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Capitães de Areia - Jorge Amado

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<strong>de</strong>vamos consi<strong>de</strong>rar no limite os <strong>de</strong>stinos diferentes assumidos pelos<br />

protagonistas Pedro Bala e Leonardinho ⎯ enquanto Leonardinho<br />

passa efetivamente do estado da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m para se tornar numa<br />

representação da or<strong>de</strong>m, Pedro Bala passa do estado da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m<br />

para ser a representação da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instauração <strong>de</strong> uma<br />

nova or<strong>de</strong>m ainda por se fazer ⎯ Leonardinho representaria, em<br />

última instância, uma subversão da or<strong>de</strong>m. Nesse sentido, no âmago<br />

das escolhas políticas e i<strong>de</strong>ológicos das duas obras (Capitalismo x<br />

Socialismo) é que a representação da malandragem se diferencia.<br />

28<br />

COLÉGIO BOM JESUS CORAÇÃO DE JESUS<br />

(48) 3211 4400 – Rua: Emir Rosa, 120 – Centro<br />

Florianópolis - www.bomjesus.br<br />

Professora: Sônia Rivello<br />

JORGE AMADO<br />

Terceirão 2012


BIOGRAFIA<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> nasceu a 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1912, na fazenda<br />

Auricídia, no distrito <strong>de</strong> Ferradas, município <strong>de</strong> Itabuna, sul do<br />

Estado da Bahia. Filho do fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> cacau João <strong>Amado</strong> <strong>de</strong> Faria<br />

e <strong>de</strong> Eulália Leal <strong>Amado</strong>.<br />

Com um ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, foi para Ilhéus, on<strong>de</strong> passou a<br />

infância. Fez os estudos secundários no Colégio Antônio Vieira e no<br />

Ginásio Ipiranga, em Salvador. Neste período, começou a trabalhar<br />

em jornais e a participar da vida literária, sendo um dos fundadores<br />

da Aca<strong>de</strong>mia dos Rebel<strong>de</strong>s.<br />

Publicou seu primeiro romance, O país do carnaval, em<br />

1931. Casou-se em 1933, com Matil<strong>de</strong> Garcia Rosa, com quem teve<br />

uma filha, Lila. Nesse ano publicou seu segundo romance, Cacau.<br />

Formou-se pela Faculda<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Direito, no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, em 1935. Militante comunista, foi obrigado a exilar-se na<br />

Argentina e no Uruguai entre 1941 e 1942, período em que fez longa<br />

viagem pela América Latina. Ao voltar, em 1944, separou-se <strong>de</strong><br />

Matil<strong>de</strong> Garcia Rosa.<br />

Em 1945, foi eleito membro da Assembléia Nacional<br />

Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro (PCB),<br />

tendo sido o <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral mais votado do Estado <strong>de</strong> São Paulo.<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o<br />

direito à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> culto religioso. Nesse mesmo ano, casou-se<br />

com Zélia Gattai.<br />

Em 1947, ano do nascimento <strong>de</strong> João <strong>Jorge</strong>, primeiro filho<br />

do casal, o PCB foi <strong>de</strong>clarado ilegal e seus membros perseguidos e<br />

presos. <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> teve que se exilar com a família na França,<br />

on<strong>de</strong> ficou até 1950, quando foi expulso. Em 1949, morreu no Rio <strong>de</strong><br />

2<br />

portuguesa e à imposição <strong>de</strong> uma sintaxe “brasileira”, por assim<br />

dizer. <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> transforma-se assim num repositório <strong>de</strong><br />

linguagens populares, pois o escritor consegue registrar com<br />

maestria as falas <strong>de</strong> diferentes camadas sociais, como se po<strong>de</strong>rá<br />

verificar nos exemplos abaixo:<br />

⎯ Tu quer esse Deus Menino pra tu? ⎯ perguntou ele <strong>de</strong><br />

repente. (p. 175)<br />

⎯ Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas.<br />

Um fandango <strong>de</strong> primeira. É festa <strong>de</strong> Omolu.<br />

⎯ Muita bóia? E aluá?<br />

⎯ Se tem... mirou Pedro Bala. ⎯ Por que tu não vai,<br />

branco? Omolu não é só santo <strong>de</strong> negro. É santo dos pobres todos.<br />

(p. 79)<br />

No primeiro caso, há uma evi<strong>de</strong>nte infração à norma culta no<br />

que se refere à concordância entre o sujeito e o verbo, além da<br />

utilização do pronome do caso reto como se fosse oblíquo; no<br />

segundo caso, além da infração linguística tangente à concordância,<br />

chama-nos a atenção também a incorporação <strong>de</strong> termos populares<br />

como “fandango” e “aluá”, esse <strong>de</strong> origem quimbunda (língua<br />

africana) e aquele do espanhol, mas já assimilado pelo brasileiro,<br />

principalmente o das classes mais humil<strong>de</strong>s.<br />

• O levantamento das tensões sociais que movem a socieda<strong>de</strong><br />

latifundiária da seca nos interiores, como está efetivado em Vidas<br />

Secas, parece correspon<strong>de</strong>r ao levantamento das tensões sociais<br />

que movem as gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, como Salvador, o que está<br />

efetivado em <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>.<br />

Assim, a representação <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalidos e marginalizados<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um sistema produtivo falido em temerário confronto com<br />

seus mandatários parece constituir um elo entre as intenções mais<br />

programáticas <strong>de</strong> Vidas Secas e <strong>de</strong> <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>.<br />

De outro modo, a condição <strong>de</strong> malandros vivenciada pelas<br />

personagens <strong>de</strong> <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, que se colocam nos limites<br />

entre a or<strong>de</strong>m e a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m social, parece correspon<strong>de</strong>r também à<br />

situação figurada pela novelinha Memórias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong><br />

Milícias, <strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, em que Leonardinho<br />

(Leonardo, o filho), bem como seus coadjuvantes, parecem viver<br />

situações muito semelhantes às dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>: situações <strong>de</strong><br />

amoralida<strong>de</strong>, ginga, astúcia, marginalização, carência etc. Embora<br />

27


TEMPO<br />

Quanto ao tempo, não temos nenhuma datação especial na<br />

narrativa, senão a <strong>de</strong> 1937, data da publicação da obra. Mas que já<br />

nos é suficiente para supor um enredo passando-se nos anos que<br />

seguiram ao Golpe <strong>de</strong> 30 e todas as agitações que com o Golpe se<br />

configuraram na realida<strong>de</strong> brasileira, já que o percurso das<br />

personagens os insinua: surpreen<strong>de</strong>mos os protagonistas em seus<br />

anos <strong>de</strong> passagem da adolescência (12/13 anos) para a juventu<strong>de</strong>,<br />

consolidando seus <strong>de</strong>stinos.<br />

Olhando o <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 30, no Brasil e na Salvador <strong>de</strong><br />

<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, surpreen<strong>de</strong>mos situações homólogas: êxodos<br />

populacionais em direção aos gran<strong>de</strong>s centros, o inchaço das<br />

capitais e seus problemas <strong>de</strong>rivados, certos movimentos <strong>de</strong><br />

trabalhadores, a ação do socialismo, os conflitos entre trabalhadores<br />

e patrões, entre trabalhadores e a polícia, a malandragem, o<br />

cangaço, a repressão, o problema dos menores <strong>de</strong> rua, o<br />

homossexualismo, a prostituição assim como a postura assumida<br />

pelas oligarquias, pela classe média, por <strong>de</strong>terminadas instituições e<br />

pelas autorida<strong>de</strong>s diante <strong>de</strong> todas essas realida<strong>de</strong>s históricas ou<br />

ficcionais.<br />

É BOM SABER...<br />

• Trata-se <strong>de</strong> um romance <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia social.<br />

• Os livros foram queimados pela polícia do Estado Novo, em 1937.<br />

• O livro <strong>de</strong> 1937, infelizmente, é ainda atual: a situação do menor<br />

abandonado.<br />

• Em <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> ressalta a oposição entre<br />

burguesia e as crianças abandonadas.<br />

• <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> pertence a uma geração <strong>de</strong> escritores comumente<br />

conhecida como “regionalista”. A principal característica <strong>de</strong> estilo<br />

<strong>de</strong>ssa geração foi a <strong>de</strong> contrapor uma linguagem mais espontânea,<br />

coloquial, popular, à linguagem rara, escolhida, her<strong>de</strong>ira dos vícios<br />

parnasianos e representativa da classe social dominante.<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> não foge à regra: seu estilo prima pela<br />

espontaneida<strong>de</strong>, que é atingida graças à fuga da sintaxe <strong>de</strong> origem<br />

26<br />

Janeiro sua filha Lila. Entre 1950 e 1952, viveu na Tchecoslováquia,<br />

on<strong>de</strong> nasceu sua filha Paloma.<br />

De volta ao Brasil, <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> afastou-se, em 1955, da<br />

militância política, sem, no entanto, <strong>de</strong>ixar os quadros do Partido<br />

