strong>r, pois há algo <strong>de</strong>le que permanece e opera sobre o gozo propician<strong>do</strong> a<br />

travessia <strong>do</strong> fantasma. A construção <strong>do</strong> fantasma em uma análise perpassa a questão <strong>do</strong> saber,<br />

intervin<strong>do</strong> sobre a ignorância <strong>do</strong> sujeito a respeito <strong>de</strong> sua causa. Neste percurso, construir<br />

equivale ao esvaziamento <strong>de</strong> gozo <strong>do</strong> sintoma, surgin<strong>do</strong> com ele algo que aponte ao <strong>de</strong>sejo.<br />

Com esta noção a direção <strong>da</strong> cura visava um ultrapassamento <strong>do</strong> sintoma, para que através <strong>de</strong><br />

uma construção o sujeito pu<strong>de</strong>sse atravessar o fantasma.<br />

À questão <strong>da</strong> insistência <strong>do</strong> sintoma, Freud dá a pista, apontan<strong>do</strong> o sintoma como uma<br />

saí<strong>da</strong> precária, mas a única que po<strong>de</strong> garantir uma certa or<strong>de</strong>nação ao sujeito. Ti<strong>do</strong> por Freud<br />

278


como um arranjo entre <strong>de</strong>sejo inconsciente e e<strong>xi</strong>gências <strong>de</strong>fensivas, ele jamais será elimina<strong>do</strong>,<br />

pois é a própria divisão <strong>do</strong> sujeito que o produz.<br />

Em 1974, ao introduzir o nó borromeano em seu ensino, Lacan enlaça a enunciação<br />

freudiana <strong>do</strong> inconsciente e sua consistência com o sintoma. O nó borromeano escreve o<br />

sintoma, uma invenção que eno<strong>da</strong> os três registros – Real, Simbólico, Imaginário – implica<br />

uma equivalência <strong>do</strong>s três elos e mantém como suporte a estrutura <strong>do</strong> sujeito. O nó é feito por<br />

<strong>do</strong>is círculos apenas sobrepostos, ata<strong>do</strong>s por um terceiro, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, quan<strong>do</strong> um é rompi<strong>do</strong>,<br />

os outros <strong>do</strong>is ficam soltos. Mas o nó borromeano mínimo <strong>de</strong> três não é suficiente para Lacan<br />

enquanto resposta ao que mantém uni<strong>do</strong> R, S e I. A pergunta pelo que eno<strong>da</strong> vai em busca <strong>de</strong><br />

um organiza<strong>do</strong>r, que será um quarto elemento. A resposta aparece sob a forma <strong>do</strong> que,<br />

segun<strong>do</strong> Lacan, Freud chamou <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica, que engloba o fantasma, isto é, <strong>de</strong>sejo e<br />

gozo, ou o que Lacan teorizou como o Nome-<strong>do</strong>-Pai. O quaro realiza uma função <strong>de</strong><br />

suplemento em relação aos outros três; reúne-os, mas mantém uma exteriori<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não faz<br />

complemento. Sustenta o buraco <strong>da</strong> não-relação sexual.<br />

Assim, nas últimas colocações <strong>do</strong> Seminário R.S.I (1974-1975), Lacan introduz um<br />

quarto elo, o <strong>do</strong> Nome <strong>do</strong> Pai ou o Sinthome, atribuin<strong>do</strong>-lhe o papel <strong>de</strong> amarrar <strong>de</strong> forma<br />

diferente as três consistências <strong>do</strong> real, <strong>do</strong> simbólico e <strong>do</strong> imaginário. O que faz a ligação entre<br />

as três dimensões distintas é o Nome <strong>do</strong> Pai. Para que o sujeito se sustente, Lacan diz que há<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> presença <strong>de</strong> um quarto termo, isto é, <strong>do</strong> complexo <strong>de</strong> Édipo ou <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-<br />

Pai, fazen<strong>do</strong> equivaler o sintoma e o Nome-<strong>do</strong>-Pai. O sintoma supre o malogro <strong>do</strong> Nome <strong>do</strong><br />

Pai, malogro simbólico ao barrar o gozo.<br />

279


No eno<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> tría<strong>de</strong>, o Imaginário faz corpo, bor<strong>da</strong>s contorna<strong>da</strong>s pela pulsão e é<br />

a consistência que produz o senti<strong>do</strong>. O Simbólico é o campo <strong>do</strong> possível, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m<br />

significante que faz buraco e inscreve o recalque. O Real é o campo <strong>do</strong> impossível, é o que<br />

ex-siste ao furo. Assim, eno<strong>da</strong>m-se consistência, buraco e ex-sistência, traçan<strong>do</strong> uma escrita<br />

para além <strong>do</strong> significante que toca algo <strong>do</strong> real <strong>da</strong> estrutura. O nó é uma escrita afeta<strong>da</strong> pelo<br />

inconsciente, em que o gozo <strong>do</strong> Outro (JA) surge na interseção <strong>do</strong> Imaginário e <strong>do</strong> Real; o<br />

gozo fálico (JФ), na interseção <strong>do</strong> Real e <strong>do</strong> Simbólico; e o senti<strong>do</strong>, na interseção <strong>do</strong><br />

Imaginário e <strong>do</strong> Simbólico. No centro <strong>do</strong> nó situa-se o objeto a, que enlaça o senti<strong>do</strong>, o gozo<br />

<strong>do</strong> Outro e o gozo fálico. Um enlaçamento pela via <strong>da</strong> separação entre os gozos. O gozo <strong>do</strong><br />

Outro está fora <strong>do</strong> simbólico, e o gozo fálico, fora <strong>do</strong> corpo.<br />

Defini<strong>do</strong> como metáfora, como efeito <strong>de</strong> linguagem, o sintoma é formaliza<strong>do</strong> na<br />

escrita <strong>do</strong> nó com outra envoltura formal e faz a mostração <strong>do</strong> Real, que ultrapassa os limites<br />

<strong>do</strong> significante e enuncia a ex-sistência. O ‘não cessa <strong>de</strong> não se escrever’, embora não seja<br />

uma <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> Real, é o mo<strong>do</strong> como se apresenta o real <strong>da</strong> estrutura, esta que se sustenta<br />

no real e não é redutível ao simbólico. Nessa estrutura, o sintoma registra-se no Simbólico e<br />

vem <strong>do</strong> Real, ou seja, uma emergência vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> Real. No sintoma i<strong>de</strong>ntificamos o que se<br />

produz no campo <strong>do</strong> real.<br />

Na teoria <strong>do</strong> nó marca-se um além que sugere a direção <strong>da</strong> cura, implican<strong>do</strong> uma<br />

escrita <strong>de</strong> um ‘saber-fazer’ com o sintoma. O momento <strong>da</strong> instalação <strong>do</strong> significante<br />

correspon<strong>de</strong>ria à inscrição sintomática, e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito é constituí<strong>da</strong> pelo eno<strong>da</strong>mento<br />

<strong>do</strong>s três registros, heterogêneos, porém amarra<strong>do</strong>s homogeneamente, inauguran<strong>do</strong> o<br />

inconsciente.<br />

280


A partir <strong>da</strong> leitura <strong>de</strong> Joyce (1975-1976) o sintoma não é mais uma mensagem cifra<strong>da</strong><br />

a qual po<strong>de</strong> ser dissolvi<strong>da</strong> graças à interpretação, pois esta nova leitura vai partir <strong>de</strong> um<br />

núcleo psicótico que escapa à re<strong>de</strong> discursiva.<br />

Do sintoma ao sinthome é o trajeto <strong>de</strong> uma análise especifica<strong>do</strong> no seminário O<br />

sinthome. O sintoma leva à análise quan<strong>do</strong> num <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento já não cumpre mais a<br />

sua função na economia <strong>do</strong> gozo. Apresenta-se, então, uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> análise, a princípio<br />

queixa imaginária que virá se transformar em sintoma analítico, articula<strong>do</strong> na transferência ao<br />

sujeito suposto saber, e que no final <strong>de</strong> análise apontará para a produção <strong>de</strong> um sinthome<br />

enquanto uma escrita particular liga<strong>da</strong> àquilo que <strong>do</strong> real não ascen<strong>de</strong> ao significante e fun<strong>da</strong><br />

o <strong>de</strong>sejo. Mas, a princípio, é para <strong>da</strong>r conta <strong>do</strong> sintoma que faz sofrer e que também satisfaz,<br />

que o analisante busca e trabalha em análise. Para o neurótico que procura uma análise, no<br />

lugar <strong>do</strong> gozo se produz a angústia, pois o sintoma como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo <strong>de</strong> algum<br />

mo<strong>do</strong> fracassou. A operação analítica, uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira operação topológica, através <strong>de</strong><br />

junções e suturas fará com que no final <strong>do</strong> percurso o sujeito se <strong>de</strong>pare com o sinthome, com<br />

th, irredutível <strong>da</strong> estrutura, que possibilitará o gozo, não- to<strong>do</strong> naturalmente. A análise seria<br />

então a produção <strong>da</strong> escrita <strong>do</strong> sinthome.<br />

Ao <strong>de</strong>safio <strong>da</strong> persistência <strong>do</strong> sintoma, Lacan respon<strong>de</strong> com a noção <strong>de</strong> sinthome,<br />

formação significante carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> gozo, único suporte <strong>do</strong> ser, único ponto a <strong>da</strong>r consistência<br />

ao sujeito. Ele é formaliza<strong>do</strong> na sua função <strong>de</strong> corrigir, <strong>de</strong> fazer a reparação <strong>da</strong> estrutura no<br />

mesmo lugar on<strong>de</strong> se produz o erro <strong>do</strong> nó. Sustenta<strong>do</strong> na letra e na escrita <strong>do</strong> nó borromeano,<br />

o sinthome não será interpreta<strong>do</strong>, nem resolvi<strong>do</strong>, nem atravessa<strong>do</strong> como se propunha em se<br />

tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> fantasma.<br />

281


Para concluir, com a topologia <strong>do</strong>s nós e a elaboração topológica <strong>da</strong> função <strong>da</strong><br />

suplência, Lacan traz novos aportes clínicos que permitem <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> regulação <strong>de</strong> gozo e<br />

<strong>do</strong> final <strong>de</strong> análise. A partir <strong>do</strong> seminário 23, po<strong>de</strong>mos dizer que uma análise começa com o<br />

sintoma e termina com o sinthome. Os sintomas mórbi<strong>do</strong>s que estão no início <strong>de</strong> uma análise<br />

são metáforas que visam manter articula<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> sujeito; e o que chamamos com Lacan<br />

o sinthome, cuja função é ilustra<strong>da</strong> por Joyce através <strong>de</strong> sua escrita, seria aquilo que, para<br />

além <strong>do</strong>s sintomas, constitui o irredutível. Com isso, há uma mu<strong>da</strong>nça radical que <strong>de</strong>fine a<br />

etapa final <strong>do</strong> processo psicanalítico em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição subjetiva. A partir <strong>da</strong>í tratamos<br />

o sintoma sem o liqui<strong>da</strong>rmos, pois há algo nele que não se dissolve e operamos sobre o gozo<br />

propician<strong>do</strong> a travessia <strong>do</strong> fantasma e a produção <strong>do</strong> sinthome. A travessia agora implica em<br />

reencontrar o sinthome irredutível, com o qual o sujeito po<strong>de</strong>rá obter o gozo possível. O final<br />

<strong>de</strong> análise seria então a i<strong>de</strong>ntificação com o sinthome. Saber se virar com seu sinthome, saber<br />

manipulá-lo como se faz com a imagem.<br />

Referências bibliográficas<br />

LACAN, J. O Seminário, Livro 22: RSI (1974-1975). Inédito.<br />

______. Conferencia in Ginebra sobre el sintoma (1975). In: Intervenciones y Textos. Buenos<br />

Aires: Manantial, 1988.<br />

______. O Seminário, Livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2007.<br />

282


“Imagine O Que Eu Não Falaria Se Eu Não Fosse Gago!”: O Que Fala<br />

Essa Gagueira?<br />

Roseane Torres <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>iro 1<br />

Roseane Freitas Nicolau 2<br />

Jamile Luz Morais 3<br />

Este trabalho é fruto <strong>de</strong> reflexões suscita<strong>da</strong>s no Grupo <strong>de</strong> Pesquisa “A <strong>Psicanálise</strong>, o<br />

sujeito e a instituição” e toma como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> fragmentos <strong>de</strong> um caso atendi<strong>do</strong> no<br />

âmbito institucional. Este caso, inicialmente media<strong>do</strong> por uma clínica-escola, foi então leva<strong>do</strong><br />

ao referi<strong>do</strong> grupo, o qual tem como objetivo investigar o lugar <strong>do</strong> sujeito e <strong>de</strong> seu corpo nos<br />

serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, na tensão e<strong>xi</strong>stente entre os discursos médico e psicanalítico. Nesse<br />

contexto, observa-se que o sujeito, uma vez manifestan<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>ença, geralmente<br />

diagnostica<strong>da</strong> por uma instituição <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como <strong>de</strong> “causa psicológica”, solicita <strong>do</strong> analista<br />

uma resposta imediata para o seu sofrimento. Tal situação aconteceu com Antônio, que chega<br />

à clínica <strong>de</strong> psicologia por encaminhamento <strong>de</strong> um fonoaudiólogo, o qual teria atribuí<strong>do</strong> ao<br />

seu sintoma <strong>de</strong> gagueira uma causa <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m emocional.<br />

1<br />

Psicóloga, Membro <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Pesquisa “<strong>Psicanálise</strong>, Sujeito e Instituição”, Aluna especial <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós<br />

Graduação <strong>da</strong> UFPA.<br />

2<br />

Psicanalista, Professora Drª. <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Psicologia <strong>da</strong> UFPA e Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Pesquisa<br />

“<strong>Psicanálise</strong>, Sujeito e Instituição”.<br />

3<br />

Psicóloga, Mestre em Psicologia, Resi<strong>de</strong>nte em Oncologia, Membro <strong>do</strong> Grupo, “<strong>Psicanálise</strong>, Sujeito e Instituição”.<br />

283


Sen<strong>do</strong> assim, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o fenômeno <strong>da</strong> gagueira em Antônio, como po<strong>de</strong>mos<br />

concebê-lo a luz <strong>da</strong> psicanálise? Para discutir esta questão, vale retomar o texto <strong>de</strong> Freud<br />

(1926/ 1996) intitula<strong>do</strong> Inibição, Sintoma e Ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>, no qual ele nos fala <strong>da</strong> inibição<br />

como sen<strong>do</strong> “uma expressão <strong>de</strong> uma restrição <strong>de</strong> uma função <strong>do</strong> ego” (p. 93), como a função<br />

sexual, a <strong>de</strong> alimentação, <strong>de</strong> locomoção e <strong>do</strong> trabalho. Dito isto, no caso <strong>de</strong> Antônio,<br />

po<strong>de</strong>ríamos atribuir sua gagueira simplesmente como uma inibição?<br />

Se tomarmos como base somente a lingüística ou uso corrente <strong>da</strong> palavra inibição,<br />

diremos que a gagueira <strong>de</strong> Antônio seria apenas uma restrição <strong>de</strong> uma função, a fala. No<br />

entanto, Freud salienta para um mais além <strong>de</strong>sta inibição ao apontar para o fato <strong>de</strong> que uma<br />

inibição, quan<strong>do</strong> patológica, po<strong>de</strong> se constituir como um sintoma, como afirma:<br />

Um sintoma, por outro la<strong>do</strong>, realmente <strong>de</strong>nota a presença <strong>de</strong> algum processo<br />

patológico. Assim, uma inibição po<strong>de</strong> ser também um sintoma. O uso lingüístico,<br />

portanto, emprega a palavra inibição quan<strong>do</strong> há uma simples redução <strong>de</strong> função, e<br />

sintoma quan<strong>do</strong> uma função passou por alguma modificação inusita<strong>da</strong> ou quan<strong>do</strong><br />

uma nova manifestação surgiu <strong>de</strong>sta (FREUD 1926/ 1996, p. 91).<br />

Diante <strong>da</strong> afirmação, é possível dizer então que Antônio, ao trazer ao analista sua<br />

gagueira como queixa, <strong>de</strong>nuncia seu próprio sintoma <strong>da</strong> seguinte forma: “Não sou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, nem<br />

burro, sou gago!”. Ao se dizer gago, en<strong>de</strong>reçan<strong>do</strong> seu sintoma à analista, <strong>de</strong>sejava erradicá-lo:<br />

“A senhora vai ter que <strong>da</strong>r um jeito nessa minha gagueira!”. Entretanto, sabe-se que a<br />

psicanálise não se dirige a eliminação <strong>do</strong>s sintomas, mas sim, toma-os como via <strong>de</strong> acesso ao<br />

<strong>de</strong>sejo, pois só por meio <strong>do</strong> sintoma, ou melhor, <strong>de</strong> sua repetição, é que o analista po<strong>de</strong><br />

apontar para o sujeito a posição que ele ocupa no campo <strong>do</strong> Outro, proporcionan<strong>do</strong> uma<br />

redistribuição <strong>da</strong> economia psíquica e, consequentemente, uma possível resignificação. Desta<br />

284


maneira, a instauração <strong>de</strong>sse sintoma em Antônio constitui-se através <strong>de</strong> um para<strong>do</strong>xo entre<br />

um sofrimento e uma solução, entre um conflito e uma satisfação inconsciente. Antônio<br />

incomo<strong>da</strong>va-se por ser gago, contu<strong>do</strong>, obtinha uma boa <strong>do</strong>se <strong>de</strong> satisfação inconsciente com<br />

seu sintoma.<br />

Lacan (1962-63/ 2005), ao formular teorizações acerca <strong>da</strong> inibição, afirma que nela se<br />

exerce um <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong>sejo este oposto àquele que a função satisfaz naturalmente. Seguin<strong>do</strong> este<br />

pensamento, supõe-se que em Antônio, a função <strong>da</strong> fala fora inibi<strong>da</strong> em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> não dizer aquilo que, para o seu Eu consciente, seria intolerável. Em suas palavras:<br />

“Imagine o que eu não falaria se eu não fosse gago!” Antônio parece apontar um <strong>de</strong>sejo<br />

inconsciente que o sintoma vem disfarçar. Resta <strong>de</strong>sta operação um “não dito”, em que,<br />

concomitantemente, o sintoma está para velar e <strong>de</strong>nunciar. Afirma Lacan:<br />

Por que não nos servirmos <strong>da</strong> palavra impedir? É disso mesmo que se trata. Nossos<br />

sujeitos ficam inibi<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> nos falam <strong>de</strong> sua inibição, e nós mesmos o ficamos<br />

ao falar em congressos científicos, mas no dia-a-dia, eles ficam mesmo é<br />

impedi<strong>do</strong>s. Estar impedi<strong>do</strong> é um sintoma. Ser inibi<strong>do</strong> é um sintoma posto no museu<br />

[...] Impedicare significa ser apanha<strong>do</strong> na armadilha e é afinal, uma noção<br />

extremamente preciosa. Implica <strong>de</strong> fato a relação <strong>de</strong> uma dimensão com algo que<br />

vem interferir nela e que no que nos interessa, impe<strong>de</strong> não a função, termo <strong>de</strong><br />

referência, e não o movimento, que fica dificulta<strong>do</strong>, mas justamente o sujeito. [...]<br />

Assim escrevo impedimento na mesma coluna que sintoma (p.19).<br />

Diante disso, observa-se que ao relacionar o termo “inibir” com a expressão<br />

“impedir”, Lacan nos fala que o sujeito é impedi<strong>do</strong>, barra<strong>do</strong>, pelo seu próprio sintoma. Sabe-<br />

se que o sintoma surge <strong>do</strong> conflito entre a pulsão e a cultura. Ao ser castra<strong>do</strong>, o sujeito acaba<br />

sen<strong>do</strong> impedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> obter total satisfação <strong>da</strong> pulsão, sen<strong>do</strong> possível apenas uma satisfação<br />

parcial. Para a <strong>Psicanálise</strong> este “dizer tu<strong>do</strong>” que certamente comportaria um gozo êxtasiante é<br />

<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> impossível, pois ain<strong>da</strong> que Antônio não fosse gago, ele não po<strong>de</strong>ria falar tu<strong>do</strong>.<br />

285


Neste senti<strong>do</strong>, o sintoma assume ao mesmo tempo uma função <strong>de</strong> solução a “uma luta<br />

<strong>de</strong>fensiva contra um impulso instintual <strong>de</strong>sagradável” (FREUD, 1926/ 1996, p.101), e uma<br />

função <strong>de</strong> barreira a uma satisfação pulsional.<br />

Com relação ao sujeito que tem a marca <strong>da</strong> gagueira como algo prepon<strong>de</strong>rante em seu<br />

discurso, Tassinaria (2001) sugere que é importante concebê-la como uma máscara e supor<br />

que atrás <strong>de</strong>la há um sujeito. Ela conceitua esta marca como sen<strong>do</strong> “uma marca <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontrole<br />

<strong>da</strong> forma <strong>da</strong> fala, uma espécie <strong>de</strong> renitência <strong>de</strong> uma instância constitutiva <strong>de</strong>sse sujeito em<br />

submeter seu dizer à fluência melódica vigente na língua” (p. 78). Ora, se o sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />

é encontra<strong>do</strong> em sua afânise, através <strong>do</strong> <strong>de</strong>slizamento significante, como Antônio po<strong>de</strong>ria<br />

construir um saber sobre o mal que lhe causa, se este era impedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> falar?<br />

Para<strong>do</strong>xalmente, no caso <strong>de</strong> Antônio, ser impedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> falar por si só já dizia muito<br />

sobre o seu <strong>de</strong>sejo, na medi<strong>da</strong> em que a inibição <strong>da</strong> fala <strong>de</strong> Antônio, por estar enca<strong>de</strong>a<strong>da</strong> à<br />

ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> significantes, pô<strong>de</strong> ser metaforiza<strong>da</strong> e significa<strong>da</strong>, tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma inibição<br />

sintomática. Isto posto, o quê fala essa gagueira?<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

FREUD, S. (1926) Inibição, Sintoma e Ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>: In:. Edição Stan<strong>da</strong>rd Brasileira <strong>da</strong>s Obras<br />

Completas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996. V. XX<br />

LACAN, Jacques. O Seminário: livro 10, a angústia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.<br />

TASSINARI; I. M. Do sintoma ao sujeito: contribuições <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> para o atendimento <strong>de</strong><br />

um paciente gago. In: Gagueira e subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>: possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> tratamento. Organiza<strong>do</strong>res:<br />

Silvia Friedman e Maria Cláudia Cunha. Porto Alegre: Artmed, 2001.<br />

286


Consi<strong>de</strong>rações Sobre a Constituição <strong>da</strong> Subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> na Psicose: Caso<br />

Schreber<br />

Ana Ilki Meireles Oliveira 1<br />

Discutir acerca <strong>da</strong> constituição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é falar <strong>de</strong> um processo complexo<br />

que se estrutura a partir <strong>da</strong> relação mãe, filho e campo simbólico. Segun<strong>do</strong> Elia (2004), é<br />

através <strong>do</strong> convívio social que nós, seres humanos, encontramos to<strong>do</strong> o amparo necessário<br />

para o nosso <strong>de</strong>senvolvimento e ele <strong>da</strong>r-se-á através <strong>de</strong> um adulto pró<strong>xi</strong>mo, para Freud, ou<br />

pelo Outro, para Lacan. É esse Outro que irá transmitir através <strong>da</strong> linguagem e inicialmente<br />

para ele mesmo “uma estrutura significante e inconsciente [...] e não po<strong>de</strong>ria ser simplesmente<br />

o conjunto <strong>de</strong> valores culturais” (ELIA, 2004, p. 40). O bebê, por sua vez, introduz o que<br />

