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Em Franz Kafka e Clarice Lispector observo a decomposição da linguagem e do<br />
ser que por ela é construído. Neste caso eles reivindicam para a literatura um lugar onde<br />
a construção da identidade pode ser negociada. Se a linguagem pode ser decomposta e<br />
reorganizada a identidade que ela constrói também pode.<br />
1.1. A ladainha do rosário<br />
Lembro-me que minha avó paterna, descendente de negros e índios, praticava a<br />
ladainha do rosário. Eu observava a sua face. A boca não pronunciava as palavras<br />
inteiras, às vezes elas vinham e sumiam, era mais um sopro, um som. Mas eu percebia<br />
que o movimento dos lábios era o mesmo. Seus olhos fechavam e abriam. Ela me<br />
olhava e sorria e, ao mesmo tempo, articulava e desarticulava a linguagem. Deveria<br />
dizer a reza ou a oração do rosário. Mas não era uma reza. Quem recita se concentra<br />
naquilo que diz, senão erra. Eu não sei se é possível alguém rezar cento e cinqüenta ave-<br />
marias, entremeadas por quinze pai-nossos e glórias-ao-pai, sem se deixar abandonar<br />
pelo ir e vir de diferentes pensamentos. Era uma ladainha, uma cantilena, um rumor, um<br />
falar em línguas, desenvolvidos sobre um significante infinito - posto que as palavras<br />
pareciam coladas umas às outras – e impossível de ser pronunciado, de forma que o<br />
escoar dos sentidos era certeiro. Minha avó tentava harmonizar as duas linguagens: a de<br />
seus antepassados e a herdada dos colonizadores.<br />
Era sobre o significante que ela exercitava a dança do pensamento. Eu<br />
perguntava no que ela pensava, enquanto rezava, e ela dizia que em mim, em minha<br />
mãe com seus doze filhos, no esposo dela, no meu pai, na horta que ela plantara pela<br />
manhã, nas galinhas que ela alimentara, no tempo, no sol, na chuva, nos ditadores –<br />
eram os idos de Setenta – que governavam o país, etc. A ladainha do terço de minha avó<br />
era uma linguagem autêntica, nada a ver com a repetição – inadvertidamente chamada<br />
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