Comunista. Dedicou-se, a partir <strong>de</strong> então, inteiramente à literatura.<br />

Foi eleito, em 6 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1961, para a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> número 23, da<br />

Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, que tem por patrono José <strong>de</strong> Alencar<br />

e por primeiro ocupante Machado <strong>de</strong> Assis. Doutor Honoris Causa<br />

por diversas universida<strong>de</strong>s, <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> orgulhava-se do título <strong>de</strong><br />

Obá, posto civil que exercia no Ilê Axé Opô Afonjá, na Bahia.<br />

A obra literária <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> conheceu inúmeras<br />

adaptações para cinema, teatro e televisão, além <strong>de</strong> ter sido tema <strong>de</strong><br />

escolas <strong>de</strong> samba por todo o Brasil. Seus livros foram traduzidos em<br />

55 países, em 49 idiomas, existindo também exemplares em braile e<br />

em fitas gravadas para cegos.<br />

Em 1987, foi inaugurada em Salvador, Bahia, no Largo do<br />

Pelourinho, a Fundação Casa <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong>, que abriga e<br />

preserva seu acervo, colocando-o à disposição <strong>de</strong> pesquisadores. A<br />

Fundação objetiva ainda o <strong>de</strong>senvolvimento das ativida<strong>de</strong>s culturais<br />

na Bahia.<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> morreu em Salvador,<br />

no dia 6 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2001. Foi cremado,<br />

e suas cinzas foram enterradas no jardim<br />

<strong>de</strong> sua residência, na Rua Alagoinhas, em<br />

10 <strong>de</strong> agosto, dia em que completaria 89<br />

anos.<br />

3


INTRODUÇÃO<br />

O romance <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> trata da vida <strong>de</strong> menores<br />

abandonados da Bahia, que vivem num velho trapiche. Li<strong>de</strong>rado por<br />

Pedro Bala, generoso e valente, o bando conta ainda com outras<br />

figuras: o negro João Gran<strong>de</strong>, bondosa e forte criatura; O Professor,<br />

que revela, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, pendores para a arte; Pirulito, místico e<br />

introvertido; Dora, a jovem amante <strong>de</strong> Pedro Bala; o Gato, elegante e<br />

conquistador; o Sem-Pernas, cuja revolta, provocada pela falta <strong>de</strong><br />

um lar, encobre sua ru<strong>de</strong> bonda<strong>de</strong>; Volta Seca, afilhado <strong>de</strong> Lampião;<br />

e muitos outros.<br />

A narrativa, <strong>de</strong> cunho realista, <strong>de</strong>screve o dia-a-dia do grupo<br />

e seus expedientes para arranjar alimento e dinheiro. O narrador,<br />

numa linguagem crua e lírica, procura <strong>de</strong>monstrar que as<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais é que levam ao crime e à marginalização.<br />

Intercalando a narrativa com reportagens sobre o grupo dos<br />

“<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>” e mostrando os menores do ponto <strong>de</strong> vista da<br />

burguesia bem situada, o romance sugere o contraste entre a<br />

humanida<strong>de</strong> e a sensibilida<strong>de</strong> das crianças e a <strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> das<br />

classes dominantes. Conduzindo a história em função dos <strong>de</strong>stinos<br />

individuais <strong>de</strong> cada participante do bando, <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> acaba por<br />

mostrar que, à exceção <strong>de</strong> um ou outro (o Gato torna-se <strong>de</strong> vez um<br />

rufião; Sem-Pernas morre, fugindo da polícia; e Volta Seca alia-se a<br />

Lampião), os <strong>de</strong>mais ganham consciência revolucionária.<br />

4<br />

Durante anos (o Trapiche) foi povoado exclusivamente pelos<br />

ratos que o atravessavam em corridas brincalhonas, que roíam a<br />

ma<strong>de</strong>ira das portas monumentais, que o habitavam como senhores<br />

exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo o procurou<br />

como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não<br />

dormiu, ocupado em <strong>de</strong>spedaçar ratos que passavam em sua frente.<br />

... fazia com que os olhos vivos dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong><br />

brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia.<br />

ESPAÇO<br />

O ambiente <strong>de</strong> <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> é um somente: as ruas <strong>de</strong><br />

Salvador, à beira-mar, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>staca o Trapiche, armazém antigo,<br />

abandonado, que servia <strong>de</strong> refúgio para os meninos <strong>de</strong> rua. O<br />

Trapiche, nesse sentido, aparece como imagem <strong>de</strong> segurança, como<br />

se fora uma espécie <strong>de</strong> colo, seio e ventre materno a que todos<br />

aqueles <strong>de</strong>svalidos recorriam. Suas vidas oscilavam entre as ruas e<br />

o Trapiche, se é que os dois espaços não eram o mesmo.<br />

Todavia, há que se perceber que na narrativa, esse<br />

ambiente da Salvador baixa, portuária, das docas, dos bon<strong>de</strong>s, dos<br />

morros do samba, da macumba, da capoeira, contrasta com o<br />

casario elegante da cida<strong>de</strong> alta, insinuando já com esta paisagem<br />

ambivalente, antitética, o contraste social entre aquela gente da<br />

cida<strong>de</strong> alta e aquela outra da cida<strong>de</strong> baixa.<br />

O fato <strong>de</strong>ssa paisagem ambivalente se impor como uma<br />

lembrança do passado colonial parece indicar ainda que as<br />

situações <strong>de</strong> conflito e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> vividas pelas personagens<br />

constituam, por certo, uma herança da própria história <strong>de</strong><br />

constituição do Brasil e da socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primeiros<br />

tempos.<br />

E, <strong>de</strong>sse mesmo modo, a paisagem com seus significados<br />

vindos do passado tomaria parte também, com sua ambivalência, da<br />

explicação do presente e mesmo do futuro das personagens.<br />

Outras referências espaciais, menos significativas à obra,<br />

nos remetem para longe <strong>de</strong> Salvador e parecem, <strong>de</strong> algum modo,<br />

mimetizar também o passado e o futuro dos protagonistas, em<br />

segundo plano, como um eco: é o sertão do Volta-Seca; é o Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro do Professor; é a Paróquia do Padre José Pedro; é a Ilhéus<br />

do Gato e, mais sutilmente ainda, o espaço vazio entre a cida<strong>de</strong> alta<br />

e a cida<strong>de</strong> baixa, zona fronteiriça, interstício social em que se lançou<br />

o malandro Sem-Pernas, naquela liminarida<strong>de</strong> trágica entre a<br />

riqueza e a miséria.<br />

25


LINGUAGEM<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> pertence, como já vimos, à geração dos<br />

autores <strong>de</strong> 30, afeitos a uma linguagem coloquial, <strong>de</strong>spojada e<br />

popular. Em <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, ele repete essa fórmula: abusa dos<br />

coloquialismos tanto nas falas <strong>de</strong> personagens quanto na fala do<br />

próprio narrador, seja em seus <strong>de</strong>svios sintáticos, seja na<br />

incorporação <strong>de</strong> palavras e expressões popularescas:<br />

⎯ Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas.<br />

Um fandango <strong>de</strong> primeira. É festa <strong>de</strong> Omolu.<br />

⎯ Muita bóia? E aluá?<br />

⎯ Se tem... mirou Pedro Bala. ⎯ Por que tu não vai,<br />

branco? Omolu não é só santo <strong>de</strong> negro. É santo dos pobres todos.<br />

⎯ Tu quer esse Deus Menino para tu? ⎯ perguntou ele <strong>de</strong><br />

repente.<br />

Seja ainda na utilização <strong>de</strong> termos chulos:<br />

Boa-Vida ficou espiando os peitos da negra, enquanto<br />

<strong>de</strong>scascava uma laranja que apanhara no tabuleiro.<br />

⎯ Tu ainda tem uma peitama bem boa, hein, tia?<br />

⎯ Quem tirou teu cabaço?<br />

⎯ Ora, me <strong>de</strong>ixe... – respon<strong>de</strong>u o pe<strong>de</strong>rasta rindo.<br />

Ou na tentativa <strong>de</strong> mesclar seu discurso <strong>de</strong> narrador ao<br />

discurso das personagens, por meio do discurso indireto livre, o que<br />

permite uma visão bifocal dos fatos e constitui, nesse caso,<br />

apropriadamente, um recurso <strong>de</strong> onisciência do narrador, já que se<br />

consegue sobrepor, a partir <strong>de</strong>sse recurso, o olhar do narrador ao<br />

olhar da personagem, ampliando a cosmovisão do narrador sobre os<br />

elementos da narrativa:<br />

... O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe<br />

faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando<br />

soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha<br />

conseguido ven<strong>de</strong>r, que estava solto nos braços da Virgem, diante<br />

do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas: ⎯ Este<br />

não...<br />

Vale ainda salientar um aspecto contraditório que percorre<br />

as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> ambiente e personagens na obra: algumas vezes,<br />

as <strong>de</strong>scrições beiram o grotesco e o naturalismo; outras vezes,<br />

assumem lampejos <strong>de</strong> romantismo e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alismo ufanista baiano,<br />

como nos trechos a seguir:<br />

24<br />

ANTOLOGIA COMENTADA<br />

<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> é diferente dos outros livros <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong><br />

