Tese Lidia Nazaré - UFF
Tese Lidia Nazaré - UFF Tese Lidia Nazaré - UFF
passado. Não é por menos que o seu amor sem reciprocidade era tão doloroso “[a]h! Era mais fácil ser um santo que uma pessoa!” (LF. P. 27). Ninguém a olha ou vai em sua direção. Desviam dela: Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão – e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir (LF, p.21). Ela que “apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas” (LF, p. 22). Mantinha tudo o quê? Outra interpelação aberta para ser ressensibilizada. Observo que ela vivia em suspensão, buscando adequar-se à vida das pessoas a que ela passou a pertencer. O cego faz Ana compreender que “em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos ... com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo ... sentia- se banida, porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes (LF, p. 27). Vejo que as roupas “claramente” feitas são forma de manter certa aparência, aqui, de pessoa clara. Ana tinha vergonha. “De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver” (LF, p. 27). O narrador insiste no fato de que Ana tinha vergonha e interpela o leitor à busca de respostas. Ao que parece seu “ódio” advém do fato de ela pensar que o cego a conhecera do passado, até então esquecido. Este passado tem algo a ver com uma vida marginalizada da qual a outra cor pode fazer parte. O que me chamou a atenção para este detalhe foram as cores da roupa e do quadro do “Lavrador de café” (1939) azul, lilás e branca principalmente, que me fizeram crer que ele estava confortável. Ambas as cores estão neste conto: temos o azul da roupa da mulher de quem Ana desviou o olhar e, no fragmento acima, o branco, neste advérbio, “claramente”. As palavras “tortura”, “banida”, “olhos feridos’ 65
“escuridão”, “falta de lei”, “humilhada”, sugerem escravidão, que, por analogia, remete, senão à cor negra, pelo menos a uma cor não branca. Ana vivia dentro de casa e só saía às compras. Ana tinha vergonha. “De que tinha vergonha?” (LF, p. 26). Noto que os filmes não eram vistos coletivamente, posto que em “podia-se escolher pelo jornal o filme da noite” (LF, p. 22), significa que ela os assistia em casa ou que não os assistia. Finalmente, sua cor vem sugerida no fato de o vigia não tê-la “visto”, sendo que ela estava sacudindo “os portões fechados” (LF, p. 25), numa focalização do marido “[m]as diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção” (LF, p. 29). Vê-se que o rosto do marido não era igual ao dela, com efeito era ele quem a afastava “do perigo de viver” (LF, p. 30). No final, quando diante do espelho ela não se vê. “E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia” (LF, p. 30). Observo que ela desapareceu no breu da noite. Estamos diante de uma arte literária, que, embora seja vendável, não está sujeita às condições da arte de mercado ou seja a apreensão imediata do sentido. Aqui a linguagem é organizada somente para abordar, aproximar os elementos simbólicos do real, como a rede de tricô de Ana que conserva a flexibilidade do algodão e da linha. Esta orientação estaria no próprio desenho da letra que conserva dentro de suas bordas um buraco como a marca da sua contingência. Assim ao apontar o ponto cego da linguagem, Clarice Lispector sugere que ela não é capaz de representar o real e que no âmbito da ilusão ela deve ser usada para revelar tal impossibilidade. 66
- Page 13 and 14: mulher. Contudo, quando a notícia
- Page 15 and 16: fato, foi na tentativa de acessar a
- Page 17 and 18: mundo, “nos fins do século XVI o
- Page 19 and 20: Resumindo. Fica evidente para mim q
- Page 21 and 22: Observo que todos os elementos dest
- Page 23 and 24: A partir deste texto de Silviano Sa
- Page 25 and 26: nome recebido e, ao se colocar em b
- Page 27 and 28: hábito que automatiza o pensamento
- Page 29 and 30: 6. Das hipóteses Com esta pesquisa
- Page 31 and 32: [a] atividade do espírito (...) j
- Page 33 and 34: No capítulo III intitulado “Pont
- Page 35 and 36: 1. A Travessia da letra e das perso
- Page 37 and 38: FIGURA 2 - Sky and water I 20 - M.
