Tese Lidia Nazaré - UFF
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O saco de tricô no colo de Ana ilumina duas funções sociais da arte. Uma está voltada para sua autenticidade, outra para a sua perda em virtude de sua automatização para fins utilitários. Ambas as funções estão embrulhadas dentro da expressão “gosto pelo decorativo”. Esta palavra é utilizada no texto referindo-se ao momento presente de Ana. Neste momento em que ela está sujeita às normas sociais, construídas pela linguagem que forja suas representações, a palavra “decorativo” significa exatamente o que ela significa neste contexto para nós: repetido a partir de, decorado a partir de. Ela faz tudo para que um dia siga ao outro sem interrupção. Ela vive, por assim dizer, de forma copiada. De fato o saco de tricô não é obra-prima posto ser “o novo saco de tricô” ou seja, em termos de arte, um saco feito a partir de outro que o antecedeu, o que é o mesmo que dizer um velho saco de tricô. Uma cena de ironia está aberta aí. Trata de uma arte inautêntica e que está sendo utilizada para carregar as mercadorias. E mais que isso, para escondê-las, fetichizando-as. Também as “contra-indicações” da vida tecida por Ana: contas para pagar, cansaço da lida do dia-a-dia, para manter o bem-estar da família, não vêm à tona, somente pelo discurso representativo, bem ao gosto da literatura de mercado. Isso porque viver, é viver para manter essas contra-indicacões em harmonia. Estou diante de uma vida tecida para encobrir os pontos cegos de outra vida igualmente tecida. Estou diante do significado do significado. Contudo, a inautenticidade do presente da vida de Ana e tudo o que a ele está ligado, está ligado também ao seu passado e como este não fôra organizado a partir da moral da vida familiar, encontra-se mais flexível. Assim sendo, a palavra, “decorativo”, deve ser entendida em sua forma original, ou seja, “de cor”. De fato Ana fôra portadora desta faculdade artística. A leveza do algodão, que permanece na flexibilidade da linha, encontra-se igualmente na flexibilidade do novo saco de tricô tecido por ela, na cortina 55
que balança, nas roupas que ela cortava e costurava. A identidade da matéria-prima com a qual a sua arte é tecida permanece inalterada. O que a deformação do novo saco sugere aqui é uma recusa da arte à mercadoria que se encontra no seu interior. Recusa que infiro desta imagem deformada, repleta de detalhes, original. São as mercadorias do saco que o deformam. Assim a arte utilizada para fins mercadológicos deforma a sua função original. Ora uma mercadoria é cristalizada tipicamente como dinheiro (HARVEY, 2006, p. 98). Eu quero dizer que a relação arbitrária entre a mercadoria ou a arte mercadológica e o seu valor de moeda é semelhante à relação arbitrária entre o signo lingüístico e aquilo para o qual ele aponta. Ambas as arbitrariedades são construídas com o mesmo fim: no segundo caso o objeto é achatado pelo nome que o representa e no primeiro caso a mercadoria é achatada pelo valor que a ela é dado. Neste caso a mercadoria é um meio, descartável, para se chegar ao capital, objetivo último do pensamento capitalista. Eu quero dizer que o que é vendido não é a mercadoria, mas a capacidade de comprá-la e o prestígio que advém disso. Vende-se uma idéia. Vende-se um discurso. Ambas as relações – a da mercadoria com o seu valor de moeda e do significante com o significado -, são formas de controle social que genderizam o ser. Ana se compraz com coisas que, em princípio, deveria causar-lhe desassossego: “[a] cozinha era enfim espaçosa (...) o calor era forte no apartamento que estavam pagando aos poucos (...) como um lavrador (...)” (LF, p.17). Se isso lhe causa satisfação, é porque ela já se deixou enredar pelo sistema capitalista. Ela mesma já se converteu em mercadoria, cujo valor acredita residir em sua função familiar. A mercadoria deforma o saco assim como a arte mercadológica deforma a verdadeira função social da arte: qualquer coisa que não seja automatizar o pensamento. Ambas são organizadas para um único fim: instrumentalizar algo. Tornar algo acessível, 56
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que balança, nas roupas que ela cortava e costurava. A identidade da matéria-prima com<br />
a qual a sua arte é tecida permanece inalterada. O que a deformação do novo saco<br />
sugere aqui é uma recusa da arte à mercadoria que se encontra no seu interior. Recusa<br />
que infiro desta imagem deformada, repleta de detalhes, original.<br />
São as mercadorias do saco que o deformam. Assim a arte utilizada para fins<br />
mercadológicos deforma a sua função original. Ora uma mercadoria é cristalizada<br />
tipicamente como dinheiro (HARVEY, 2006, p. 98). Eu quero dizer que a relação<br />
arbitrária entre a mercadoria ou a arte mercadológica e o seu valor de moeda é<br />
semelhante à relação arbitrária entre o signo lingüístico e aquilo para o qual ele aponta.<br />
Ambas as arbitrariedades são construídas com o mesmo fim: no segundo caso o objeto é<br />
achatado pelo nome que o representa e no primeiro caso a mercadoria é achatada pelo<br />
valor que a ela é dado. Neste caso a mercadoria é um meio, descartável, para se chegar<br />
ao capital, objetivo último do pensamento capitalista.<br />
Eu quero dizer que o que é vendido não é a mercadoria, mas a capacidade de<br />
comprá-la e o prestígio que advém disso. Vende-se uma idéia. Vende-se um discurso.<br />
Ambas as relações – a da mercadoria com o seu valor de moeda e do significante com o<br />
significado -, são formas de controle social que genderizam o ser. Ana se compraz com<br />
coisas que, em princípio, deveria causar-lhe desassossego: “[a] cozinha era enfim<br />
espaçosa (...) o calor era forte no apartamento que estavam pagando aos poucos (...)<br />
como um lavrador (...)” (LF, p.17). Se isso lhe causa satisfação, é porque ela já se<br />
deixou enredar pelo sistema capitalista. Ela mesma já se converteu em mercadoria, cujo<br />
valor acredita residir em sua função familiar.<br />
A mercadoria deforma o saco assim como a arte mercadológica deforma a<br />
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