Capitães de Areia - Jorge Amado
Capitães de Areia - Jorge Amado
Capitães de Areia - Jorge Amado
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
num primeiro momento, esquece-se da <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu ato;<br />
contudo, logo após, sentimentos confusos têm guarida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le,<br />
como se a consciência aflorasse:<br />
[...] E tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se jogar no mar para se lavar <strong>de</strong> toda<br />
aquela inquietação, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se vingar dos homens que<br />
tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cida<strong>de</strong> rica que<br />
se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça,<br />
o <strong>de</strong>sespero da sua vida <strong>de</strong> criança abandonada e perseguida, a<br />
pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também. (p.<br />
85)<br />
Essa divisão interna na consciência é que dá humanida<strong>de</strong> à<br />
personagem e, ao mesmo tempo, tensão ao romance.<br />
Na sequência dos quadros, o narrador trata <strong>de</strong> variados<br />
assuntos: outras ações dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> (o resgate <strong>de</strong> uma<br />
imagem <strong>de</strong> Ogum das mãos da polícia e o golpe do pobre órfão<br />
aplicado pelo Sem-Pernas numa família rica), o sincretismo religioso<br />
na Bahia, o ambiente sórdido da ca<strong>de</strong>ia, para on<strong>de</strong> Pedro Bala vai<br />
preso, e a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o Sem-Pernas viver uma vida normal.<br />
Dessa maneira, o narrador procura mostrar que a oposição entre<br />
ricos e pobres não se dá somente no plano da religião e dos direitos<br />
humanos. É o que acontece, por exemplo, quando Pedro Bala se<br />
propõe a ajudar a mãe-<strong>de</strong>-santo a recuperar a imagem <strong>de</strong> Ogum.<br />
Nessa passagem, ficamos sabendo da discriminação contra as<br />
religiões não-oficiais:<br />
[...] Os candomblés batiam em <strong>de</strong>sagravo a Ogum e talvez<br />
num <strong>de</strong>les ou em muitos <strong>de</strong>les Omolu anunciasse a vingança do<br />
povo pobre. Don’Aninha disse aos meninos com uma voz<br />
amarga:<br />
⎯ Não <strong>de</strong>ixam os pobres viver... Não <strong>de</strong>ixam nem o <strong>de</strong>us<br />
dos pobres em paz. Pobre não po<strong>de</strong> dançar, não po<strong>de</strong> cantar pra<br />
seu <strong>de</strong>us, não po<strong>de</strong> pedir uma graça a seu <strong>de</strong>us ⎯ sua voz era<br />
amarga, uma voz que não parecia da mãe-<strong>de</strong>-santo Don’Aninha.<br />
⎯ Não se contentam <strong>de</strong> matar os pobres a fome... Agora tiram os<br />
santos dos pobres... ⎯ alçava os punhos. (p. 87)<br />
Essa imagem da religião dos pobres acentua-se no capítulo<br />
seguinte, “Deus sorri como um negrinho”, verda<strong>de</strong>iro intervalo lírico,<br />
em que o narrador ilustra a fé <strong>de</strong> Pirulito. Encantado com a imagem<br />
<strong>de</strong> um Menino Jesus na vitrine <strong>de</strong> uma loja, ele a rouba, mas a cena<br />
12<br />
No capítulo “Como uma estrela <strong>de</strong> loira cabeleira”, vemos a<br />
morte <strong>de</strong> Dora.<br />
Fora mais valente que todas mulheres, mais valente que<br />
Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes <strong>de</strong><br />
morrer, mesmo sendo uma menina, se <strong>de</strong>ra ao seu amor. Por<br />
isso virou uma estrela no céu. Uma estrela <strong>de</strong> longa cabeleira<br />
loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite <strong>de</strong> paz da<br />
Bahia.<br />
A felicida<strong>de</strong> ilumina o rosto <strong>de</strong> Pedro Bala. Para ele veio<br />
também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para<br />
ele entre mil estrelas no céu sem igual da cida<strong>de</strong> negra.<br />
O saveiro do Querido-<strong>de</strong>-Deus o recolhe. (p. 224/225)<br />
TERCEIRA PARTE:<br />
CANÇÃO DA BAHIA, CANÇÃO DA LIBERDADE<br />
A morte <strong>de</strong> Dora fecha um ciclo, a partir daqui os<br />
personagens vão seguir novos rumos.<br />
Nesta noite Professor não acen<strong>de</strong>u vela, não abriu livro <strong>de</strong><br />
história. Ficou calado quando João Gran<strong>de</strong> veio para seu lado.<br />
Arrumava suas coisas numa trouxa. Quase tudo era livro. João<br />
Gran<strong>de</strong> olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem<br />
todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho<br />
João Gran<strong>de</strong>. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também<br />
a seu lado e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou:<br />
– Vou embora, Bala...<br />
– Pra on<strong>de</strong>, mano?<br />
Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que<br />
riam, que se moviam como sombras entre os ratos:<br />
– Que adianta a vida da gente? Só pancada na polícia<br />
quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia po<strong>de</strong><br />
mudar... Padre José Pedro, João <strong>de</strong> Adão, tu mesmo. Agora vou<br />
mudar a minha...(p. 230)<br />
O narrador fecha o romance relatando o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> cada<br />
membro do grupo. O primeiro a ir embora do trapiche é Professor,<br />
que estudará pintura no Rio e se transformará num gran<strong>de</strong> artista.<br />
Em seguida sai o Pirulito, que se torna fra<strong>de</strong> capuchinho. Boa-Vida,<br />
por sua vez, escolhe a vida <strong>de</strong> malandro das ruas, Gato parte para<br />
Ilhéus e se torna vigarista e jogador profissional, Volta Seca integra-<br />
17