Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

2. O “teatro de variedades” da palavra poética O conto de Clarice Lispector viabiliza uma tomada de consciência da liberdade que a mímesis da produção tem de estabelecer um diálogo desta linguagem racionalizada com outro tipo de linguagem mais subjetiva e questionadora. Resultando deste encontro um texto inovador onde a linguagem se dobra sobre si mesma e tem condição de revelar aspectos do Sistema de representação a que o leitor não tem acesso, dado a sua proximidade com ele, inclusive aspectos do novo neo-colonialismo que nos aterroriza a todos. Neste caso o leitor é interpelado como um co-autor e vê ativado o seu pensamento e seus sentidos para investigar o texto. Como a linguagem no conto é a mola-mestra para a manipulação da identidade do Outro – africano e o macaco -, com um pouco de ajuste é possível que possamos lê-lo como uma alegoria do nosso próprio processo de colonização portuguesa e, por extensão do modo como o neo-colonialismo vem sendo infiltrado em nossa cultura, gradativamente. Digo com um pouco de ajuste não no sentido de forçar uma leitura a partir do texto, já que este demanda a teoria, mas porque a escrita de Clarice Lispector ajuda a dinamizar o conceito de que não existe nas obras um significado totalmente resgatável, mas sim um processo de significação e formas fluidas, uma escrita intertextual que permite interpretar o texto como um tecido urdido na dialética complexa entre emissão e recepção, lugares textuais de metamorfose do ler e do escrever (HELENA, 2006, p.109). Neste caso o conto interpela-nos hoje tanto quanto interpelou à geração de 1960. 3. A linguagem racional e a linguagem em estado de natureza selvagem 111

Assim identificamos duas histórias entremeadas dentro do conto de Clarice Lispector e Franz Kafka, o que Barthes (2006) chama “[d]uas margens”, e que quero chamar a escrita em si e a escrita fora de si. Elas estão imbricadas é certo, e é desse procedimento literário que resultam seus contos, mas o que gera uma compreensão maior destes é o reconhecimento da diferença entre ambas. É ele que nos permite colocá-las em diálogo e entender que existem dois tipos de linguagem: uma instrumental, designativa e uma literária. Uma primeira segue a linearidade orientada por Aristóteles com começo, meio e fim, que reestruturamos em quatro partes - exposição, complicação, clímax e desfecho – para facilitar a síntese. Trata-se da “margem sensata, conforme plagiária” (BARTHES, 2006, p.11), fixada pela cultura, texto de prazer. É a escrita fora de si. Portanto. A segunda, que é desenvolvida nas frestas da anterior, é complexa. Não é possível identificar os seus começos, mas é possível identificar os seus fins ao longo das escrituras. Esses fins se abrem para novos re-começos. Em Clarice Lispector há um sopro na última frase. Em Franz Kafka também. Em ambos os casos estamos diante de “uma outra margem, 46 móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais que o lugar do seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem” (BARTHES, 2006, 12), como eu disse o seu sopro, a origem, pausa para um novo e interminável recomeço. Aqui está a marca de Clarice Lispector e de Franz Kafka no conjunto de suas obras, espaço da ruptura, do corte advindo do choque entre ambas as margens. Espaço que se abre ao prazer do texto 47 porque nele “se tematiza uma cosmogonia em que se reatualiza o sentido da verdade, da identidade e da origem do 46 Grifo do autor. 47 Barthes diferencia “prazer do texto”, que pode ser também “texto de fruição”, de “texto de prazer”. Este está para a cultura, realçando suas amenidades, o seu fácil prazer. É, pois, cultural. Aquele pode propor o questionamento desta, em todos os seus seguimentos, sobretudo representacional, é produzido na contramão da cultura. Ambas as expressões, diz “são ambíguas porque não há palavra francesa para cobrir ao mesmo tempo o prazer (o contentamento) e a fruição (o desvanecimento)” (BARTHES, 2006, p. 27). 112

Assim identificamos duas histórias entremeadas dentro do conto de Clarice<br />

Lispector e Franz Kafka, o que Barthes (2006) chama “[d]uas margens”, e que quero<br />

chamar a escrita em si e a escrita fora de si. Elas estão imbricadas é certo, e é desse<br />

procedimento literário que resultam seus contos, mas o que gera uma compreensão<br />

maior destes é o reconhecimento da diferença entre ambas. É ele que nos permite<br />

colocá-las em diálogo e entender que existem dois tipos de linguagem: uma<br />

instrumental, designativa e uma literária. Uma primeira segue a linearidade orientada<br />

por Aristóteles com começo, meio e fim, que reestruturamos em quatro partes -<br />

exposição, complicação, clímax e desfecho – para facilitar a síntese. Trata-se da<br />

“margem sensata, conforme plagiária” (BARTHES, 2006, p.11), fixada pela cultura,<br />

texto de prazer. É a escrita fora de si. Portanto.<br />

A segunda, que é desenvolvida nas frestas da anterior, é complexa. Não é<br />

possível identificar os seus começos, mas é possível identificar os seus fins ao longo das<br />

escrituras. Esses fins se abrem para novos re-começos. Em Clarice Lispector há um<br />

sopro na última frase. Em Franz Kafka também. Em ambos os casos estamos diante de<br />

“uma outra margem, 46 móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que<br />

nunca é mais que o lugar do seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem”<br />

(BARTHES, 2006, 12), como eu disse o seu sopro, a origem, pausa para um novo e<br />

interminável recomeço. Aqui está a marca de Clarice Lispector e de Franz Kafka no<br />

conjunto de suas obras, espaço da ruptura, do corte advindo do choque entre ambas as<br />

margens. Espaço que se abre ao prazer do texto 47 porque nele “se tematiza uma<br />

cosmogonia em que se reatualiza o sentido da verdade, da identidade e da origem do<br />

46 Grifo do autor.<br />

47 Barthes diferencia “prazer do texto”, que pode ser também “texto de fruição”, de “texto de prazer”. Este<br />

está para a cultura, realçando suas amenidades, o seu fácil prazer. É, pois, cultural. Aquele pode propor o<br />

questionamento desta, em todos os seus seguimentos, sobretudo representacional, é produzido na<br />

contramão da cultura. Ambas as expressões, diz “são ambíguas porque não há palavra francesa para<br />

cobrir ao mesmo tempo o prazer (o contentamento) e a fruição (o desvanecimento)” (BARTHES, 2006, p.<br />

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