Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Durante o momento em que “Pequena Flor” e “Marcel Pretre” estavam um<br />
diante do outro, o narrador/focalizador continuou com o seu propósito de colocar o<br />
leitor a par dos fatos. Estando “Marcel Pretre” sob o efeito da hipnose, “Pequena Flor” é<br />
focalizada de forma bastante sui generis dando-nos o entender que também o<br />
narrador/focalizador está sob este efeito. Vejamos se isso se comprova. Segundo ele<br />
a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava<br />
aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de<br />
vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o<br />
anel do explorador amarelo e que amava muito a bota do explorador. E quando este<br />
desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de<br />
longe, seu amor pelo explorador – pode-se mesmo dizer seu “profundo amor”, porque<br />
não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza -, pois nem de longe seu<br />
profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela amar também sua<br />
bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse<br />
equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma<br />
suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! Que se goste, e não do meu<br />
dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não<br />
ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que<br />
não é negro, amor é rir de amor de um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e<br />
riu quente, pequena, grávida, quente (LF, p. 85).<br />
Os sentidos continuam à deriva. O narrador/focalizador deixa-se conduzir pela<br />
linguagem do pensamento. As idéias vêm e vão tocando-se pelas bordas, misturando-se<br />
em suas fímbrias sem o menor compromisso com uma seqüência semântica lógica. Os<br />
significantes são utilizados como suporte, ponto de apoio da linguagem do pensamento.<br />
Neste estágio o focalizador mostra o que vê.<br />
Sua impossibilidade de não revelar a contingência do simbólico para representar<br />
o real, quase o faz cair em desgraça, nesse uso propositalmente impensado que ele faz<br />
do sentimento amor. Noto que ele começa a rumorejar sobre o amor sem o perceber,<br />
assim como fez com o termo “coisa rara”. Ele é acometido pela linguagem. Ele estava<br />
dizendo que “[e]m segundo lugar” ela estava agindo daquela forma por conta de seu<br />
filho. Desta fala saiu o sentimento a partir do qual a cena acima foi desenvolvida.<br />
Imediatamente recupera o sentido e explica a respeito do equívoco da palavra amor.<br />
208