Tese Lidia Nazaré - UFF
Tese Lidia Nazaré - UFF Tese Lidia Nazaré - UFF
Noto que ela não fixava o olhar em ninguém. E que não se sentia bem ao servir de objeto de fixação para alguém. Mas todo o motivo está no rosto. Seu rosto é diferente, por exemplo, do de uma mulher que estava ao seu lado no bonde: “[j]unto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar depressa” (LF, p. 22). O azul parece bastante metonímico, sugerindo sangue azul ou algo assim. Há outras insinuações que sugerem cor diferente: “[n]a calçada uma mulher deu um empurrão no filho!” (LF, p. 22), aqui fica aberto o motivo que impulsionou esta ação. É possível que para desviá-lo da cegueira que o impelia para Ana. Por que ela não podia dar um esbarrão em Ana? Observo outra cena em que aparece sugerido o que é dito na linguagem popular sobre a “outra” cor, ele dá azar: “[d]ois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo...” (LF, p. 22). O “sorrindo” aqui, e as reticências, abrem outra fresta no texto, sugerindo uma diversão às custas do desmerecimento alheio. De fato no final do conto esta cena reaparece: “[e] como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu” (LF, p. 29). A borboleta lembra sorte ou azar e o fato de prender o instante nos dedos é que permuta sentido com a cena dos namorados, do contrário não acessamos nenhum sentido nesta segunda cena. “E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa” (LF, p. 22). A pergunta aqui é bastante provocativa. O cego ficou esquecido neste momento em que, diante de tantas sugestões, o cego parece ser o próprio leitor. Contudo este termo aí aponta para a cegueira anterior de Ana que não percebia isso, que tudo fazia para não atrair a atenção para ela. Também para a cegueira do menino, que a mãe empurrou e dos namorados. Na verdade, o cego é que a conduz para este despertar, para esta possibilidade de criar sua própria vida, apesar da resistência alheia. Apesar de todas as pessoas que não 63
olham para ela - pessoas metaforizadas na figura do cego - a menos que algo muito estranho lhes chame as atenções. Não é por menos que ela ficou assustada com aquele homem, que ela não sabia ser cego, acenando para ela. Quando o narrador disse que “quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio” (LF, p. 20), ele estava afirmando que ela estava mesmo com ódio. A cena impressionista desenha habilmente a imagem e a movimentação dela. Quando disse “[o] movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado” (LF, p. 20), ele estava dizendo que ela estava se sentindo insultada mesmo. É importante notar que o narrador disse que o homem era cego antes de Ana perceber isso. De forma que as impressões que ele causou nela, eram-lhes reais: Ela estava com “ódio” dele e pensou que ele a estava “insultando”, porque ela acreditou que ele a tinha reconhecido. Por isso o narrador interpelou o leitor “[o] que havia mais que fizesse Ana aprumar em desconfiança?” (LF, p. 20) respondendo, logo após, com uma evasiva “[e]ntão ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles” (LF, p. 20). Esta repetição parece sugerir que o narrador continua procurando o motivo pelo qual o cego causou reação de desordem em Ana. Sua explicação repetida não tem sentido, sugere, antes, a falta de sentido, posto que rasura, desgasta o sentido anterior. O desconhecimento do narrador impele o leitor para a busca de um motivo que justifique a ação de Ana. Ela está com ódio. Somente depois que reconheceu a sua cegueira é que este sentimento passou, cedendo seu lugar ao amor, à piedade, à culpabilidade e ao desequilíbrio advindo do motivo pelo qual ele a desestabilizou, ou seja a possibilidade de ele a ter reconhecido do 64
- Page 11 and 12: Introdução - A palavra adâmica e
- Page 13 and 14: mulher. Contudo, quando a notícia
- Page 15 and 16: fato, foi na tentativa de acessar a
- Page 17 and 18: mundo, “nos fins do século XVI o
- Page 19 and 20: Resumindo. Fica evidente para mim q
- Page 21 and 22: Observo que todos os elementos dest
- Page 23 and 24: A partir deste texto de Silviano Sa
- Page 25 and 26: nome recebido e, ao se colocar em b
- Page 27 and 28: hábito que automatiza o pensamento
- Page 29 and 30: 6. Das hipóteses Com esta pesquisa
- Page 31 and 32: [a] atividade do espírito (...) j
- Page 33 and 34: No capítulo III intitulado “Pont
- Page 35 and 36: 1. A Travessia da letra e das perso
- Page 37 and 38: FIGURA 2 - Sky and water I 20 - M.
