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“escuridão”, “falta de lei”, “humilhada”, sugerem escravidão, que, por analogia, remete,<br />
senão à cor negra, pelo menos a uma cor não branca.<br />
Ana vivia dentro de casa e só saía às compras. Ana tinha vergonha. “De que<br />
tinha vergonha?” (LF, p. 26). Noto que os filmes não eram vistos coletivamente, posto<br />
que em “podia-se escolher pelo jornal o filme da noite” (LF, p. 22), significa que ela os<br />
assistia em casa ou que não os assistia. Finalmente, sua cor vem sugerida no fato de o<br />
vigia não tê-la “visto”, sendo que ela estava sacudindo “os portões fechados” (LF, p.<br />
25), numa focalização do marido “[m]as diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com<br />
maior atenção” (LF, p. 29). Vê-se que o rosto do marido não era igual ao dela, com<br />
efeito era ele quem a afastava “do perigo de viver” (LF, p. 30). No final, quando diante<br />
do espelho ela não se vê. “E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora<br />
diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar,<br />
como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia” (LF, p. 30). Observo que<br />
ela desapareceu no breu da noite.<br />
Estamos diante de uma arte literária, que, embora seja vendável, não está sujeita<br />
às condições da arte de mercado ou seja a apreensão imediata do sentido. Aqui a<br />
linguagem é organizada somente para abordar, aproximar os elementos simbólicos do<br />
real, como a rede de tricô de Ana que conserva a flexibilidade do algodão e da linha.<br />
Esta orientação estaria no próprio desenho da letra que conserva dentro de suas bordas<br />
um buraco como a marca da sua contingência.<br />
Assim ao apontar o ponto cego da linguagem, Clarice Lispector sugere que ela<br />
não é capaz de representar o real e que no âmbito da ilusão ela deve ser usada para<br />
revelar tal impossibilidade.<br />
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