<strong>Amado</strong>, principalmente pela sua estrutura. A rigor, po<strong>de</strong>mos dizer<br />

que o romance não tem propriamente um enredo. E é aí que resi<strong>de</strong><br />

sua mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. O livro é montado por meio <strong>de</strong> quadros mais ou<br />

menos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Ele intercala no meio da narração notícias <strong>de</strong><br />

jornal, bem como reflexões poéticas. Seus personagens irão compor<br />

o quadro social <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>.<br />

O romance é dividido em partes. Ao todo, são três,<br />

subdivididas em capítulos ora mais longos, ora mais curtos.<br />

PRÓLOGO – Cartas à Redação.<br />

• reportagem publicada no Jornal da Tar<strong>de</strong> tratando do assalto das<br />

crianças à casa <strong>de</strong> um rico comerciante, num dos bairros mais<br />

aristocráticos da capital;<br />

• carta do secretário do chefe <strong>de</strong> polícia ao mesmo jornal, atribuindo<br />

a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coibir os furtos das crianças ao juiz <strong>de</strong><br />

menores;<br />

• carta do juiz <strong>de</strong> menores <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-se da acusação <strong>de</strong><br />

negligência;<br />

• carta da mãe <strong>de</strong> uma das crianças falando das condições<br />

miseráveis do reformatório;<br />

• carta do padre José Pedro referendando as acusações da mãe<br />

feitas ao reformatório;<br />

• carta do diretor do reformatório <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-se das acusações da<br />

mãe e do padre;<br />

• reportagem elogiosa do mesmo jornal ao reformatório.<br />

Leiam algumas cartas:<br />

CARTA DO DR. JUIZ DE MENORES À REDAÇÃO DO JORNAL DA<br />

TARDE<br />

Exmo. sr. diretor do Jornal da Tar<strong>de</strong><br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador<br />

Neste estado<br />

5


Meu caro patrício.<br />

Cordiais saudações.<br />

Folheando, num dos raros momentos <strong>de</strong> lazer que me <strong>de</strong>ixam as<br />

múltiplas e variadas preocupações do meu espinhoso cargo, o vosso<br />

brilhante vespertino, tomei conhecimento <strong>de</strong> uma epístola do infatigável<br />

dr. chefe <strong>de</strong> polícia do estado, na qual dizia dos motivos por que a polícia<br />

não pu<strong>de</strong>ra até a data presente intensificar a meritória campanha contra<br />

os menores <strong>de</strong>linquentes que infestam a nossa urbe. Justifica-se o dr.<br />

chefe <strong>de</strong> polícia <strong>de</strong>clarando que não possuía or<strong>de</strong>ns do juizado <strong>de</strong> menores<br />

no sentido <strong>de</strong> agir contra a <strong>de</strong>linquência infantil. Sem querer<br />

absolutamente culpar a brilhante e infatigável chefia <strong>de</strong> polícia, sou<br />

obrigado, a bem da verda<strong>de</strong> (essa mesma verda<strong>de</strong> que tenho colocado<br />

como o farol que ilumina a estrada da minha vida com a luz puríssima), a<br />

<strong>de</strong>clarar que a <strong>de</strong>sculpa não proce<strong>de</strong>. Não proce<strong>de</strong>, sr. diretor, porque ao<br />

juizado <strong>de</strong> menores não compete perseguir e pren<strong>de</strong>r os menores<br />

<strong>de</strong>linquentes e, sim, <strong>de</strong>signar o local on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem cumprir pena, nomear<br />

curador para acompanhar qualquer processo contra eles instaurado etc.<br />

Não cabe ao juizado <strong>de</strong> menores capturar os pequenos <strong>de</strong>linquentes. Cabe<br />

velar pelo seu <strong>de</strong>stino posterior. E o sr. dr. chefe <strong>de</strong> polícia sempre há <strong>de</strong><br />

me encontrar on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ver me chama, porque jamais, em cinquenta anos<br />

<strong>de</strong> vida impoluta, <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> cumpri-lo.<br />

Ainda nestes últimos meses que <strong>de</strong>correram man<strong>de</strong>i para o<br />

reformatório <strong>de</strong> menores vários menores <strong>de</strong>linquentes ou abandonados.<br />

Não tenho culpa, porém, <strong>de</strong> que fujam, que não se impressionem com o<br />

exemplo <strong>de</strong> trabalho que encontram naquele estabelecimento <strong>de</strong> educação<br />

e que, por meio da fuga, abandonem um ambiente on<strong>de</strong> se respiram paz e<br />

trabalho e on<strong>de</strong> são tratados com o maior carinho. Fogem e se tornam<br />

ainda mais perversos, como se o exemplo que houvessem recebido fosse<br />

mau e daninho. Por quê? Isso é um problema que aos psicólogos cabe<br />

resolver e não a mim, simples curioso da filosofia.<br />

O que quero <strong>de</strong>ixar claro e cristalino, sr. diretor, é que o dr. chefe <strong>de</strong><br />

polícia po<strong>de</strong> contar com a melhor ajuda <strong>de</strong>ste juizado <strong>de</strong> menores para<br />

intensificar a campanha contra os menores <strong>de</strong>linqüentes.<br />

De v. exa., admirador e patrício grato,<br />

Juiz <strong>de</strong> menores<br />

(Publicado no Jornal da Tar<strong>de</strong> com o clichê do juiz <strong>de</strong> menores em uma<br />

coluna e um pequeno comentário elogioso.)<br />

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -<br />

CARTA DO DIRETOR DO REFORMATÓRIO À REDAÇÃO DO JORNAL<br />

DA TARDE<br />

Exmo. sr. diretor do Jornal da Tar<strong>de</strong><br />

Saudações.<br />

6<br />

transformadora; naturalmente, foi acusado pelos superiores <strong>de</strong><br />

vocações socialistas (um perigo vermelho).<br />

João <strong>de</strong> Adão: doqueiro; organizador dos trabalhadores das<br />

docas; dava continuida<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong> conscientização dos<br />

trabalhadores iniciado por Raimundo, pai <strong>de</strong> Pedro Bala. Era um<br />

gran<strong>de</strong> amigo dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> e <strong>de</strong> todo trabalhador pobre.<br />

Don’Aninha: negra, mãe <strong>de</strong> santo; fazia parte <strong>de</strong> um terreiro<br />

<strong>de</strong> trabalhos; amiga dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>. Representa a<br />

religiosida<strong>de</strong> afro-brasileira da Bahia.<br />

Alberto: estudante; socialista; participava dos movimentos<br />

<strong>de</strong> trabalhadores, ajudando-os a organizar suas reivindicações,<br />

ações e lutas. Tornou-se amigo dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>. Participou da<br />

revelação do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Pedro Bala.<br />

Nhozinho França: dono do carrossel cheio <strong>de</strong> luz, <strong>de</strong><br />

movimentos e <strong>de</strong> cores. Levava o sonho para aquelas cida<strong>de</strong>zinhas<br />

pobres do nor<strong>de</strong>ste. Ele mesmo, um falido, gastara todo seu quinhão<br />

com bebida e mulheres. Virara um peregrino, <strong>de</strong>ixando para trás as<br />

dívidas sem pagar e os nomes feios que ganhara por isso.<br />

Fora esse rol <strong>de</strong> personagens mais centrais da obra,<br />

encontramos ainda algumas personagens menos trabalhadas e que<br />

tipificam a presença <strong>de</strong> classes e instituições sociais, antagonizando<br />

ou aparentemente antagonizando os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>. Isso porque,<br />

a <strong>de</strong>speito do que tipificam, ora rompem ora não rompem o seu<br />

invólucro social para se posicionarem diante da condição <strong>de</strong><br />

marginalida<strong>de</strong> dos malandros. São os soldados da polícia, o diretor<br />

do reformatório, o cônego, a família burguesa (Dona Ester e seu<br />

Raul), as carolas da Igreja (a viúva Santos), o pintor carioca (Dr.<br />

Dantas), o dono do jornal, o <strong>de</strong>legado, os patrões da mãe <strong>de</strong> Dora<br />

etc. Como representações <strong>de</strong> classe e como representações<br />

institucionalizadas, divi<strong>de</strong>m-se entre os que acolhem e os que<br />

reprimem e recusam os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>.<br />