- Page 39 and 40: encontra razões para escrever em s
- Page 41 and 42: linguagem instrumental, para a letr
- Page 43 and 44: Mas em meio à tensão discursiva,
- Page 45 and 46: filhos que crescem, a do supermerca
- Page 47 and 48: citando Hamk “simboliza a tumba,
- Page 49 and 50: Neste Outro estado atravessa os “
- Page 51 and 52: da representação encontra-se na o
- Page 53 and 54: cansaço fosse exclusivamente físi
- Page 55 and 56: que balança, nas roupas que ela co
- Page 57 and 58: abre como uma escritura, a partir d
- Page 59 and 60: palavra alheia” (SOUSA: apud. BRA
- Page 61: que ela não era olhada. Este susto
- Page 65 and 66: “escuridão”, “falta de lei
- Page 67 and 68: encontrável por mim mesma, e sem s
- Page 69 and 70: a linguagem vai se convertendo numa
- Page 71 and 72: aparece no texto. No que se refere
- Page 73 and 74: Capítulo ll - O nascimento e o res
- Page 75 and 76: FIGURA 3 - Moebius band II 35 - M.
- Page 77 and 78: Progresso este que, numa primeira i
- Page 79 and 80: sua obra, no capítulo anterior, e
- Page 81 and 82: “sulco” (LACAN, 1986, p. 28) de
- Page 83 and 84: De onde teria vindo este sopro? Ret
- Page 85 and 86: Além da relação entre essas duas
- Page 87 and 88: Neste caso a sua busca por esta pal
- Page 89 and 90: utilizá-la no sentido “mais rest
- Page 91 and 92: linguagem articulada. Eu estou dize
- Page 93 and 94: se perde na embriaguês dos sentido
- Page 95 and 96: esultou seu amestramento ou seja su
- Page 97 and 98: “Não ensinará nada essencialmen
- Page 99 and 100: “se não estivesse plenamente seg
- Page 101 and 102: É só em seu conjunto que o texto
- Page 103 and 104: 104 A partir do século XVII, todo
- Page 105 and 106: E ainda “a linguagem humana se pe
- Page 107 and 108: não só, também poderia ser “or
- Page 109 and 110: A escrita é uma realidade ambígua
- Page 111 and 112: Assim identificamos duas histórias
Noto que ela não fixava o olhar em ninguém. E que não se sentia bem ao servir de<br />
objeto de fixação para alguém.<br />
Mas todo o motivo está no rosto. Seu rosto é diferente, por exemplo, do de uma<br />
mulher que estava ao seu lado no bonde: “[j]unto dela havia uma senhora de azul, com<br />
um rosto. Desviou o olhar depressa” (LF, p. 22). O azul parece bastante metonímico,<br />
sugerindo sangue azul ou algo assim. Há outras insinuações que sugerem cor diferente:<br />
“[n]a calçada uma mulher deu um empurrão no filho!” (LF, p. 22), aqui fica aberto o<br />
motivo que impulsionou esta ação. É possível que para desviá-lo da cegueira que o<br />
impelia para Ana. Por que ela não podia dar um esbarrão em Ana?<br />
Observo outra cena em que aparece sugerido o que é dito na linguagem popular<br />
sobre a “outra” cor, ele dá azar: “[d]ois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo...”<br />
(LF, p. 22). O “sorrindo” aqui, e as reticências, abrem outra fresta no texto, sugerindo<br />
uma diversão às custas do desmerecimento alheio. De fato no final do conto esta cena<br />
reaparece: “[e] como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que<br />
ele nunca mais fosse seu” (LF, p. 29). A borboleta lembra sorte ou azar e o fato de<br />
prender o instante nos dedos é que permuta sentido com a cena dos namorados, do<br />
contrário não acessamos nenhum sentido nesta segunda cena. “E o cego? Ana caíra<br />
numa bondade extremamente dolorosa” (LF, p. 22).<br />
A pergunta aqui é bastante provocativa. O cego ficou esquecido neste momento<br />
em que, diante de tantas sugestões, o cego parece ser o próprio leitor. Contudo este<br />
termo aí aponta para a cegueira anterior de Ana que não percebia isso, que tudo fazia<br />
para não atrair a atenção para ela. Também para a cegueira do menino, que a mãe<br />
empurrou e dos namorados.<br />
Na verdade, o cego é que a conduz para este despertar, para esta possibilidade de<br />
criar sua própria vida, apesar da resistência alheia. Apesar de todas as pessoas que não<br />
63