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Dizer que esvaziou a garrafa “de fato e de verdade” faz-se necessário, porque<br />
noutra cena do texto ele fumou um cachimbo sem fumo e sugere não saber o motivo<br />
pelo qual o fez. Neste caso ele precisa explicar que havia aguardente na garrafa. Neste<br />
detalhe preciso me deter para mostrar como Kafka está atento aos mínimos detalhes.<br />
Primeiro aspecto: Esta ação de beber é a única fidedigna. Ele bebeu de fato e de<br />
verdade. Tanto que os seus sentidos rodavam. Logo ele estava embriagado. Não se pode<br />
confiar nem na memória nem no discurso de um bêbado. Um bêbado não articula a<br />
linguagem e sim desarticula. Mas se ele não falou, o que ele fêz? Arrotou. Note isto no<br />
signo motivado “pror-rom-peu”. Já disse antes que em textos produzidos os vazios são<br />
preenchidos pelos bordos dos sentidos de outros signos. Quando ele disse não ter<br />
passado a mão na barriga, flagramos a mentira porque ele disse, antes disso, ter seguido<br />
as regras.<br />
Então devemos nos perguntar o que existe neste ato que merece a atenção do<br />
nosso olhar ou ainda, onde está o sentido do vazio aberto naquela cena incompleta – da<br />
mentira - ou seja, o motivo pelo qual os homens passam a mão na barriga.<br />
Vamos a ele. Os marinheiros quando bebem passam a mão na barriga para<br />
arrotarem, mas isso não foi dito, claro, é um tabu usar esta palavra, não é delicado.<br />
Logo, na perspectiva dos “senhores da Academia” este termo fica ocultado.<br />
Pois bem, nesta cena ele disse não ter passado a mão na barriga e passou.<br />
Mentiu. Um vazio é aberto. Vamos preenchê-lo com o motivo não explicitado antes: o<br />
arroto. Naquele momento expõe-se uma ação sem o motivo pelo qual ela é feita, neste<br />
momento, expõe-se o motivo pelo qual ela é feita, mentindo ao dizer que ela não foi<br />
feita: o arroto. O que semeia cizânia na cena é o fato de “Pedro Vermelho” ao mesmo<br />
tempo narrar e focalizar e são diversos os focalizadores. Quem não percebe este detalhe<br />
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