Lacan <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> significante, suscitan<strong>do</strong> em seu corpo “um ato <strong>de</strong> resposta que se chama<br />

<strong>de</strong> sujeito” (ELIA, 2004, p. 41) e é nesse momento em que o sujeito é introduzi<strong>do</strong> no campo<br />

<strong>da</strong> linguagem que ele <strong>de</strong>verá ser compreendi<strong>do</strong>.<br />

Lacan (apud ROSENBERG, 1994) afirma que a formação <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

constituir-se-á a partir <strong>do</strong> Outro. Po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que a criança aliena-se na imagem <strong>do</strong><br />

Outro, sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong> será o <strong>de</strong> “ser <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> pelo outro” ou “ter o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro como seu<br />

<strong>de</strong>sejo”. É a mãe quem cria a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> na criança e esta pela alienação, pelo temor <strong>da</strong> per<strong>da</strong><br />

1<br />

287


<strong>do</strong> amor <strong>da</strong> mãe e pela não constituição ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, insiste em respon<strong>de</strong>r-lhe a<br />

solicitação.<br />

No Seminário V “As formações <strong>do</strong> inconsciente”, Lacan (1958) sugere o Édipo<br />

dividi<strong>do</strong> em três tempos. No primeiro tempo, a criança encontra-se numa relação dual com a<br />

mãe, supon<strong>do</strong> ser a falta <strong>de</strong>la. A partir <strong>de</strong>sse momento, advém o que Lacan <strong>de</strong>nominou<br />

segun<strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> Édipo, que é marca<strong>do</strong> pela entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> um terceiro nomea<strong>do</strong> <strong>de</strong> significante<br />

Nome-<strong>do</strong>-Pai, que vai para além <strong>da</strong> relação dual: é a lei <strong>do</strong> pai que intervém, não com sua<br />

presença, mas com sua palavra.<br />

O terceiro tempo <strong>do</strong> Édipo marcará seu <strong>de</strong>clínio, no qual a função paterna<br />

representa a lei e simboliza um valor estruturante, capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o lugar exato <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>da</strong> mãe, condição esta para que a lei paterna seja representativa <strong>da</strong> lei. A passagem pelos três<br />

tempos <strong>do</strong> Édipo fará com que a criança interiorize a lei, inserin<strong>do</strong>-se na cultura e na<br />

linguagem. Dessa forma, compreen<strong>de</strong>mos a estrutura psicótica a partir <strong>de</strong> uma falha ocorri<strong>da</strong><br />

na relação primordial.<br />

Utilizaremos alguns <strong>de</strong>sses aspectos fun<strong>da</strong>mentais para compreen<strong>de</strong>r a<br />

constituição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e sua implicação na psicose <strong>de</strong> Daniel Paul Schreber. Po<strong>de</strong>mos<br />

afirmar que o início <strong>da</strong> psicose em Schreber se <strong>de</strong>u após ele ser nomea<strong>do</strong> ao cargo <strong>de</strong><br />

Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Corte <strong>de</strong> Apelação <strong>de</strong> Dres<strong>de</strong>n, o qual correspon<strong>de</strong> simbolicamente à função<br />

paterna, uma vez que ele é encarrega<strong>do</strong> <strong>da</strong>s leis. É acerca <strong>da</strong> falta <strong>de</strong>sse nome – Nome-<strong>do</strong>-Pai<br />

– e <strong>de</strong> suas conseqüências que preten<strong>de</strong>mos refletir sobre a função <strong>do</strong>s pais <strong>de</strong> Daniel Paul<br />

Schreber com relação à psicose.<br />

288


Nie<strong>de</strong>rland (1981) aponta que, em relação ao pai, po<strong>de</strong>-se argumentar que ele foi<br />

o tipo <strong>de</strong> pai simbiótico cuja presença onipresente, cuja usurpação <strong>da</strong> função materna e cujos<br />

outros traços <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res (tanto francamente sádicos quanto paternalisticamente<br />

benevolentes; tanto punitivos quanto sedutores) prestaram-se a sua fusão com a bizarra<br />

hierarquia divina que caracterizou o sistema <strong>de</strong>lirante <strong>do</strong> filho.<br />

Admitimos que o maior pavor <strong>de</strong> Schreber era o <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> assumir o lugar <strong>do</strong> pai.<br />

No entanto, pelas observações feitas ao longo <strong>do</strong> percurso <strong>da</strong>s pesquisas psicanalíticas acerca<br />

<strong>do</strong> caso, sabemos que Schreber não podia aceitar um papel masculino ativo em um senti<strong>do</strong><br />

mais amplo. Quan<strong>do</strong> Schreber foi solicita<strong>do</strong> a se tornar um membro <strong>do</strong> Reichstag, ele a<strong>do</strong>eceu<br />

pela primeira vez – na época, isso significava opor-se a Bismarck, o “Chanceler <strong>de</strong> Ferro”,<br />

indiscutível figura <strong>de</strong> pai. Quan<strong>do</strong> foi chama<strong>do</strong> a ocupar o cargo <strong>de</strong> juiz presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Corte<br />

Superior, novamente caiu <strong>do</strong>ente, e <strong>de</strong>sta vez para sempre. Impossibilita<strong>do</strong> <strong>de</strong> enfrentar o<br />

po<strong>de</strong>roso pai em uma competição árdua como membro <strong>do</strong> Reichstag ou <strong>de</strong> ocupar um lugar<br />

<strong>de</strong> pai, já que ele seria responsável pelas leis, como Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Corte Suprema, Schreber<br />

a<strong>do</strong>ecia to<strong>da</strong>s as vezes em que se via frente a tal ameaça.<br />

O olhar primordial <strong>de</strong>ve estar presente na relação mãe-filho e é através <strong>de</strong>le que a<br />

criança irá se reconhecer como sujeito, caso contrário, ela se perceberá como um ser<br />

<strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça<strong>do</strong>, objeto. Houve uma falha nesse olhar que <strong>de</strong>ixou Schreber preso como objeto <strong>de</strong><br />

gozo <strong>do</strong> pai. Moritz Schreber coloca os filhos no lugar <strong>de</strong> coisas, objetos, no momento em que<br />

os usa para seus experimentos na medicina, assim como na educação <strong>da</strong><strong>da</strong> a eles. O pai <strong>de</strong><br />

Schreber utilizava-se <strong>de</strong> uma educação autoritária e submissa, na qual impunha seus <strong>de</strong>sejos<br />

289


acima <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> seus filhos. “Ocupar esse lugar <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> tem uma função<br />

importante na fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> um sujeito. Mas se se ocupa esse lugar <strong>de</strong> objeto então não se po<strong>de</strong><br />

ocupar um lugar <strong>de</strong> sujeito”. (BRAUER, 1998).<br />

Enten<strong>de</strong>-se que a entra<strong>da</strong> <strong>de</strong> Moritz <strong>de</strong>veria intervir na relação dual que Schreber<br />

estabeleceu primeiramente com a mãe, porém, Moritz não interdita essa relação mãe-filho,<br />

mas sim prolonga essa relação narcísica, não permitin<strong>do</strong> a entra<strong>da</strong> <strong>do</strong> terceiro, isto é, <strong>do</strong><br />

significante Nome-<strong>do</strong>-Pai.<br />

Acerca disso, Waelhens (1990, p. 98) explica:<br />

É na foraclusão <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai no lugar <strong>do</strong> Outro, e no malogro <strong>da</strong><br />

metáfora paterna, que <strong>de</strong>signamos a falha que confere à psicose sua<br />

condição essencial, com a estrutura que separa <strong>da</strong> neurose. Ou ain<strong>da</strong>:<br />

para que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ie a psicose, é preciso que o nome <strong>do</strong> pai,<br />

‘verworfen’, foracluí<strong>do</strong>, ou seja, nunca advin<strong>do</strong> no lugar <strong>do</strong> Outro,<br />

seja chama<strong>do</strong> ali em oposição simbólica ao sujeito.<br />

Em relação à entra<strong>da</strong> <strong>do</strong> significante Nome-<strong>do</strong>-Pai, ou seja, a castração simbólica,<br />

Julien (1999, p. 39) assinala: “Teu quarto é teu quarto e o meu é o meu. Meu gozo não tem<br />

na<strong>da</strong> a ver contigo; meu gozo se volta para uma mulher, uma mulher <strong>da</strong> minha geração, causa<br />

<strong>do</strong> meu <strong>de</strong>sejo”. Po<strong>de</strong>mos afirmar que é exatamente isso que Moritz não faz, ele não permite a<br />

entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe, Pauline, na relação <strong>de</strong>le com Schreber, caben<strong>do</strong> a ele to<strong>da</strong> a função <strong>de</strong> mãe<br />

nesta relação.<br />

290


Para Waelhens (1990, p. 96), “a partir <strong>do</strong> momento que o significante <strong>da</strong> castração<br />

é foracluí<strong>do</strong>, a única saí<strong>da</strong> aparente para Schreber consiste em regredir ao nível <strong>de</strong>ssa<br />

condição, que não é outro senão o <strong>da</strong> união dual”.<br />

Moritz <strong>de</strong>clarava através <strong>de</strong> seus escritos que a mulher <strong>de</strong>ve ser ine<strong>xi</strong>stente, que<br />

não po<strong>de</strong> se posicionar a não ser pela or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e <strong>de</strong>ve ser uma mulher apaga<strong>da</strong>.<br />

Moritz era um pai que sabia tu<strong>do</strong>, orientava tu<strong>do</strong>, supervisionava tu<strong>do</strong>. Em relação ao tema<br />

educação, afirmava: “o educa<strong>do</strong>r é um homem que tem resposta para tu<strong>do</strong>” (MANNONI,<br />

1977, p. 28). Em relação à mãe, apontava: “que a mãe se apague, é a voz <strong>do</strong> pai que<br />

importa”. (MANNONI, 1977, p. 46).<br />

É isso que po<strong>de</strong>mos constatar na educação <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a Schreber, pois não é<br />

possível encontrar a voz <strong>do</strong> pai Moritz na mãe Pauline, caben<strong>do</strong> sempre a Moritz os cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> filho. A mãe só e<strong>xi</strong>stiria a partir <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> pai, mas, como já vimos, Moritz anulava as<br />

mulheres, não as valorizava, conseqüentemente também anulava Pauline <strong>da</strong> relação com<br />

Schreber.<br />

Do lugar <strong>do</strong> pai no triângulo simbólico, restou o significante confundi<strong>do</strong> com o<br />

significa<strong>do</strong> precisamente ali on<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>veria estar e nunca esteve. “Através <strong>de</strong> na<strong>da</strong> menos <strong>do</strong><br />

que um pai, não forçosamente, em absoluto, o pai <strong>do</strong> sujeito, mas através <strong>de</strong> Um – Pai”<br />

(WAELHENS, 1990, p. 99). Esse Um - Pai surge no real, no tempo em que alguém venha ser<br />

personagem <strong>da</strong> figura paterna e se impor ‘na posição terceira’, isto é, no campo <strong>de</strong> alguma <strong>da</strong>s<br />

relações erotiza<strong>da</strong>s entre o sujeito e seu objeto, ou melhor, entre o i<strong>de</strong>al e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

291


Percebemos que Schreber teve um pai em excesso, muito presente, passan<strong>do</strong>-nos<br />

uma compreensão <strong>de</strong> um pai como figura muito forte, que submetia Schreber a uma educação<br />

subordina<strong>da</strong>, obediente e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Assim, o filho <strong>de</strong> Moritz recebeu <strong>de</strong> alguma forma a<br />

missão fracassa<strong>da</strong> em si <strong>de</strong> encarnar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> pai, no dizer <strong>de</strong> Mannoni (1977) foi<br />

submeti<strong>do</strong>, na sua relação com o pai, a uma perversão <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> amor. A<strong>de</strong>stra<strong>do</strong>,<br />

ama<strong>do</strong>, ao preço <strong>de</strong> não ser, ten<strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sejo inteiramente governa<strong>do</strong> pelo pai, alimentou seu<br />

<strong>de</strong>lírio e por amor <strong>de</strong> Deus ficou submeti<strong>do</strong> a uma posição feminina, encontran<strong>do</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

através <strong>do</strong> <strong>de</strong>lírio.<br />

Referências<br />

BRAUER, J. O Sujeito e a Deficiência. Revista Sobre a Infância com Problemas, São<br />

Paulo, ano III, v. 5, 2º semestre <strong>de</strong> 1998.<br />

ELIA, L. O Conceito <strong>de</strong> Sujeito. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2004.<br />

FREUD, S. Observações Psicanalíticas Sobre um Caso <strong>de</strong> Paranóia (Dementia Paranoi<strong>de</strong>s)<br />

Relata<strong>do</strong> em Autobiografia. In: FREUD, S. Obras Completas, vol. 10. São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2010.<br />

JULIEN, P. As Psicoses: um estu<strong>do</strong> sobre a paranóia comum. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Companhia <strong>de</strong><br />

Freud, 1999.<br />

LACAN, J. O Seminário V: As formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-1958). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 1999.<br />

292


MANNONI, M. O Psiquiatra, Seu “Louco” e a <strong>Psicanálise</strong>. 2ª edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1981.<br />

MANNONI, M. Educação Impossível. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Francisco Alves, 1997.<br />

NIEDERLAND, W. G. O caso Schreber: um perfil psicanalítico <strong>de</strong> uma personali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

paranói<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus, 1981.<br />

ROSENBERG. A. M. O Lugar <strong>do</strong>s Pais na <strong>Psicanálise</strong> com Crianças. São Paulo: Escuta,<br />

1994.<br />

SCHREBER, D. P. Memórias <strong>de</strong> Um Doente <strong>do</strong>s Nervos. 2ª edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Graal,1985.<br />

WAELHENS, A. A Psicose: ensaio <strong>de</strong> interpretação analítica e e<strong>xi</strong>stencial. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Zahar, 1990.<br />

293


De um Sintoma no Corpo a um Sintoma Analítico: uma Clínica a Partir<br />

<strong>do</strong>s Fenômenos Psicossomáticos<br />

Ingrid <strong>de</strong> Figueire<strong>do</strong> Ventura 1<br />

Roseane Freitas Nicolau 2<br />

Jamile Luz Morais 3<br />

Este trabalho propõe <strong>de</strong>bater a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> direção <strong>da</strong> cura diante <strong>do</strong> fenômeno<br />

psicossomático (FPS), consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> sua diferença com relação ao sintoma. Através <strong>do</strong>s<br />

estu<strong>do</strong>s e discussões no Grupo <strong>de</strong> Pesquisa O Sintoma <strong>do</strong> Corpo, nos <strong>de</strong>paramos com<br />

algumas afecções que o afetam sem comportarem uma causa orgânica comprova<strong>da</strong>. Tais<br />

afecções, geralmente diagnostica<strong>da</strong>s pelo saber médico como “psicossomáticas”, impõem-se<br />

como um entrave na direção <strong>do</strong> tratamento, pois admitem uma mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gozo fixa<strong>da</strong> ao<br />

corpo, como uma escrita não passível <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração, distinguin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> sintoma, o qual, por<br />

se constituir como um retorno <strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> ser interroga<strong>do</strong>, converten<strong>do</strong>-se em um<br />

enigma. Por esta razão é que Szapiro (2008) nos diz que receber um paciente com<br />

enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s “psicossomáticas” se coloca como um <strong>de</strong>safio ao analista, na medi<strong>da</strong> em que se<br />

1 Psicóloga, mestran<strong>da</strong> <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Pará (UFPA),<br />

membro <strong>do</strong> Grupo <strong>de</strong> Pesquisa “<strong>Psicanálise</strong>, sintoma e instituição”, ca<strong>da</strong>stra<strong>do</strong> no CNPQ e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pela<br />

Profª Drª Roseane Freitas Nicolau. En<strong>de</strong>reço eletrônico: ifpsi@yahoo.com.br.<br />

2 Psicanalista, <strong>do</strong>utora em Sociologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Ceará (UFC) com Formation Doctorale na<br />

École <strong>de</strong>s Hautes Étu<strong>de</strong>s em Sciences Sociales em Paris (França), professora adjunta <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Psicologia<br />

<strong>da</strong> UFPA e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> Pesquisa “<strong>Psicanálise</strong>, sintoma e instituição”, ca<strong>da</strong>stra<strong>do</strong> no CNPQ.<br />

En<strong>de</strong>reço eletrônico: rf-nicolau@uol.com.br.<br />

3 Psicóloga, mestre em Psicologia pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Psicologia <strong>da</strong> UFPA, membro <strong>do</strong> Grupo<br />

<strong>de</strong> Pesquisa “<strong>Psicanálise</strong>, sintoma e instituição”, ca<strong>da</strong>stra<strong>do</strong> no CNPQ e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pela Profª Drª Roseane<br />

Freitas Nicolau. E-mail: jamilemorais_11@yahoo.com.br.<br />

294


faz necessário sustentar uma fala atrela<strong>da</strong> a estas afecções, as quais se encontram presas ao<br />

registro <strong>do</strong> real <strong>do</strong> corpo. A especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> nestes fenômenos está na dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> paciente<br />

em se articular com a dimensão subjetiva, uma vez que ao buscar uma resposta imediata para<br />

seu sofrimento, localiza<strong>do</strong> em um ponto irrepresentável <strong>do</strong> seu corpo, impossibilita que uma<br />

<strong>de</strong>man<strong>da</strong> se constitua pela via <strong>da</strong> transferência <strong>de</strong> amor.<br />

O sintoma, diferentemente, evi<strong>de</strong>ncia uma vinculação com uma representação,<br />

configuran<strong>do</strong>-se como uma formação <strong>do</strong> inconsciente. Neste caso, e<strong>xi</strong>ste a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, em<br />

transferência, <strong>de</strong> o sujeito comparecer, fazen<strong>do</strong> associações que remetam às estas<br />

representações, ou seja, ao conteú<strong>do</strong> recalca<strong>do</strong>. Para Freud (1926/1996) o sintoma aponta para<br />

o sujeito <strong>do</strong> inconsciente, sen<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um trabalho <strong>de</strong> substituição para uma satisfação<br />

pulsional, produto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> recalque. Já o FPS, manifesta-se no corpo não como um<br />

retorno <strong>de</strong>sta operação, mas sim como uma espécie <strong>de</strong> “matéria bruta”, que não foi lapi<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />

transforma<strong>da</strong> em sintoma.<br />

Ao se referir ao FPS, no Seminário 11, Lacan (1964/1998) salienta que este não po<strong>de</strong><br />

ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um significante, ten<strong>do</strong> em vista que não há a afânise <strong>do</strong> sujeito. Para ele, a<br />

afânise diz respeito ao <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente na linguagem, por meio <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>slizamento na ca<strong>de</strong>ia significante. Isto quer dizer que para o sujeito ex-sistir na linguagem,<br />

uma vez que aparece justamente em sua falha, ele <strong>de</strong>ve primeiramente estar afanisa<strong>do</strong> na<br />

ca<strong>de</strong>ia. Lacan nos diz que a eclosão <strong>de</strong> um FPS acontece <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à holófrase, termo que<br />

emprestou <strong>da</strong> lingüística para falar <strong>da</strong> con<strong>de</strong>nsação <strong>do</strong> primeiro par <strong>de</strong> significantes S1—S2,<br />

os quais, ao não se articularem, impe<strong>de</strong>m o <strong>de</strong>slizamento <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia e a afânise. Logo, sem a<br />

última, não há possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento e aparecimento <strong>do</strong> sujeito, prejudican<strong>do</strong><br />

295


assim o registro simbólico e qualquer enlace com a esfera subjetiva.<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sse pensamento, Lacan (1966), na conferência intitula<strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> e<br />

Medicina, usou a expressão falha epistemo-somática para se referir aos FPS, indican<strong>do</strong> que<br />

estes refletiam uma “ignorância” <strong>do</strong> sujeito com relação ao saber sobre seu corpo, seu <strong>de</strong>sejo<br />

e sua história. Tal “ignorância”, por sua vez, explica o motivo pelo qual esses pacientes<br />

encontram dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se implicarem subjetivamente, circunscreven<strong>do</strong> uma fala fixa<strong>da</strong> aos<br />

sintomas físicos pelos quais foram atravessa<strong>do</strong>s.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> a formulação <strong>de</strong> Lacan sobre a falha epistemo-somática,<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que ela mostrou seus efeitos em Elisa, paciente atendi<strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong><br />

pesquisa O Sintoma <strong>do</strong> Corpo. Elisa, em um primeiro momento, não se implicava com seu<br />

sofrimento, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se levar por uma fala em torno <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>ença: O Lúpus Eritematoso<br />

Sistêmico. Nas palavras <strong>de</strong> Elisa: “Essa semana foi horrível, quase não consegui <strong>do</strong>rmir<br />

direito, meu coração batia forte, aquelas <strong>do</strong>res voltaram. Quan<strong>do</strong> isso acontece fico muito<br />

ansiosa, não sei o que fazer. E o pior, há quatro dias acor<strong>de</strong>i cheia <strong>de</strong> manchas na pele! Não<br />

agüento mais, to<strong>do</strong> hora é uma coisa, fui na médica e ela disse que po<strong>de</strong> ser psoríase, minha<br />

cabeça está só casquinha, sabe”.<br />

Elisa, em sua fala, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>notar sua falta a saber, ficava presa num dizer vazio,<br />

direciona<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os sintomas físicos que tinham lhe ocorri<strong>do</strong> durante a semana,<br />

procuran<strong>do</strong>, assim como fazia com seu médico, uma espécie <strong>de</strong> “diagnóstico emocional”, que<br />

supostamente explicaria a causa <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>ença. Sobre isso, Ornellas (2004) pontua que o<br />

paciente, ao procurar um médico para obter uma explicação sobre a sua patologia, espera uma<br />

autenticação para a mesma e, portanto, uma falsa <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>de</strong> cura. I<strong>de</strong>ntifica que nestas<br />

296


situações está em jogo uma satisfação específica, ou seja, um gozo específico, já que o sujeito<br />

se apresenta fixa<strong>do</strong> no corpo. Diante <strong>de</strong>sta repetição, e<strong>xi</strong>stiria alguma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<br />

paciente se implicar com algo subjetivo <strong>de</strong> sua história?<br />

p. 215):<br />

A fim <strong>de</strong> discutir esta questão, retomamos a seguinte afirmação <strong>de</strong> Lacan (1964/1998,<br />

É na medi<strong>da</strong> em que uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> venha estar interessa<strong>da</strong> na<br />

função <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo que a psicossomática po<strong>de</strong> ser outra coisa que não<br />

essa simples bravata que consiste em dizer que há um duplo psíquico<br />

para tu<strong>do</strong> que se passa no somático. Sabe-se disso há muito tempo. Se<br />

falamos <strong>de</strong> psicossomática é na medi<strong>da</strong> em que <strong>de</strong>ve aí intervir o<br />

<strong>de</strong>sejo. É no que o elo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo é aqui conserva<strong>do</strong>, mesmo se não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> função <strong>da</strong> afânise <strong>do</strong> sujeito<br />

O que nos diz Lacan é que mesmo a psicossomática não sen<strong>do</strong> um significante, isso<br />

não <strong>de</strong>nota abolir a idéia <strong>de</strong> que um indivíduo afeta<strong>do</strong> por uma lesão <strong>de</strong>ste tipo não possa se<br />

manifestar como sujeito. De mo<strong>do</strong> diverso, po<strong>de</strong>mos dizer que, momentaneamente, este<br />

indivíduo não quer se haver com o seu <strong>de</strong>sejo inconsciente.<br />

