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1.1.1. O velho e o novo saco de tricô: autenticidade e inautenticidade da<br />
arte<br />
53<br />
As obras de arte mais grandiosas são as que<br />
permanecem mais obscuras para nosso<br />
entendimento; elas nos dominam sem que<br />
cheguemos a compreendê-las.<br />
Sarah Kofman 27<br />
UM POUCO cansada, com as compras<br />
deformando o novo saco de tricô, Ana subiu<br />
no bonde. Depositou o volume no colo e o<br />
bonde começou a andar. Recostou-se então<br />
no banco procurando conforto, num suspiro<br />
de meia satisfação.<br />
Clarice Lispector 28<br />
Este é o parágrafo introdutório do conto “Amor” de Laços de família (1960)<br />
Uma cena ilusionista que parece dizer algo que, analisando bem, não diz de fato.<br />
Sugere. Porque iniciada por uma palavra adâmica, “UM POUCO”. O que diz a cena?<br />
Uma leitura costumeira faz-me imaginar uma mulher UM POUCO cansada entrando<br />
num bonde, ela tem um saco de compras deformado no colo. Então ela se recosta no<br />
banco para descansar e dá um meio sorriso. É esta a leitura de um leitor empírico.<br />
Contudo Clarice Lispector parece exigente quanto aos seus leitores. Na entrada<br />
de A paixão segundo G.H. (1964) ela pede um leitor de alma já formada. Este leitor<br />
observa logo que este texto está encenando a contingência da linguagem instrumental e<br />
as possibilidades do discurso poético. O que o leva a tal assertiva é o aparente non sense<br />
dos detalhes. Como no sonho, afirma “são os pequenos detalhes que despertam a<br />
suspeita e incitam uma interpretação” (KOFMAN, 1996. p. 15).<br />
Atenho-me a eles. O primeiro ponto estranho está na relação entre o seu estado<br />
que pode ser físico e/ou psicológico “UM POUCO cansada” com o ato de “recostar-se”<br />
em busca de “conforto” seguido do “sorriso” de meia satisfação. No início pensei que o<br />
27 A infância da arte: uma interpretação da estética freudiana, 1996, p.14.<br />
28 Laços de família, 1960, p. 17.