Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

Contudo “Pedro Vermelho” e o narrador/focalizador do conto “A menor mulher do mundo” parecem acenar para a sua possibilidade. A linguagem discursiva, para fins de comunicação, traz recalcada em si a linguagem natural. É ela, como estou mostrando ao longo deste estudo, que enreda o ser e cria com este estratagema a alteridade. A literatura representativa, mercadológica principalmente, que se utiliza desta linguagem na arquitetura de seus textos, contribui com este processo. A literatura de Franz Kafka e Clarice Lispector realizam este desagravo. Como reconhecer esta outra faceta da linguagem? Rasurando o signo, escoando o excesso de seu significado, reduzindo-o a uma de sua metade, ou seja, ao significante. Estamos vendo que o signo que não esconde nada também não é capaz de revelar nada. O real não pode ser representado numa forma fixa. Ele pode ser abordado. E, de fato, também o homem constituído nestas linguagens, mas que teve o seu traço original apagado, nada pode revelar. “De acordo com o que temos por hábito” afirma Lacan “nada comunica menos de si que o sujeito que, no final de contas, não esconde nada. Ele só tem de manipular vocês” (LACAN, 1986, p. 31). O homem, da mesma forma que a linguagem, traz recalcado em si a identidade natural. Como reconhecer esta outra faceta do homem? Ana e G.H. já responderam. Rasurando, por um exercício de vontade, o que foi construído em cima do traço original. Afinal, se “é pelo apagamento do traço que se constitui o sujeito” (LACAN, 1986, p.26) é pelo trazê-lo à tona, através do escoar do sentido construído – o fio partido e as gemas dos ovos entornando-se pelo buraco do novo saco de tricô de Ana, e a massa da barata diante de G.H. -, que o sujeito pode ser revelado em seu “eu” sem máscaras. “Produzir esta rasura é reproduzir esta metade que subsiste o sujeito” (LACAN, 1986, p.26). 189

Em Franz Kafka e Clarice Lispector observo a decomposição da linguagem e do ser que por ela é construído. Neste caso eles reivindicam para a literatura um lugar onde a construção da identidade pode ser negociada. Se a linguagem pode ser decomposta e reorganizada a identidade que ela constrói também pode. 1.1. A ladainha do rosário Lembro-me que minha avó paterna, descendente de negros e índios, praticava a ladainha do rosário. Eu observava a sua face. A boca não pronunciava as palavras inteiras, às vezes elas vinham e sumiam, era mais um sopro, um som. Mas eu percebia que o movimento dos lábios era o mesmo. Seus olhos fechavam e abriam. Ela me olhava e sorria e, ao mesmo tempo, articulava e desarticulava a linguagem. Deveria dizer a reza ou a oração do rosário. Mas não era uma reza. Quem recita se concentra naquilo que diz, senão erra. Eu não sei se é possível alguém rezar cento e cinqüenta ave- marias, entremeadas por quinze pai-nossos e glórias-ao-pai, sem se deixar abandonar pelo ir e vir de diferentes pensamentos. Era uma ladainha, uma cantilena, um rumor, um falar em línguas, desenvolvidos sobre um significante infinito - posto que as palavras pareciam coladas umas às outras – e impossível de ser pronunciado, de forma que o escoar dos sentidos era certeiro. Minha avó tentava harmonizar as duas linguagens: a de seus antepassados e a herdada dos colonizadores. Era sobre o significante que ela exercitava a dança do pensamento. Eu perguntava no que ela pensava, enquanto rezava, e ela dizia que em mim, em minha mãe com seus doze filhos, no esposo dela, no meu pai, na horta que ela plantara pela manhã, nas galinhas que ela alimentara, no tempo, no sol, na chuva, nos ditadores – eram os idos de Setenta – que governavam o país, etc. A ladainha do terço de minha avó era uma linguagem autêntica, nada a ver com a repetição – inadvertidamente chamada 190

Contudo “Pedro Vermelho” e o narrador/focalizador do conto “A menor mulher do<br />

mundo” parecem acenar para a sua possibilidade.<br />

A linguagem discursiva, para fins de comunicação, traz recalcada em si a<br />

linguagem natural. É ela, como estou mostrando ao longo deste estudo, que enreda o ser<br />

e cria com este estratagema a alteridade. A literatura representativa, mercadológica<br />

principalmente, que se utiliza desta linguagem na arquitetura de seus textos, contribui<br />

com este processo.<br />

A literatura de Franz Kafka e Clarice Lispector realizam este desagravo. Como<br />

reconhecer esta outra faceta da linguagem? Rasurando o signo, escoando o excesso de<br />

seu significado, reduzindo-o a uma de sua metade, ou seja, ao significante. Estamos<br />

vendo que o signo que não esconde nada também não é capaz de revelar nada. O real<br />

não pode ser representado numa forma fixa. Ele pode ser abordado.<br />

E, de fato, também o homem constituído nestas linguagens, mas que teve o seu<br />

traço original apagado, nada pode revelar. “De acordo com o que temos por hábito”<br />

afirma Lacan “nada comunica menos de si que o sujeito que, no final de contas, não<br />

esconde nada. Ele só tem de manipular vocês” (LACAN, 1986, p. 31).<br />

O homem, da mesma forma que a linguagem, traz recalcado em si a identidade<br />

natural. Como reconhecer esta outra faceta do homem? Ana e G.H. já responderam.<br />

Rasurando, por um exercício de vontade, o que foi construído em cima do traço<br />

original. Afinal, se “é pelo apagamento do traço que se constitui o sujeito” (LACAN,<br />

1986, p.26) é pelo trazê-lo à tona, através do escoar do sentido construído – o fio partido<br />

e as gemas dos ovos entornando-se pelo buraco do novo saco de tricô de Ana, e a massa<br />

da barata diante de G.H. -, que o sujeito pode ser revelado em seu “eu” sem máscaras.<br />

“Produzir esta rasura é reproduzir esta metade que subsiste o sujeito” (LACAN, 1986,<br />

p.26).<br />

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