Assoun (1997) consi<strong>de</strong>ra o FPS como uma “fuga” <strong>do</strong> sujeito <strong>de</strong> sua neurose. Ao<br />

afirmar que a <strong>do</strong>ença põe a neurose em suspensão, o autor nos coloca que o sujeito, apesar <strong>de</strong><br />

por um momento manter-se escondi<strong>do</strong> atrás <strong>do</strong> real <strong>de</strong> sua patologia, está lá, esperan<strong>do</strong> uma<br />

implicação subjetiva. No momento em que é acometi<strong>do</strong> por uma afecção “psicossomática”, é<br />

capaz <strong>de</strong> substituir sua neurose por um fenômeno <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m, “fugin<strong>do</strong>” <strong>de</strong> sua constituição<br />

fantasmática, que permanece suspensa. Pontua que a enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong> somática surge como se<br />

fosse um “<strong>de</strong>sperta<strong>do</strong>r”, um chama<strong>do</strong> para a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> significantes que está para<strong>da</strong>,<br />

gelifica<strong>da</strong>, carente <strong>de</strong> simbolização. Seria a chama<strong>da</strong> para a eclosão <strong>de</strong> um sintoma neurótico.<br />

É possível afirmar que as afecções somáticas também seriam uma forma <strong>de</strong> aviso<br />

297


dirigi<strong>do</strong> ao sujeito, ao sinalizar (através <strong>da</strong> lesão) que este <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar a neurose emergir. É o<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>encontro</strong> entre as pulsões <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> morte, pois enquanto a pulsão <strong>de</strong> morte<br />

lança o sujeito para a morte, <strong>de</strong>struin<strong>do</strong> os órgãos e causan<strong>do</strong> prejuízo ao corpo, a pulsão <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>, através <strong>de</strong> uma castração pelo real, convi<strong>da</strong>-o a voltar a sua condição: a <strong>de</strong> sujeito <strong>do</strong><br />

inconsciente. O autor relaciona o FPS com um masoquismo corporal, o qual levaria o corpo a<br />

gozar se utilizan<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas partes complacentes e, consequentemente, fazen<strong>do</strong> o paciente<br />

pagar a dívi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que não foi simboliza<strong>do</strong>.<br />

Sen<strong>do</strong> assim, o fato <strong>de</strong> Elisa estar presa numa fala direciona<strong>da</strong> às suas afecções, em<br />

torno <strong>do</strong> Lúpus, isso não significa dizer que não <strong>de</strong>vemos apostar na emergência <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong><br />

inconsciente. No entanto, como o analista po<strong>de</strong> conduzir uma fala cola<strong>da</strong> no corpo em direção<br />

a outra, dirigi<strong>da</strong> ao seu <strong>de</strong>sejo?<br />

Wartel (1987/1990) nos diz que não há outra saí<strong>da</strong> senão a partir <strong>do</strong> silêncio <strong>do</strong><br />

analista, <strong>de</strong> uma posição ética, <strong>de</strong> não resposta. É apostan<strong>do</strong> na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> associação<br />

livre, por meio <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista, é que entre um dito e outro, entre<br />

um significante e outro significante, possa surgir o sujeito <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo e <strong>do</strong> inconsciente.<br />

Retornan<strong>do</strong> ao caso <strong>de</strong> Elisa, po<strong>de</strong>ria ela se haver com um significante que a<br />

representasse a outro significante e assim entrar em contato com sua história?<br />

Atendi<strong>da</strong> no contexto <strong>de</strong> uma instituição hospitalar, Elisa chega com a analista,<br />

representante <strong>de</strong> um saber psi, a fim <strong>de</strong> encontrar uma resposta imediata para seu sofrer. Ao se<br />

<strong>de</strong>parar com a não resposta, referin<strong>do</strong>-se às suas queixas físicas, <strong>de</strong>ixa escapar o significante<br />

me<strong>do</strong>, dizen<strong>do</strong>: “Quan<strong>do</strong> me sinto assim, com muitas <strong>do</strong>res, me dá um me<strong>do</strong>...”. Ao solicitar<br />

que falasse <strong>de</strong>sse me<strong>do</strong>, ela diz: “Tenho me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ficar sozinha em casa, vai que me dá um<br />

298


troço, não vai ter ninguém pra me acudir... tenho me<strong>do</strong> que as pessoas esqueçam <strong>de</strong> mim,<br />

esqueçam que eu e<strong>xi</strong>sto” .<br />

Ao falar disso, lembra <strong>de</strong> uma cena conta<strong>da</strong> por sua avó, referente ao aban<strong>do</strong>no que<br />

havia sofri<strong>do</strong> na infância, por sua mãe biológica. Disse que nunca havia conta<strong>do</strong> a ninguém o<br />

me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong> e que até aquele instante não entendia o motivo pelo qual seus pais<br />

<strong>de</strong>ixaram que ela fosse cria<strong>da</strong> por outra família, como <strong>de</strong>monstra em seus relatos: “Tu<strong>do</strong> bem<br />

que a minha avó me tirou <strong>de</strong>la por causa <strong>da</strong> forma irresponsável que ela me criava. On<strong>de</strong> já<br />

se viu <strong>de</strong>ixar um bebê sozinho numa casa. A vovó me disse que tinha meses quan<strong>do</strong> aquela<br />

outra [falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua mãe biológica] me <strong>de</strong>ixou na casa que a gente morava sozinha, <strong>de</strong>ita<strong>da</strong><br />

numa re<strong>de</strong>. A vovó escutou meus gritos fora <strong>da</strong> casa, pediu que arrombassem a porta e<br />

quan<strong>do</strong> ela chegou lá eu estava to<strong>da</strong> caga<strong>da</strong>, mija<strong>da</strong>. Ela ficou revolta<strong>da</strong> com essa situação e<br />

disse pra mamãe que não ia mais ficar lá. Tu<strong>do</strong> bem que a vovó me tirou <strong>de</strong>la, mas ela me<br />

<strong>de</strong>ixou e não me criou porque não quis”. Ao se haver com o significante me<strong>do</strong> (S1), Elisa<br />

pô<strong>de</strong> redistribuir sua economia gozosa, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> falar <strong>do</strong> corpo parar falar <strong>da</strong> história <strong>de</strong><br />

seu sintoma, <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo.<br />

Vale ressaltar que tu<strong>do</strong> isso só foi possível porque acreditamos que, em psicanálise, o<br />

trabalho caminha na direção <strong>de</strong> uma escuta que aponte para um sujeito possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um corpo<br />

erotiza<strong>do</strong> e recoberto pela pulsão e não apenas para um corpo toma<strong>do</strong> simplesmente no campo<br />

<strong>da</strong> biologia. Nicolau (2008) ressalta que é preciso escutar o que po<strong>de</strong> estar para além <strong>da</strong><br />

<strong>do</strong>ença, ou seja, aquilo que está em jogo na afecção psicossomática: uma insistência que<br />

aponta para a dimensão <strong>de</strong> um não querer saber. Trata-se <strong>de</strong> uma operação, na transferência,<br />

que possibilite um enlace com algo <strong>de</strong> sua própria história, promoven<strong>do</strong> uma nova regulação<br />

299


<strong>de</strong> gozo para o sujeito.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ASSOUN, P. Corps et symptôme - clinique du corps: Tome 1. Paris: Econmica Ed, 1997.<br />

FREUD, S. “Inibições, sintomas e ansie<strong>da</strong><strong>de</strong>” (1926). In: Edição Stan<strong>da</strong>rd Brasileira <strong>da</strong>s<br />

Obras Completas – (ESB). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1996, Vol. XX.<br />

LACAN, J. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise<br />

(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />

______. “Psychanalyse et médécine” (1966). In: Petits écrits et conférences – 1945- 1981.<br />

Inédito.<br />

NICOLAU, R. F. A psicossomática e a escrita <strong>do</strong> real. In: Revista Mal-Estar e<br />

Subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, Fortaleza, vol. VIII, n. 4, p. 959-990, 2008.<br />

ORNELLAS, J. G. “Luzes sinistras”. In: Revista <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> Letra Freudiana – O corpo <strong>do</strong><br />

Outro e a criança. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ano XXIII, n. 33, p. 113-126, 2004.<br />

SZAPIRO, L. Elementos para una teoría y clínica lacaniana <strong>de</strong>l fenómeno psicosomático.<br />

Buenos Aires, Grama Ediciones, 2008.<br />

WARTEL, R. Que esperam <strong>de</strong> nós os médicos? (1987). In: Psicossomática e <strong>Psicanálise</strong>.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.<br />

300


A Criança como Sintoma <strong>do</strong>s Pais em Casos <strong>de</strong> Disputa <strong>de</strong> Guar<strong>da</strong><br />

Karine <strong>da</strong> Rocha Queiroz 1<br />

Dra. Júlia S. N. F. Bucher-Malusche 2<br />

A dissolução conjugal po<strong>de</strong> ser um acontecimento traumático para um casal,<br />

principalmente quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>cisão é apenas <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s partes, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> gerar ressentimentos.<br />

Quan<strong>do</strong> se tem filhos, a separação po<strong>de</strong> se tornar ain<strong>da</strong> mais <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>, principalmente quan<strong>do</strong><br />

envolve crianças, on<strong>de</strong> muitos pais quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> recorrem às varas <strong>de</strong> família para<br />

tentar resolver questões pertinentes à guar<strong>da</strong> <strong>do</strong>s filhos.<br />

O gran<strong>de</strong> problema é quan<strong>do</strong> na tentativa <strong>de</strong> salvar o casamento ou se vingar <strong>do</strong> ex-<br />

cônjuge os pais usam a criança como arma para atingir o outro. Porém os pais não po<strong>de</strong>m<br />

esquecer que sempre que uma <strong>da</strong>s partes ganha, quem per<strong>de</strong> é a criança, que muitas vezes é<br />

revitimiza<strong>da</strong> por meio <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> disputa <strong>de</strong> sua guar<strong>da</strong>, <strong>do</strong>s conflitos <strong>de</strong> seus pais.<br />

Este trabalho é fruto <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em psicologia, on<strong>de</strong> foi realiza<strong>da</strong><br />

uma leitura psicanalítica sobre “O princípio <strong>do</strong> melhor interesse <strong>da</strong> criança em casos <strong>de</strong><br />

disputa <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>”.<br />

A pesquisa foi volta<strong>da</strong> a verificar se e<strong>xi</strong>stem garantias no âmbito jurídico <strong>de</strong> que os<br />

interesses <strong>da</strong> criança serão resguar<strong>da</strong><strong>do</strong>s, colocan<strong>do</strong> estes acima <strong>do</strong>s impasses <strong>de</strong> seus pais.<br />

1 Psicóloga, aluna <strong>do</strong> mestra<strong>do</strong> em Psicologia pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza – UNIFOR, especialista em<br />

Psicologia Clínica <strong>de</strong> Base Analítica pelo Centro Universitário Luterano <strong>de</strong> Manaus – ULBRA.<br />

(karine.psi@gmail.com)<br />

2 Doutora em Ciências Familiares e Sexológicas, pós-<strong>do</strong>utora<strong>da</strong> nos EUA e Alemanha. Professora titular<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza e pesquisa<strong>do</strong>ra colabora<strong>do</strong>ra sênior <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília.<br />

(juliasursis@gmail.com)<br />

301


Interesses estes que dizem respeito também a criança continuar a conviver com o genitor não-<br />

guardião após a dissolução conjugal, <strong>de</strong> forma em que esta não se sinta culpa<strong>da</strong> por continuar<br />

a amar ambos os pais, não sinta a separação <strong>do</strong>s pais como um <strong>de</strong>samparo.<br />

Para isto, foram realiza<strong>da</strong>s entrevistas com juristas e peritos (psicólogos e assistentes<br />

sociais) que atuam em casos <strong>de</strong> disputa <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> <strong>do</strong>s filhos, no Fórum <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Fortaleza.<br />

Quan<strong>do</strong> <strong>da</strong>s entrevistas, no que competem as conseqüências que o <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pais<br />

po<strong>de</strong>m causar a criança, foi verifica<strong>do</strong> que os juristas e psicólogos entrevista<strong>do</strong>s enfatizavam<br />

a questão <strong>de</strong> sintomas apresenta<strong>do</strong>s pela criança no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> processo, como consequencia<br />

<strong>da</strong> angústia que as brigas <strong>de</strong> seus pais estavam causan<strong>do</strong>. Neste trabalho, serão recorta<strong>da</strong>s<br />

algumas falas <strong>de</strong>stes profissionais, para abor<strong>da</strong>r a questão <strong>da</strong> criança como sintoma <strong>de</strong> seus<br />

pais em casos <strong>de</strong> disputa <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>.<br />

Alguns genitores, não saben<strong>do</strong> separar conjugali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> parentali<strong>da</strong><strong>de</strong> após a<br />

dissolução conjugal, po<strong>de</strong>m fazer a criança ter que tomar parti<strong>do</strong> na peleja causan<strong>do</strong> um<br />

enorme conflito emocional na criança. Nestes casos, o grito <strong>de</strong> solidão <strong>de</strong>sta criança po<strong>de</strong><br />

aparecer em forma <strong>de</strong> sintomas.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, a juíza pontua: “Quan<strong>do</strong> elas têm problemas <strong>de</strong>ssa natureza (se<br />

referin<strong>do</strong> a tentativa <strong>do</strong>s pais afastarem a criança <strong>do</strong> convívio um <strong>do</strong> outro), aquilo é um<br />

<strong>de</strong>sastre pra criança sabe, porque aquilo afeta a vi<strong>da</strong> inteira <strong>da</strong> criança né, é na escola, em<br />

casa, ela fica retraí<strong>da</strong>, não é mais a criança, aquela coisa bela, não tem mais aquela<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e você vai ter uma criança maltrata<strong>da</strong>”.<br />

302


Para Lacan (1969) o sintoma <strong>da</strong> criança respon<strong>de</strong> ao que e<strong>xi</strong>ste <strong>de</strong> sintomático na<br />

estrutura familiar, representan<strong>do</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> casal parental. Ou seja, há a relação entre a<br />

estrutura familiar e o sintoma <strong>da</strong> criança, e<strong>xi</strong>stin<strong>do</strong> uma apropriação sintomática <strong>da</strong> criança<br />

através <strong>de</strong> suas produções fantasmáticas, ou <strong>de</strong> um assujeitamento mortífero ao <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong><br />

Outro.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, Mannoni (1967) observa que a criança é parte <strong>de</strong> um discurso coletivo e<br />

que diante <strong>da</strong> intrusão <strong>do</strong>s pais, não resta outra saí<strong>da</strong> senão respon<strong>de</strong>r com o sintoma por meio<br />

<strong>de</strong> problemas escolares, reações somáticas, entre outros.<br />

Para a mesma autora, é a palavra <strong>do</strong> pai, a palavra <strong>da</strong> mãe que pesa para a criança.<br />

Assim, enquanto a criança estiver sob o império <strong>de</strong>ssa palavra mortífera será escrava <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seus pais, on<strong>de</strong> seus próprios <strong>de</strong>sejos ficarão soterra<strong>do</strong>s. Para o sujeito ter acesso ao<br />

<strong>de</strong>sejo, que o constitui, é necessário então que ele não seja bloquea<strong>do</strong> pelas palavras parentais.<br />

A psicóloga nesse senti<strong>do</strong> pontua: “O que está por trás (<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> disputa <strong>de</strong><br />

guar<strong>da</strong>) é uma separação mal resolvi<strong>da</strong>, por aquela convivência que se per<strong>de</strong>u, então é<br />

espírito <strong>de</strong> vingança, on<strong>de</strong> os pais usam os filhos como moe<strong>da</strong> <strong>de</strong> troca”.<br />

Checchinato (2007), se referin<strong>do</strong> ao trabalho <strong>de</strong> Lacan “Duas notas sobre a criança”<br />

(1969) lembra que a psicanálise enten<strong>de</strong> o sintoma como um fenômeno subjetivo, que ao<br />

mesmo tempo em que faz sofrer, propicia gozo. E<strong>xi</strong>stem assim alternativas: ou sintoma se<br />

apresenta como uma disfunção (recalque), on<strong>de</strong> a criança se vê <strong>de</strong>positária <strong>da</strong>quilo que é<br />

insuportável no pai ou na mãe, ou como lesão <strong>de</strong> órgãos, que é o sintoma que aparece no<br />

corpo.<br />

303


De acor<strong>do</strong> com a psicóloga ouvi<strong>da</strong>, em seu trabalho com crianças no contexto <strong>da</strong><br />

disputa <strong>de</strong> guar<strong>da</strong> esta afirma: “Essa questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tanto emocional quanto<br />

físico mesmo, porque tem somatização muitas vezes, que são conseqüências negativas que a<br />

gente percebe, tanto no âmbito escolar como as somatizações, questão biológica né, física e a<br />

questão emocional mesmo”.<br />

A criança assim po<strong>de</strong> ser alvo <strong>da</strong> projeção <strong>do</strong>s problemas <strong>de</strong> seus pais, <strong>da</strong>s frustrações<br />

<strong>de</strong>stes. Nos casos <strong>da</strong> disputa <strong>de</strong> guar<strong>da</strong>, muitos pais induzem as crianças a mentir, a não ir aos<br />

passeios com o outro genitor, escon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a criança, inventan<strong>do</strong> <strong>do</strong>enças, se vitiman<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>negrin<strong>do</strong> o genitor não guardião. Assim como o genitor não guardião, po<strong>de</strong> tentar pactuar<br />

com a criança, contra o genitor guardião.<br />

Quan<strong>do</strong> a criança é coloca nesta situação, po<strong>de</strong> se sentir perdi<strong>da</strong>, até mesmo culpa<strong>da</strong><br />

por amar ambos os pais e <strong>de</strong>sejar tê-los por perto mesmo após a dissolução conjugal. A<br />

criança po<strong>de</strong> acreditar que foi ela que provocou o sofrimento <strong>do</strong>s pais, que o <strong>de</strong>senlace é por<br />

sua causa (Dolto, 2003).<br />

Ain<strong>da</strong> segun<strong>do</strong> a mesma autora, reações psicossomáticas po<strong>de</strong>m vir a surgir <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à<br />

angústia que a criança sente em relação à separação <strong>do</strong>s pais, on<strong>de</strong> a criança não saben<strong>do</strong><br />

explicar verbalmente o que sente expressa no corpo.<br />

A psicóloga nesse tocante coloca: “Muito comum as somatizações, são problemas<br />

gástricos, refluxo, a criança chega a ter gastrite né, muito problema <strong>de</strong> pele também.”<br />

Dolto (2003) lembra o ensinamento lacaniano <strong>de</strong> que o inconsciente se estrutura como<br />

uma linguagem, mostran<strong>do</strong> que há partes no corpo <strong>do</strong> sujeito que são expressivas sem que<br />

304


este saiba, ou seja, os sintomas constituem uma linguagem a ser <strong>de</strong>cifra<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> no caso <strong>da</strong>s<br />

crianças, está po<strong>de</strong> expressar no corpo o que não consegue falar.<br />

Como foi dito, o sintoma surge como um S.O.S, sen<strong>do</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> casal parental.<br />

Retoman<strong>do</strong> o trabalho <strong>de</strong> Checchinato (2007) este lembra que a valorização ou <strong>de</strong>svalorização<br />

que um pai faz <strong>do</strong> outro para a criança, a marca.<br />

Para o autor nunca é <strong>de</strong>mais escutar que lugar o pai <strong>da</strong> criança ocupa no discurso <strong>da</strong><br />

mãe e o lugar <strong>da</strong> criança no discurso <strong>de</strong> ambos os pais. Levan<strong>do</strong> esta questão para o contexto<br />

<strong>da</strong> disputa <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> <strong>de</strong> crianças, é necessário que os profissionais que atuam em ca<strong>da</strong> caso,<br />

fiquem atentos para o discurso <strong>do</strong>s genitores, os motivos alega<strong>do</strong>s para a dissolução conjugal,<br />

que função eles <strong>de</strong>legam à criança a ocupar neste cenário.<br />

Nesta mesma perspectiva, Kupfer (1994) pontua que pais e criança são <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />

pelas leis <strong>do</strong> simbólico, <strong>da</strong> linguagem, isso permite que haja uma circulação <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças por<br />

meio <strong>da</strong> amarração discursiva. Porém como a autora lembra, ao contrário <strong>do</strong> adulto, a criança<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> por vários anos <strong>de</strong> cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s especiais e isso a faz submeter-se aos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> seus<br />

pais.<br />

As manifestações sintomáticas são justamente então a resposta <strong>da</strong> criança às neuroses<br />

nos Outros reais que são seus pais, ou seja, os pais escrevem algo <strong>de</strong> sua própria neurose<br />

sobre o corpo <strong>da</strong> criança.<br />

Rosenberg (1994) partilha <strong>do</strong> mesmo entendimento, afirman<strong>do</strong> que as crianças<br />

costumam fazer sintomas em lugares que se tornam insuportáveis para seus pais, sen<strong>do</strong> uma<br />

maneira <strong>de</strong> a criança se fazer ouvir. Neste senti<strong>do</strong>, a criança po<strong>de</strong>, por meio <strong>do</strong> sintoma,<br />

reatualizar conflitos não resolvi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seus pais.<br />

305


Assim, uma <strong>da</strong>s partes ou o casal po<strong>de</strong> utilizar o processo judicial como manutenção<br />

<strong>do</strong> vínculo (Zimerman e Colto, 2002) como último recurso ao seu apelo psíquico e em sua<br />

angustia em respon<strong>de</strong>r suas questões, po<strong>de</strong> esquecer que no meio <strong>do</strong> conflito e<strong>xi</strong>ste uma<br />

criança que espera <strong>de</strong> seus pais na<strong>da</strong> menos que estes exerçam sua função enquanto pais,<br />

estan<strong>do</strong> estes juntos ou separa<strong>do</strong>s.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CHECCHINATO, D. <strong>Psicanálise</strong> <strong>de</strong> pais. Criança sintoma <strong>do</strong>s pais. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Companhia <strong>de</strong> Freud, 2007.<br />

DOLTO, F. Quan<strong>do</strong> os pais se separam. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003.<br />

KUPFER, M. C. Pais: melhor não tê-los? In: O lugar <strong>do</strong>s pais na psicanálise <strong>de</strong> crianças.<br />

São Paulo: Escuta, 1994.<br />

LACAN, J. Duas Notas sobre a criança. (1969). In Outros Escritos. Rio <strong>de</strong> janeiro: Jorge<br />

Zahar, 2003.<br />

MANNONI, M. A criança, sua <strong>do</strong>ença, e os outros. (1967). São Paulo: Via Lettera, 1999.<br />

ROSENBERG, A. M. A constituição <strong>do</strong> sujeito e o lugar <strong>do</strong>s pais na análise <strong>de</strong> crianças.<br />

São Paulo: Escuta, 1994.<br />

ZIMERMAN, D; COLTO, A. Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. São Paulo:<br />

Millennium, 2002.<br />

306


<strong>Psicanálise</strong> e Política : o Psicanalista como Sintoma <strong>da</strong> Cultura<br />