FOCO NARRATIVO<br />

Narrador onisciente em terceira pessoa.<br />

23


acaso que o Professor foi sempre o mais observador, o mais<br />

contemplativo do grupo...<br />

Pirulito (Antônio): magro, mais alto, olhar encovado; rezava<br />

o tempo inteiro. A voz <strong>de</strong> sua vocação clamava o tempo inteiro<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le. Finalmente, tornou-se seminarista, com a ajuda <strong>de</strong><br />

padre José Pedro.<br />

Volta Seca: menino do sertão; afilhado <strong>de</strong> Lampião;<br />

admirava <strong>de</strong> longe o padrinho; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sua mãe foi expulsa da<br />

terra por um coronel, passou a odiar os coronéis <strong>de</strong> fazenda e a<br />

polícia. Quando pô<strong>de</strong>, aten<strong>de</strong>u à sua vocação: voltou ao sertão,<br />

ingressou no bando <strong>de</strong> Lampião e <strong>de</strong>u voz à sua vingança, matando<br />

fazen<strong>de</strong>iros e policiais. Imaginava que, com isso, estaria<br />

restabelecendo a justiça para os pobres do sertão, ainda mais ao<br />

lado <strong>de</strong> seu padrinho Lampião.<br />

Boa-Vida: o vadio do grupo; gostava <strong>de</strong> mordomia;<br />

malandro como o Gato; fazer... somente o suficiente; no entanto,<br />

quando ficou doente da varíola, <strong>de</strong>u mostra <strong>de</strong> que era mais que um<br />

irmão <strong>de</strong> todos; era uma estrela corajosa: <strong>de</strong>cidiu se sacrificar indo<br />

ao Lazaredo para não contaminar os irmãos <strong>de</strong> rua. Foi jovem e<br />

malandro... na rua, no samba, no violão...<br />

Querido <strong>de</strong> Deus: chegou para viver com os <strong>Capitães</strong> da<br />

<strong>Areia</strong>, vindo dos mares do sul; era o mais exímio capoeirista da<br />

Bahia.<br />

João Gran<strong>de</strong>: treze anos, órfão, assistiu a morte do pai,<br />

atropelado por um caminhão; nunca mais voltou para o morro; era o<br />

mais forte dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>; era o protetor dos menores. Sua<br />

força era o que tinha e o que os outros tinham.<br />

O Gato: malandro incorrigível; o mais elegante dos <strong>Capitães</strong><br />

da <strong>Areia</strong>. Enamorou-se <strong>de</strong> uma prostituta <strong>de</strong> nome Dalva. Tomou-a<br />

<strong>de</strong> um flautista ingrato que <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> reconhecer os dotes da<br />

cortesã. Foi com ela ganhar a vida em Ilhéus, nos cabarés. Lá ela<br />

ficou com um coronel daqueles do cacau... ele seguiu sua vida <strong>de</strong><br />

malandragem, vadiagem, samba e violão...<br />

Padre José Pedro: padre pobre, maltrapilho, sem vocação,<br />

ou melhor, sem muita vocação para a retórica eclesiástica; dono <strong>de</strong><br />

uma religiosida<strong>de</strong> prática, cotidiana, popular, participativa e<br />

22<br />

Tenho acompanhado com gran<strong>de</strong> interesse a campanha que o<br />

brilhante órgão da imprensa baiana, que com tão rútila inteligência<br />

dirigis, tem feito contra os crimes apavorantes dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>,<br />

bando <strong>de</strong> <strong>de</strong>linquentes que amedronta a cida<strong>de</strong> e impe<strong>de</strong> que ela viva<br />

sossegadamente.<br />

Foi assim que li duas cartas <strong>de</strong> acusações contra o estabelecimento<br />

que dirijo e que a modéstia (e somente a modéstia, sr. diretor) me impe<strong>de</strong><br />

que chame <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar.<br />

Quanto à carta <strong>de</strong> uma mulherzinha do povo, não me preocupei com<br />

ela, não merecia a minha resposta. Sem dúvida é uma das multas que<br />

aqui vêm e querem impedir que o reformatório cumpra a sua santa<br />

missão <strong>de</strong> educar os seus filhos. Elas os criam na rua, na pân<strong>de</strong>ga, e como<br />

eles aqui são submetidos a uma vida exemplar, elas são as primeiras a<br />

reclamar, quando <strong>de</strong>viam beijar as mãos daqueles que estão fazendo dos<br />

seus filhos homens <strong>de</strong> bem. Primeiro vêm pedir lugar para os filhos.<br />

Depois sentem falta <strong>de</strong>les, do produto dos furtos que eles levam para<br />

casa, e então saem a reclamar contra o reformatório. Mas, como já disse,<br />

sr. diretor, esta carta não me preocupou. Não é uma mulherzinha do povo<br />

quem há <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a obra que estou realizando à frente <strong>de</strong>ste<br />

estabelecimento.<br />

O que me abismou, sr. diretor, foi a carta do padre José Pedro. Este<br />

sacerdote, esquecendo as funções do seu cargo, veio lançar contra o<br />

estabelecimento que dirijo graves acusações. Esse padre (que eu chamarei<br />

padre do <strong>de</strong>mônio, se me permitis uma pequena ironia, sr. diretor) abusou<br />

das suas funções para penetrar no nosso estabelecimento <strong>de</strong> educação em<br />

horas proibidas pelo regulamento e contra ele eu tenho <strong>de</strong> formular uma<br />

séria queixa: ele tem incentivado os menores que o estado colocou a meu<br />

cargo à revolta, à <strong>de</strong>sobediência. Des<strong>de</strong> que ele penetrou os umbrais <strong>de</strong>sta<br />

casa que os casos <strong>de</strong> rebeldia e contravenções aos regulamentos<br />

aumentaram. O tal padre é apenas um instigador do mau caráter geral<br />

dos menores sob a minha guarda. E por isso vou fechar-lhe as portas<br />

<strong>de</strong>sta casa <strong>de</strong> educação.<br />

Porém, sr. diretor, fazendo minhas as palavras da costureira que<br />

escreveu a este jornal, sou eu quem vem vos pedir que envieis um redator<br />

ao reformatório. Disso faço questão. Assim po<strong>de</strong>reis, e o público também,<br />

ter ciência exata e fé verda<strong>de</strong>ira sobre a maneira como são tratados os<br />

menores que se regeneram no Reformatório Baiano <strong>de</strong> Menores<br />

Delinquentes e Abandonados. Espero o vosso redator na segunda-feira. E<br />

se não digo que ele venha no dia que quiser é que estas visitas <strong>de</strong>vem ser<br />

feitas nos dias permitidos pelo regulamento e é meu costume nunca me<br />

afastar do regulamento. Este é o motivo único por que convido o vosso<br />

redator para segunda-feira. Pelo que vos fico imensamente grato, como<br />

pela publicação <strong>de</strong>sta. Assim ficará confundido o falso vigário <strong>de</strong> Cristo.<br />

Criado agra<strong>de</strong>cido e admirador atento,<br />

Diretor do Reformatório Baiano <strong>de</strong><br />

7


Menores Delinquentes e Abandonados<br />

(Publicada na 3º página do Jornal da Tar<strong>de</strong> com um clichê do<br />

reformatório e uma notícia adiantando que na próxima segunda-feira irá<br />

um redator do Jornal da Tar<strong>de</strong> ao reformatório.)<br />

Comentário:<br />

<strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> utiliza o recurso do prólogo para criticar<br />

indiretamente os po<strong>de</strong>rosos por meio da linguagem, examinada em<br />

diferentes níveis. Assim, a escrita redundante, grandiloquente das<br />

autorida<strong>de</strong>s contrasta com a da mulher do povo. Ao mesmo tempo, o<br />

tom da reportagem parece colaborar para a feição realista do<br />

romance, como se o narrador quisesse dar a impressão para o leitor<br />

<strong>de</strong> que o que vai contar é absolutamente verda<strong>de</strong>iro.<br />

PRIMEIRA PARTE: “Sob a lua, num velho trapiche abandonado”,<br />

formada <strong>de</strong> onze capítulos:<br />

• essa parte constitui propriamente a apresentação do<br />

romance, na qual o leitor se <strong>de</strong>para com a biografia das principais<br />

personagens.<br />

SEGUNDA PARTE: “Noite da gran<strong>de</strong> paz, da gran<strong>de</strong> paz dos teus<br />

olhos”, formada <strong>de</strong> oito capítulos:<br />

• essa parte trata mais especificamente da <strong>de</strong>scoberta do<br />

amor por parte <strong>de</strong> Pedro Bala.<br />

TERCEIRA PARTE: “Canção da Bahia, canção da liberda<strong>de</strong>”,<br />

formada <strong>de</strong> oito capítulos:<br />

• essa parte mostra o <strong>de</strong>stino das personagens.<br />

PRIMEIRA PARTE:<br />

Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças<br />

dormem.<br />

Antigamente aqui era o mar. Nas gran<strong>de</strong>s e negras pedras<br />

dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas,<br />

ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da<br />

ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por<br />

uma réstia amarela <strong>de</strong> lua. Desta ponte saíram inúmeros veleiros<br />

carregados, alguns eram enormes e pintados <strong>de</strong> estranhas cores,<br />

para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os<br />

8<br />

⎯ a Dora e o Sem-Pernas morrem, consolidando o que sempre<br />

foram: estrelas agregadoras por conta do amor (Dora) e o ódio<br />

(Sem-Pernas);<br />

⎯ o padre José Pedro vai ser padre <strong>de</strong> paróquia;<br />

⎯ Pedro Bala consolida-se lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalidos...<br />

