Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

O movimento compassado da mastigação, sugerindo o riso que não ri e a inutilidade do olho que não vê, acena algo para Ana e a coloca em atitude de “desconfiança” e de alerta em relação ao mundo ao redor. Ela está diante da linguagem natural, adâmica. Resta-me dizer que é este cego: o estranho, o diferente, o esquecido e este ponto cego da linguagem: a estranha, a diferente, a esquecida que promove o encontro de Ana com o seu passado esquecido dentro de seu próprio ser e, por extensão, com todos que se lhe afiguravam como outro: o próprio cego, a empregada, o mundo vegetal e animal do Jardim Botânico. Tudo o que possui em si a marca da originalidade. Observo que somente quando Ana sente renascer em si a náusea doce do amor e da piedade, ultrapassa o ponto de parada e salta assustada do Bonde. Neste caso, ela ultrapassa a si mesma, o seu habitual amor fusional, para o amor sem reciprocidade. Assim também a linguagem, dobra-se sobre si mesma, a fim de conhecer sua face velada, que, manifestada em sua natureza selvagem, não pode ser compreendida de forma habitual, senão pela permuta de sentidos. O olho cego que não vê e a boca muda que não fala, interpelam Ana. O ponto cego da linguagem, aberto na conjunção “enfim” e a desarticulação do sentido, ao dispensar um significado por sintagma, interpela o leitor. Ana e o leitor, interpelados, desdobram-se para ressensibilizar os pontos cegos e a desarticulação em questão. Assustada com este deixar as coisas acontecerem, Ana ultrapassa o local da descida e salta numa “rua comprida, com muros altos, amarelos” (LF, p. 23) . A ultrapassagem e a rua são alegorias do seu estado psíquico atual. A primeira aponta para a falta de limites que a domina. A extensão e a cor da segunda, apontam para a falta de ancoradouro neste estado de emergência benjaminniano que se abre, além do reconhecimento de que neste estado, encontra-se em perigo e apertada entre os muros. 49

Neste Outro estado atravessa os “portões do Jardim” (LF, p, 23). Outra alegoria para seu ritual de passagem, de transformação, viabilizado pela travessia do amor fusional, para o amor sem reciprocidade, que teve como ponto de partida a interpelação das linguagens não funcionais do cego. No jardim, “ela amava o cego! Pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja” (LF, p. 27). Este comentário abre uma fresta no texto que precisa ser ressensibilizada. Tendo sido o verbo amar aqui alterado, qual seria mesma a relação de Ana com o cego e o que tem isso a ver com o “mal-estar” sugerido no termo “de novo” – “o mundo se tornava de novo um mal estar” (LF, p. 21) - existente no seu passado? A advertência contra-ideológica do sentido usual do amor burguês ou seja, do amor recíproco, do qual ela abre mão, por certo tempo, faz-se mister, a fim de que seja entendido que a palavra sagrada, monológica, autoritária, burguesa está sendo questionada. Este aspecto vem reforçado no Jardim Botânico “tão bonito que ela teve medo do inferno” (LF, p. 25), outra expressão sem sentido. Aqui está uma alegoria do Jardim de Éden, jardim original, prenhe de vida. Nele a linguagem perceptiva nos sugere a imagem dos reinos animal e vegetal, em sua condição primeira, através do desgaste da matéria: putrefação. E, ao seu redor a vida exibe-se em plenitude, vida que brota da morte e morte que brota da vida. Movimento ininterrupto, sem fim, como a “rua comprida”, movimento ativo, perigoso e que por isso requer atenção, como sugerido no amarelo do muro. Este jardim em processo, que o amarelo sugere bem, porque aparece próximo do vermelho e de verde, este realçado no “Jardim Botânico” e aquele realçado no “coração”, deixa Ana com medo do jardim estático anterior, da vida familiar e de certo momento de sua vida anterior a esta. Este jardim estático seria um análogo do inferno. 50

O movimento compassado da mastigação, sugerindo o riso que não ri e a<br />

inutilidade do olho que não vê, acena algo para Ana e a coloca em atitude de<br />

“desconfiança” e de alerta em relação ao mundo ao redor. Ela está diante da linguagem<br />

natural, adâmica. Resta-me dizer que é este cego: o estranho, o diferente, o esquecido e<br />

este ponto cego da linguagem: a estranha, a diferente, a esquecida que promove o<br />

encontro de Ana com o seu passado esquecido dentro de seu próprio ser e, por extensão,<br />

com todos que se lhe afiguravam como outro: o próprio cego, a empregada, o mundo<br />

vegetal e animal do Jardim Botânico. Tudo o que possui em si a marca da originalidade.<br />

Observo que somente quando Ana sente renascer em si a náusea doce do amor e<br />

da piedade, ultrapassa o ponto de parada e salta assustada do Bonde. Neste caso, ela<br />

ultrapassa a si mesma, o seu habitual amor fusional, para o amor sem reciprocidade.<br />

Assim também a linguagem, dobra-se sobre si mesma, a fim de conhecer sua face<br />

velada, que, manifestada em sua natureza selvagem, não pode ser compreendida de<br />

forma habitual, senão pela permuta de sentidos. O olho cego que não vê e a boca muda<br />

que não fala, interpelam Ana. O ponto cego da linguagem, aberto na conjunção “enfim”<br />

e a desarticulação do sentido, ao dispensar um significado por sintagma, interpela o<br />

leitor. Ana e o leitor, interpelados, desdobram-se para ressensibilizar os pontos cegos e a<br />

desarticulação em questão.<br />

Assustada com este deixar as coisas acontecerem, Ana ultrapassa o local da<br />

descida e salta numa “rua comprida, com muros altos, amarelos” (LF, p. 23) . A<br />

ultrapassagem e a rua são alegorias do seu estado psíquico atual. A primeira aponta<br />

para a falta de limites que a domina. A extensão e a cor da segunda, apontam para a<br />

falta de ancoradouro neste estado de emergência benjaminniano que se abre, além do<br />

reconhecimento de que neste estado, encontra-se em perigo e apertada entre os muros.<br />

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