Juçara Rocha Soares Mapurunga 1<br />

Henrique Figueire<strong>do</strong> Carneiro 2<br />

Lacan posicionou-se diferentemente <strong>de</strong> Freud com relação ao mal-estar na cultura,<br />

pois ao contrário <strong>de</strong>ste, para quem só há socie<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong><strong>da</strong> sobre a função paterna, o mal-<br />

estar sen<strong>do</strong> visto como efeito <strong>do</strong> recalque, acreditava que a que<strong>da</strong> <strong>do</strong> saber <strong>do</strong> mestre<br />

transforma<strong>do</strong> pelo saber científico é o que justifica o mal-estar nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s atuais,<br />

caracteriza<strong>da</strong>s pela ciência e pelo capitalismo, em que um <strong>do</strong>s aspectos <strong>do</strong> gozo se encontra<br />

no consumo <strong>de</strong> bens. O início <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio <strong>da</strong> figura paterna começou no século XIX, com o<br />

choque <strong>de</strong> valores trazi<strong>do</strong> pela economia industrial, on<strong>de</strong> os novos valores que surgiram eram<br />

os <strong>da</strong> economia mercantil, atrelan<strong>do</strong> um <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong> Nome-<strong>do</strong>-Pai às modificações <strong>da</strong><br />

economia, estan<strong>do</strong> em baixa os valores liga<strong>do</strong>s aos i<strong>de</strong>ais simbólicos. O nascimento e a<br />

evolução <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa <strong>da</strong> tradição,<br />

pois visa o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> hierarquia, julga<strong>da</strong> responsável pelas <strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e<br />

encontra seu fun<strong>da</strong>mento no discurso <strong>da</strong> ciência . A gran<strong>de</strong> filosofia moral <strong>do</strong>s dias <strong>de</strong> hoje, é<br />

que ca<strong>da</strong> ser humano <strong>de</strong>veria encontrar em seu meio aquilo com o que se satisfazer<br />

plenamente. É a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> gozo <strong>do</strong> consumo <strong>do</strong>s objetos. Nesta cultura, pauta<strong>da</strong> no<br />

1 Psicóloga (UFC), psicanalista, mestre e <strong>do</strong>utoran<strong>da</strong> em Psicologia pela UNIFOR (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Fortaleza); membro <strong>do</strong><br />

LABIO (Laboratório sobre as novas formas <strong>de</strong> inscrição <strong>do</strong> objeto), e <strong>da</strong> CLIO – Associação Psicanalítica. E-mail:<br />

jucara@mapurunga.adv.br<br />

2 Doutor em fun<strong>da</strong>mentos y <strong>de</strong>sarrollos psicoanalíticos (UPCO-Madrid). Professor Titular e coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mestra<strong>do</strong> em<br />

Psicologia <strong>da</strong> UNIFOR. Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> LABIO (Laboratório sobre as novas formas <strong>de</strong> inscrição <strong>do</strong> objeto) e <strong>da</strong> CLIO<br />

(Clínica <strong>do</strong> Objeto). Membro <strong>do</strong> GT Psicopatologia e <strong>Psicanálise</strong> <strong>da</strong> ANPEPP. Pesquisa<strong>do</strong>r <strong>da</strong> AUPPF (Associação<br />

Universitária <strong>de</strong> Pesquisa<strong>do</strong>res em Psicopatologia Fun<strong>da</strong>mental). E-mail: Henrique@unifor.br<br />

307


discurso <strong>do</strong> capitalista, e iludi<strong>da</strong> pela universali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ciência que prometem a completu<strong>de</strong> e<br />

a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> extrema numa clara tentativa <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>saparecer a castração, o discurso <strong>do</strong><br />

psicanalista e sua ação política é uma saí<strong>da</strong> ao trazer à tona o <strong>encontro</strong> com a castração, que<br />

fun<strong>da</strong> o sujeito humano, mas, é, também um sintoma. Discutir a posição política <strong>do</strong><br />

psicanalista como um sintoma <strong>da</strong> cultura é o nosso objetivo. Além <strong>de</strong> ser efeito <strong>de</strong>ssa cultura,<br />

o psicanalista é, também, sintoma, ao trazer à tona o discurso <strong>da</strong> castração em confronto com<br />

o imperativo categórico <strong>do</strong> gozar a qualquer preço.<br />

Hoje, sabemos, a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ologia liberal é assegurar o gozo a to<strong>do</strong>s . “E<br />

isso se tornou a nova moral. A nova moral é que ca<strong>da</strong> um tem o direito <strong>de</strong> satisfazer<br />

plenamente seu gozo, sejam quais forem suas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s.” (Melman, 2003, p. 60). Dentro<br />

<strong>de</strong>ssa nova moral, fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong> no saber <strong>da</strong> ciência, que se transmite em seus enuncia<strong>do</strong>s e<br />

exclui o sujeito <strong>da</strong> enunciação, tão caro à ver<strong>da</strong><strong>de</strong> psicanalítica, qual a posição <strong>do</strong><br />

psicanalista?<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, Eric Laurent (2007, p.144), assente dizen<strong>do</strong>: “ O analista mais que um<br />

lugar vazio, é aquele que aju<strong>da</strong> a civilização a respeitar a articulação entre normas e<br />

particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s individuais “. Os analistas não <strong>de</strong>vem apenas escutar; eles precisam saber<br />

transmitir a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> interesse que a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um tem para to<strong>do</strong>s”. Além<br />

<strong>da</strong> escuta clínica, o psicanalista hoje <strong>de</strong>ve transmitir a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> que está em jogo na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> sujeito, ao invés <strong>do</strong> saber universal <strong>do</strong> indivíduo científico.<br />

A <strong>de</strong>mocracia trouxe a atualização política <strong>de</strong>sta mutação cultural em an<strong>da</strong>mento.. O<br />

nascimento e a evolução <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia, reorganiza o laço social em uma outra lógica, diversa<br />

308


<strong>da</strong> tradição, pois visa o <strong>de</strong>saparecimento <strong>da</strong> hierarquia, julga<strong>da</strong> responsável pelas<br />

<strong>de</strong>sigual<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e encontra seu fun<strong>da</strong>mento no discurso <strong>da</strong> ciência e na exclusão <strong>do</strong> ao-menos-<br />

um que lhe é implícito. Assim nesse mesmo movimento <strong>de</strong>mocrático, o saber <strong>da</strong>s ciências<br />

tomou o lugar <strong>do</strong> mestre, esse ao- menos-um, que escapa a castração.<br />

Observamos uma recusa a castração na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, no discurso capitalista<br />

há uma recusa <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> discurso. Márcio Peter (2000, p.252) lembra que Lacan<br />

referin<strong>do</strong>-se à Max Weber, em relação à ética protestante e o capitalismo, disse: “O<br />

<strong>de</strong>slizamento calvinista que nos últimos séculos introduz o capitalismo se caracteriza por<br />

distinguir o discurso capitalista pela recusa <strong>da</strong> castração”. Na Conferência em Milão, 1972 :<br />

“Do discurso <strong>do</strong> psicanalista”, Lacan assegura: “To<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m, to<strong>do</strong> discurso que se entronca<br />

no capitalismo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a castração”. ( Ibid).<br />

Lacan formulou uma noção diferente <strong>da</strong> <strong>de</strong> Freud, para o mal-estar próprio à cultura.<br />

Para Freud o mal-estar é visto como efeito <strong>do</strong> recalque, para Lacan é próprio <strong>da</strong> civilização<br />

caracteriza<strong>da</strong> pela ciência e pelo capitalismo, que um <strong>do</strong>s aspectos <strong>do</strong> gozo se encontre no<br />

consumo <strong>de</strong> bens, advin<strong>do</strong> <strong>da</strong>í o mal-estar. Para Márcio Peter (2000, p. 221) é aqui que a<br />

clínica psicanalítica aponta para a emergência <strong>de</strong> novas formas <strong>do</strong> sujeito fugir ao mal-estar,<br />

pois <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> linguagem, intensifica<strong>da</strong> pelo po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> mídia, há sempre novos dispositivos<br />

i<strong>de</strong>ntificatórios que oferecem ao sujeito novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> evitar a angústia, por intermédio <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ais prontos para serem ofereci<strong>do</strong>s em massa, para sujeitos universaliza<strong>do</strong>s, excluí<strong>do</strong>s em<br />

suas diferenças, em suas singulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s e diferenças.: “É esse o <strong>de</strong>bate no qual o analista está<br />

convoca<strong>do</strong> pela cultura e que acontece não só por ser o analista ele também um sintoma <strong>da</strong><br />

309


cultura que interpreta, mas, mais ain<strong>da</strong> talvez, por ser o analista a única esperança <strong>de</strong><br />

modificação <strong>de</strong>ssa cultura.” O comentário <strong>de</strong> Márcio Peter (2000, p. 222): “O analista, ao se<br />

comprometer com a causa <strong>do</strong> inconsciente, quase sempre se contrapõe à causa <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, já<br />

que, para ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> nós, o que conta é somente uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong> particular, ficção fabrica<strong>da</strong><br />

para respon<strong>de</strong>r ao mal-estar.” , nos esclarece porque, o analista é um sintoma <strong>da</strong> cultura, pois<br />

a confronta com a incompletu<strong>de</strong> <strong>do</strong> inconsciente. À ciência que se preten<strong>de</strong> totalizante com o<br />

seu saber, o analista confronta com a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> inconsciente: “Por isso o analista é<br />

um sintoma <strong>da</strong> cultura, porque ao mesmo tempo em que ele é sua mais refina<strong>da</strong> produção,<br />

representa uma expressão <strong>da</strong> rebeldia à tirania <strong>de</strong>sta civilização, que, por causa <strong>da</strong>s<br />

características <strong>da</strong> condição humana, faz o homem procurar a completu<strong>de</strong> que não e<strong>xi</strong>ste na<br />

religião, no consumo <strong>de</strong> bens, no amor, no saber, ou em termos freudianos, na ilusão”(Ibid).<br />

Freud em seu percurso nos mostrou e serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo na atuação social e política <strong>do</strong><br />

analista, quan<strong>do</strong> observamos nele em operação uma tripla responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />

psicanálise face ao campo social: responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> clínica, primeiro, já que respon<strong>de</strong> por<br />

enten<strong>de</strong>r o que é a reação terapêutica negativa na cura; responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica, já que<br />

<strong>de</strong>senvolve a questão <strong>da</strong> pulsão <strong>de</strong> morte e <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> tópica; por fim, responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

política, já que toma diretamente parti<strong>do</strong> nessa questão <strong>da</strong> análise leiga. (Lebrun, 2004,<br />

p.204). Então na própria formação e atuação o psicanalista situa sua posição frente ao campo<br />

social e político. Colette Soler (1998, p. 257), abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> incidência política <strong>do</strong><br />

psicanalista a partir <strong>de</strong> uma tese <strong>de</strong> Lacan em ‘Televisão’ (1974), em que ele indica, na<strong>da</strong><br />

menos, que o passe <strong>do</strong> psicanalista po<strong>de</strong>ria operar “a saí<strong>da</strong> <strong>do</strong> discurso capitalista”.<br />

Lembran<strong>do</strong> que além disso, Lacan não cessou jamais <strong>de</strong> afirmar que a psicanálise tem <strong>de</strong> fato<br />

310


um alcance político e que ganharia esse alcance se os psicanalistas consentissem em não<br />

esquecer por que eles são feitos, e a que os chama o discurso analítico.<br />

Para o discurso <strong>do</strong> capitalista, o passe <strong>do</strong> psicanalista anunciaria uma saí<strong>da</strong>, como<br />

proclamou Lacan, pois essa posição não é na<strong>da</strong> mais <strong>do</strong> que o que esse anuncia na fórmula<br />

elabora<strong>da</strong> por Colette Soler (1998, p.262): “o psicanalista...- o psicanalista como produto<br />

transforma<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma análise- não é um proletário”. O psicanalista é aquele que po<strong>de</strong> fazer<br />

frente a to<strong>do</strong> discurso <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> <strong>do</strong> discurso <strong>do</strong> capitalismo ( aquele que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a<br />

castração), porque tem por <strong>de</strong>sejo e vocação <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r alguma coisa na economia <strong>do</strong> gozo<br />

capitalista.Sen<strong>do</strong> assim, a posição <strong>do</strong> psicanalista na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, é aquela <strong>de</strong><br />

preten<strong>de</strong>r emancipar os sujeitos <strong>do</strong>s impasses <strong>da</strong> versão capitalista <strong>do</strong> supereu. Por isso<br />

representa uma saí<strong>da</strong> e uma solução. Ao fim <strong>de</strong> uma análise, caminha-se para uma redução <strong>do</strong><br />

gozo e para a inscrição <strong>da</strong> diferença <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um.<br />

Por fim passemos a palavra a Colette Soler, que resumi<strong>da</strong>mente respon<strong>de</strong> por que a<br />

psicanálise é a solução, a saí<strong>da</strong> para o discurso capitalista: “Se nos perguntamos ‘por que a<br />

psicanálise?’como a uma certa época nos perguntávamos ‘por que os filósofos?’, nós a<br />

reportamos geralmente a um vício radical em uma civilização marca<strong>da</strong> pela ciência. Esse<br />

vício <strong>de</strong>ve-se ao fato <strong>de</strong> que a ciência ignora o sujeito. É uma foraclusão. Daí a idéia <strong>de</strong> que a<br />

psicanálise está aqui a título <strong>de</strong> antí<strong>do</strong>to, fazen<strong>do</strong> valer o que chamei na ocasião <strong>de</strong> os direitos<br />

<strong>do</strong> sujeito. Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta a ciência”. (1998, p. 283).<br />

Como se a psicanálise fosse em suma, o que falta à ciência. Como se o psicanalista<br />

fosse em seu sumo, em sua formação, em sua atuação o que falta para fazer frente ao merca<strong>do</strong><br />

311


<strong>de</strong> consumo. E isso é possibilita<strong>do</strong> através <strong>do</strong> posicionamento <strong>do</strong> psicanalista frente ao mun<strong>do</strong><br />

social <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois a própria formação <strong>do</strong> analista o leva continuamente a questionar<br />

que, se não há uma cura para o mal-estar na cultura, o analista sen<strong>do</strong> ele mesmo um objeto <strong>de</strong><br />

merca<strong>do</strong> situa assim uma ética que vai além <strong>do</strong> terapêutico e <strong>de</strong> um consumismo <strong>de</strong> bens que<br />

prometa uma completu<strong>de</strong> que não há.<br />

Para um mun<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>sabono <strong>da</strong> função paterna e pela retira<strong>da</strong> <strong>do</strong> pai<br />

real, pela pulverização <strong>da</strong> imago paterna, o psicanalista, é óbvio, não é capaz <strong>de</strong> trazer<br />

remédio, se é que se po<strong>de</strong> e é preciso curar disso, mas sua responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> social é se pôr a<br />

trabalhar ali on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>. E on<strong>de</strong> isso é possível é na sua própria formação, atuação e posição<br />

<strong>de</strong> analista que leva o saber aprendi<strong>do</strong> no consultório para outros lugares sociais, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />

proclamar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que o objeto <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, não é esse propaga<strong>do</strong> pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

consumo, mas aquele que está para sempre perdi<strong>do</strong>, que sempre <strong>de</strong>sliza e nos escapa, mas que<br />

foi captura<strong>do</strong> por Lacan, naquela que foi sua gran<strong>de</strong> criação conceitual: o objeto a, causa <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

Trazer a castração, a enunciação, não quer dizer querer voltar ao passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai <strong>da</strong><br />

tradição, isso não tem volta. Não quer dizer que não aceitamos as vantagens <strong>da</strong> ciência, mas<br />

que criticamos seus enuncia<strong>do</strong>s e conhecemos como o social utiliza seu funcionamento e que<br />

estamos atentos às tentativas <strong>de</strong> apagamento <strong>da</strong>s diferenças, e sempre que possível tentaremos<br />

fazer com que o que torna singular e particular ca<strong>da</strong> sujeito possa contribuir para minorar um<br />

pouco o mal-estar próprio e in<strong>de</strong>strutível <strong>da</strong>s culturas em que época que for, seja <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>samparo ou <strong>do</strong> <strong>de</strong>salento.<br />

312


Referências Bibliográficas<br />

LACAN, Jacques. (1969-1970). O Seminário. Livro XVII. O Avesso <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar, 1992.<br />

LAURENT, Éric. A Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> Sintoma. A psicanálise, hoje. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contra Capa,<br />

2007.<br />

LEBRUN, Jean-Pierre. Um Mun<strong>do</strong> sem Limite – Ensaio para uma clínica <strong>do</strong> social. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Companhia <strong>de</strong> Freud, 2004.<br />

LEITE, Márcio Peter <strong>de</strong> Souza. <strong>Psicanálise</strong> Lacaniana-Cinco seminários para analistas<br />

kleinianos. São Paulo: Iluminuras, 2000.<br />

MELMAN, C. O Homem sem gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> – Gozar a qualquer preço. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Companhia <strong>de</strong> Freud, 2003 b.<br />

SOLER, Colette. A psicanálise na civilização. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contra Capa, 1998.<br />

313


Sintoma e repetição na neurose obsessiva<br />

Liliana Marlene <strong>da</strong> Silva Alves 1<br />

“é no instante mesmo que o S1 intervém no campo já constituí<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s outros significantes, que surge o $, que é o que chamamos <strong>de</strong><br />

sujeito dividi<strong>do</strong>. Enfim, nós sempre acentuamos que <strong>de</strong>sse<br />

trajeto surge alguma coisa <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> como uma per<strong>da</strong>. É isso que<br />

<strong>de</strong>signa a letra que se lê como sen<strong>do</strong> o objeto a. Não <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signar o ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> extraímos essa função <strong>do</strong> objeto<br />

perdi<strong>do</strong>. É <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong> Freud sobre o senti<strong>do</strong> específico <strong>da</strong><br />

repetição no ser falante” (Lacan, 1969-­‐70, p.13).<br />

Este trabalho interroga a função <strong>da</strong> repetição em sua relação com o sintoma, como<br />

sugere o texto em epígrafe. Preten<strong>de</strong>mos verificar como o sujeito obsessivo respon<strong>de</strong> ao<br />

<strong>encontro</strong> com a castração, momento em que é chama<strong>do</strong> a se articular frente à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong><br />

Outro e se colocar em posição <strong>de</strong> sujeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo.<br />

Tomamos o exemplo <strong>de</strong> João, um menino <strong>de</strong> 2 anos que ao ser priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> seio<br />

materno respon<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma sintomática reten<strong>do</strong> seu cocô até as últimas consequências e<br />

diante <strong>do</strong> apelo <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong> <strong>da</strong> mãe, grita e se contorce até a exaustão, quan<strong>do</strong> então pe<strong>de</strong><br />

para tomar banho e sob o chuveiro lhe entrega o objeto <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong>. Essa cena repete-se<br />

diariamente e a análise é indica<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o exame médico localiza uma hérnia <strong>de</strong> umbigo<br />

iminente.<br />

Partiremos <strong>de</strong>sse ponto para localizar teoricamente nossa questão. Primeiramente, é<br />

necessário tomar a questão <strong>do</strong> sujeito obsessivo em relação à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> e ao <strong>de</strong>sejo conforme<br />

1 Psicóloga, membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> campo Lacaniano <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> janeiro.<br />

314


Lacan formula no Seminário 5, as formações <strong>do</strong> inconsciente. Sabemos que a <strong>de</strong>man<strong>da</strong><br />

sempre pe<strong>de</strong> a satisfação <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém, inci<strong>de</strong> sobre alguma coisa que vai além, na<br />

medi<strong>da</strong> em que se articula no simbólico. Esse campo para além <strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> é condição<br />

necessária para que o sujeito se constitua satisfatoriamente e é nesse campo que se localiza o<br />

significante <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo (- φ), <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro que não inclui totalmente o sujeito e que situa o<br />

Outro como castra<strong>do</strong>.<br />

Nesse caso <strong>de</strong>stacamos as duas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong> articula<strong>da</strong>s no sintoma<br />

apresenta<strong>do</strong>. A <strong>de</strong>man<strong>da</strong> ao Outro (oral) e a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro (anal) conjugam-se na<br />

encenação construí<strong>da</strong> por João. Ao privar o sujeito <strong>do</strong> objeto oral, a mãe presentifica o além<br />

<strong>da</strong> <strong>de</strong>man<strong>da</strong>, situan<strong>do</strong>-se como castra<strong>da</strong>, barra<strong>da</strong> pelo próprio <strong>de</strong>sejo. Priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> seio João<br />

articula sua <strong>de</strong>man<strong>da</strong> à <strong>de</strong>man<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> tal como Lacan nos ensina, a função<br />

<strong>do</strong> cíbalo como objeto agalmático <strong>da</strong> mãe, o que na neurose obsessiva assume valor<br />

fun<strong>da</strong>mental, uma vez que essa função só po<strong>de</strong> ser concebi<strong>da</strong> “em sua relação com o falo,<br />

com a ausência <strong>de</strong>le, com a angústia fálica como tal” (Lacan, 962-1963, p. 328).<br />

Na sua primeira entrevista, João dirige-se diretamente para as massinhas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar<br />

com as quais faz um cocô colori<strong>do</strong> dizen<strong>do</strong> que é um jacaré. O cocô cuja função na<br />

constituição <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> é na<strong>da</strong> menos que a função <strong>de</strong> objeto causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo anal em<br />

sua conjugação com a função <strong>do</strong> pequeno a (Lacan, 962-1963, p. 322), recebe em análise<br />

diversas significações indican<strong>do</strong> seu valor <strong>do</strong> significante que representa o sujeito (S2) frente<br />

a outro significante (S1) nesse caso o seio.<br />

315


Sen<strong>do</strong> assim, reaparece em um jogo cujas peças são sapinhos e João afirma, em<br />

associação livre, que no lago on<strong>de</strong> os sapinhos moram tem jacaré e que o jacaré come os<br />

sapinhos e mais ain<strong>da</strong>, que o jacaré é a mãe <strong>do</strong>s sapinhos.<br />

Partin<strong>do</strong> <strong>da</strong> fórmula “o <strong>de</strong>sejo é o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> Outro” (1957-1958, p. 417), Lacan aponta<br />

para o caráter evanescente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> obsessivo, que resi<strong>de</strong> na dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong><br />

sua relação com o Outro. To<strong>do</strong> o problema <strong>do</strong> obsessivo está em <strong>da</strong>r suporte ao seu <strong>de</strong>sejo,<br />

uma vez que este prefigura a <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> Outro e localiza-se para além <strong>do</strong> Outro, o que leva<br />

Lacan a afirmar que o <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> obsessivo é um “<strong>de</strong>sejo em esta<strong>do</strong> puro” (Lacan, 1957-58, p.<br />

413). Diferente <strong>da</strong> histérica que “encontra apoio ao seu <strong>de</strong>sejo na i<strong>de</strong>ntificação com o outro<br />

imaginário” (Lacan, 1957-58, p. 415), o que dá aparência <strong>de</strong> apoio ao <strong>de</strong>sejo obsessivo é um<br />

objeto redutível ao significante falo. Isso é <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> por João em um jogo encena<strong>do</strong><br />

inúmeras vezes em análise, através <strong>do</strong> qual faz <strong>do</strong> seu excremento uma joia preciosa, “uma<br />

joia <strong>de</strong> cem mil quilates” (sic), causa <strong>de</strong> batalhas intermináveis com um ladrão que a espreita<br />

e ameaça tomar-lhe a qualquer momento.<br />

No nivel <strong>do</strong> sintoma verifica-­‐se a angustia <strong>de</strong> castração que segun<strong>do</strong> Lacan (1964,<br />

p. 65), “é como um fio que perfura to<strong>da</strong>s as etapas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e cristaliza ca<strong>da</strong><br />

momento anterior à sua aparição propriamente dita – <strong>de</strong>smame, disciplina anal, etc.,<br />

numa dialética centra<strong>da</strong> num mal <strong>encontro</strong>, que está no nível <strong>do</strong> sexual”. Neste caso, o<br />

seio cuja per<strong>da</strong> recorta o corpo <strong>do</strong> sujeito irremediavelmente atravessa<strong>do</strong> pelo<br />

significante, reaparece <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> vela<strong>do</strong>, como o significante sem senti<strong>do</strong> (S1), e <strong>de</strong>nuncia<br />

a não e<strong>xi</strong>stência <strong>da</strong> relação sexual. Por outro la<strong>do</strong>, a tentativa <strong>de</strong> incorporar o objeto<br />

anal, remete ao sintoma enquanto suplência à falta <strong>de</strong> relação sexual e a isso o sujeito<br />