Em todo caso, porém, como afirma mais uma vez Álvaro<br />

Cardoso Gomes, os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> são personagens planas, não<br />

nos causam surpresa no <strong>de</strong>correr na narrativa. Em sua<br />

subjetivida<strong>de</strong>, realizam aquilo para o que foram dispostos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início por suas vocações ou pelos limites <strong>de</strong> seu mundo.<br />

Pedro Bala: chefe dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>; respeitado por<br />

todos; filho <strong>de</strong> um doqueiro morto na primeira greve da região; lí<strong>de</strong>r<br />

nato; malandro sensível e bom. Sempre em busca <strong>de</strong> um sentido<br />

para sua existência, acaba <strong>de</strong>scobrindo em suas próprias origens o<br />

pai doqueiro e grevista, um sentido para sua li<strong>de</strong>rança: lutar pelos<br />

oprimidos. O estudante Alberto e o doqueiro João <strong>de</strong> Adão serviram<br />

<strong>de</strong> intermediadores <strong>de</strong>ssa voz do passado que transforma Pedro<br />

Bala, <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> malandros, em lí<strong>de</strong>r político nos movimentos <strong>de</strong><br />

trabalhadores. Bala foi progressivamente formado pela voz, pelo<br />

clamor <strong>de</strong> todos com quem ele conviveu. Sua história é a história <strong>de</strong><br />

todos.<br />

Dora: filha do morro; os pais morreram <strong>de</strong> varíola; sem ter<br />

para on<strong>de</strong> ir, passa a viver com os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>; sua imagem<br />

varia entre a menina órfã, a pedinte, a prostituta, a irmã, a mãe, a<br />

amada, a noiva e a esposa aos olhos dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>. Por fim,<br />

consolida-se estrela... estrela estranha. Mulher <strong>de</strong> coragem.<br />

Sem-Pernas: abandonado, órfão, recalcado por sua<br />

<strong>de</strong>ficiência física, por sua pobreza, por sua revolta. Destila ódio,<br />

muitas vezes sutilizado em brinca<strong>de</strong>iras cruéis e vingativas. É teatral<br />

e picaresco. O<strong>de</strong>ia a todos... porque culpa a todos por suas<br />

carências. Para não ser preso, preferiu se jogar do alto do morro (o<br />

elevador), como um trapezista sem trapézio. O seu drama final.<br />

Professor (João José): era o mais culto do grupo; roubava<br />

e colecionava livros; <strong>de</strong>senhava como ninguém, um dom; tornou-se<br />

pintor no Rio <strong>de</strong> Janeiro, apadrinhado por um pintor carioca ⎯ Dr.<br />

Dantas, o homem da piteira. Suas pinturas retratam a vida dos<br />

<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> e, nesse sentido, reclamam uma relação<br />

intertextual com a própria narrativa <strong>de</strong> que ele faz parte. Não é por<br />

21


PERSONAGENS<br />

No romance, os protagonistas da narrativa ⎯ os <strong>Capitães</strong> da<br />

areia ⎯ vivem nos limites entre a or<strong>de</strong>m e a <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, entre o lícito<br />

e o ilícito, o que nos permite tomá-los como malandros. Tipos<br />

marginais que constituem na literatura brasileira, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua primeira<br />

figuração literária em Memórias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong> Milícias, <strong>de</strong><br />

Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, em pleno Romantismo, um traço<br />

significativo na construção <strong>de</strong> uma autoimagem do Brasil e do<br />

brasileiro e, neste caso, na construção da autoimagem <strong>de</strong> uma<br />

região do Brasil, a Salvador dos meninos <strong>de</strong> rua. Para Tânia<br />

Macedo, tais malandros são seres:<br />

“que vivem na liminarida<strong>de</strong>, que pertencem a uma zona <strong>de</strong><br />

inconsistência da socieda<strong>de</strong>, que são donos <strong>de</strong> uma ginga, <strong>de</strong> uma<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> drible, buscando sempre suprir suas carências <strong>de</strong> cidadania<br />

e afeto; são astuciosos, sempre tentando burlar as forças da Or<strong>de</strong>m;<br />

marginalizados, estranhos, diferentes; figuras que vivem sempre numa zona<br />

fronteira; <strong>de</strong> origem humil<strong>de</strong>, não raro, largados no mundo, têm sua matriz<br />

na tradição popular, em uma atmosfera sempre popularesca.”<br />

Tania Macedo. Malandragens nas Literaturas do Brasil e <strong>de</strong> Angola<br />

In: Rita Chaves e Tania Macêdo.<br />

Literatura em Movimento: Hibridismo cultural e exercício crítico. Via Atlântica.<br />

Apesar <strong>de</strong>ssa condição coletiva e tipificada apriorística, que<br />

mergulha os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> num caminhar coletivo, como frutos<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminismo social que os condiciona, observamos que tais<br />

personagens seguem também um caminho paralelo e individualizado<br />

na opinião do narrador: nesse caminhar subjetivo, uns consolidam o<br />

que já pareciam ser socialmente: malandros e marginais; outros<br />

consolidam vocações recônditas, castradas pelo meio.<br />

Desse modo, <strong>de</strong>terminismos do meio e <strong>de</strong>terminismos<br />

subjetivos e tensionam na construção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino para cada um<br />

dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>:<br />

⎯ o Professor vai ser pintor no Rio <strong>de</strong> Janeiro;<br />

⎯ o Pirulito vai para o seminário;<br />

⎯ o Volta Seca vai ser cangaceiro no sertão;<br />

⎯ o Gato consolida-se como malandro;<br />

20<br />

porões e atracavam nesta ponte <strong>de</strong> tábuas, hoje comidas.<br />

Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do maroceano,<br />

as noites diante <strong>de</strong>le eram <strong>de</strong> um ver<strong>de</strong> escuro, quase<br />

negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite. (p. 19)<br />

Comentário:<br />

Quando Pedro Bala é apresentado pelo narrador, tomamos<br />

conhecimento <strong>de</strong> sua origem por meio <strong>de</strong> um expediente muito<br />

comum, retomado a cada momento em que há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

esboçar o perfil <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada personagem, o retorno ao passado.<br />

Ficamos então sabendo o porquê <strong>de</strong> Pedro ter-se engajado no grupo<br />

dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> (a morte do pai a bala, o <strong>de</strong>sconhecimento da<br />

mãe), o modo como ele chega à li<strong>de</strong>rança, após <strong>de</strong>rrotar o mulato<br />

Raimundo numa luta. Com esse expediente <strong>de</strong> recuo e avanço, o<br />

leitor terá oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

personagem principal e ter os primeiros indícios da formação <strong>de</strong> um<br />

autêntico lí<strong>de</strong>r.<br />

Na sequência, são introduzidos o negro João Gran<strong>de</strong>, forte e<br />

<strong>de</strong> bom coração, João José, <strong>de</strong> alcunha o Professor, porque vive<br />

lendo, o Gato, futuro malandro, Pirulito, que mostra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo<br />

vocação religiosa, o Sem-Pernas, aleijado e revoltado. Além da<br />

apresentação das principais figuras do trapiche, o narrador, em<br />

pequenos flashes, aproveita para ilustrar o cotidiano e a vida viciosa<br />

e pobre em carinho dos membros do grupo. Assim, por exemplo,<br />

tomamos conhecimento das conquistas <strong>de</strong> Gato entre as prostitutas<br />

ou as abordagens homossexuais <strong>de</strong> algumas das personagens (do<br />

Boa-Vida em relação ao Gato e <strong>de</strong> Barandão em relação a Almiro). A<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afeto parece marcar <strong>de</strong>cididamente as pobres<br />

crianças sem pai nem mãe, o que faz o Sem-Pernas, talvez o mais<br />

carente <strong>de</strong> todo o grupo, sentir-se angustiado <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong><br />

carinho:<br />

[...] O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos<br />

procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o<br />

Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama <strong>de</strong><br />

uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que<br />

o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais. O<br />

Sem-Pernas sentia que uma angústia o tomava e que era<br />

impossível dormir. [...] (p. 39)<br />

O próximo capítulo, num quadro isolado, é um exemplo<br />

típico da ação do grupo. Um famoso capoeirista, o Querido-<strong>de</strong>-Deus,<br />

9


arranja-lhes um negócio: é preciso que eles consigam roubar <strong>de</strong> um<br />

homem um pacote com cartas comprometedoras. Pedro Bala, Gato<br />

e João Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenham essa missão, e são bem pagos pelo<br />

interessado em rever os documentos. Nesse capítulo, o leitor tem<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliar a precocida<strong>de</strong> dos meninos, percebida no<br />

modo como bem planejam toda a ação e na habilida<strong>de</strong> com que<br />

conseguem resolver situações <strong>de</strong> impasse.<br />

O capítulo seguinte cria um contraste curioso com o anterior,<br />

porque é nele que ficamos sabendo que, apesar <strong>de</strong> sua precocida<strong>de</strong>,<br />

os <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> ainda mostram traços infantis. Intitulado “As<br />

luzes do carrossel”, o capítulo trata <strong>de</strong> um velho homem, Nhozinho<br />

