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A escrita é uma realidade ambígua: por uma parte nasce incontestavelmente de um<br />
confronto do escritor com a sua sociedade; por outra, dessa finalidade social, ela remete<br />
o escritor, por uma espécie de transferência trágica, às fontes instrumentais de sua<br />
criação. Por não poder oferecer-lhe uma linguagem livremente consumida, a História<br />
lhe propõe uma linguagem livremente produzida (BARTHES, 2004a, p. 15).<br />
Os resultados deste trabalho vêm prejudicando substancialmente o leitor que<br />
acaba tendo o pensamento colonizado, dada à clareza com que o texto é apresentado e a<br />
tendência à automatização que toda produção excessivamente clara, faculta. As<br />
conseqüências de tais limitações resultam na atualização e na solidificação de um<br />
Sistema de representação cultural e social que vem sendo organizado a partir da unidade<br />
e da pureza dos códigos lingüístico e religioso, desde a segunda metade do século XVI,<br />
no Brasil. É assim que ao ver o retrato de “Pequena Flor” no jornal uma senhora<br />
burguesa refere-se a ela como “bicho”. O pensamento desta personagem está<br />
condicionado a ver no outro a diferença não a semelhança.<br />
Este pensamento vem se agravando, a hostilidade entre as pessoas não diminui.<br />
Acentua-se cada vez mais. A literatura é um instrumento que poderia ser utilizado para<br />
despertar os alunos para o fato de que o seu livre arbítrio, do qual ele sente tanto<br />
orgulho, é construído, manipulado. Mas o tipo de literatura que o conduziria a isso vem<br />
sendo pouco explorada nas Instituições do Saber. Opta-se geralmente pela literatura de<br />
massa e esta vem escrita em conformidade com a linguagem instrumental que manipula<br />
o pensamento.<br />
Os leitores de Clarice Lispector bem o sabem, desde sua obra derradeira A hora<br />
da estrela (1977) que não é nada fácil “tirar ouro do carvão” (HE, p.31). Este é o dilema<br />
de Rodrigo SM, narrador interposto e nomeado daquela obra, diante da necessidade e da<br />
impossibilidade de escrever a história miserável da personagem Macabéa com a<br />
linguagem racionalizada sob a qual está alicerçado o Sistema de representação que a<br />
mantém cativa, assim por dizer, à deriva.<br />
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