316


está fixa<strong>do</strong> a tal ponto que chega a ameaçar fazer um novo furo, um buraco para abrigar<br />

o gozo no real <strong>do</strong> corpo, afinal o que é uma hérnia senão uma rasgadura na carne? No<br />

caso <strong>do</strong> neurótico, entretanto, o sintoma falha porque o sintoma na sua relação com a<br />

estrutura respon<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o Outro falta e assume um “valor <strong>de</strong> gozo insuficiente” (Soler,<br />

1991, p. 70-­‐71).<br />

No caso <strong>de</strong> João, o sintoma apresenta duas facetas. Por um la<strong>do</strong> instaura a<br />

repetição como insistência <strong>do</strong> gozo que ultrapassa os limites <strong>do</strong> principio <strong>do</strong> prazer, e<br />

por outro, constitui-­‐se num apelo ao outro, como tentativa <strong>de</strong> encontrar alívio <strong>da</strong> tensão,<br />

ou seja, <strong>da</strong> manutenção <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o que não dá sossego, põe o outro a trabalho (enten<strong>da</strong>-­‐<br />

se aqui o outro como to<strong>da</strong> a sua família, mãe, pai, avô, avó, tios), to<strong>do</strong>s enlouqueci<strong>do</strong>s<br />

com esse sujeito que não quer fazer cocô.<br />

A repetição no sintoma é o que afirma o inconsciente, o que revela a e<strong>xi</strong>stência <strong>do</strong><br />

recalque porque o que retorna é o significante recalca<strong>do</strong>. No caso <strong>do</strong> obsessivo a<br />

repetição assume to<strong>do</strong> o seu valor, pois, como diz Lacan o obsessivo é o sujeito <strong>da</strong><br />

repetição, basta observar suas manobras para transformar o Outro em um simples<br />

outro. Vejamos com Lacan o que é um obsessivo: “É, em suma, um ator que <strong>de</strong>sempenha<br />

seu papel e assegura um certo número <strong>de</strong> atos como se estivesse morto” (Lacan,1956-­‐<br />

1957, p. 26). Atos repetitivos, diga-­‐se <strong>de</strong> passagem, técnicas au<strong>xi</strong>liares e substitutivas <strong>do</strong><br />

recalque às quais Freud chamou <strong>de</strong> anulação e isolamento (Freud, 1926, p. 142). Essas<br />

técnicas tem a função <strong>de</strong> reforçar o recalque e ao mesmo tempo anular o <strong>de</strong>sejo, ou seja,<br />

na tentativa <strong>de</strong> se proteger <strong>da</strong> morte, o obsessivo mortifica o próprio <strong>de</strong>sejo, mortifica o<br />

317


Outro, assumin<strong>do</strong> o coman<strong>do</strong> <strong>de</strong> um jogo on<strong>de</strong> ele é o diretor, o ator e a plateia,<br />

reduzin<strong>do</strong> o Outro a um simples outro. Nesse senti<strong>do</strong> o sintoma obsessivo reveste-­‐se<br />

<strong>de</strong>sse caráter <strong>de</strong>negatório, como bem <strong>de</strong>monstra João em várias passagens <strong>de</strong> sua<br />

análise.<br />

Para Freud o uso <strong>de</strong>ssas técnicas pelo obsessivo, <strong>de</strong>ve-­‐se a uma certa dificul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

na função <strong>do</strong> recalque, visto que, ao contrario <strong>da</strong> histeria on<strong>de</strong> a formação <strong>de</strong> sintomas<br />

se dá por metáfora incidin<strong>do</strong> no corpo, na neurose obsessiva os sintomas são<br />

pre<strong>do</strong>minantemente <strong>do</strong> eu, ou seja, ocorrem pela formação metonímica ou<br />

<strong>de</strong>slocamento, como po<strong>de</strong>mos ver no jogo <strong>do</strong>s sapinhos on<strong>de</strong> o significante cocô,<br />

<strong>de</strong>sloca-­‐se para jacaré e em segui<strong>da</strong> para a mãe que come os sapinhos.<br />

Outra passagem <strong>de</strong> sua análise ilustra perfeitamente o uso <strong>do</strong> isolamento pelo<br />

obsessivo: Ele e a analista tomam sopa – no mesmo prato. João vai até a janela, observa<br />

uma criança brincan<strong>do</strong> agacha<strong>da</strong> e pergunta: “é menino ou menina?” No mesmo<br />

momento apro<strong>xi</strong>ma-­‐se um menino, e ele então acrescenta: “É menina. Agora tem uma<br />

menina e um menino. Quan<strong>do</strong> eles crescerem eles vão virar homen(xxxx) e mulhere(xxxx).<br />

Eu não quero virar homem! Vamos acabar com essa conversa e vamos continuar toman<strong>do</strong><br />

a nossa sopa. Só que agora você vai tomar a tua sopa no teu prato e eu vou tomar a minha<br />

no meu”. (sic).<br />

Note-­‐se o emprego <strong>do</strong> “x” no lugar <strong>do</strong> “s” e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> a ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> ao “x”<br />

com a intensificação <strong>da</strong> pronúncia. Isso nos remete ao sexual como enigma diante <strong>do</strong><br />

qual o sujeito tem que <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong> sua posição. Chama<strong>do</strong> a entrar na partilha <strong>do</strong>s sexos<br />

318


João inicialmente <strong>de</strong>nega, isola, porque a diferença sexual é sempre fonte <strong>de</strong> angústia<br />

para o sujeito. Então com a frase: “vamos acabar com essa conversa” João usa o<br />

isolamento, porém, como o inconsciente é sempre afirmativo, reconhece seu <strong>de</strong>sejo e<br />

continua o jogo no qual, <strong>de</strong> agora em diante, meninas e meninos tomam sopa em pratos<br />

separa<strong>do</strong>s.<br />

É importante consi<strong>de</strong>rar que se a repetição se fun<strong>da</strong> no retorno <strong>do</strong> gozo, há nessa<br />

repetição um <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> gozo, cuja consequência é a função <strong>do</strong> objeto perdi<strong>do</strong>,<br />

objeto a, porque o gozo ao se repetir se apresenta sob a forma <strong>de</strong> per<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> Lacan<br />

aponta a função <strong>do</strong> traço unário no qual se origina tu<strong>do</strong> o que interessa aos psicanalistas<br />

como saber (Lacan, 1969-­‐70, p. 44). Saber que esse traço repete como diferença, saber<br />

marca<strong>do</strong> por um significante sem senti<strong>do</strong>. A repetição remete ao <strong>encontro</strong> com a falta<br />

apontan<strong>do</strong> um saber sobre o qual o sujeito não sabe, o inconsciente por assim dizer.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, pela repetição em análise João encontra a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> diluir seu<br />

gozo e sustentar sua condição <strong>de</strong> ser falante por meio <strong>da</strong> palavra. Seu cocô encontra diversas<br />

significações forman<strong>do</strong> uma série: sapinho/jacaré, mergulha<strong>do</strong>r/tubarão, joia/ladrão,<br />

homem/mulherzinha, na qual o <strong>de</strong>slizamento significante tem o efeito <strong>de</strong> introduzir o <strong>de</strong>sejo<br />

na medi<strong>da</strong> em que produz diferença, embora entre um significante e outro se estabeleça certa<br />

equivalência (Lacan, 1964, p. 240).<br />

O <strong>de</strong>sejo é o que vai permitir que o sujeito se separe <strong>do</strong> Outro e o situe como<br />

campo, como um lugar <strong>de</strong> presença e ausência e sobre isso João nos ensina em outros<br />

<strong>do</strong>is momentos <strong>de</strong> sua análise: no primeiro <strong>de</strong>senha uma pessoa an<strong>da</strong>n<strong>do</strong>, um menino<br />

319


que tem <strong>de</strong>z anos, se chama João e faz longas viagens no jogo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, on<strong>de</strong> sempre<br />

encontra um baú cheio <strong>de</strong> ouro <strong>do</strong> qual não po<strong>de</strong>rá gozar, porque como diz ele “ninguém<br />

nunca vai saber o que po<strong>de</strong> acontecer se se chegar lá!”.<br />

No segun<strong>do</strong> momento faz um belíssimo jogo <strong>de</strong> palavras em resposta a uma<br />

intervenção <strong>da</strong> analista: “você é uma chata”. Corrige prontamente em associação: “isso<br />

aqui tá muito chato, vamos fazer outra coisa, vamos jogar xatrez, o bom e o velho xatrez!”.<br />

Como sujeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo João introduz o terceiro elemento na sua relação com o Outro, o<br />

falo certamente, na medi<strong>da</strong> em que o falo é o significante <strong>da</strong> falta. Como sujeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo<br />

João sabe que não po<strong>de</strong> gozar <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> Outro, porque em seu corpo inci<strong>de</strong> a lei que o<br />

<strong>de</strong>termina e o confronta com a castração. Resta-­‐lhe apenas brincar, jogar, fazer pia<strong>da</strong><br />

com esse baú em cujo ventre <strong>de</strong>scansa o (a)uro, metonímia <strong>do</strong> impossível, ao qual<br />

po<strong>de</strong>rá apenas tocar pelas bor<strong>da</strong>s, através <strong>da</strong>s palavras, reduzin<strong>do</strong>-­‐o a meros<br />

significantes.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

FREUD, Sigmund. Inibição, sintoma e angústia. (1926 [1925]), Edição Stan<strong>da</strong>rd<br />

Brasileira, 3 ed. Vol. XX, Editora Imago, Rio <strong>de</strong> Janeiro -­‐ RJ, 1990.<br />

_____________. O Seminário, Livro 4 – a relação <strong>de</strong> objeto (1956-­‐1957). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Jorge Zahar Editor , 1995.<br />

_____________. O Seminário, Livro 5 – as formações <strong>do</strong> inconsciente (1957-­‐1958). Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor , 1998.<br />

320


_____________. O Seminário, livro 10 – a angústia. (1962-­‐1963). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editor, 2005.<br />

_____________. O Seminário, livro 11 – os quatro conceitos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> psicanálise.<br />

(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.<br />

_____________. O Seminário, livro 17 – o avesso <strong>da</strong> psicanálise. (1969-1970). Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.<br />

SOLER, Colette. Artigos Clínicos: Transferência, Interpretação, Psicose. Editora Fator,<br />

Salva<strong>do</strong>r -­‐ BA, 1991.<br />

321


O sintoma na arte ou a arte como sintoma?<br />

Sérgio Scotti 1<br />

“O espírito <strong>de</strong>sperto é o menos útil no <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> arte; quan<strong>do</strong><br />

escrevemos, lutamos para fazer aparecer aquilo que nós mesmos<br />

não conhecemos.” Henry Miller<br />

O filme “Instinto”, basea<strong>do</strong> no romance, “Ishmael” <strong>de</strong> Daniel Quinn, conta a<br />

história <strong>do</strong> relacionamento <strong>de</strong> Ethan Powell, interpreta<strong>do</strong> por Anthony Hopkins e Théo<br />

Caul<strong>de</strong>r, interpreta<strong>do</strong> por Cuba Gooding Jr., um ambicioso psiquiatra cuja missão é<br />

aten<strong>de</strong>r e avaliar o antropólogo Ethan, interna<strong>do</strong> na ala psiquiátrica <strong>de</strong> uma prisão <strong>do</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, para on<strong>de</strong> foi envia<strong>do</strong> após ter ataca<strong>do</strong>, feri<strong>do</strong> e morto sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o<br />

procuravam na selva africana, na qual <strong>de</strong>senvolvia pesquisas com gorilas, local em que<br />

havia <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>. O filme começa com o transporte e chega<strong>da</strong> <strong>do</strong> prisioneiro no<br />

aeroporto americano, on<strong>de</strong> ele, num ataque <strong>de</strong> fúria, agri<strong>de</strong> os guar<strong>da</strong>s locais,<br />

assustan<strong>do</strong> sua própria filha e esposa que o aguar<strong>da</strong>vam.<br />

Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> encaminha<strong>do</strong> imediatamente à prisão, Ethan passa a ser atendi<strong>do</strong> por<br />

Théo que busca tirá-­‐lo <strong>de</strong> um mutismo auto-­‐imposto, os <strong>do</strong>is sempre observa<strong>do</strong>s pelos<br />

guar<strong>da</strong>s e pelo psiquiatra interno <strong>da</strong> prisão que o mantinha sob forte medicação. Théo<br />

consegue não só reduzir a medicação, como tirar Ethan <strong>de</strong> seu mutismo através <strong>do</strong><br />

1 Psicanalista, professor associa<strong>do</strong> <strong>da</strong> graduação e pós-­‐graduação <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Psicologia <strong>da</strong> UFSC,<br />

coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s em <strong>Psicanálise</strong>, + 1 <strong>do</strong> cartel <strong>de</strong> formação <strong>do</strong> Fórum <strong>de</strong> Florianópolis,<br />

sergioscotti53@gmail.com<br />

322


ecurso a uma engenhosa estratégia: o psiquiatra resolve fazer uma visita à filha <strong>do</strong><br />

antropólogo e junto a ela recolhe algumas fotos <strong>da</strong> casa, <strong>da</strong> selva e <strong>do</strong> acampamento <strong>de</strong><br />

Ethan na África, além <strong>de</strong> fotos <strong>do</strong>s gorilas e <strong>da</strong> própria filha <strong>de</strong> Ethan, Lyn.<br />

Ao e<strong>xi</strong>bir a última foto, <strong>de</strong> sua filha, a Ethan e perguntar-­‐lhe o que ele diria a ela,<br />

Théo consegue que o “homem macaco”, como era chama<strong>do</strong> na prisão, dissesse: “Good<br />

bye”. A partir <strong>da</strong>í começa um diálogo e relacionamento entre os <strong>do</strong>is que trará para Théo<br />

o reconhecimento <strong>de</strong> seu supervisor e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ascensão na carreira, além <strong>do</strong><br />

projeto <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong> um “best seller”, sugeri<strong>do</strong> pelo próprio supervisor <strong>de</strong> Théo.<br />

Mas este relacionamento trará muitos problemas também, principalmente para Ethan<br />

que é constantemente acossa<strong>do</strong> pelo chefe <strong>do</strong>s guar<strong>da</strong>s <strong>da</strong> prisão o qual havia<br />

estabeleci<strong>do</strong> um sistema <strong>de</strong> banhos <strong>de</strong> sol, no qual somente um <strong>do</strong>s presos recebia o<br />

benefício. Ethan enfrenta-­‐o e <strong>de</strong>smonta o sistema angarian<strong>do</strong> assim o ódio <strong>do</strong> guar<strong>da</strong>s e<br />

simpatia <strong>do</strong>s presos. Contan<strong>do</strong> ain<strong>da</strong> com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> Théo, o sistema <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong><br />

cartas <strong>de</strong> baralho entre os presos no qual o ás <strong>da</strong>va direito ao banho <strong>de</strong> sol e era<br />

surrupia<strong>do</strong> sempre pelo mesmo preso, até ser enfrenta<strong>do</strong> por Ethan, é substituí<strong>do</strong> por<br />

um sistema <strong>de</strong> sorteio em que to<strong>do</strong>s têm direito ao benefício.<br />

Além disso, o relacionamento entre Ethan e Théo <strong>de</strong>senvolve-­‐se <strong>de</strong> tal forma que<br />

aquele acaba tornan<strong>do</strong>-­‐se, <strong>de</strong> certa forma, o terapeuta <strong>do</strong> psiquiatra, numa<br />

surpreen<strong>de</strong>nte inversão <strong>de</strong> papéis.<br />

Ethan também conta a Théo que a partir <strong>de</strong> sua apro<strong>xi</strong>mação e aceitação pelo<br />

lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> gorilas que observava quan<strong>do</strong> estava na selva, se tornou um entre eles<br />

323


e passou a viver com os mesmos no meio <strong>da</strong> floresta africana. Tal experiência conta<strong>da</strong> a<br />

Théo, <strong>de</strong>u ao antropólogo uma visão <strong>da</strong> história <strong>do</strong> homem que, em seu início, seria<br />

caracteriza<strong>da</strong> pela convivência harmoniosa entre homens e animais, aqueles retiran<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong> natureza somente o necessário para sua sobrevivência. Mas, com o tempo, surgiram<br />

os homens “captores” que a transformaram numa relação <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação e controle. O<br />

próprio Ethan havia si<strong>do</strong> um “captor” quan<strong>do</strong> aprisionou um gorila para o zoológico <strong>de</strong><br />

sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Numa cena impactante em que Théo tenta impor sua autori<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre Ethan,<br />

este o imobiliza e faz aquele perceber que não estava per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> nem seu controle nem<br />

sua liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas sim, suas ilusões. Noutra cena em que, mais uma vez, Théo tenta<br />

sensibilizar Ethan, levan<strong>do</strong>-­‐o numa visita ao zoológico em que se encontrava o gorila há<br />

tempos captura<strong>do</strong> pelo antropólogo, este se lembra <strong>de</strong> como, sentin<strong>do</strong>-­‐se cui<strong>da</strong><strong>do</strong> e<br />

protegi<strong>do</strong> pelo olhar vigilante <strong>do</strong> gorila lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> ban<strong>do</strong> ao qual se juntara, <strong>de</strong> repente se<br />

vê no meio <strong>de</strong> um ataque a tiros <strong>do</strong>s sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o procuravam na selva. O ban<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

gorilas é dizima<strong>do</strong> pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s apesar <strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> Ethan em protegê-­‐los, na qual<br />

este mata pelo menos <strong>do</strong>is sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que, no fim, matam to<strong>do</strong> o ban<strong>do</strong> e colocam Ethan,<br />

na prisão, por um ano, até ele ser resgata<strong>do</strong> pelo governo americano.<br />

O trabalho <strong>de</strong> Théo com Ethan resulta no <strong>encontro</strong> <strong>de</strong>ste com sua filha no qual ele<br />

<strong>de</strong>volve a ela, um retrato <strong>de</strong>la quan<strong>do</strong> criança, que o mesmo sempre levava consigo,<br />

<strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> assim que nunca a esquecera, apesar <strong>de</strong> suas longas ausências que eram<br />

senti<strong>da</strong>s pela filha como <strong>de</strong>scaso e rejeição.<br />

324


Contu<strong>do</strong>, apesar <strong>do</strong>s progressos consegui<strong>do</strong>s por Théo, uma rebelião <strong>do</strong>s presos<br />

começou porque o chefe <strong>do</strong>s guar<strong>da</strong>s agredira Ethan que não quisera entrar em sua cela<br />

<strong>da</strong> qual haviam apaga<strong>do</strong> inteiramente a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>senha<strong>da</strong> por ele nas<br />

pare<strong>de</strong>s <strong>da</strong> mesma. Ethan, tentan<strong>do</strong> proteger um <strong>do</strong>s presos, tal como fizera com os<br />

gorilas, ataca o chefe <strong>do</strong>s guar<strong>da</strong>s, mas é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos outros guar<strong>da</strong>s e volta ao seu<br />

mutismo.<br />

Théo <strong>de</strong>sconsola<strong>do</strong> procura Ethan na prisão e confessa a este que ele o fizera ver<br />

o quanto procurava agra<strong>da</strong>r a to<strong>do</strong>s em função <strong>de</strong> sua ambição que agora lhe parecia<br />

totalmente sem senti<strong>do</strong> diante <strong>de</strong> seu fracasso. No entanto, o que Théo não sabia, é que<br />

Ethan, muni<strong>do</strong> <strong>da</strong> caneta <strong>de</strong> Théo, escondi<strong>da</strong> por ele <strong>do</strong>s guar<strong>da</strong>s durante a visita ao<br />

zoológico, consegue abrir uma <strong>da</strong>s gra<strong>de</strong>s <strong>da</strong> prisão e, com a aju<strong>da</strong> <strong>do</strong>s outros<br />

prisioneiros que <strong>de</strong>sviam a atenção <strong>do</strong>s guar<strong>da</strong>s, escapa e volta à selva. O filme termina<br />

com Théo <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-­‐se molhar, com os braços ergui<strong>do</strong>s, pela chuva que cai, cena que<br />

representa sua própria libertação.<br />

O filme que é bastante <strong>de</strong>spretensioso em termos artísticos, é <strong>de</strong> interesse pelo<br />

que mostra sem o preten<strong>de</strong>r. A primeira questão que nos surge é: por que um homem<br />

culto embrenha-­‐se na selva por tanto tempo, para viver entre gorilas, o que já é bastante<br />

inverossímil, sustentan<strong>do</strong> por uma concepção mais inverossímil ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> relação entre<br />

feras e homens? Também nos chama a atenção um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> aspecto <strong>de</strong> seu<br />

comportamento durante seu relacionamento com o psiquiatra. Des<strong>de</strong> seus primeiros<br />

325


contatos com Théo que procurava reapro<strong>xi</strong>má-­‐lo <strong>de</strong> sua filha, Ethan mostrava-­‐se<br />

extremamente resistente, expressan<strong>do</strong> isso com a frase: “Deixe-­‐a fora disso!”.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, foi por causa <strong>da</strong> foto <strong>de</strong>la que dissera suas primeiras palavras:<br />

“Good bye”. Como também, foi o olhar espanta<strong>do</strong> <strong>da</strong> filha a única coisa que o fez parar<br />

durante seu ataque <strong>de</strong> fúria no aeroporto. As duas coisas se mostram articula<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong><br />

pensamos que uma foi causa <strong>da</strong> outra. O ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro motivo <strong>da</strong> i<strong>da</strong> e isolamento <strong>de</strong> Ethan<br />

na selva africana foi sua filha, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o <strong>de</strong>sejo incestuoso <strong>de</strong> Ethan por ela. Um<br />

<strong>de</strong>sejo tão intenso e po<strong>de</strong>roso que só po<strong>de</strong>ria ser aplaca<strong>do</strong> pela distância continental.<br />

Num <strong>do</strong>s diálogos <strong>de</strong> Lyn com Théo, esta lhe conta que uma vez havia visita<strong>do</strong> seu pai<br />

em seu acampamento <strong>de</strong> Ruan<strong>da</strong>, e que ele havia fica<strong>do</strong> muito contente por revê-­‐la e,<br />

mais ain<strong>da</strong>, por vê-­‐la ir embora.<br />

O <strong>de</strong>sejo incestuoso <strong>de</strong> Ethan por sua filha, nos remete ao complexo <strong>de</strong> Édipo <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai, algo não muito comum na literatura psicanalítica, mas também, <strong>de</strong> maneira<br />

muito interessante, às possíveis relações entre o mito <strong>de</strong> Sófocles e o mito freudiano <strong>da</strong><br />

hor<strong>da</strong> primitiva (Freud, 1913/1973).<br />

Na apro<strong>xi</strong>mação e interesse <strong>de</strong> Ethan pelos gorilas, veremos o retorno <strong>do</strong><br />

recalca<strong>do</strong> tanto quanto a confirmação <strong>de</strong> nossa interpretação edipiana através <strong>do</strong> mito<br />

<strong>da</strong> hor<strong>da</strong> primitiva que se atualizam e entrecruzam no drama <strong>de</strong> Ethan, o “homem<br />

macaco”. Quan<strong>do</strong> este finalmente consegue ser aceito pelo ban<strong>do</strong>, após cui<strong>da</strong><strong>do</strong>sas<br />

apro<strong>xi</strong>mações <strong>do</strong> lí<strong>de</strong>r, em que o antropólogo <strong>de</strong>monstra sua total submissão a ele, surge<br />

o interesse <strong>de</strong> Ethan por uma gorilazinha fêmea com a qual ele passa a brincar<br />

326


constantemente sob o olhar vigilante <strong>do</strong> macho lí<strong>de</strong>r. Ser cui<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo olhar <strong>do</strong> gorila<br />

que o aceitava e tolerava, era uma experiência incrível para Ethan que se sentia assim<br />

protegi<strong>do</strong>, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> seus próprios impulsos incestuosos.<br />