França, dono <strong>de</strong> um parquinho <strong>de</strong> diversões que percorreu o<br />

Nor<strong>de</strong>ste divertindo as populações até entrar em franca <strong>de</strong>cadência.<br />

Quando Nhozinho França instala o <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte carrossel em<br />

Itapagipe, contrata o Sem-Pernas e Volta Seca para ajudá-lo na<br />

venda <strong>de</strong> bilhetes e na manipulação do motor a gasolina. Os<br />

meninos acolhem entusiasmados a i<strong>de</strong>ia e encantam-se,<br />

infantilmente, com os animais, com as luzes coloridas, com o<br />

movimento das pessoas.<br />

É sintomático que neste capítulo a narrativa concentre-se<br />

nas duas personagens mais duras e rancorosas do grupo. O Sem-<br />

Pernas guarda <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o rancor por seu eterno abandono, e<br />

Volta Seca tem arraigado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o sentimento <strong>de</strong> vingança que<br />

o levará mais tar<strong>de</strong> a integrar-se ao bando <strong>de</strong> Lampião. O contraste,<br />

portanto, torna-se bem visível, porque ambos retroce<strong>de</strong>m à infância<br />

e transformam-se novamente em crianças in<strong>de</strong>fesas, por obra e<br />

graça do pobre carrossel:<br />

Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá<br />

substituir Volta Seca na venda <strong>de</strong> bilhetes. E manda que Volta<br />

Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu<br />

a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se<br />

cavalgasse um verda<strong>de</strong>iro cavalo. E faz movimentos com o <strong>de</strong>do,<br />

como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua imaginação<br />

os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição. E<br />

o cavalo corre e cada vez com mais, e ele mata a todos, porque<br />

são todos soldados ou fazen<strong>de</strong>iros ricos. Depois possui nos<br />

bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cida<strong>de</strong>s, tens <strong>de</strong> ferro,<br />

montado no seu cavalo, armado com seu rifle. Depois vai o Sem-<br />

Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como<br />

um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher<br />

amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um<br />

cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Os<br />

10<br />

passados <strong>de</strong> mão em mão, e que eram lidos à luz <strong>de</strong> fifós,<br />

publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o<br />

camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela policia <strong>de</strong><br />

cinco estados como organizador <strong>de</strong> greves, como dirigente <strong>de</strong><br />

partidos ilegais, como perigoso inimigo da or<strong>de</strong>m estabelecida.<br />

No ano em que todas as bocas foram impedidas <strong>de</strong> falar, no<br />

ano que foi todo ele uma noite <strong>de</strong> terror, esses jornais únicas<br />

bocas que ainda falavam clamavam pela liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pedro<br />

Bala, lí<strong>de</strong>r da sua classe, que se encontrava preso numa<br />

colônia.<br />

E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora<br />

pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E,<br />

apesar <strong>de</strong> que fora era o terror, qualquer daqueles lares era um<br />

lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a<br />

revolução é uma pátria e uma família. (p. 256)<br />

Apesar da miséria dos meninos <strong>de</strong>samparados, da alienação<br />

<strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les, o romance termina positivamente, pois <strong>Jorge</strong><br />

<strong>Amado</strong> irá concentrar em Pedro Bala toda sua crença na força do<br />

homem, em seu po<strong>de</strong>r para modificar o <strong>de</strong>stino, por meio da luta, por<br />

meio da ação. Assim, acaba por <strong>de</strong>ixar clara a sua concepção <strong>de</strong><br />

romance: um tipo <strong>de</strong> narrativa que se presta a <strong>de</strong>salienar e<br />

conscientizar o homem, não só lhe chamando a atenção para as<br />

mazelas sociais, como também indicando-lhe o caminho da<br />

re<strong>de</strong>nção.<br />

19


se ao grupo <strong>de</strong> Lampião, e Sem-Pernas morre em luta com a polícia.<br />

Para dar <strong>de</strong>staque ao <strong>de</strong>stino das personagens, o narrador, no<br />

capítulo “Notícias <strong>de</strong> jornal”, utiliza-se <strong>de</strong> um expediente muito<br />

comum ao longo do livro: o relato indireto, por meio <strong>de</strong> notícias.<br />

Assim, acompanhamos a trajetória <strong>de</strong> Professor, Gato, Boa-Vida e<br />

Volta Seca.<br />

Do primeiro, sabemos que se tornou um pintor <strong>de</strong> sucesso,<br />

cuja principal característica é a <strong>de</strong> fazer da obra <strong>de</strong> arte uma<br />

representação da realida<strong>de</strong> que ele experimentou em vida:<br />

... um <strong>de</strong>talhe notaram todos que foram estranha exposição<br />

<strong>de</strong> cenas e retratos <strong>de</strong> meninos pobres. É que todos os<br />

sentimentos bons estão sempre representados na figura <strong>de</strong> uma<br />

menina magra <strong>de</strong> cabelos loiros e faces febris. E que todos os<br />

sentimentos maus estão representados por um homem <strong>de</strong><br />

sobretudo negro e um ar <strong>de</strong> viajante. [...] (p. 239)<br />

Gato, Boa-Vida e Volta Seca, por sua vez, acabam se<br />

envolvendo com a polícia, como se <strong>Jorge</strong> <strong>Amado</strong> quisesse com isso<br />

acentuar a marginalização final <strong>de</strong> algumas personagens, que jamais<br />

conseguem se adaptar à vida em socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong><br />

consciência. Volta Seca, por exemplo, escolhe o caminho da<br />

vingança, matando indiscriminadamente pelo sertão:<br />

Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho<br />

sargento <strong>de</strong> polícia. E Lampião o entregara a Volta Seca para<br />

que o <strong>de</strong>spachasse. Volta Seca o <strong>de</strong>spachara <strong>de</strong>vagarinho, à<br />

ponta <strong>de</strong> punhal, cortando os pedacinhos com visível satisfação.<br />

Fora tanta a cruelda<strong>de</strong>, que Machadão, horrorizado, levantou o<br />

fuzil para acabar com Volta Seca. Mas antes que disparasse,<br />

Lampião, que tinha um gran<strong>de</strong> orgulho <strong>de</strong> Volta Seca, atirou em<br />

Machadão. Volta Seca continuara sua tarefa. (p. 241)<br />

Contudo, diferentes são os <strong>de</strong>stinos <strong>de</strong> João Gran<strong>de</strong> e Pedro<br />

Bala. O primeiro torna-se marinheiro e embarca num navio. Já o<br />

segundo toma consciência das injustiças sociais, luta ao lado dos<br />

grevistas, transforma-se num “militante proletário” e passa a lutar<br />

contra as opressões, como se po<strong>de</strong>rá verificar no capítulo que fecha<br />

o livro, “Uma pátria e uma família”:<br />

Anos <strong>de</strong>pois os jornais <strong>de</strong> classe, pequenos jornais, dos<br />

quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em<br />

tipografias clan<strong>de</strong>stinas, jornais que circulavam nas fábricas,<br />

18<br />

lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da<br />

pianola só vê as luzes que giram com ele e pren<strong>de</strong> em si a<br />

certeza <strong>de</strong> que está num carrossel, girando num cavalo como<br />

todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem<br />

os beije e quem os ame. Pensa que é um <strong>de</strong>les e fecha os olhos<br />

para guardar melhor esta certeza. Já Se vê os soldados que o<br />

surraram, o homem <strong>de</strong> colete queria. Volta Seca os matou na sua<br />

corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se<br />

corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa<br />

viagem do mundo.Uma viagem como o Professor nunca leu nem<br />

inventou. Seu coração bate tanto, tanto, que ele o aperta com a<br />

mão. (p. 62)<br />

Nesse mesmo capítulo, há uma espécie da gancho para a<br />

introdução <strong>de</strong> uma personagem já referida no prólogo: o padre José<br />

Pedro. Uma das raras pessoas a ter acesso ao escon<strong>de</strong>rijo dos<br />

<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, sem saber que as crianças já estão frequentando<br />

o carrossel, ele <strong>de</strong>svia dinheiro das beatas para comprar bilhetes.<br />

Ficamos conhecendo a figura do padre, diferente daquela do alto<br />

clero, tão-somente voltado para o serviço dos ricos. De origem<br />

humil<strong>de</strong>, seu maior sonho era tentar resgatar os meninos da miséria.<br />

Por isso mesmo, torna-se um marginal em relação aos outros<br />

padres. Tratando as crianças como homens, com dignida<strong>de</strong>, pouco a<br />

pouco consegue conquistar-lhes a confiança e se aproximar <strong>de</strong>las:<br />

