Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

127 sentimentos de que sua esposa jamais o julgaria capaz: - Você é Pequena Flor Clarice Lispector 59 Desde que li o conto “A menor mulher de mundo” pela primeira vez, há uns oito anos, venho observando que as duas margens da linguagem, que identifiquei à luz de Roland Barthes 60 , estão organizadas de forma que lançam luz sobre um tema: trata-se da história dos povos colonizados pelos europeus, dentre os quais me encontro. É possível que minha percepção encontre sua gênese em minha descendência indígena e africana, ambas ainda muito próximas de mim. O que em muito justificaria a simpatia que sinto pelo narrador deste conto. Simpatia que me leva a pensar que ele está focalizando na minha perspectiva. Este sentimento pareceria impróprio, nesta pesquisa, se ela não estivesse voltada exatamente para o modo como a alteridade é construída, pelo signo arbitrário, que herdamos do colonizador. Além disso a psicanálise me absolve. Nada mais natural que a volta do recalcado, diante de uma arte que articula duas linguagens: uma recalcada e outra que se lhe sobrepuseram. O questionamento do narrador gira em torno do ato de “descobrir”. Ele deseja saber se “Marcel Pretre” descobriu ou não “Pequena Flor”. Na medida em que vai questionando, vai descobrindo “Pequena Flor”, de maneira distinta da de “Marcel Pretre”. O leitor, por sua vez, para acompanhar este questionamento, precisa experimentar o mesmo ato, a partir da perspectiva de ambos. Diante desta necessidade proponho descobrir com eles esta obra. No final desta empresa, terei condições de entender melhor, de qual dos dois procedimentos o meu 59 Laços de família, 1960, p. 77. 60 Laços de família, 1960, p. 79.

trabalho se aproxima mais. Assim terei condições de julgar se o ato de “Marcel Pretre” pode ser ou não entendido como descoberta e, conseqüentemente, se o ponto de vista do narrador, com o qual simpatizo, e o meu próprio, são fidedignos. Esclareço com Sara Kofman (1996) sobre o modo como entendo a palavra “descobrir”. Descobrir um texto não é encontrar por detrás dele um outro texto. É partir em busca do passado coletivo ou individual cujos traços estão presentes no próprio texto. Que relação existe entre o passado e seus traços? Qual é o estatuto de existência do passado fora de seus traços? Que relação existe entre os textos de arte e os outros textos sob este aspecto? Se a obra de arte é apenas uma deformação do passado, será ela uma verdadeira criação (KOFMAN, 1996, p. 72)? As perguntas de Sara Kofman dialogam harmoniosamente com o pensamento de Walter Benjamin com relação ao modo como ele acredita que o passado deve ser articulado. “Articular historicamente coisas passadas não significa reconhecê-las como elas foram verdadeiramente. Significa apropriar-se de uma lembrança tal como esta reluz num instante de perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 224). No texto de Clarice Lispector, percebo um soluçar de dor vindo do passado, dos meus antepassados. Por outro lado, nos textos deste início de século, nada tenho percebido que me remeta àquele passado, no mesmo tom do texto de Clarice Lispector. Isso me faz pensar que estamos diante de um grave perigo. A literatura de mercado está na ordem do dia e a mídia se encarrega de fazer valer o que nela está arquitetado. As gerações passadas tiveram Clarice Lispector e a nossa? Os textos de Clarice Lispector desagravam o passado, ao revelá-lo, a partir de sua palavra adâmica. E os textos de nossa literatura, deste início de século? Seriam eles também capazes deste desagravo? O rosto do nosso passado brilha sob o efeito da estilização pós-moderna e este brilho ofusca a melancolia amarela e negra que lhe subsiste. Se a partir da leitura de conto de Clarice Lispector eu conseguir lançar luz sobre as causas do soluço que advém do passado, meus antepassados poderão repousar em 128

trabalho se aproxima mais. Assim terei condições de julgar se o ato de “Marcel Pretre”<br />

pode ser ou não entendido como descoberta e, conseqüentemente, se o ponto de vista do<br />

narrador, com o qual simpatizo, e o meu próprio, são fidedignos. Esclareço com Sara<br />

Kofman (1996) sobre o modo como entendo a palavra “descobrir”.<br />

Descobrir um texto não é encontrar por detrás dele um outro texto. É partir em busca do<br />

passado coletivo ou individual cujos traços estão presentes no próprio texto. Que<br />

relação existe entre o passado e seus traços? Qual é o estatuto de existência do passado<br />

fora de seus traços? Que relação existe entre os textos de arte e os outros textos sob este<br />

aspecto? Se a obra de arte é apenas uma deformação do passado, será ela uma<br />

verdadeira criação (KOFMAN, 1996, p. 72)?<br />

As perguntas de Sara Kofman dialogam harmoniosamente com o pensamento de<br />

Walter Benjamin com relação ao modo como ele acredita que o passado deve ser<br />

articulado. “Articular historicamente coisas passadas não significa reconhecê-las como<br />

elas foram verdadeiramente. Significa apropriar-se de uma lembrança tal como esta<br />

reluz num instante de perigo” (BENJAMIN, 1994, p. 224).<br />

No texto de Clarice Lispector, percebo um soluçar de dor vindo do passado, dos<br />

meus antepassados. Por outro lado, nos textos deste início de século, nada tenho<br />

percebido que me remeta àquele passado, no mesmo tom do texto de Clarice Lispector.<br />

Isso me faz pensar que estamos diante de um grave perigo. A literatura de mercado está<br />

na ordem do dia e a mídia se encarrega de fazer valer o que nela está arquitetado.<br />

As gerações passadas tiveram Clarice Lispector e a nossa? Os textos de Clarice<br />

Lispector desagravam o passado, ao revelá-lo, a partir de sua palavra adâmica. E os<br />

textos de nossa literatura, deste início de século? Seriam eles também capazes deste<br />

desagravo? O rosto do nosso passado brilha sob o efeito da estilização pós-moderna e<br />

este brilho ofusca a melancolia amarela e negra que lhe subsiste.<br />

Se a partir da leitura de conto de Clarice Lispector eu conseguir lançar luz sobre<br />

as causas do soluço que advém do passado, meus antepassados poderão repousar em<br />

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