Tese Lidia Nazaré - UFF
Tese Lidia Nazaré - UFF Tese Lidia Nazaré - UFF
Um trabalho interessante acontece no comentário acima. Observo que o narrador faz um esclarecimento sobre o ato de comer dos bantus e o retoma para correção como se não tivesse sido devidamente claro. Neste procedimento o verbo “comer” é repetido e bastante enfatizado. No exemplo acima, na retomada do verbo “comer” e o que se lhe segue é um engasgamento para atrair o olhar do leitor. Com este ruído o narrador faz- nos repetir o verbo seguido do pronome obliquo “nos”. Certamente, que ele está relacionado aos likoualas que são caçados – caçam eles -, no entanto, refere-se também ao leitor que acaba se incluindo em tal pronome. O que realça este recurso é o que se segue: “caçam-nos em redes e os comem”. Tal recurso é utilizado em vários momentos do texto e isso acaba chamando a atenção do leitor para tal disfunção da linguagem racionalizada já que a linguagem poética utiliza deste recurso sabiamente. A linguagem racionalizada, montada a partir da fixidez da forma, inibindo a liberdade de “pensar o pensamento” reduz o ser ao mesmo. A terra toda igual faz com que cada um perca a sua diferença. O eu inerente - um traço inicial - de cada ser, centelha divina, é apagado, anulado, moldado na linguagem previamente organizada, que já encontrou o seu lugar em todos os seguimentos sociais. Tudo funciona como se todos cantassem a mesma música, dançassem a mesma dança, no mesmo compasso. Autômatos e felizes por se safarem da diferença. Daquilo que nos constitui, do nosso primeiro eu, da nossa natureza que não nasceu para ser domada. Até que ponto devemos deixar-nos civilizar? Todavia, um texto estruturado a partir desta linguagem monológica, reducionista porque perspectivista 97 para outros 97 Regras fundamentais da perspectiva foram elaboradas na Florença da metade do século XV por Brunelleschi e Alberti. Foi uma realização vital da Renascença que moldou as formas de ver por quatro séculos. O ponto de vista fixo dos mapas e quadros com perspectiva ‘é elevado e distante, completamente fora do alcance plástico ou sensorial’. Ele gera um sentimento de espaço ‘friamente geométrico’ e ‘sistemático’, que mesmo assim produz ‘uma sensação de harmonia com a lei natural, acentuando assim a responsabilidade moral do homem no âmbito do universo geometricamente organizado de Deus’ (EDGERTON: apud. HARVEY, 2006, p. 222). Assim “[o] perspectivismo concebe o mundo a partir do ‘olho que vê’ do indivíduo. Ele acentua a ciência óptica e a capacidade das pessoas de representarem o que vêem como uma coisa de certo modo ‘verdadeira’, em comparação com verdades sobrepostas da 223
fins: de propagação dessas ideologias e mesmo de propagação de uma literatura realista- naturalista não se abrem ao dialogismo que possibilita tal verificação. Este tipo de linguagem não só é capaz de alienar o sujeito, limitando e direcionando a sua capacidade de percepção e de representação do mundo como tende a torná-lo individualista. O nosso sistema lingüístico que se fundamenta em termos comparativos do caráter binário da língua dificulta a expressão de um pensamento que não opere dentro deste padrão. Entre o branco europeu e o negro africano ou o mestiço sul americano o que existe, em termos comparativos, que possa ser expressado de forma objetiva e sem rodeios? A linguagem é o a priori da expressão do pensamento e este, por sua vez, acomoda-se na dicotomia centro e margem. “Pequena Flor” é “Escura como macaco”, e o Brasil, o que seria diante do olhar europeu? São estes os textos que estão na base do nosso sistema de representação, dentro do qual são forjadas, sob uma única perspectiva de visão de mundo, nossas identidades e a identidade nacional. É este sistema que costumamos tomar por natural. Assim o narrador faz ver o motivo pelo qual ele evita o ato de nomear que enreda o sujeito, que o transforma em caça instigando todos a vê-lo como o outro, o estigmatizado. E, à medida que ele vem mostrando as ações de Marcel Pretre, voltadas para este aspecto, com relação à Pequena Flor, vem também estigmatizando a ele próprio, ao chamá-lo “explorador”. Pelo fato de termos sido colonizados pelos europeus passamos a vê-lo como o explorador, já que a palavra evoca, por similaridade, colonizador e, pelo mesmo processo, passamos à condição de explorados “caçam-nos em redes e os comem”. mitologia ou da religião. A ligação entre o individualismo e o perspectivismo é relevante; ela forneceu o fundamento material eficaz aos princípios cartesianos de racionalidade que foram integrados ao projeto do Iluminismo” (HARVEY, 2006, p. 223). 224
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Um trabalho interessante acontece no comentário acima. Observo que o narrador<br />
faz um esclarecimento sobre o ato de comer dos bantus e o retoma para correção como<br />
se não tivesse sido devidamente claro. Neste procedimento o verbo “comer” é repetido e<br />
bastante enfatizado. No exemplo acima, na retomada do verbo “comer” e o que se lhe<br />
segue é um engasgamento para atrair o olhar do leitor. Com este ruído o narrador faz-<br />
nos repetir o verbo seguido do pronome obliquo “nos”. Certamente, que ele está<br />
relacionado aos likoualas que são caçados – caçam eles -, no entanto, refere-se também<br />
ao leitor que acaba se incluindo em tal pronome.<br />
O que realça este recurso é o que se segue: “caçam-nos em redes e os comem”.<br />
Tal recurso é utilizado em vários momentos do texto e isso acaba chamando a atenção<br />
do leitor para tal disfunção da linguagem racionalizada já que a linguagem poética<br />
utiliza deste recurso sabiamente. A linguagem racionalizada, montada a partir da fixidez<br />
da forma, inibindo a liberdade de “pensar o pensamento” reduz o ser ao mesmo. A terra<br />
toda igual faz com que cada um perca a sua diferença. O eu inerente - um traço inicial -<br />
de cada ser, centelha divina, é apagado, anulado, moldado na linguagem previamente<br />
organizada, que já encontrou o seu lugar em todos os seguimentos sociais.<br />
Tudo funciona como se todos cantassem a mesma música, dançassem a mesma<br />
dança, no mesmo compasso. Autômatos e felizes por se safarem da diferença. Daquilo<br />
que nos constitui, do nosso primeiro eu, da nossa natureza que não nasceu para ser<br />
domada. Até que ponto devemos deixar-nos civilizar? Todavia, um texto estruturado a<br />
partir desta linguagem monológica, reducionista porque perspectivista 97 para outros<br />
97 Regras fundamentais da perspectiva foram elaboradas na Florença da metade do século XV por<br />
Brunelleschi e Alberti. Foi uma realização vital da Renascença que moldou as formas de ver por quatro<br />
séculos. O ponto de vista fixo dos mapas e quadros com perspectiva ‘é elevado e distante, completamente<br />
fora do alcance plástico ou sensorial’. Ele gera um sentimento de espaço ‘friamente geométrico’ e<br />
‘sistemático’, que mesmo assim produz ‘uma sensação de harmonia com a lei natural, acentuando assim a<br />
responsabilidade moral do homem no âmbito do universo geometricamente organizado de Deus’<br />
(EDGERTON: apud. HARVEY, 2006, p. 222). Assim “[o] perspectivismo concebe o mundo a partir do<br />
‘olho que vê’ do indivíduo. Ele acentua a ciência óptica e a capacidade das pessoas de representarem o<br />
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