Tese Lidia Nazaré - UFF

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13.04.2013 Views

Agora a palavra racionalizada é diferente dada a sua condição de signo arbitrário que serve à comunicação. Trata-se de um signo-instrumento, comprometido, fixável e que se fixa, desde que haja uma força agindo para que isso aconteça. A substituição da palavra “testemunho de franqueza” por “palavra franca” do narrador kafkiano assim o demonstra. O que os autores denunciam aqui é a utilização arbitrária e despótica destes signos, que podem canalizar formas de comportamento domesticando, colonizando a natureza humana. Neste caso, a organização da linguagem iluminista, com a finalidade de organizar a natureza em benefício do homem, teria também outro fim: dominar a própria natureza humana: este é o dilema de “Pedro Vermelho” e do narrador clariceano do capítulo anterior. A relação entre o domínio da linguagem e o domínio da natureza humana fica explicada. Sobre esta questão David Harvey (2006) disse haver suspeita de que o projeto do Iluminismo “estava fadado a voltar-se contra si mesmo e transformar a busca da emancipação humana num sistema de opressão universal em nome da libertação humana” (HARVEY, 2006, p. 23-4) e continuando afirma ter sido esta a atrevida tese apresentada por Horkheimer e Adorno em The dialectic of Enlightenment (2006) que vem iluminando este texto. Escrevendo sob as sombras da Alemanha de Hitler e da Rússia de Stálin, eles (Adorno e Horkheimer), afirma David Harvey, “alegavam que a lógica que se oculta por trás da racionalidade iluminista é uma lógica de dominação e da opressão. A ânsia por dominar a natureza envolvia o domínio dos seres humanos” (HARVEY, 2006, p. 23-4). O próprio David Harvey parece concordar com isto. Afinal ele também afirma, só que noutros termos, que o referido projeto considerava axiomática a existência de “uma única resposta a qualquer pergunta”. Neste caso o mundo poderia ser “controlado” mas 107

não só, também poderia ser “organizado” de modo racional se ao menos fosse apreendido e representado corretamente. Certamente isso presumia a existência de “um único modo correto de representação”, um único ponto de vista que, caso pudesse ser descoberto – e esta busca era a finalidade da Matemática e da Ciência - forneceria os meios para tais fins (HARVEY, 2006, p. 36). Quando Clarice Lispector e Franz Kafka viabilizam incontáveis formas de leitura é este aspecto da organização do Sistema de representação que eles estão questionando. Uma das formas de alcançar esses fins foi repensar a organização do signo. Consoante os estudos de Michel Foucault (1966) o sistema de signos no mundo ocidental era ternário, pois nele se reconhecia o significante, o significado e a conjuntura. Esta conjuntura impedia que o discurso reivindicasse para si o poder de representar. Assim vários campos do saber emitiam suas opiniões, seus comentários sobre o grande livro do mundo que se abria a todos. A linguagem daquele período então existia primeiro no seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada sobre o Mundo e que faz parte das suas mais indeléveis figuras. Mas ela dá origem logo a duas outras formas de discurso que a vão enquadrar: acima dela, o comentário que retoma os signos dados com um novo intento, e, por baixo, o texto cujo comentário pressupõe a primazia oculta sob as marcas visíveis a todos. Daí o haver três níveis de linguagem, a partir do ser único da escrita. É esse jogo complexo que vai desaparecer com o fim da Renascença (FOUCAULT, 1966, p. 67). Neste sistema, a representação do mundo - que continha os sinais, as marcas, os signos – quando feita a partir de signos artificiais, voltavam-se para a semelhança, 45 porque “os signos artificiais não deviam o seu poder senão à sua fidelidade aos signos naturais. Estes, de longe fundamentavam todos os outros” (FOUCAULT, 1966, p. 90). Contudo, no século XVII sua disposição tornou-se binária a partir da definição de Port- 45 A teoria do sinal implicava três elementos perfeitamente distintos: o que era marcado, o que era marcante e o que permitia vê nisso a marca daquilo; ora, este último elemento era a semelhança: o sinal marcava na medida em que era “quase a mesma coisa” que aquilo que designava” (FOUCAULT, 1966, p. 93). 108

não só, também poderia ser “organizado” de modo racional se ao menos fosse<br />

apreendido e representado corretamente. Certamente isso presumia a existência de “um<br />

único modo correto de representação”, um único ponto de vista que, caso pudesse ser<br />

descoberto – e esta busca era a finalidade da Matemática e da Ciência - forneceria os<br />

meios para tais fins (HARVEY, 2006, p. 36). Quando Clarice Lispector e Franz Kafka<br />

viabilizam incontáveis formas de leitura é este aspecto da organização do Sistema de<br />

representação que eles estão questionando.<br />

Uma das formas de alcançar esses fins foi repensar a organização do signo.<br />

Consoante os estudos de Michel Foucault (1966) o sistema de signos no mundo<br />

ocidental era ternário, pois nele se reconhecia o significante, o significado e a<br />

conjuntura. Esta conjuntura impedia que o discurso reivindicasse para si o poder de<br />

representar. Assim vários campos do saber emitiam suas opiniões, seus comentários<br />

sobre o grande livro do mundo que se abria a todos. A linguagem daquele período então<br />

existia primeiro no seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma<br />

escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada sobre o Mundo e que<br />

faz parte das suas mais indeléveis figuras. Mas ela dá origem logo a duas outras formas<br />

de discurso que a vão enquadrar: acima dela, o comentário que retoma os signos dados<br />

com um novo intento, e, por baixo, o texto cujo comentário pressupõe a primazia oculta<br />

sob as marcas visíveis a todos. Daí o haver três níveis de linguagem, a partir do ser<br />

único da escrita. É esse jogo complexo que vai desaparecer com o fim da Renascença<br />

(FOUCAULT, 1966, p. 67).<br />

Neste sistema, a representação do mundo - que continha os sinais, as marcas, os<br />

signos – quando feita a partir de signos artificiais, voltavam-se para a semelhança, 45<br />

porque “os signos artificiais não deviam o seu poder senão à sua fidelidade aos signos<br />

naturais. Estes, de longe fundamentavam todos os outros” (FOUCAULT, 1966, p. 90).<br />

Contudo, no século XVII sua disposição tornou-se binária a partir da definição de Port-<br />

45 A teoria do sinal implicava três elementos perfeitamente distintos: o que era marcado, o que era<br />

marcante e o que permitia vê nisso a marca daquilo; ora, este último elemento era a semelhança: o sinal<br />

marcava na medida em que era “quase a mesma coisa” que aquilo que designava” (FOUCAULT, 1966, p.<br />

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