Contu<strong>do</strong>, a ambivalência em relação ao pai/gorila não <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> se manifestar,<br />

por mais que Ethan tivesse se integra<strong>do</strong> ao ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> gorilas e rejeitasse o convívio com<br />

os humanos.<br />

Quan<strong>do</strong> Ethan não voltou mais ao seu acampamento porque passou a viver com<br />

os gorilas, seus au<strong>xi</strong>liares e parentes certamente imaginaram que ele estivesse em<br />

perigo. Os sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s que o procuravam na selva estavam, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, procuran<strong>do</strong> “salvá-­‐<br />

lo” <strong>do</strong>s gorilas. E certamente Ethan saberia disso, tanto que em conversas com Théo,<br />

contava a este que em suas an<strong>da</strong>nças pela selva com os gorilas, percebia sinais <strong>da</strong><br />

presença pró<strong>xi</strong>ma <strong>de</strong> humanos.<br />

Mas, mesmo assim, Ethan mostrou-­‐se muito “<strong>de</strong>scui<strong>da</strong><strong>do</strong>”, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> pelo<br />

caminho alguns <strong>de</strong> seus objetos, como o seu facão e binóculos que logo foram acha<strong>do</strong>s<br />

pelos sol<strong>da</strong><strong>do</strong>s. Ou seja, po<strong>de</strong>-­‐se dizer que ele colaborou assim para que fosse<br />

encontra<strong>do</strong> e que os gorilas fossem mortos.<br />

Ao contrário <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> parecer uma vitória <strong>de</strong> Ethan, ao conseguir fugir <strong>da</strong><br />

prisão e voltar para a selva, esta, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, torna-­‐se sua real prisão para on<strong>de</strong> retorna<br />

por não conseguir suportar seu <strong>de</strong>sejo incestuoso mais uma vez.<br />

327


Aqui nos reencontramos com o adágio <strong>de</strong> Freud <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> arte equivale a<br />

uma confissão <strong>do</strong> autor (Freud, 1908/1973). Não precisamos conhecer a biografia <strong>do</strong><br />

autor <strong>da</strong> história que comentamos, pois se trata aqui <strong>de</strong> dramas universais que qualquer<br />

sujeito humano conhece em seu inconsciente. E é <strong>do</strong> inconsciente <strong>do</strong> autor <strong>de</strong>sta história<br />

que po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rá-­‐la como um sintoma, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma formação <strong>do</strong><br />

inconsciente que não sen<strong>do</strong> necessariamente patológica, <strong>de</strong>monstra a origem <strong>do</strong>s<br />

motivos <strong>do</strong>s personagens envolvi<strong>do</strong>s em sua trama, tanto quanto a fantasia que a<br />

sustenta e que o autor nos apresenta através <strong>de</strong> sua ars poetica, como dizia Freud<br />

(1908/1973), o que nos seduz e permite que compartilhemos com ele <strong>do</strong>s mesmos<br />

fantasmas, como o <strong>do</strong> retorno à mãe natureza. Ou não, e nos <strong>de</strong>liciemos <strong>de</strong> qualquer<br />

forma, com a expressão, em uma obra artística, <strong>de</strong> um mito que era <strong>de</strong> Freud e que<br />

talvez não explique a origem <strong>da</strong> cultura humana, como também pretendia o mito <strong>de</strong><br />

Ethan, mas nos dê alguma luz sobre como se estrutura a psiquê <strong>do</strong> homem.<br />

O interesse <strong>de</strong>ste trabalho é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que estes <strong>do</strong>is mitos, tão<br />

fun<strong>da</strong>mentais para história <strong>da</strong> própria <strong>Psicanálise</strong>, eles parecem se recobrir nesta outra<br />

história e que talvez se trate, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> apenas um mito, o Édipo, inclusive o <strong>de</strong><br />

Freud que aparece como seu sintoma, tanto no mito <strong>da</strong> hor<strong>da</strong> primitiva quanto em<br />

“Moisés e a religião monoteísta” (Freud, 1939/1973). Se esse for caso, vemos que nem<br />

mesmo o pai <strong>da</strong> <strong>Psicanálise</strong> escapa a seu próprio adágio.<br />

Referências bibliográficas:<br />

328


FREUD, S. (1908). El poeta y los sueños diurnos. Em: Obras Completas <strong>de</strong> Sigmund Freud,<br />

Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 2, p. 1343–1348.<br />

__________. (1913).Totem y tabu. Em: Obras Completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, Madrid:<br />

Biblioteca Nueva, 1973. v. 2, p. 1745–1850.<br />

__________. (1939). Moises y la religión monoteísta: tres ensayos. Em: Obras Completas <strong>de</strong><br />

Sigmund Freud, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. v. 3, p. 3241–3324.<br />

329


ESPAÇO ESCOLA<br />

330


Cartel: espaço <strong>de</strong> saber articula<strong>do</strong> à política <strong>da</strong> psicanálise<br />

Tereza Oliveira 1<br />

O <strong>de</strong>sejo que levara Freud a fun<strong>da</strong>r a Associação Internacional em 1910 –<br />

International Psychoanalytical Association -­‐ (IPA), era o <strong>de</strong> resguar<strong>da</strong>r sua invenção e<br />

assegurar a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> psicanálise para além <strong>de</strong> sua pessoa e que esse novo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

saber se esten<strong>de</strong>sse além <strong>de</strong> sua morte. Assim, a preocupação constante <strong>de</strong> Freud era<br />

garantir a permanência <strong>da</strong> psicanálise e <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao movimento psicanalítico<br />

mundial. Entretanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> IPA, o pensamento freudiano foi <strong>de</strong>svirtua<strong>do</strong>.<br />

Freud via a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> análise pessoal <strong>de</strong> seus a<strong>de</strong>ptos até mesmo para que através <strong>da</strong><br />

sua experiência pu<strong>de</strong>sse <strong>da</strong>r provas <strong>da</strong> teoria <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por ele. O que se <strong>de</strong>u foi o<br />

avesso, ou seja, a prática <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> analistas tomou um caráter <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> tipo<br />

burocrático e baseava-­‐se num cumprimento rigoroso <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s ritualiza<strong>da</strong>s, ou seja,<br />

<strong>de</strong>via-­‐se consultar o analista um número x por semana com sessões <strong>de</strong> duração fixa, durante<br />

um perío<strong>do</strong>, encontrar um supervisor para garantir a condução ética <strong>do</strong> caso. O estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

psicanálise viria a garantir uma boa formação teórica.<br />

Dentro <strong>da</strong> IPA, opõe-­‐se Lacan aos <strong>de</strong>svios teóricos que ela praticava e a ilusão <strong>de</strong> uma<br />

formação analítica completa nos mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma licenciatura universitária. Para Lacan, essa<br />

1 Tereza Oliveira – Psicóloga/psicanalista, Mestra<strong>do</strong> em <strong>Psicanálise</strong> Saú<strong>de</strong> e Socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Veiga <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, participante <strong>de</strong> Fornações Clínicas <strong>do</strong> Campo Lacaniano <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Membro <strong>do</strong> Fórum <strong>do</strong> Campo Lacaniano <strong>do</strong><br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro e <strong>de</strong> Petrópolis, Membro <strong>da</strong> AFCL/EPFCL- Brasil, Membro <strong>da</strong> EPFCL. E-mail: tmropsi@gmail.com<br />

331


itualização <strong>da</strong> prática e <strong>da</strong> formação <strong>do</strong> analista não garantiria o laço que sustenta a<br />

posição <strong>do</strong> analista e <strong>do</strong> analisan<strong>do</strong>, não há <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista. Assim, o trabalho a que se<br />

refere à causa analítica, articula-­‐se à política <strong>da</strong> psicanálise e não à uma política <strong>de</strong><br />

representação.<br />

Na primeira meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1950, os seminários <strong>de</strong> Lacan na Socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Francesa <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> 2 , eram os que se <strong>de</strong>dicavam ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s textos freudianos 3<br />

<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o movimento francês <strong>de</strong> uma política <strong>da</strong> psicanálise articula<strong>da</strong> com uma teoria <strong>da</strong><br />

formação.<br />

Lacan articula a <strong>Escola</strong> Freudiana <strong>de</strong> Paris que nasce com o Ato <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>ção em 21 <strong>de</strong><br />

junho <strong>de</strong> 1964. Apresenta em ata pela primeira vez o dispositivo <strong>do</strong> cartel, proposta<br />

inova<strong>do</strong>ra, como parte <strong>da</strong> forma <strong>de</strong> organização <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, julgan<strong>do</strong> que essa fosse a<br />

maneira mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> para promover o avanço <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> analista e<br />

consequentemente <strong>da</strong> transmissão <strong>da</strong> psicanálise. A <strong>Escola</strong> <strong>de</strong>ve ser sustenta<strong>da</strong> pelo<br />

discurso <strong>do</strong> analista, avesso ao discurso civilizatório, que é o discurso <strong>do</strong> mestre. Dessa<br />

maneira, o compromisso com a causa analítica inclui instituir o lugar e funcionamento <strong>do</strong><br />

cartel na <strong>Escola</strong>. Assim, o trabalho a que se refere à causa analítica, articula-­‐se à política <strong>da</strong><br />

psicanálise e não à uma política <strong>de</strong> representação. O cartel só tem senti<strong>do</strong> numa instituição<br />

2 Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Lagache e Lacan. Marcou a ruptura com a IPA<br />

3 Lacan inicia os seus seminários retornan<strong>do</strong> aos escritos clínicos <strong>de</strong> Freud, como o <strong>do</strong> “Homem <strong>do</strong>s Lobos” e o<br />

<strong>do</strong> “Homem <strong>do</strong>s Ratos” e com os “Escritos Técnicos <strong>de</strong> Freud”. Trata-­‐se <strong>de</strong> um retorno ao vigor <strong>do</strong> ensino <strong>de</strong><br />

Freud, retorno esse, aos fun<strong>da</strong>mentos que constituem uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Escola</strong> orienta<strong>da</strong> para o real <strong>do</strong><br />

clínica .<br />

332


sui generis, chama<strong>da</strong> <strong>Escola</strong> para a psicanálise e Quinet (1994, p. XVI-­‐XVII), ao comentar<br />

sobre essa instituição sui generis proposta por Lacan nos diz que a <strong>Escola</strong> veio para,<br />

“respon<strong>de</strong>r ao nível <strong>da</strong> organização institucional à estrutura que se<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong> na prática psicanalítica <strong>do</strong> inconsciente, inventa<strong>da</strong> por Freud e<br />

que assim como a estrutura <strong>do</strong> sujeito se organiza em torno <strong>de</strong> um furo a<br />

partir <strong>do</strong> postula<strong>do</strong> fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> psicanálise, a <strong>Escola</strong> como formação<br />

coletiva se estrutura em torno <strong>da</strong> ausência <strong>do</strong> conceito preestabeleci<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

analista” 4.<br />

O cartel como órgão <strong>de</strong> base <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, representa o organismo on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve<br />

cumprir um trabalho que traz a prá<strong>xi</strong>s original instituí<strong>da</strong> por Freud, ou seja, a<br />

psicanálise. A <strong>Escola</strong> Freudiana <strong>de</strong> Paris, diz Lacan (1964, p. 17), na Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção, “em<br />

sua intenção, representa um organismo on<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve se realizar um trabalho que, no<br />

campo que Freud abriu, restaura a lâmina constante <strong>de</strong> sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>”. 5 Assim,<br />

“para a execução <strong>de</strong>sse trabalho a<strong>do</strong>taremos o princípio <strong>de</strong> uma elaboração<br />

basea<strong>da</strong> num pequeno grupo; ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les será composto por três<br />

pessoas, no mínimo, e por cinco no má<strong>xi</strong>mo – quatro é a medi<strong>da</strong> certa. MAIS<br />

UMA encarrega<strong>da</strong> <strong>da</strong> seleção, <strong>da</strong> discussão e <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino reserva<strong>do</strong> a ca<strong>da</strong><br />

um. Após um certo tempo <strong>de</strong> funcionamento, se proporá aos elementos <strong>de</strong><br />

um grupo sua permutação para outro. O cargo <strong>de</strong> direção não constituirá<br />

um caciquismo (chefferie) (...). Pela razão <strong>de</strong> que to<strong>do</strong> empreendimento<br />

pessoal levará seu autor às condições <strong>de</strong> crítica e <strong>de</strong> controle on<strong>de</strong> to<strong>do</strong> o<br />

trabalho a ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> será submeti<strong>do</strong> à <strong>Escola</strong>....” 6<br />

4 Quinet, A. Prefácio, in O Cartel-­‐ conceito e funcionamento na escola <strong>de</strong> Lacan, (org. Stella Gimenez) Apareci<strong>da</strong><br />

São Paulo: Editora Campus: 1994.<br />

5 Transcrição <strong>da</strong>s discussões <strong>da</strong>s jorna<strong>da</strong>s sobre cartéis (abril/1975) publica<strong>da</strong> em Lettres <strong>de</strong> l’École Freudienne<br />

<strong>de</strong> Paris n o 18 – 1976 in Letra Freudiana <strong>Escola</strong>, psicanálise e Transmissão, Ano I, n o 0, Documentos para <strong>Escola</strong><br />

– Circulação interna<br />

6 Ibid,<br />

333


<strong>da</strong> <strong>Escola</strong>.<br />

O Mais-­‐Um ao la<strong>do</strong> <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> tem um compromisso com a estrutura<br />

Na constituição <strong>do</strong> cartel, quatro se escolhem livremente em torno <strong>de</strong> um tema.<br />

Não e<strong>xi</strong>ste um saber pronto, mas um saber novo a se produzir como produto <strong>do</strong><br />

trabalho, tal como acontece na clínica psicanalítica. A escolha <strong>do</strong> Mais-­‐Um, passa pela<br />

suposição <strong>de</strong> saber, mas ele <strong>de</strong>ve sair <strong>de</strong>sse papel mediante seu próprio <strong>de</strong>sejo para que<br />

emerja algo novo. Se ele respon<strong>de</strong> <strong>do</strong> lugar <strong>de</strong> mestre, fortalece a consistência<br />

imaginária e <strong>de</strong> cola, está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> ocultação estrutural <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, um efeito <strong>do</strong><br />

imaginário sobre o simbólico, geran<strong>do</strong> uma inibição <strong>do</strong> saber. O Mais-­‐Um tem a função<br />

<strong>de</strong> cortar a consistência imaginária, assinalan<strong>do</strong> seu caráter <strong>de</strong> saber não to<strong>do</strong>. O Mais-­‐<br />

Um se sustenta pelo corte ofereci<strong>do</strong> pelo Nome-­‐<strong>do</strong>-­‐Pai. Os laços libidinais que unem o<br />

grupo no cartel são em torno <strong>do</strong> trabalho a partir <strong>da</strong> escolha <strong>do</strong> tema e o Mais-­‐Um é<br />

escolhi<strong>do</strong> em função <strong>de</strong> um traço. O Mais-­‐Um <strong>de</strong>ve situar-­‐se no lugar on<strong>de</strong> possa<br />

manejar a transferência, <strong>da</strong> transferência a ele à transferência <strong>do</strong> texto. Entretanto, essa<br />

tarefa, não é uma tarefa sem custos, pois há o custo <strong>da</strong> per<strong>da</strong> <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>alizações, acerca <strong>do</strong><br />

saber, <strong>de</strong> ser um. Como nos diz Pedrosa (2002, p. 20): “Decidir na posição <strong>da</strong>quele que<br />

po<strong>de</strong> faltar é <strong>de</strong>cidir sobre o <strong>de</strong>stino <strong>da</strong>s ambições no sujeito, e po<strong>de</strong>r <strong>da</strong>r lugar ao<br />

trabalho, como a outra valia, se o que ren<strong>de</strong> <strong>do</strong> luto é o trabalho”. 7<br />

7 Pedrosa, M. A. L, Estilete, Cartel, transmissão e garantia – a outra valia in Boletim <strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s Fóruns<br />

<strong>do</strong> Campo Lacaniano Brasil, n 0 4, , Belo Horizonte, Minas Gerais.: 2004,<br />

334


Se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> favorece o vínculo pelo trabalho, <strong>de</strong> outro, após concluí<strong>da</strong> a<br />

tarefa, sua lógica, inclui a dissolução que está presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, como po<strong>de</strong>mos ver<br />

na Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção:”Após um certo tempo <strong>de</strong> funcionamento, se proporá aos elementos<br />

<strong>de</strong> um grupo a sua permutação para outro”(LACAN, 1964, ). 8<br />

Em abril <strong>de</strong> 1975, a <strong>Escola</strong> Lacaniana <strong>de</strong> Paris realiza uma “Jorna<strong>da</strong> sobre<br />

Cartéis”, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a refletir sobre a experiência <strong>de</strong>sses “pequenos grupos” e suscitar um<br />

<strong>de</strong>bate sobre a formação <strong>de</strong> cartéis na <strong>Escola</strong>. A Jorna<strong>da</strong> foi um lugar fecun<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

discussão no qual Lacan alencou um <strong>de</strong>bate acalora<strong>do</strong> sobre o Mais-­‐Um. Lacan dizia,<br />

que o Mais-­‐Um, <strong>de</strong>ve ser qualquer um, uma pessoa, não a ausência,<br />

“pensem, será um suporte possível <strong>de</strong>ssa ‘mais uma pessoa’ <strong>da</strong> qual<br />

indiquei não a ausência, mas justamente a presença, pois não há um<br />

traço <strong>de</strong> sinal por ausência, no meu mais-­‐uma no texto (...) esse mais-­‐<br />

uma sempre se realiza, sempre há alguém no grupo, mesmo que seja<br />

por um momento....” 9<br />

É interessante notar que aqui Lacan sugere a idéia <strong>do</strong> Mais-­‐Uma, <strong>de</strong>sligan<strong>do</strong>-­‐a<br />

<strong>do</strong> seu contexto original.<br />

O que marca esse <strong>de</strong>bate, é que o lugar <strong>do</strong> Mais-­‐Um é um lugar vazio, situan<strong>do</strong>-­‐<br />

se em oposição a to<strong>do</strong> caciquismo imaginário. Nessa Jorna<strong>da</strong>, Lacan articula esse ‘Mais-­‐<br />

Uma’ sob a forma <strong>do</strong> nó borromeano, nos dizen<strong>do</strong> que x+1 é o que <strong>de</strong>fine o nó<br />

borromeano ou nós trança<strong>do</strong>s é “a partir <strong>de</strong> reiterar esse 1 – que no nó borromeano é<br />

8 Op. cit. P.17, Letra Freudiana <strong>Escola</strong>, psicanálise e Transmissão, Ano I, n o 0, Documentos para <strong>Escola</strong> –<br />

Circulação interna.<br />

9<br />

Ibid, p.69-­‐/70.<br />

335


qualquer um – que se obtém a individualização completa, ou seja, <strong>do</strong> que sobra – a saber<br />

<strong>do</strong> x em questão – não há mais um por um”(p. 67). 10 Em o R.S.I. O seminário<br />

(1974/1975, p. 74), na aula <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1975, Lacan nos diz que:<br />

“Mas foi bem por isso que me vi, no fim <strong>de</strong>ssas jorna<strong>da</strong>s, ten<strong>do</strong> que<br />

respon<strong>de</strong>r a algo a que ninguém é claro, prestara atenção na <strong>Escola</strong>,<br />

ou seja, no que constitui o que a gente chama <strong>de</strong> cartel. Um cartel, por<br />

que?” 11<br />

Nessa aula, Lacan compara o cartel ao nó borromeano. Há três que encarnam o<br />

Simbólico, Imaginário e o Real, são as consistências mínimas que o constitui. A mais<br />

uma, segun<strong>do</strong> ele, estará aí mesmo que sejam três, isso faz quatro, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> a expressão <strong>do</strong><br />

mais-um, é a que amarra, e no dizer <strong>de</strong> Maria Anita 12 , a amarração borromeana <strong>do</strong>s<br />

mesmos.<br />

Esse Mais-­‐Um sempre se realiza, mesmo que seja por um momento. O Mais-­‐Um<br />

não é o <strong>da</strong> adição e nem diz respeito ao somatório <strong>do</strong> cartel, não é um número, é o que<br />

faz elo nessa figura topológica. Aqui, Lacan começa a reverter radicalmente o senti<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

figura <strong>do</strong> Mais-­‐Um tal como era sugeri<strong>da</strong> na Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, encarrega<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

seleção, <strong>da</strong> discussão e <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino reserva<strong>do</strong> ao trabalho <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. Ao remeter ao<br />

funcionamento <strong>do</strong>s cartéis à figura topológica <strong>do</strong> nó borromeano, atribui o papel ou<br />

10 o<br />

Letra Freudiana <strong>Escola</strong>, psicanálise e Transmissão, Ano I, n 0, Documentos para <strong>Escola</strong> – Circulação interna.<br />

11<br />

Lacan, J. .RSI.. O seminário.-­‐<br />

12<br />

A esse respeito, ver Maria Anita Carneiro Ribeiro, A função borromeana <strong>da</strong> função <strong>do</strong> mais-­‐um no cartel,, Em<br />

torno <strong>do</strong> Cartel a experiência na <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano, Associação <strong>do</strong>s Fóruns<br />

<strong>do</strong> Campo Lacaniano, Belo Horizonte, Minas Gerais: 2004.<br />

336


lugar ao <strong>da</strong> Mais-­‐Um a qualquer um, ou seja, um ‘lugar vazio’ que po<strong>de</strong> ser ocupa<strong>do</strong> por<br />

‘qualquer um’.<br />

Em 5 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1980, na Carta <strong>de</strong> Dissolução 13 , Lacan dissolve a <strong>Escola</strong><br />

Freudiana <strong>de</strong> Paris e nesse mesmo ano, na aula <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> março “, no seminário<br />

D’Écolage o Desplegue <strong>de</strong> la Escuela” quan<strong>do</strong> lança a Causa Freudiana, continua<br />

apostan<strong>do</strong> no dispositivo <strong>do</strong> cartel. Restaura o órgão <strong>de</strong> base (cartel), mas pelo viés <strong>do</strong><br />

nó borromeano, acrescentan<strong>do</strong> que o Mais-­‐Um po<strong>de</strong> ser qualquer um, mas <strong>de</strong>ve ser<br />

alguém, encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> “velar pelos efeitos internos <strong>do</strong> empreendimento e <strong>de</strong> provocar<br />

sua elaboração.” (p.45) 14 ,e não só <strong>de</strong> selecionar, discutir e <strong>da</strong>r saí<strong>da</strong> ao trabalho <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

um. Ele é um agent provocateur..<br />

Lacan ao retomar as características <strong>do</strong> cartel, ele não chama mais <strong>de</strong> grupo,<br />

como o fazia na Ata <strong>de</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> e em 1980, precisa que esse produto seja<br />

individual e não coletivo. E ao Mais-­‐Um cabe também produzir um trabalho como os<br />

cartelizantes. Esse produto, esse texto não é en<strong>de</strong>reça<strong>do</strong> a um Outro i<strong>de</strong>al, mas a<br />

qualquer interlocutor que queira <strong>da</strong>r mais um passo na construção <strong>da</strong> psicanálise.<br />

Coloca que para prevenir “o efeito <strong>de</strong> cola [<strong>de</strong> colle] <strong>de</strong>ve-­‐se realizar a permutação no<br />

prazo estabeleci<strong>do</strong> <strong>de</strong> um ano e <strong>de</strong> no má<strong>xi</strong>mo <strong>do</strong>is e não se espera outro progresso<br />

senão o <strong>de</strong> uma periódica exposição <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s, assim como <strong>da</strong>s crises <strong>de</strong> trabalho.”<br />

13 O texto original <strong>da</strong> Carta <strong>de</strong> Dissolução jamais foi divulga<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Elisabeth Roudinesco.<br />

