Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

verdadeiras preciosidades basileiras: banhos de tinta, banhos de ouro, banhos de prata, mas não só, também do brilho falso das estampas de antigas obras-primas: monalisas, pietás, paisagens européias, anjos da guarda, santos diversos, retirados do seu lugar: museus e igrejas principalmente e transportados para lojas, barraquinhas, etc. É o lixo estrangeiro – papel, plástico, ferro, etc - sendo reutilizado sem arte, para ser depositado “com estilo” no coração da América Latina. É possível dizer então ser este “machado pequeno” um sinal de alerta. Assim ele ilustra muito bem a tensão dos “likoualas” e também do narrador que necessita da palavra instrumental, já que vai narrar uma informação, mas que, por desconfiar de que esta palavra é passível de ser re-utilizada para manipular o Outro – mulher africana – precisa acautelar-se neste uso. Assim ao narrar a informação para o leitor procura depurar as palavras e com isso tanto revela, quanto vela a mensagem. Igual tensão é a de Clarice Lispector que não desiste de seu ofício de proteger este “som do tambor” e que, para mantê-lo sob vigilância, converte-o em sopro, instante em que o silêncio impera em sua escrita e o leitor é convidado à reflexão, como estamos buscando demostrar. Tanto o som quanto o sopro, ambos trabalhados na palavra criadora podem ser considerados pontos a partir dos quais sua escritura dobra-se sobre si mesma num processo incessante e interminável de começo e recomeço, “o ponto zero” barthesiano de sua escritura. Única maneira de não se deixar domesticar e devolver a linguagem ao seu próprio ser. Com efeito no mito da criação também o sopro antecede ao ato de nomear. Contudo preciso recuar um pouco mais, é este sopro que Clarice Lispector consegue converter em verbo feito carne. “No início era o verbo ...”, ou seja, no sentido benjaminiano, a palavra redentora. 83

De onde teria vindo este sopro? Retomando o texto bíblico, vejo no Livro do Apocalipse de João11:11 que dois profetas morrem e “[d]epois de três dias e meio, um sopro de vida veio de Deus e penetrou nos dois profetas”. Eu quero dizer que se ligarmos as duas pontas do texto bíblico – o Gênese e o Apocalipse - veremos que o sopro primeiro advém de outro sopro. O cessar de uma vida, uma idéia, é uma possibilidade de novo recomeço. Clarice Lispector não se cansa de silenciar e de fazer falar outros sentidos em velhos significantes. Assim ela depura o signo. Tarefa profética. Franz Kafka disse a Janouch que “‘a tarefa do poeta é uma tarefa profética: a palavra justa conduz; a palavra que não é justa seduz; não é por acaso que a Bíblia se chama Escritura’” (KAFKA: apud. BLANCHOT, 1987, p. 68). Outro tipo de linguagem utilizada pelos “likoualas” a fim de não serem “capturados” pelos “bantus” é a linguagem gestual. Aliás ela vem antes dos “sons animais”. Esta linguagem é utilizada pelo narrador para sugerir o estado psicológico de “Pequena Flor” já que ela não fala, não articula. O leitor precisa estar atento à distintas manifestações de linguagem, para compreendê-la. Com efeito, esta linguagem também é interceptada por “Marcel Pretre”. Mas no momento em que ele é acometido pelo “mal- estar” diante do “sorriso” – linguagem gestual - de “Pequena Flor”, ele se desequilibra e fica hipnotizado/imobilizado. 40 O jogo de linguagem gestual no conto é mais uma forma utilizada pelo narrador, além dos sons animais, para dialogar com o leitor na mesma linguagem utilizada pelos “likoualas” - poucos nomes, gestos e sons animais - no seu desejo de manterem-se resguardados. Não é de fácil acesso, é verdade, porque o leitor já está acostumado com a leitura de sinais gráficos. Esta estratégia do narrador faz entender melhor a atenção que 40 Cf. Cap. VI. 84

verdadeiras preciosidades basileiras: banhos de tinta, banhos de ouro, banhos de prata,<br />

mas não só, também do brilho falso das estampas de antigas obras-primas: monalisas,<br />

pietás, paisagens européias, anjos da guarda, santos diversos, retirados do seu lugar:<br />

museus e igrejas principalmente e transportados para lojas, barraquinhas, etc. É o lixo<br />

estrangeiro – papel, plástico, ferro, etc - sendo reutilizado sem arte, para ser depositado<br />

“com estilo” no coração da América Latina.<br />

É possível dizer então ser este “machado pequeno” um sinal de alerta. Assim ele<br />

ilustra muito bem a tensão dos “likoualas” e também do narrador que necessita da<br />

palavra instrumental, já que vai narrar uma informação, mas que, por desconfiar de que<br />

esta palavra é passível de ser re-utilizada para manipular o Outro – mulher africana –<br />

precisa acautelar-se neste uso.<br />

Assim ao narrar a informação para o leitor procura depurar as palavras e com<br />

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desiste de seu ofício de proteger este “som do tambor” e que, para mantê-lo sob<br />

vigilância, converte-o em sopro, instante em que o silêncio impera em sua escrita e o<br />

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Tanto o som quanto o sopro, ambos trabalhados na palavra criadora podem ser<br />

considerados pontos a partir dos quais sua escritura dobra-se sobre si mesma num<br />

processo incessante e interminável de começo e recomeço, “o ponto zero” barthesiano<br />

de sua escritura. Única maneira de não se deixar domesticar e devolver a linguagem ao<br />

seu próprio ser. Com efeito no mito da criação também o sopro antecede ao ato de<br />

nomear. Contudo preciso recuar um pouco mais, é este sopro que Clarice Lispector<br />

consegue converter em verbo feito carne. “No início era o verbo ...”, ou seja, no sentido<br />

benjaminiano, a palavra redentora.<br />

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