- Page 39 and 40: encontra razões para escrever em s
- Page 41 and 42: linguagem instrumental, para a letr
- Page 43 and 44: Mas em meio à tensão discursiva,
- Page 45 and 46: filhos que crescem, a do supermerca
- Page 47 and 48: citando Hamk “simboliza a tumba,
- Page 49 and 50: Neste Outro estado atravessa os “
- Page 51 and 52: da representação encontra-se na o
- Page 53 and 54: cansaço fosse exclusivamente físi
- Page 55 and 56: que balança, nas roupas que ela co
- Page 57 and 58: abre como uma escritura, a partir d
- Page 59 and 60: palavra alheia” (SOUSA: apud. BRA
- Page 61 and 62: que ela não era olhada. Este susto
- Page 63: olham para ela - pessoas metaforiza
- Page 67 and 68: encontrável por mim mesma, e sem s
- Page 69 and 70: a linguagem vai se convertendo numa
- Page 71 and 72: aparece no texto. No que se refere
- Page 73 and 74: Capítulo ll - O nascimento e o res
- Page 75 and 76: FIGURA 3 - Moebius band II 35 - M.
- Page 77 and 78: Progresso este que, numa primeira i
- Page 79 and 80: sua obra, no capítulo anterior, e
- Page 81 and 82: “sulco” (LACAN, 1986, p. 28) de
- Page 83 and 84: De onde teria vindo este sopro? Ret
- Page 85 and 86: Além da relação entre essas duas
- Page 87 and 88: Neste caso a sua busca por esta pal
- Page 89 and 90: utilizá-la no sentido “mais rest
- Page 91 and 92: linguagem articulada. Eu estou dize
- Page 93 and 94: se perde na embriaguês dos sentido
- Page 95 and 96: esultou seu amestramento ou seja su
- Page 97 and 98: “Não ensinará nada essencialmen
- Page 99 and 100: “se não estivesse plenamente seg
- Page 101 and 102: É só em seu conjunto que o texto
- Page 103 and 104: 104 A partir do século XVII, todo
- Page 105 and 106: E ainda “a linguagem humana se pe
- Page 107 and 108: não só, também poderia ser “or
- Page 109 and 110: A escrita é uma realidade ambígua
- Page 111 and 112: Assim identificamos duas histórias
- Page 113 and 114: sociedade: No clímax ele informa s
passado. Não é por menos que o seu amor sem reciprocidade era tão doloroso “[a]h! Era<br />
mais fácil ser um santo que uma pessoa!” (LF. P. 27). Ninguém a olha ou vai em sua<br />
direção. Desviam dela:<br />
Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que<br />
se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão – e por um momento a falta<br />
de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir (LF, p.21).<br />
Ela que “apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.<br />
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram<br />
claramente feitas para serem usadas” (LF, p. 22). Mantinha tudo o quê? Outra<br />
interpelação aberta para ser ressensibilizada. Observo que ela vivia em suspensão,<br />
buscando adequar-se à vida das pessoas a que ela passou a pertencer. O cego faz Ana<br />
compreender que “em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam<br />
ferido os olhos ... com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo ... sentia-<br />
se banida, porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes (LF, p. 27).<br />
Vejo que as roupas “claramente” feitas são forma de manter certa aparência,<br />
aqui, de pessoa clara. Ana tinha vergonha. “De que tinha vergonha? É que já não era<br />
mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver”<br />
(LF, p. 27). O narrador insiste no fato de que Ana tinha vergonha e interpela o leitor à<br />
busca de respostas. Ao que parece seu “ódio” advém do fato de ela pensar que o cego a<br />
conhecera do passado, até então esquecido. Este passado tem algo a ver com uma vida<br />
marginalizada da qual a outra cor pode fazer parte.<br />
O que me chamou a atenção para este detalhe foram as cores da roupa e do<br />
quadro do “Lavrador de café” (1939) azul, lilás e branca principalmente, que me<br />
fizeram crer que ele estava confortável. Ambas as cores estão neste conto: temos o azul<br />
da roupa da mulher de quem Ana desviou o olhar e, no fragmento acima, o branco,<br />
neste advérbio, “claramente”. As palavras “tortura”, “banida”, “olhos feridos’<br />
65