14 Letra Freudiana <strong>Escola</strong>, psicanálise e Transmissão, Ano I, n o 0, Documentos para <strong>Escola</strong> – Circulação interna,.<br />

337


(p.51) 15 Assim, o cartel no final <strong>de</strong>sse tempo ele se dissolve, o que permite evitar a<br />

inércia constatável nos grupos <strong>de</strong> trabalho que se eternizam e fazem obstáculo ao novo<br />

saber para o sujeito. Nesse instante <strong>de</strong> concluir, o Mais-­‐Um marca o corte, <strong>de</strong>sfazen<strong>do</strong> o<br />

nó borromeano. Aí o Mais-­‐Um não vai fazer mais laço, este se <strong>de</strong>sfaz e ca<strong>da</strong> cartelizante<br />

vai para seu la<strong>do</strong>, retoman<strong>do</strong> a sua solidão.<br />

Lacan fazia uma aposta na transmissão pelo matema. O cartel tem uma<br />

estrutura matêmica, <strong>da</strong> qual a mais simples apreensão é 4 + 1. A mesma palavra, cartel,<br />

tem uma referência matêmica, além <strong>de</strong> vir <strong>do</strong> latim car<strong>do</strong>, que significa gonzo 16 ,<br />

<strong>do</strong>bradiça. A palavra cartel provém <strong>de</strong> quatro, que faz referência ao nó borromeano. O<br />

cartel é <strong>do</strong>bradiça, porta <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> na <strong>Escola</strong>. Para concluir, cito Delga<strong>do</strong> (2002, p.23):<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

“Posso imaginar que com a provocação <strong>do</strong> cartel, Lacan estaria nos dizen<strong>do</strong>: Saiam<br />

<strong>de</strong> suas poltronas e produzam um escrito sobre o que formularam <strong>de</strong> suas análise e<br />

sua clínica e tragam a céu aberto para que um interlocutor qualquer possa levar a<br />

empreita<strong>da</strong> mais adiante. Se ain<strong>da</strong> não há uma conclusão, exponham ao menos suas<br />

crises <strong>de</strong> trabalho. Com certeza isso terá um efeito sobre seu ato” 17.<br />

CARVALHO, M. C. D. Cartel uma provocação? Estilete Boletim <strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong><br />

Campo Lacaniano – Brasil, n 0 8, Salva<strong>do</strong>r. Bahia: maio <strong>de</strong> 2004.<br />

15 Ibid<br />

16 Dobradiça <strong>de</strong> porta ou janela.<br />

17 Carvalho, M. C. D. Estilete, Cartel uma provocação? Estilete Boletim <strong>da</strong> Associação <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo<br />

Lacaniano – Brasil, n 0 8, Salva<strong>do</strong>r. Bahia: maio <strong>de</strong> 2004.<br />

338


CARNEIRO. M. A. R. Em torno <strong>do</strong> Cartel a experiência na <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong><br />

Campo Lacaniano, Associação <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano, Belo Horizonte, Minas<br />

Gerais: 2004.<br />

LACAN, J. .RSI. O seminário.-­‐<br />

Letra Freudiana <strong>Escola</strong>, psicanálise e Transmissão, Ano I, n o 0, Documentos para <strong>Escola</strong> –<br />

Circulação interna.<br />

PEDROSA, M. A. L, Cartel, transmissão e garantia – a outra valia in Estilete, Boletim <strong>da</strong><br />

Associação <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano Brasil, n 0 4, , Belo Horizonte, Minas Gerais.:<br />

2004,<br />

LETRA FREUDIANA ESCOLA, PSICANÁLISE E TRANSMISSÃO, Ano I, n o 0, Documentos para<br />

<strong>Escola</strong> – Circulação interna,.<br />

QUINET, A. Prefácio, O Cartel-­‐ conceito e funcionamento na escola <strong>de</strong> Lacan, (org. GIMENEZ,<br />

Stella, Apareci<strong>da</strong> São Paulo: Editora Campus: 1994.<br />

339


O Passe: a razão <strong>de</strong> um fracasso<br />

340<br />

Ana Laura Prates 1<br />

Começarei esse trabalho justo no ponto on<strong>de</strong> terminei meu último texto<br />

escrito sobre o passe, chama<strong>do</strong> “Os tempos <strong>do</strong> passe”, que está publica<strong>do</strong> na revista<br />

Folhetim, n. 7. Naquele texto, procurei articular o passe com a idéia <strong>de</strong> artifício, a<br />

partir <strong>do</strong> livro <strong>de</strong> Jorge Seprum A escrita ou a vi<strong>da</strong> – que, aliás, eu volto a<br />

recomen<strong>da</strong>r a vocês que o leiam, pois suas afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s com o passe são espantosas.<br />

Cito, então, um trechinho <strong>do</strong> meu trabalho:<br />

Essa idéia <strong>de</strong> artifício me parece preciosa porque aponta justamente<br />

para uma ação que produz um corte na infinitização <strong>da</strong> série<br />

significante que vela o real. A construção <strong>de</strong> uma obra artificial e<strong>xi</strong>ge<br />

uma posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong> e não se sustenta sem a presença <strong>do</strong><br />

ato. Emprestar a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> letra ao testemunho não é,<br />

portanto, algo espontâneo. Há, entretanto, algo que a letra/carta<br />

carrega – como diz Lacan em Lituraterra – que a faz sempre chegar a<br />

seu <strong>de</strong>stino. “A bor<strong>da</strong> <strong>do</strong> furo no saber, não é isso que a letra<br />

<strong>de</strong>senha? ” Deixo essa pista apenas indica<strong>da</strong>, para ser <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong><br />

em outra oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. (PRATES, 2008, p. 37)<br />

Essa é, portanto, a oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para <strong>de</strong>senvolver essa pista, que contém<br />

em si uma hipótese: a <strong>de</strong> que o passe é o artifício através <strong>do</strong> qual, aquele que<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> historisterizar-se <strong>de</strong> si mesmo, po<strong>de</strong> tentar <strong>de</strong>senhar a bor<strong>da</strong> <strong>do</strong> furo no<br />

saber. O meu texto “Os tempos <strong>do</strong> passe”, entretanto, foi finaliza<strong>do</strong> com a seguinte<br />

1 AME, Membro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong> <strong>do</strong>s Fóruns <strong>do</strong> Campo Lacaniano – Brasil, Membro <strong>do</strong> Fórum<br />

São Paulo.


afirmação <strong>de</strong> Lacan, extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong> “Televisão”: “Felizes os casos <strong>de</strong> passe fictício para<br />

formação inacaba<strong>da</strong>: <strong>de</strong>ixam esperança”. Ora, porque Lacan evoca a esperança nos<br />

passes fictícios para formação inacaba<strong>da</strong>?<br />

Vou abor<strong>da</strong>r essa questão fazen<strong>do</strong> alguns recortes:<br />

I. O passe: um fracasso?<br />

O passe foi – e é várias vezes – acusa<strong>do</strong>, ao longo <strong>da</strong> história <strong>do</strong> movimento<br />

psicanalítico pós-­‐lacaniano, <strong>de</strong> ter fracassa<strong>do</strong>. Alguns chegam a atribuir ao próprio<br />

Lacan o reconhecimento <strong>de</strong>sse fracasso. O dispositivo <strong>do</strong> passe foi apresenta<strong>do</strong> por<br />

Lacan na famosa “Proposição <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1967” que, como vocês sabem,<br />

tem duas versões, ambas atualmente publica<strong>da</strong>s nos Outros Escritos. Des<strong>de</strong> que foi<br />

proposto, o passe gerou várias críticas e crises; rupturas e cisões. Em casos mais<br />

extremos e infelizes, tornou-­‐se um po<strong>de</strong>roso instrumento <strong>de</strong> manipulação político-­‐<br />

institucional. Nas versões mais dramáticas, foi responsabiliza<strong>do</strong> por alguns – como<br />

Perrier, por exemplo, <strong>de</strong> provocar o suicídio <strong>da</strong>queles que ficaram mais <strong>de</strong> um ano<br />

sem receber qualquer resposta <strong>do</strong> júri – hoje chama<strong>do</strong> ‘cartel <strong>do</strong> passe’, ou que não<br />

foram nomea<strong>do</strong>s AE.<br />

Ora, <strong>de</strong> fato, se analisarmos o dispositivo <strong>de</strong> perto, chegaremos à conclusão<br />

<strong>de</strong> que, o que não faltam, são oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que algo falhe e assim, produza o<br />

fracasso. Vamos elencar apenas algumas <strong>de</strong>las, em relação às quais não se po<strong>de</strong><br />

dizer que sejam contingentes mas, antes, fazem parte <strong>da</strong> própria estrutura <strong>do</strong><br />

dispositivo:<br />

1) A nomeação <strong>do</strong>s AMEs – título outorga<strong>do</strong> aos analistas “que <strong>de</strong>ram suas<br />

provas” na <strong>Escola</strong>, e que têm, assim, o direito e a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signar os passa<strong>do</strong>res – é feita pela Comissão <strong>de</strong> Garantia <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> – que,<br />

atualmente, é internacional. Essa Comissão, evi<strong>de</strong>ntemente, po<strong>de</strong> se<br />

341


enganar, ain<strong>da</strong> que parcialmente, nessas nomeações, já que elas não se dão<br />

exclusivamente por critérios objetivos.<br />

2) Os AMEs, por sua vez, têm a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>signar, <strong>de</strong>ntre seus<br />

analisantes, aqueles que estejam no momento <strong>do</strong> passe clínico e que<br />

estejam aptos a participar <strong>do</strong> dispositivo na <strong>Escola</strong>. Também eles, ain<strong>da</strong> que<br />

psicanalistas experientes e orienta<strong>do</strong>s pela ética <strong>da</strong> psicanálise, po<strong>de</strong>m se<br />

equivocar quanto ao cálculo clínico <strong>de</strong>sse momento.<br />

3) Os passa<strong>do</strong>res <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s por seus analistas po<strong>de</strong>m não estar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />

com a avaliação <strong>de</strong> que estejam aptos a exercer essa função. E, mesmo que<br />

consintam em exercê-­‐la po<strong>de</strong>m, por várias razões mais ou menos objetivas<br />

ou subjetivas, não estar à altura <strong>do</strong> dispositivo. Além <strong>do</strong> mais, sabemos que<br />

uma neutrali<strong>da</strong><strong>de</strong> positivista, nesse caso, não apenas é impossível, como<br />

certamente in<strong>de</strong>sejável.<br />

4) O próprio passante po<strong>de</strong> estar equivoca<strong>do</strong> quanto ao advento <strong>de</strong> seu<br />

momento <strong>de</strong> passe, seja no que diz respeito ao final <strong>da</strong> análise, seja no que<br />

tange à emergência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista.<br />

5) O cartel <strong>do</strong> passe, oriun<strong>do</strong> também <strong>da</strong> Comissão <strong>de</strong> Garantia também po<strong>de</strong><br />

se enganar, sobretu<strong>do</strong>, como discutiremos mais adiante, no que se refere às<br />

não nomeações. E isso, como veremos, por uma razão estritamente lógica.<br />

Esse elenco <strong>de</strong> “pontos fracos” <strong>do</strong> dispositivo <strong>do</strong> passe é proposita<strong>da</strong>mente<br />

superficial, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> seus elementos imaginários, embora, como eu sublinhei,<br />

sejam inerentes à própria estrutura <strong>do</strong> dispositivo e não a eventuais<br />

<strong>de</strong>svirtuamentos. Deve-­‐se somar a ele, portanto, os eventos conjunturais que<br />

po<strong>de</strong>m colocar em risco a serie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> passe, seja por <strong>de</strong>svios éticos, morais, ou<br />

por outros problemas <strong>de</strong> funcionamento. Por exemplo, uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que não<br />

esteja à altura <strong>da</strong>s e<strong>xi</strong>gências clínicas <strong>do</strong> dispositivo.<br />

342


Ora, esse levantamento, ain<strong>da</strong> que precário, mapeia quase a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />

argumentos frequentemente utiliza<strong>do</strong>s por aqueles que se colocam contra o passe,<br />

ain<strong>da</strong> que, em alguns casos, se procure carregar mais na tinta, ocupan<strong>do</strong> o passe o<br />

lugar <strong>de</strong> vilão protagonista <strong>do</strong> melodrama em que às vezes se transforma a história<br />

<strong>do</strong> movimento psicanalítico.<br />

Se analisarmos seus pormenores, entretanto, a única conclusão a que<br />

chegamos com alguma certeza, é a <strong>de</strong> que o passe é um dispositivo falível. Essa<br />

constatação é tão óbvia, quanto <strong>de</strong>cepcionante para a maioria <strong>do</strong>s neuróticos,<br />

ávi<strong>do</strong>s por garantias absolutas. Ironia que aqueles que mais se <strong>de</strong>cepcionam ou<br />

que mais <strong>de</strong>preciem o passe sejam, justamente, os que parecem revelar, pela via <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> seu fracasso, a expectativa i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong> que <strong>de</strong>positavam em seu<br />

sucesso.<br />

II. Quanto sucesso!<br />

Mas, o que seria, então, o sucesso <strong>do</strong> passe? Talvez se possa dizer que a lista<br />

<strong>de</strong> di<strong>da</strong>tas <strong>da</strong> IPA – que Lacan chamou <strong>de</strong> Suficiências – seja uma história <strong>de</strong><br />

psicanalistas bem sucedi<strong>do</strong>s em suas carreiras. O final <strong>de</strong> análise proposto como<br />

i<strong>de</strong>ntificação ao analista po<strong>de</strong> realmente ser uma história <strong>de</strong> sucesso.<br />

Em outras paragens, mesmo lacanianas, o sucesso também é relativamente<br />

comum, pois, como <strong>de</strong>ixa claro Lacan no Seminário 24 “L´insue”, a i<strong>de</strong>ntificação ao<br />

inconsciente po<strong>de</strong> levar, no mínimo, à resignação e, no pior <strong>do</strong>s casos, ao cinismo. E<br />

o homem cínico é, quase sempre, um homem <strong>de</strong> sucesso!<br />

A esse respeito, gostaria <strong>de</strong> retomar um recorte <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> Silvia<br />

Franco publica<strong>do</strong> na Stylus n. 19, que me marcou muito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o ouvi pela<br />

primeira vez:<br />

343


A incidência <strong>do</strong> discurso analítico com seus cortes permitiu evi<strong>de</strong>nciar no<br />

percurso <strong>da</strong> última análise a posição <strong>do</strong> sujeito e o que havia si<strong>do</strong> a análise<br />

anterior <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro <strong>encontro</strong>: um sucesso. “Quanto sucesso!”, frase<br />

ouvi<strong>da</strong> na primeira sessão <strong>da</strong> análise após relatar com empolgação o lugar<br />

on<strong>de</strong> havia consegui<strong>do</strong> chega após anos e anos <strong>de</strong> tratamentos<br />

psicológicos. A penúltima análise <strong>de</strong> ‘orientação lacaniana’ tinha renova<strong>do</strong><br />

as esperanças <strong>de</strong> conseguir, através <strong>da</strong> sagração <strong>do</strong> eu, tapear o real sem-­‐<br />

senti<strong>do</strong>, traumático. A eficácia <strong>de</strong>sse tratamento permitiu ao analista <strong>da</strong>r a<br />

análise por concluí<strong>da</strong>, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> um convite para dividir o consultório e<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s psicanalíticas, o que permitiu ao analisante procurar um outro<br />

analista. Reafirmar a posição fantasmática <strong>do</strong> sujeito no lugar <strong>da</strong><br />

‘escolhi<strong>da</strong>’ teve como uma <strong>da</strong>s conseqüências a acentuação <strong>do</strong>s sintomas:<br />

o <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r valorizar na<strong>da</strong> e o <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r falar na<strong>da</strong>. (FRANCO, 2009,<br />

p. )<br />

Vemos aqui <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> com precisão a problemática <strong>de</strong> uma análise que se<br />

preten<strong>da</strong> termina<strong>da</strong> pela via <strong>do</strong> sucesso. Numa época em que o discurso<br />

hegemônico é o Discurso <strong>do</strong> Mestre mo<strong>de</strong>rno, mais conheci<strong>do</strong> como Discurso <strong>do</strong><br />

Capitalista, no qual os sujeitos são dividi<strong>do</strong>s entre winners and loosers, a crítica à<br />

i<strong>de</strong>ologia regi<strong>da</strong> pelo imperativo “Ao sucesso!” – como dizia uma antiga<br />

propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong> cigarro – não apenas é necessária, como essencial para a vigência<br />

<strong>do</strong> Discurso Analítico no mun<strong>do</strong>. O sucesso, nesse senti<strong>do</strong> específico, como nos<br />

mostra Silvia Franco, só po<strong>de</strong> levar ao pior.<br />

Ora, por outro la<strong>do</strong>, é fun<strong>da</strong>mental <strong>de</strong>stacar que a crítica ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> sucesso<br />

não po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum, levar a psicanálise a se posicionar <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma<br />

apologia aos que “fracassam ao triunfar” – ou menos ain<strong>da</strong>, <strong>do</strong>s que “triunfam a<br />

fracassar”. Freud foi sensível a essa dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> neurótico em li<strong>da</strong>r com a<br />

consistência imaginária que um triunfo po<strong>de</strong> ter. Vocês se lembram <strong>do</strong> texto “Os<br />

que fracassam ao triunfar” (1916), no qual Freud analisa diversos casos <strong>de</strong> sujeitos<br />

que “amarelaram” na hora “H”. Justo quan<strong>do</strong> está prestes a realizar um <strong>de</strong>sejo há<br />

muito acalanta<strong>do</strong> e espera<strong>do</strong>, o sujeito recua a ocupar aquele lugar. Há vários<br />

344


aspectos muito interessantes levanta<strong>do</strong>s por Freud nesse texto, mas o que eu<br />

gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar aqui, é a sua conclusão: o neurótico tem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ir além<br />

<strong>do</strong> pai. Prefere a culpa submissa que mantém o pai em seu <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar, a ter que<br />

pagar o preço por sustentar seu próprio <strong>de</strong>sejo.<br />

Vejam, então, que esse tipo <strong>de</strong> fracasso calcula<strong>do</strong>, tipicamente neurótico,<br />

na<strong>da</strong> tem a ver com o passe. Ao contrário, o passe, tanto clínica quanto<br />

institucionalmente, e<strong>xi</strong>ge um “ir além <strong>do</strong> pai, com a condição <strong>de</strong> que se possa servir<br />

<strong>de</strong>le”. Quem se dispõe à experiência <strong>do</strong> passe é alguém que não hesita em ocupar<br />

um lugar na <strong>Escola</strong>, ain<strong>da</strong> que, como nos lembra Dominique Fingermann em seu<br />

texto “O Momento <strong>do</strong> passe” – publica<strong>do</strong> na revista Stylus n. 14 – “a nomeação (AE)<br />

não é um batiza<strong>do</strong>, uma sansão, um reconhecimento, uma con<strong>de</strong>coração, nem uma<br />

iniciação”.<br />

Aliás, como adverte Bernard Nomine na “Introdução à Jorna<strong>da</strong> <strong>de</strong> Toulouse<br />

sobre o passe”, publica<strong>da</strong> na Revista Wunsch n. 9, não se <strong>de</strong>veria solicitar ao<br />

passante que se ofereça à experiência <strong>do</strong> passe, como a um sacrifício em nome <strong>do</strong><br />

Outro <strong>da</strong> <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> <strong>Psicanálise</strong>, mas, antes, que ele possa oferecer-­‐se essa<br />

experiência. É claro que isso não quer dizer, tampouco, que o passe possa ser<br />

reduzi<strong>do</strong> a uma experiência pessoal, fora <strong>do</strong> âmbito <strong>da</strong> <strong>Escola</strong>, já que, como o<br />

próprio Nomine ressalta: “o passe é uma experiência, qualquer que seja o lugar que<br />

se ocupe no dispositivo: passante, membro <strong>de</strong> um cartel <strong>do</strong> passe, passa<strong>do</strong>r” – e eu<br />

acrescentaria até mesmo ser membro <strong>do</strong> secretaria<strong>do</strong> <strong>do</strong> passe, lugar que tenho<br />

ocupa<strong>do</strong> nos últimos <strong>do</strong>is anos e que é a bor<strong>da</strong> <strong>do</strong> dispositivo.<br />

Quanto ao lugar específico <strong>do</strong> passante, entretanto, Colette Soler – em seu<br />

texto “As condições <strong>do</strong> ato, como reconhecê-­‐las?”, publica<strong>do</strong> na Revista Wunsh n. 8<br />

– comenta que o passe não po<strong>de</strong> centrar-­‐se na expectativa <strong>de</strong> que o passa<strong>do</strong>r<br />

revele qual objeto ele se fez para o Outro. Ela adverte: “Não encorajemos, portanto,<br />

os passantes ou os AE a nos expor o objeto que eles são, a famosa letra <strong>do</strong> sintoma<br />

345


(...). Buscar o que não se po<strong>de</strong> encontrar, isso programa a <strong>de</strong>cepção, o sentimento<br />

<strong>de</strong> fracasso e, às vezes, o mutismo aflito.”<br />

Ora, se o fracasso <strong>de</strong> que se trata no passe, não é nem aquele provoca<strong>do</strong><br />

pela impotência <strong>do</strong> neurótico que o inibe a ir além <strong>do</strong> pai, nem aquele programa<strong>do</strong><br />

pela <strong>de</strong>man<strong>da</strong> impossível <strong>de</strong> um suposto acesso ao real, <strong>de</strong> que fracasso se<br />

trataria?<br />

III. Do que não se po<strong>de</strong> falar, melhor se calar?<br />

O título <strong>do</strong> meu trabalho – “O passe: a razão <strong>de</strong> um fracasso” – é uma<br />

paródia <strong>do</strong> título <strong>da</strong> 2ª. Conferência <strong>de</strong> Roma proferi<strong>da</strong> por Lacan, e por ele<br />

nomea<strong>da</strong>: “<strong>Psicanálise</strong>: razão <strong>de</strong> um fracasso”, que foi proferi<strong>da</strong> em 15 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1967. No dia anterior, em Napolis, ele havia <strong>da</strong><strong>do</strong> outra conferência,<br />

essa mais conheci<strong>da</strong>, <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> “O engano <strong>do</strong> sujeito suposto saber”.<br />

Lembremos ain<strong>da</strong> que estamos no ano <strong>da</strong> “Proposição <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro” sobre o<br />

passe e que Lacan já vinha enfrentan<strong>do</strong> forte oposição ao mesmo no interior <strong>de</strong> sua<br />

<strong>Escola</strong> – o que, inclusive, provocou a primeira cisão no movimento lacaniano.<br />

Talvez não tenha si<strong>do</strong> por acaso que Lacan tenha escolhi<strong>do</strong> o dia <strong>de</strong> Saint Denis,<br />

patrono <strong>da</strong> França e mártir que foi <strong>de</strong>capita<strong>do</strong> e que é sempre representa<strong>do</strong> com a<br />

cabeça na mão. Lembrem-­‐se <strong>do</strong> que ele diz sobre sua cabeça ter si<strong>do</strong> entregue<br />

como propina à IPA, durante seu processo <strong>de</strong> excomunhão.<br />

Vejam que Lacan nos convoca a tratar <strong>da</strong> dimensão <strong>do</strong> engano – meprise –,<br />

que também po<strong>de</strong> ser traduzi<strong>do</strong> por equivoco, tapeação ou confusão. Vejam o que<br />

diz Lacan:<br />

Guar<strong>de</strong>m ao menos isso: meu empreendimento (entreprise)<br />

não ultrapassa o ato em que é apreendi<strong>do</strong> (prise) e, portanto,<br />

não tem chance senão por seu mal-­‐entendi<strong>do</strong> (méprise). Cabe<br />

ain<strong>da</strong> dizer <strong>do</strong> ato psicanalítico que, sen<strong>do</strong> ele, por sua<br />

revelação original, o ato que nunca tem tanto sucesso quanto<br />

ao ser falho, essa <strong>de</strong>finição não implica a reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que<br />

