Tese Lidia Nazaré - UFF
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objeto ao perder a autenticidade, ou ainda ao ser arrancado de sua tradição. Ela, humana, negra, estática, envolta num pano, está sozinha no meio das cores mortas do suplemento dos jornais. Note que aqui ela é um simulacro, uma representação falsificada do que de fato era. O pano deve ser branco já que ela foi focalizada como “retrato” e retrato sugere o preto e branco, ainda mais em 1960. Observemos a construção “Olhe só como ela é tristinha!”, o “só” sugere a solidão. A frieza da obra inautêntica está aí, representada pelo narrador nesta fotografia, e na palavra estereotipada “Pequena Flor” e “Escura como macaco” que é tomada por todos como “retrato” ou seja como real. Sabemos que ela não é assim porque o narrador já nos mostrou. Precisamos sempre pensar que esta imagem construída vem legendada “Pequena Flor” e comentada “Escura como macaco”. Assim, como estamos vendo, a tristeza de “Pequena Flor”, quando arrancada do seu lugar original assim também estamos vendo o drama da linguagem quando os seus sentidos ficam congelados num signo só. Assim como a imagem da mulher não fala por si, ela é forjada, assim também o signo não fala por si sem ser forjado. O lugar da mulher original, da mulher e da linguagem, reside em sua natureza selvagem. Lugar onde os sentidos entrelaçam-se. É claro que “o texto não faz senão amplificar um conjunto de conotações já incluídas na fotografia” (BARTHES, 1982, p. 22), mas “por vezes, também o texto produz (inventa) um significado inteiramente novo e que é de certo modo projectado retroactivamente na imagem, a ponto de parecer denotado (...)” (BARTHES, 1982, p.22). A partir da observação desses focalizadores o narrador diz: Enquanto isso, na África, a própria coisa rara tinha no coração – quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar – enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínino (LF, p.83 ). 179
Todos os sete focalizadores tomaram a linguagem e a fotografia construídas, culturais, por verdadeiras, naturais e como ambas as formas de representação não são capazes de representar a singularidade do ser, a mulher africana é entendida como um erro da natureza. E erro porque é negra: “quem sabe se negro também”. Ninguém questionou sobre a capacidade ou não de representação da linguagem. E como fazê-lo se “toda a análise de signos é ao mesmo tempo, e de pleno direito, decifração daquilo que eles querem significar. Inversamente, o desvendamento do significado nada mais será do que a reflexão sobre os sinais que o indicam” (FOULCAULT, 1966, p. 96)? Se nossas reflexões partem da linguagem e finalizam-se nela, fica difícil escaparmos de suas redes. Assim, o que os focalizadores viram é aquilo mesmo, já que todos viram a mesma coisa. Ninguém refletiu sobre a possibilidade do pensamento ser conduzido pela lógica discursiva, para a busca da diferença e não da semelhança. Assim como “Marcel Pretre”, eles encarnam a axiologia humanista, excetuando, talvez, a menina de cinco anos. Isso porque foram induzidos pela comparação feita por “Marcel Pretre”, comprovando assim a força persuasiva da linguagem e a predisposição do espírito. Predisposição construída, para ver no outro a diferença e não a semelhança. Certamente não acreditaríamos nisso se não tivéssemos nos deixado seduzir por “parecia um cachorro pequenez” mesmo diante de descrição de um macaco. É claro que existe uma “força simbólica” que preexiste à informação, mas ela também é organizada por palavras e inculcada nas pessoas, conforme nos alerta Bourdieu (1999). 83 83 O crítico a define da seguinte maneira: “A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos. Se ela pode agir como um macaco mecânico, isto é, com um gasto extremamente pequeno de energia, ela só o consegue porque desencadeia disposições que o trabalho de inculcação e de incorporação realizou naqueles ou naquelas que, em virtude desse trabalho, se vêem por elas capturados. Em outros termos, ela encontra suas disposições de possibilidade e sua contrapartida econômica (no sentido mais amplo da palavra) no imenso trabalho prévio (o grifo é nosso) que é necessário para operar uma transformação duradoura dos corpos e produzir as disposições permanentes que ela desencadeia e desperta; ação transformadora e ainda mais poderosa por se exercer, nos aspectos mais essenciais, de maneira invisível e insidiosa, através da insensível familiarização com um mundo físico simbolicamente estruturado e da 180
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suplemento dos jornais. Note que aqui ela é um simulacro, uma representação<br />
falsificada do que de fato era. O pano deve ser branco já que ela foi focalizada como<br />
“retrato” e retrato sugere o preto e branco, ainda mais em 1960. Observemos a<br />
construção “Olhe só como ela é tristinha!”, o “só” sugere a solidão.<br />
A frieza da obra inautêntica está aí, representada pelo narrador nesta fotografia,<br />
e na palavra estereotipada “Pequena Flor” e “Escura como macaco” que é tomada por<br />
todos como “retrato” ou seja como real. Sabemos que ela não é assim porque o narrador<br />
já nos mostrou. Precisamos sempre pensar que esta imagem construída vem legendada<br />
“Pequena Flor” e comentada “Escura como macaco”.<br />
Assim, como estamos vendo, a tristeza de “Pequena Flor”, quando arrancada do<br />
seu lugar original assim também estamos vendo o drama da linguagem quando os seus<br />
sentidos ficam congelados num signo só. Assim como a imagem da mulher não fala por<br />
si, ela é forjada, assim também o signo não fala por si sem ser forjado. O lugar da<br />
mulher original, da mulher e da linguagem, reside em sua natureza selvagem. Lugar<br />
onde os sentidos entrelaçam-se.<br />
É claro que “o texto não faz senão amplificar um conjunto de conotações já<br />
incluídas na fotografia” (BARTHES, 1982, p. 22), mas “por vezes, também o texto<br />
produz (inventa) um significado inteiramente novo e que é de certo modo projectado<br />
retroactivamente na imagem, a ponto de parecer denotado (...)” (BARTHES, 1982,<br />
p.22). A partir da observação desses focalizadores o narrador diz:<br />
Enquanto isso, na África, a própria coisa rara tinha no coração – quem sabe se negro<br />
também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar – enquanto<br />
isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do<br />
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