[...] Mas o padre José Pedro tinha sido operário e sabia<br />

como tratar os meninos. Tratava-os como a homens, como a<br />

amigos. E assim conquistou a confiança <strong>de</strong>les, se fez amigo <strong>de</strong><br />

todos, mesmo daqueles que, como Pedro Bala e o Professor, não<br />

gostavam <strong>de</strong> rezar. [...] (p. 69)<br />

O capítulo seguinte, “Docas”, também lida com contrastes.<br />

Nele, Pedro Bala fica sabendo da vida heróica do pai, estivador no<br />

porto, morto pelo Exército numa greve. Cresce no peito do pequeno<br />

herói o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> participar no futuro das lutas libertárias:<br />

[...] Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por baixo<br />

daquele asfalto <strong>de</strong>via estar o sangue que correra do corpo seu<br />

pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas d entre<br />

aqueles homens, o lugar que fora <strong>de</strong> seu pai. [...] (p. 78)<br />

O contraste nasce no instante em que Pedro Bala tenta<br />

violentar uma negrinha <strong>de</strong> quinze anos. Atormentado pelo <strong>de</strong>sejo,<br />

11


num primeiro momento, esquece-se da <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu ato;<br />

contudo, logo após, sentimentos confusos têm guarida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le,<br />

como se a consciência aflorasse:<br />

[...] E tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se jogar no mar para se lavar <strong>de</strong> toda<br />

aquela inquietação, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se vingar dos homens que<br />

tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cida<strong>de</strong> rica que<br />

se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça,<br />

o <strong>de</strong>sespero da sua vida <strong>de</strong> criança abandonada e perseguida, a<br />

pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também. (p.<br />

85)<br />

Essa divisão interna na consciência é que dá humanida<strong>de</strong> à<br />

personagem e, ao mesmo tempo, tensão ao romance.<br />

Na sequência dos quadros, o narrador trata <strong>de</strong> variados<br />

assuntos: outras ações dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong> (o resgate <strong>de</strong> uma<br />

imagem <strong>de</strong> Ogum das mãos da polícia e o golpe do pobre órfão<br />

aplicado pelo Sem-Pernas numa família rica), o sincretismo religioso<br />

na Bahia, o ambiente sórdido da ca<strong>de</strong>ia, para on<strong>de</strong> Pedro Bala vai<br />

preso, e a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o Sem-Pernas viver uma vida normal.<br />

Dessa maneira, o narrador procura mostrar que a oposição entre<br />

ricos e pobres não se dá somente no plano da religião e dos direitos<br />

humanos. É o que acontece, por exemplo, quando Pedro Bala se<br />

propõe a ajudar a mãe-<strong>de</strong>-santo a recuperar a imagem <strong>de</strong> Ogum.<br />

Nessa passagem, ficamos sabendo da discriminação contra as<br />

religiões não-oficiais:<br />

[...] Os candomblés batiam em <strong>de</strong>sagravo a Ogum e talvez<br />

num <strong>de</strong>les ou em muitos <strong>de</strong>les Omolu anunciasse a vingança do<br />

povo pobre. Don’Aninha disse aos meninos com uma voz<br />

amarga:<br />

⎯ Não <strong>de</strong>ixam os pobres viver... Não <strong>de</strong>ixam nem o <strong>de</strong>us<br />

dos pobres em paz. Pobre não po<strong>de</strong> dançar, não po<strong>de</strong> cantar pra<br />

seu <strong>de</strong>us, não po<strong>de</strong> pedir uma graça a seu <strong>de</strong>us ⎯ sua voz era<br />

amarga, uma voz que não parecia da mãe-<strong>de</strong>-santo Don’Aninha.<br />

⎯ Não se contentam <strong>de</strong> matar os pobres a fome... Agora tiram os<br />

santos dos pobres... ⎯ alçava os punhos. (p. 87)<br />

Essa imagem da religião dos pobres acentua-se no capítulo<br />

seguinte, “Deus sorri como um negrinho”, verda<strong>de</strong>iro intervalo lírico,<br />

em que o narrador ilustra a fé <strong>de</strong> Pirulito. Encantado com a imagem<br />

<strong>de</strong> um Menino Jesus na vitrine <strong>de</strong> uma loja, ele a rouba, mas a cena<br />

12<br />

No capítulo “Como uma estrela <strong>de</strong> loira cabeleira”, vemos a<br />

morte <strong>de</strong> Dora.<br />

Fora mais valente que todas mulheres, mais valente que<br />

Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes <strong>de</strong><br />

morrer, mesmo sendo uma menina, se <strong>de</strong>ra ao seu amor. Por<br />

isso virou uma estrela no céu. Uma estrela <strong>de</strong> longa cabeleira<br />

loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite <strong>de</strong> paz da<br />

Bahia.<br />

A felicida<strong>de</strong> ilumina o rosto <strong>de</strong> Pedro Bala. Para ele veio<br />

também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para<br />

ele entre mil estrelas no céu sem igual da cida<strong>de</strong> negra.<br />

O saveiro do Querido-<strong>de</strong>-Deus o recolhe. (p. 224/225)<br />

TERCEIRA PARTE:<br />

CANÇÃO DA BAHIA, CANÇÃO DA LIBERDADE<br />

A morte <strong>de</strong> Dora fecha um ciclo, a partir daqui os<br />

personagens vão seguir novos rumos.<br />

Nesta noite Professor não acen<strong>de</strong>u vela, não abriu livro <strong>de</strong><br />

história. Ficou calado quando João Gran<strong>de</strong> veio para seu lado.<br />

Arrumava suas coisas numa trouxa. Quase tudo era livro. João<br />

Gran<strong>de</strong> olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem<br />

todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho<br />

João Gran<strong>de</strong>. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também<br />

a seu lado e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou:<br />

– Vou embora, Bala...<br />

– Pra on<strong>de</strong>, mano?<br />

Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que<br />

riam, que se moviam como sombras entre os ratos:<br />

– Que adianta a vida da gente? Só pancada na polícia<br />

quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia po<strong>de</strong><br />

mudar... Padre José Pedro, João <strong>de</strong> Adão, tu mesmo. Agora vou<br />

mudar a minha...(p. 230)<br />

O narrador fecha o romance relatando o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> cada<br />

membro do grupo. O primeiro a ir embora do trapiche é Professor,<br />

que estudará pintura no Rio e se transformará num gran<strong>de</strong> artista.<br />

Em seguida sai o Pirulito, que se torna fra<strong>de</strong> capuchinho. Boa-Vida,<br />

por sua vez, escolhe a vida <strong>de</strong> malandro das ruas, Gato parte para<br />

Ilhéus e se torna vigarista e jogador profissional, Volta Seca integra-<br />

17


A função <strong>de</strong> Dora no romance está ligada, portanto, ao<br />

amadurecimento do herói, ou seja, a menina colabora para que<br />

Pedro Bala possa <strong>de</strong>scobrir o amor, não mais como uma violência,<br />

mas como entrega afetiva ao próximo. É a partir <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta,<br />

quando passa a ter a estrela-Dora como guia, que ele começa a<br />

participar ativamente <strong>de</strong> movimentos grevistas, como se verá na<br />

terceira parte do livro.<br />

No capítulo “Reformatório”, a linguagem jornalística se faz<br />

presente, recurso usado para mostrar o lado notícia da história dos<br />

meninos.<br />

O Jornal da Tar<strong>de</strong> trouxe a notícia em gran<strong>de</strong>s títulos.<br />

Uma manchete ia <strong>de</strong> lado a lado na primeira página:<br />

PRESO O CHEFE DOS CAPITÃES DA AREIA<br />

Depois vinham os títulos que estavam em cima <strong>de</strong> um<br />

clichê, on<strong>de</strong> se viam Pedro Bala, Dora, João Gran<strong>de</strong>, Sem-<br />

Pernas e Gato cercados <strong>de</strong> guardas e investigadores:<br />

UMA MENINA NO GRUPO • A SUA HISTÓRIA •<br />

RECOLHIDA A UM ORFANATO – O CHEFE DOS<br />

“CAPITÃES DA AREIA” É FILHO DE UM GREVISTA • OS<br />

OUTROS CONSEGUEM FUGIR • “O REFORMATÓRIO O<br />

ENDIREITARÁ”, NOS AFIRMA O DIRETOR.<br />

Sob o clichê vinha esta legenda:<br />

Após ser batida esta chapa o chefe dos peraltas armou<br />

uma discussão e um barulho que <strong>de</strong>u lugar a que os<br />

<strong>de</strong>mais moleques presos pu<strong>de</strong>ssem fugir. O chefe é o que<br />

está marcado contra cruz e ao seu lado vê-se Dora, a nova<br />

gigolete dos moleques baianos. (p. 196)<br />

No capítulo “Orfanato”, vemos a doença <strong>de</strong> Dora.<br />

Um mês <strong>de</strong> orfanato bastou para matar a alegria e a saú<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro.<br />

Depois a liberda<strong>de</strong> das ruas da cida<strong>de</strong>, a vida aventurosa dos<br />

<strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>. Não era uma flor <strong>de</strong> estufa. Amava o sol, a<br />

rua, a liberda<strong>de</strong>. (p. 217)<br />

16<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado a ação e envereda <strong>de</strong>cididamente pelo <strong>de</strong>vaneio da<br />

personagem, <strong>de</strong> maneira que o roubo toma a feição <strong>de</strong> uma doação<br />

da imagem a Pirulito por obra e graça da Virgem Maria:<br />

[...] Sim, foi a Virgem, que agora esten<strong>de</strong> o Menino para<br />

Pirulito o quanto po<strong>de</strong>m seus braços e o chama com sua doce<br />

voz:<br />

⎯ Leve e cui<strong>de</strong> <strong>de</strong>le... Cui<strong>de</strong> bem...<br />

Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo <strong>de</strong> Deus, suas mãos<br />

e cabeça a ar<strong>de</strong>r uma vida que nunca acaba. Mas saco<strong>de</strong> o corpo<br />

como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem<br />

lhe entrega, o encosta ao peito e <strong>de</strong>saparece na rua. (p. 106)<br />

O episódio que vem a seguir, sintomaticamente intitulado<br />

“Família”, talvez um dos mais consistentes <strong>de</strong> todo o livro, tem como<br />

núcleo mais uma ação dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, aquela em que<br />

planejam roubar uma casa rica, usando como isca a figura do Sem-<br />

Pernas. Numa tática muito comum, o menino costumava provocar a<br />

pieda<strong>de</strong> das pessoas com seu aleijão e, <strong>de</strong>sse modo, mais tar<strong>de</strong>,<br />

aproveitava-se para indicar aos membros do grupo os objetos<br />

preciosos que porventura houvesse nas casas. Dessa vez, contudo,<br />

acolhido por um casal que per<strong>de</strong>ra o filho pequeno, é tratado com<br />

tanto carinho que, ao mesmo tempo, sente remorsos por ter que<br />

roubar seus protetores e <strong>de</strong>sperta-lhe um <strong>de</strong>sejo imenso <strong>de</strong> levar<br />

uma vida <strong>de</strong>cente, em casa <strong>de</strong> família. O conflito vivido pela<br />

personagem serve para revelar uma <strong>de</strong> suas qualida<strong>de</strong>s essenciais:<br />

a lealda<strong>de</strong> a seu grupo, a sua classe. Só <strong>de</strong> pensar nos<br />

companheiros, o Sem-Pernas <strong>de</strong>siste da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um futuro<br />

junto à família que o acolheu.<br />

Fechando a primeira parte do livro, temos três capítulos<br />

finais. O primeiro tem como centro a figura <strong>de</strong> Professor e mostra as<br />

habilida<strong>de</strong>s da personagem em <strong>de</strong>senhar a giz figuras <strong>de</strong> pessoas<br />

na calçada. Neste caso, o episódio dá indícios do futuro do Professor<br />

que, no final do livro, torna-se um pintor famoso. O outro capítulo,<br />

“Alastrim”, conta da terrível doença que se abate sobre o grupo <strong>de</strong><br />

meninos, a bexiga negra, e o tratamento injusto dado aos doentes.<br />

Vem intercalada no capítulo a reprimenda que o padre José Pedro<br />

leva das autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas por ter-se <strong>de</strong>dicado às crianças.<br />

No último capítulo, “Destino”, quase que só um breve diálogo num<br />

bar, Pedro Bala começa a tomar consciência <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> mudar o<br />

<strong>de</strong>stino e superar a alienação em que as pessoas vivem em<br />

consequência do medo que têm <strong>de</strong> enfrentar a realida<strong>de</strong>:<br />

13


Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento <strong>de</strong><br />

copo no balcão. Um velho então disse:<br />

⎯ Ninguém po<strong>de</strong> mudar o <strong>de</strong>stino. É coisa feita lá em cima<br />

⎯ apontava o céu.<br />

Mas João <strong>de</strong> Adão falou <strong>de</strong> outra mesa:<br />

⎯ Um dia a gente muda o <strong>de</strong>stino dos pobres...<br />

Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorri<strong>de</strong>nte.<br />

Mas João Gran<strong>de</strong> e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do<br />

velho, que repetiu:<br />

⎯ Ninguém po<strong>de</strong> mudar, não. Está escrito lá em cima.<br />

⎯ Um dia a gente muda... ⎯ disse Pedro Bala, e todos<br />

olharam para o menino. (p. 152)<br />

SEGUNDA PARTE:<br />

Começa com a apresentação da personagem Dora. A<br />

menina per<strong>de</strong>u o pai e ficou sozinha no mundo com seu irmão <strong>de</strong><br />

seis anos.<br />

Entraram no trapiche meio <strong>de</strong>sconfiados. João Gran<strong>de</strong> arriou<br />

Zé Fuinha no chão, ficou parado, esperando que o Professor e Dora<br />

entrassem. Foram todos para o canto do Professor, que acen<strong>de</strong>u a<br />

vela. Os outros espiavam para o canto com surpresa. O cachorro do<br />

Sem-Pernas latiu.<br />

⎯ Gente nova... ⎯ murmurou o Gato, que ia sair.<br />

Gato andou até on<strong>de</strong> eles estavam:<br />

⎯ Quem é, Professor?<br />

⎯ A mãe e o pai morreu <strong>de</strong> bexiga. Tavam na rua, sem ter<br />

on<strong>de</strong> dormir. (p. 177)<br />

Comentário:<br />

Dora integra-se ao grupo. Professor, João Gran<strong>de</strong> e Pedro<br />

Bala a protegem. No grupo havia um código <strong>de</strong> honra, o que evitou<br />

que a violentassem. Ela cumpriu um papel <strong>de</strong> mãe, uma presença<br />

feminina, mas ao mesmo tempo, troca o vestido por uma calça e<br />

passa a participar das ativida<strong>de</strong>s dos meninos.<br />

Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela<br />

queria ser totalmente um dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>, o trocou por umas<br />

calças que <strong>de</strong>ram a Brandão numa casa da cida<strong>de</strong> alta. As calças<br />

tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a<br />

Dora. Também estavam gran<strong>de</strong>s para ela, teve que as cortar nas<br />

pernas para que <strong>de</strong>ssem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo<br />

14<br />

<strong>de</strong> todos, o vestido servia <strong>de</strong> blusa. Se não fosse a cabeleira loira e<br />

os seios nascentes, todos a po<strong>de</strong>riam tomar como um menino, um<br />

dos <strong>Capitães</strong> da <strong>Areia</strong>.<br />

No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na<br />

frente <strong>de</strong> Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar<br />

no chão <strong>de</strong> tanto rir. Por fim conseguiu dizer:<br />

⎯ Tu tá gozada...<br />

Ela ficou triste, Pedro Bala parou <strong>de</strong> rir.<br />

⎯ Não tá direito que vocês me dê <strong>de</strong> comer todo dia. Agora<br />

eu tomo parte no que vocês fizer.<br />

O assombro <strong>de</strong>le não teve limites:<br />

⎯ Tu quer dizer...<br />

Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.<br />

⎯... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...<br />

⎯ Isso mesmo ⎯ sua voz estava cheia <strong>de</strong> resolução.<br />

⎯ Tu endoidou...<br />

⎯ Não sei por quê. (p. 188)<br />

Nos capítulos seguintes, “Reformatório” e “ Orfanato”, o<br />

narrador trata das terríveis condições <strong>de</strong> vida nessas duas<br />

instituições. Presos num assalto frustrado a uma casa, Pedro Bala e<br />

Dora, sacrificando-se para que o grupo possa fugir, são recolhidos a<br />

um reformatório e a um orfanato, respectivamente. Resistindo <strong>de</strong><br />

forma heróica às torturas, o menino não <strong>de</strong>lata os companheiros, e<br />

por isso mesmo, passa alguns dias na solitária. Dora, por sua vez,<br />

não sendo “uma flor <strong>de</strong> estufa” e amando “o sol, a rua, a liberda<strong>de</strong>”,<br />

acaba adoecendo. Com a ajuda dos meninos, Pedro Bala e Dora<br />

conseguem fugir. O narrador fecha a segunda parte do livro com a<br />

morte e enterro <strong>de</strong> Dora, que, afinal, se entrega a Pedro Bala, em<br />

“Dora, esposa”. No último capítulo, em cena bastante poética, o<br />

narrador mostra o menino seguindo nas águas o corpo <strong>de</strong> Dora, que<br />

irá simbolicamente se transformar numa estrela do céu:<br />

Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi<br />

um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que<br />

Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu. Fora mais<br />

valente que todas mulheres, mais valente que Rosa Palmeirão,<br />

que Maria Cabaçu. Tão valente que antes <strong>de</strong> morrer, mesmo<br />

sendo uma menina, se <strong>de</strong>ra ao seu amor. Por isso virou uma<br />

estrela no céu. Uma estrela <strong>de</strong> longa cabeleira loira, uma estrela<br />

como nunca tivera nenhuma na noite <strong>de</strong> paz da Bahia. (p. 214)<br />

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