346


E ele acrescenta:<br />

equivale a dizer que não basta ele fracassar para ter sucesso,<br />

que o fiasco (ratage), por si só, não inaugura a dimensão <strong>do</strong><br />

engano que está aqui em questão. (LACAN, 1967/2001, p.<br />

340)<br />

Por isso é que há to<strong>da</strong> uma parte <strong>de</strong> meu ensino que não é ato<br />

analítico, mas tese sobre as condições que re<strong>do</strong>bram o engano<br />

próprio <strong>do</strong> ato com o fracasso em sua recaí<strong>da</strong>. Não ter podi<strong>do</strong><br />

alterar essas condições situa meu esforço na suspensão <strong>de</strong>sse<br />

fracasso. (...) Será em Roma que, em memória <strong>de</strong> uma guina<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> meu empreendimento, fornecereis amanhã a medi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse<br />

fracasso e suas razões. (LACAN, op. Cit. p. 340)<br />

Ora, <strong>de</strong> fato, no dia seguinte, Lacan dirá, em Roma, que o mistério a respeito<br />

<strong>do</strong> ato que franqueia a passagem <strong>de</strong> analisante a analista – e que ele vinha tratan<strong>do</strong><br />

em seu Seminário sobre o Ato e na “Proposição” – continua a se a<strong>de</strong>nsar. Ele se<br />

queixa: “E qualquer tentativa <strong>de</strong> introduzir nele uma coerência e, em especial para<br />

mim, <strong>de</strong> formular a mesma pergunta com que interrogo o próprio ato, <strong>de</strong>termina,<br />

até mesmo em alguns que julguei <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong>s a me seguir, uma resistência bastante<br />

estranha”. (LACAN, 1967/2001b, p. 347). E conclui: “Não tenho razão <strong>de</strong> me<br />

surpreen<strong>de</strong>r pelo fracasso <strong>de</strong> meus esforços para <strong>de</strong>satar a estagnação <strong>do</strong><br />

pensamento psicanalítico”. (LACAN, op. Cit. p. 349).<br />

Como vocês notaram, consi<strong>de</strong>ro que essas duas conferências <strong>de</strong>vem ser<br />

trabalha<strong>da</strong>s como se fosse uma só. E <strong>de</strong>las se <strong>de</strong>ve extrair uma lógica. Eu leio a<br />

“razão” <strong>do</strong> título <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> conferência no senti<strong>do</strong> matemático: a escrita <strong>de</strong> uma<br />

proporção, ou como diz Lacan, a “medi<strong>da</strong>” <strong>do</strong> fracasso. O interessante é que ele nos<br />

convoca a medir esse fracasso. Diante <strong>da</strong> falha estrutural, <strong>do</strong> impossível <strong>de</strong> dizer,<br />

ele propõe o passe. Não se trata <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong>pressivo <strong>de</strong> Lacan, ou <strong>de</strong> um<br />

recuo tático. Ali on<strong>de</strong> o neurótico se <strong>de</strong>para com o fracasso, e o psicanalista com a<br />

“sombra espessa”, Lacan persevera, convocan<strong>do</strong> seus alunos a extraírem <strong>do</strong><br />

fracasso sua razão.<br />

347


Tratemos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar, portanto, como nos convoca Lacan, no campo <strong>da</strong><br />

lógica, para acompanharmos com qual fracasso estamos li<strong>da</strong>n<strong>do</strong> no passe. Vejam<br />

que, nesse ponto Lacan está <strong>de</strong>safian<strong>do</strong> o positivismo lógico e toman<strong>do</strong><br />

Wittegenstein pelo avesso.<br />

No Tractatus, Wittegenstein propõe que tu<strong>do</strong> o que po<strong>de</strong> ser pensa<strong>do</strong> também<br />

po<strong>de</strong> ser dito. Os limites <strong>da</strong> linguagem são, portanto, os limites <strong>do</strong> pensamento, <strong>de</strong><br />

mo<strong>do</strong> que uma completa filosofia <strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser dito será uma teoria completa<br />

<strong>do</strong> que Kant <strong>de</strong>nominara o entendimento. To<strong>do</strong>s os problemas metafísicos<br />

<strong>de</strong>correm <strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> dizer o que não po<strong>de</strong> ser dito. Ou, em outras palavras,<br />

como afirma Gabriel Lombardi em seu livro “Clínica y lógica <strong>de</strong> la autorreferencia”,<br />

a conclusão <strong>do</strong> Tractatus é: “<strong>do</strong> que não se po<strong>de</strong> falar, melhor se calar”.(p. 80)<br />

A proposta <strong>de</strong> Lacan, me parece, vai no senti<strong>do</strong> oposto. Seu horror diante <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> psicanálise cair no inefável, faz com que ele <strong>de</strong>safie o impossível.<br />

Não, evi<strong>de</strong>ntemente, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> negá-­‐lo, mas sim na tentativa – pela via <strong>do</strong><br />

artifício – <strong>de</strong> transmitir seus limites.<br />

Para isso, ele precisará produzir uma reformulação no campo <strong>da</strong> lógica, e<br />

ele o fará introduzin<strong>do</strong> a categoria <strong>de</strong> “não-­‐to<strong>do</strong>”. É assim que ele respon<strong>de</strong> àqueles<br />

que, presumem que, na ausência <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, melhor ficar com na<strong>da</strong>, ou ca<strong>da</strong> um que<br />

tire o melhor <strong>de</strong> sua parte.<br />

VII. Mas então, é possível provar o real?<br />

Essa é questão que se impõe àqueles interessa<strong>do</strong>s em abor<strong>da</strong>r seriamente a<br />

“clínica <strong>do</strong> passe”. Sabemos que Lacan, em vários momentos se seu ensino, flertou<br />

com a idéia <strong>de</strong> que seria possível provar o real. Suas incursões pela lógica, a<br />

esperança na formalização e o projeto <strong>de</strong> matemização <strong>da</strong> psicanálise certamente<br />

tem a ver com isso. Estaria, então, essa empreita<strong>da</strong>, também fa<strong>da</strong><strong>da</strong> ao fracasso?<br />

348


Antes <strong>de</strong> nos precipitarmos a respon<strong>de</strong>r, po<strong>de</strong>mos dizer que o encanto <strong>de</strong><br />

Lacan com Gö<strong>de</strong>l tem a ver exatamente com essa problemática. Talvez possamos<br />

sustentar, com Gabriel Lombardi, que Gö<strong>de</strong>l eleva a lógica à condição <strong>de</strong> “Ciência<br />

<strong>do</strong> Real”. Porque?<br />

Segun<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> matemático <strong>brasil</strong>eiro Newton <strong>da</strong> Costa – cria<strong>do</strong>r <strong>da</strong><br />

lógica para-­‐consistente, “Gö<strong>de</strong>l mostrou que sob condições simples e aceitas como<br />

naturais, a maioria <strong>da</strong>s teorias matemáticas não po<strong>de</strong> ser a<strong>xi</strong>omatiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong><br />

completo.” Ou seja, “as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s informais <strong>de</strong> uma teoria matemática não são<br />

sucessíveis <strong>de</strong> serem, to<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong>s.” (COSTA, 1985, p. 102).<br />

A partir <strong>de</strong> seu teorema sobre as proposições in<strong>de</strong>cidíveis – ou Teorema <strong>da</strong><br />

incompletu<strong>de</strong> – Gö<strong>de</strong>l conseguiu <strong>de</strong>monstrar, em 1931, que a consistência <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> sistema formal não po<strong>de</strong> ser prova<strong>da</strong> no interior <strong>de</strong>sse mesmo<br />

sistema. Newton <strong>da</strong> Costa (1985) cita, para exemplificar, a frase <strong>de</strong> André Weill:<br />

“Deus e<strong>xi</strong>ste porque a matemática é consistente, mas o diabo também, porque não<br />

po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar esse fato”. (p. 102)<br />

As proposições in<strong>de</strong>cidíveis, portanto, são aqueles em relação às quais não<br />

se po<strong>de</strong> afirmar nem que sejam ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras, nem que sejam falsas. Segun<strong>do</strong><br />

Ricar<strong>do</strong> Kubrusly, <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Matemática <strong>da</strong> UFRJ:<br />

E ele acrescenta:<br />

Caso admitíssemos a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong> nem falso nem<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, os para<strong>do</strong>xos per<strong>de</strong>riam seu caráter<br />

contraditório para ganhar um certo alheamento. Seriam<br />

remeti<strong>do</strong>s para fora <strong>do</strong> sistema que se sentiria incapaz <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cidir sobre a veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> ou falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> afirmação<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>. O preço <strong>de</strong> nos livrarmos <strong>do</strong>s para<strong>do</strong>xos seria o<br />

reconhecimento, por parte <strong>do</strong> próprio sistema, <strong>de</strong> suas<br />

próprias limitações.<br />

Os para<strong>do</strong>xos indicarão o limite <strong>do</strong>s nossos sistemas se não<br />

quisermos contradições. Há que evitá-­‐los. E como fazê-­‐lo?<br />

349


Gö<strong>de</strong>l mostra com seus teoremas que a aparição <strong>de</strong> para<strong>do</strong>xos<br />

na matemática é inevitável. Para manter a consistência<br />

<strong>de</strong>seja<strong>da</strong> temos <strong>de</strong> expulsá-­‐los <strong>do</strong> sistema, não com a<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong> policial, mas com a humil<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong><br />

reconhecer as próprias limitações <strong>de</strong> um sistema que não<br />

saberá julgar se ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro ou falso, as afirmações veicula<strong>da</strong>s<br />

nos para<strong>do</strong>xos. Estes se tornarão in<strong>de</strong>cidíveis e serão<br />

responsáveis pela consistência <strong>do</strong> sistema matemático. O<br />

preço <strong>de</strong> consistência é a e<strong>xi</strong>stência <strong>de</strong> in<strong>de</strong>cidíveis.<br />

Gö<strong>de</strong>l opera, assim, uma separação radical entre Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

Demonstrabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Nas palavras <strong>de</strong> Gabriel Lombardi:<br />

E<strong>xi</strong>stem proposições que não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>duzi<strong>da</strong>s no<br />

sistema, ain<strong>da</strong> se essas mesmas proposições, vistas a partir <strong>do</strong><br />

exterior, resultam intuitivamente ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras. Assim, em vez<br />

<strong>de</strong> pensar que havia que <strong>de</strong>scartá-­‐las, Gö<strong>de</strong>l admitiu que a<br />

contradição e<strong>xi</strong>ste: uma proposição não <strong>de</strong>monstrável em um<br />

sistema lógico-­‐formal po<strong>de</strong> ser ao mesmo tempo ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira<br />

fora <strong>de</strong>le. Há mais coisas entre o simbólico e o real que as que<br />

trama a filosofia <strong>de</strong> uma sinta<strong>xi</strong>s pura. (LOMBARDI, 2008, p.<br />

81).<br />

É o próprio Lombardi (2008) quem diz:<br />

Há aqui uma prova <strong>do</strong> real, que permite uma refun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong><br />

matemática a partir <strong>de</strong> suas próprias impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s lógicas<br />

(...). Essa <strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> real como impossível não se<br />

consegue mediante a ‘revelação’ <strong>de</strong> uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Bem ao<br />

contrário, o que encontramos é o ato pelo qual Gö<strong>de</strong>l substitui<br />

a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> por uma noção ‘puramente formal’, <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong> referência exterior ao símbolo. (...) A <strong>de</strong>monstração<br />

gö<strong>de</strong>liana <strong>do</strong> impossível se realiza, então, sobre a base <strong>da</strong><br />

retira<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> (e também <strong>da</strong> falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> entendi<strong>da</strong> como<br />

negação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>). (p. 97)<br />

Assim, a tese <strong>de</strong> Lombardi (2008) é a <strong>de</strong> que essa Verwerfung confessa <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> permite a Gö<strong>de</strong>l criar a “Ciência <strong>do</strong> Real” na medi<strong>da</strong> em que “o saber já não<br />

é fantasia que interpreta, mas articulação que enlaça <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> novo a<br />

linguagem e o real” (p.104).<br />

350


V. Isso só prova que eu fracassei<br />

Ora, a questão fun<strong>da</strong>mental que se coloca aqui para o passe – em particular<br />

– e para a psicanálise – em geral – é a <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> exclusão <strong>da</strong><br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, como preço a pagar pela formalização e pela <strong>de</strong>monstração <strong>da</strong> clínica.<br />

Apesar <strong>da</strong> aposta <strong>de</strong> Lacan na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> formalização, não me parece<br />

que ele aposte em colocar to<strong>da</strong> a psicanálise <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> “Ciência <strong>do</strong> Real”. Se assim<br />

fosse, estaríamos, no passe, apenas na via <strong>da</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> final <strong>da</strong> análise e <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista. Mas, atenção: Isso não significa, entretanto, que a via <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>monstração esteja excluí<strong>da</strong> <strong>do</strong> passe, ou que a ele não se aplique a noção <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>cidível.<br />

Tomemos como exemplo a questão <strong>da</strong> nomeação:<br />

1 – Po<strong>de</strong>mos afirmar que a nomeação <strong>de</strong> um AE garante a verificação <strong>da</strong> presença<br />

<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista no passante A, pelo cartel <strong>do</strong> passe. Não vou entrar, nesse<br />

momento, no <strong>de</strong>bate a respeito <strong>do</strong> estatuto <strong>de</strong>ssa garantia – se ela é mais <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m<br />

<strong>da</strong> probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> indutiva – ou seja, se está <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> evidência, ou <strong>da</strong><br />

probabili<strong>da</strong><strong>de</strong> epsitêmica – ou seja, basea<strong>da</strong> no conhecimento. Mas <strong>de</strong>ixo indica<strong>do</strong><br />

que esse é um trabalho interessante a ser feito, a partir <strong>da</strong> introdução <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong><br />

“evidência-­‐esvaziamento” no Seminário 23.<br />

2 – Não po<strong>de</strong>mos, em contraparti<strong>da</strong>, afirmar que a não nomeação garanta a<br />

verificação <strong>do</strong> não <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista no passante B. Em relação ao não nomea<strong>do</strong>,<br />

não foi possível <strong>de</strong>monstrar nem a presença nem a ausência <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>do</strong> analista.<br />

351


Vou escrever assim:<br />

No passe:<br />

Se DA → AE (V)<br />

Se ̴ AE → ̴ DA (V) ou (F) -­‐ INDECIDÍVEL<br />

Assim, encontramos novamente aqui o in<strong>de</strong>cidível, que faz com que o<br />

dispositivo <strong>do</strong> passe, felizmente, não possa ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “consistente”, na<br />

acepção matemática <strong>do</strong> termo. Ou melhor, ele só o seria se esse in<strong>de</strong>cidível<br />

pu<strong>de</strong>sse ser rejeita<strong>do</strong> <strong>do</strong> dispositivo. Mas, ao contrário, a <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> cartel por uma<br />

não-­‐nomeação apenas reforça a presença <strong>do</strong> in<strong>de</strong>cidível nesse sistema.<br />

Vejamos como Lacan trata <strong>de</strong>ssa questão no Seminário 23. Lacan estava<br />

muito empenha<strong>do</strong> em conseguir fazer um nó borromeano com quatro nós <strong>de</strong> três.<br />

Depois <strong>de</strong> <strong>do</strong>is meses “quebran<strong>do</strong> a cabeça”, ele diz:<br />

E Lacan acrescenta:<br />

Não consegui <strong>de</strong>monstrar que ex-­‐siste um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> eno<strong>da</strong>r<br />

quantro nós <strong>de</strong> três <strong>de</strong> uma maneira borromeana. Pois bem,<br />

isso não prova na<strong>da</strong>. Não prova que ele não ex-­‐siste. Ain<strong>da</strong><br />

ontem à noite, só pensava em conseguir <strong>de</strong>monstrar-­‐lhes que<br />

ele ex-­‐siste. O pior é que não encontrei a razão <strong>de</strong>monstrativa<br />

<strong>de</strong> que ele não ex-­‐siste. Eu, simplesmente, fracassei. Que eu<br />

não possa mostrar que o nó <strong>de</strong> quatro nós <strong>de</strong> três, como<br />

borromeano, ex-­‐siste, na<strong>da</strong> prova. Seria preciso que eu<br />

<strong>de</strong>monstrasse que ele não po<strong>de</strong> ex-­‐sistir, e assim, por esse<br />

impossível, um real seria assegura<strong>do</strong>. Tratar-­‐se-­‐ia <strong>do</strong> real<br />

constituí<strong>do</strong> por não haver nó borromeano que se constitua<br />

com quatro nós <strong>de</strong> três. Demonstrá-­‐lo seria tocar um real.<br />

(LACAN, 1975-­‐76/2007, p. 42-­‐ 43).<br />

Para lhes dizer o que penso disso, creio que esse nó ex-­‐siste.<br />

Quero dizer que não é aí que toparemos com um real.<br />

Portanto, não me <strong>de</strong>sespero para encontrá-­‐lo, mas é um fato<br />

que não posso lhes mostrar na<strong>da</strong> <strong>de</strong>le. Assim, a relação entre<br />

352


mostrar e <strong>de</strong>monstrar está niti<strong>da</strong>mente separa<strong>da</strong>. Uma vez<br />

que isso fosse <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>, seria fácil mostrá-­‐lo para vocês.<br />

(LACAN, op. Cit. p. 43)<br />

E, efetivamente, como Lacan anuncia na aula seguinte, naquela mesma noite<br />

Soury e Thomé apareceram na casa <strong>de</strong> <strong>de</strong>le com o famigera<strong>do</strong> nó.<br />

Vejam, portanto, que Lacan transmite <strong>de</strong> forma precisa, através <strong>de</strong>ssa<br />

pequena ane<strong>do</strong>ta borromeana, a relação entre mostração e <strong>de</strong>monstração.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos supor aqui um retorno <strong>de</strong> Lacan a Wittegenstein, que propunha que<br />

aquilo que não pu<strong>de</strong>sse ser <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>, <strong>de</strong>veria apenas ser mostra<strong>do</strong>, em<br />

silêncio. Seria a mostração <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> um “mutismo aflito”, como disse Colette<br />

Soler?<br />

Não me parece que seja essa a proposta <strong>de</strong> Lacan. Mas, por outro la<strong>do</strong>,<br />

também não estamos <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>da</strong> pura <strong>de</strong>monstração <strong>do</strong> impossível. A articulação<br />

muito peculiar que a psicanálise propõe, com o dispositivo <strong>do</strong> passe, entre<br />

<strong>de</strong>monstração e mostração, me parece possível graças ao fato <strong>de</strong> que, ao contrário<br />

<strong>da</strong> lógica, a psicanálise não po<strong>de</strong> forcluir <strong>de</strong> to<strong>do</strong> a Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> que mentirosa,<br />

ou, como ele afirma no Prefácio <strong>da</strong> edição inglesa <strong>do</strong> Seminário 11 em 1976:<br />

Don<strong>de</strong> eu haver <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> por passe essa verificação <strong>da</strong><br />

historisterização <strong>da</strong> análise, absten<strong>do</strong>-­‐me <strong>de</strong> impor esse passe<br />

a to<strong>do</strong>s, porque não há to<strong>do</strong>s no caso, mas esparsos<br />

<strong>de</strong>sparata<strong>do</strong>s. Deixei-­‐o à disposição <strong>da</strong>queles que se arriscam<br />

a testemunhar <strong>da</strong> melhor maneira possível sobre a ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mentirosa<br />

Vejam que Lacan coloca o passe na dimensão <strong>do</strong> risco e, portanto, <strong>da</strong> aposta.<br />

O passe po<strong>de</strong> falhar? Talvez a pergunta esteja mal formula<strong>da</strong>. O passe é falho por<br />

sua própria estrutura. E, se assim não fosse, teríamos finalmente encontra<strong>do</strong> a<br />

última palavra sobre o que é o analista. Lembremos o que dizia Lacan no seminário<br />

23: é graças à falha que inconsciente e real <strong>de</strong> eno<strong>da</strong>m. Assim, po<strong>de</strong>mos concluir<br />

353


que o passe só po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um fracasso se for toma<strong>do</strong> por aquilo que ele<br />

não é: um dispositivo consistente. Quem entra no passe em busca <strong>da</strong> nomeação<br />

como uma confirmação vin<strong>da</strong> <strong>do</strong> Outro, tem uma chance muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

<strong>de</strong>cepcionar. A espera <strong>da</strong> nomeação em qualquer passante é patente, mas não pela<br />

via <strong>da</strong> chancela, e sim pela própria convicção íntima que implica a <strong>de</strong>cisão causa<strong>da</strong><br />

pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> testemunhar.<br />

O que po<strong>de</strong> o passe oferecer, então, aos esparsos disparata<strong>do</strong>s? Voltemos à<br />

idéia <strong>de</strong> experiência e <strong>de</strong>ixemos falar nossa colega espanhola Maria Luisa <strong>de</strong> la<br />

Oliva, esparsa disparata<strong>da</strong> que não foi nomea<strong>da</strong>. Sobre sua experiência, ela diz:<br />

Posso dizer que haver passa<strong>do</strong> pela experiência <strong>do</strong> passe,<br />

haver atravessa<strong>do</strong> a experiência, me iluminou um certo setor<br />

<strong>de</strong> sombras <strong>da</strong> minha análise. O passe, como dispositivo que<br />

produz efeitos subjetivos em to<strong>do</strong> sujeito que faz a<br />

experiência, não <strong>de</strong>veria então reduzir-­‐se à resposta <strong>do</strong> cartel<br />

enquanto a se há ou não nomeação. O que esperava Lacan <strong>do</strong><br />

dispositivo era, antes, efeitos <strong>de</strong> transmissão <strong>do</strong> mesmo no<br />

coletivo analítico.<br />

Ora, experiência e transmissão são quase antinômico; <strong>da</strong>í a ousadia <strong>de</strong><br />

Lacan <strong>de</strong> articulá-­‐los no passe. Como afirma a própria Maria Luisa <strong>de</strong> la Oliva, em<br />

seu belo texto “A escrita e/ou a vi<strong>da</strong>” publica<strong>do</strong> na revista Stylus n. 19, no qual<br />

comenta exatamente o livro <strong>de</strong> Jorge Seprum com o qual comecei este texto: “há<br />

um impossível na transmissão, ou também se po<strong>de</strong> dizer que a transmissão é<br />

precisamente a <strong>do</strong> impossível. (p. 36)<br />

Sen<strong>do</strong> assim, eu diria que Lacan, assim como Guimarães Rosa, propõe um<br />

dispositivo que é “não-­‐to<strong>do</strong>” e, assim sen<strong>do</strong>, é também Nona<strong>da</strong>. Nona<strong>da</strong> é não-­‐<br />

na<strong>da</strong>, negação <strong>do</strong> “to<strong>do</strong> na<strong>da</strong>”. Um tiquinho <strong>de</strong> na<strong>da</strong> que nos permita testemunhar<br />

sobre essa aventura singular que é uma análise, sua extraordinária eficácia a suas<br />

conseqüências inéditas. Termino, então, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a André Weil, com a fala <strong>de</strong><br />

Riobal<strong>do</strong>, ao terminar seu <strong>de</strong>poimento, no final <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> sertão: Amável senhor<br />

354


me ouviu, minha idéia confirmou: que o Diabo não e<strong>xi</strong>ste. Pois não? O senhor é um<br />

homem soberano, circunspecto. O diabo não há! É o que eu digo, se for...E<strong>xi</strong>ste é<br />

homem humano. Travessia.<br />

355

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