Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

veio um ponto e vírgula, longa parada, isso porque, em sua perspectiva, aquele gesto significava sim, mas nada previamente construído. Era só um gesto em si. Contudo foi acrescentado um sentido àquele gesto, sentido este que aparece no segundo aperto de mão: “[t]estemunho de franqueza”. Vê-se que não se trata de linguagem escrita. É por isso que, vendo-se na tarefa de escrever, necessita acrescentar “a palavra franca” ao primeiro gesto, original a fim de ressensibilizar o sentido a ele atribuído, ou seja: para um gesto original que preexiste à sua condição humana, atual, uma palavra original, não a palavra repetida, estereotipada, dos “senhores da Academia”. Noto que este aperto de mão não é o utilizado para cumprimentar e sim um gesto de apertar a própria mão, como um ponto de apoio – semelhante ao grão de voz -, próprio dos símios. Ele está buscando “a palavra franca” para relatar sua vida pregressa e esta palavra precisa ser nova, a fim de servir de ponto de apoio para o seu relato, assim como serve seu gesto. Note tratar-se de apoio fluido, a palavra e o gesto. É apenas um detalhe, mas “Pedro Vermelho” está atento a ele. Na perspectiva do homem que fala não há distinção entre os sons dos macacos. Soa-lhes como eterna repetição. Eu quero dizer que o que para Barthes – ele é um senhor da academia, pois sim! - é um engasgamento, repetição, fala desarticulada, para ele, “Pedro Vermelho”, é uma linguagem harmoniosa, a mesma que ele utilizava no seu bando, um rumor. Diferente do balbucio, que indica um malogro da linguagem, como disse antes, o rumor “é o barulho daquilo que está funcionando bem” (BARTHES, 2004b, p.94). Embora possuidor de linguagem natural, quando ele estava no seu bando sua linguagem não era compreendida pelos homens. Agora ela continua não sendo compreendida, mas acompanhada por uma linguagem gestual, que os homens julgam conhecer posto serem eles os amestradores: os gestos. Logo, os “senhores da Academia” estão lendo os gestos de “Pedro Vermelho”, em suas perspectivas, e não a sua 91

linguagem articulada. Eu estou dizendo que Pedro Vermelho não fala. Ele não articula linguagem. Fala sim, mas em sua perspectiva. Ele grita, emite sons e ruídos animais. O rumor é mesmo assim denota um barulho limite, um barulho impossível, o barulho daquilo que, funcionando com perfeição, não tem barulho; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do barulho: o tênue, o camuflado o fremente são recebidos como sinais de uma anulação sonora (BARTHES, 2004b, p.94). Ele é falado pela linguagem articulada, o que é diferente de falar a linguagem articulada. Observo este aspecto a partir do modo como ele des- articula sua primeira “fala”. Eu preciso citar na íntegra senão é impossível explicar-me: Referindo-se a um seu amestrador, ele “fala”: De qualquer modo, que vitória foi tanto para ele como para mim quando então uma noite, diante de um círculo grande de espectadores – talvez fosse uma festa, tocava uma vitrola, um oficial passeava entre as pessoas -, quando nesta noite, sem ser observado, eu agarrei uma garrafa de aguardente deixada por distração diante de minha jaula, desarrolhei-a segundo as regras, sob a atenção crescente das pessoas, levei-a aos lábios e sem hesitar, sem contrair a boca, como um bebedor de cátedra, com os olhos virados, a goela transbordando, eu a esvaziei de fato e de verdade; joguei fora a garrafa não mais como um desesperado, mas como um artista; na realidade esqueci de passar a mão na barriga, mas em compensação – porque não podia fazer outra coisa, porque era impedido para isso, porque os meus sentidos rodavam – em bradei sem mais “alô!”, prorrompi num som humano, saltei com este brado dentro da comunidade humana e senti, como um beijo em todo meu corpo que pingava de suor, o eco – “Ouçam, ele fala!” (UMR, p. 70). Este é o discurso de “Pedro Vermelho”. Discurso em que não podemos confiar. Observo o advérbio de dúvida na nota explicativa em parênteses. Este advérbio entorna o seu sentido por toda a cena: ele diz que não era observado quando agarrou a garrafa, contudo, logo adiante, diz que a desarrolhou sob a atenção crescente das pessoas. Afirma tê-la desarrolhado segundo as regras, mas diz também não ter passado a mão na barriga, como era de costume entre os marinheiros. 92

linguagem articulada. Eu estou dizendo que Pedro Vermelho não fala. Ele não articula<br />

linguagem. Fala sim, mas em sua perspectiva. Ele grita, emite sons e ruídos animais. O<br />

rumor é mesmo assim<br />

denota um barulho limite, um barulho impossível, o barulho daquilo que, funcionando<br />

com perfeição, não tem barulho; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do<br />

barulho: o tênue, o camuflado o fremente são recebidos como sinais de uma anulação<br />

sonora (BARTHES, 2004b, p.94).<br />

Ele é falado pela linguagem articulada, o que é diferente de falar a linguagem<br />

articulada. Observo este aspecto a partir do modo como ele des- articula sua primeira<br />

“fala”. Eu preciso citar na íntegra senão é impossível explicar-me: Referindo-se a um<br />

seu amestrador, ele “fala”:<br />

De qualquer modo, que vitória foi tanto para ele como para mim quando então uma<br />

noite, diante de um círculo grande de espectadores – talvez fosse uma festa, tocava uma<br />

vitrola, um oficial passeava entre as pessoas -, quando nesta noite, sem ser observado,<br />

eu agarrei uma garrafa de aguardente deixada por distração diante de minha jaula,<br />

desarrolhei-a segundo as regras, sob a atenção crescente das pessoas, levei-a aos lábios<br />

e sem hesitar, sem contrair a boca, como um bebedor de cátedra, com os olhos virados,<br />

a goela transbordando, eu a esvaziei de fato e de verdade; joguei fora a garrafa não mais<br />

como um desesperado, mas como um artista; na realidade esqueci de passar a mão na<br />

barriga, mas em compensação – porque não podia fazer outra coisa, porque era<br />

impedido para isso, porque os meus sentidos rodavam – em bradei sem mais “alô!”,<br />

prorrompi num som humano, saltei com este brado dentro da comunidade humana e<br />

senti, como um beijo em todo meu corpo que pingava de suor, o eco – “Ouçam, ele<br />

fala!” (UMR, p. 70).<br />

Este é o discurso de “Pedro Vermelho”. Discurso em que não podemos confiar.<br />

Observo o advérbio de dúvida na nota explicativa em parênteses. Este advérbio entorna<br />

o seu sentido por toda a cena: ele diz que não era observado quando agarrou a garrafa,<br />

contudo, logo adiante, diz que a desarrolhou sob a atenção crescente das pessoas.<br />

Afirma tê-la desarrolhado segundo as regras, mas diz também não ter passado a mão na<br />

barriga, como era de costume entre os marinheiros.<br />

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