Rock, Sonho & Revolução - A Música Contando a ... - lumiarte.com
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<strong>Rock</strong>,<br />
<strong>Sonho</strong> &<br />
<strong>Revolução</strong>
Por que os anos 60?<br />
Os anos 60 foram o caldeirão onde se "cozinharam" as<br />
manifestações artísticas que deixaram marcas e reflexos<br />
até hoje -- o teatro, o cinema, a televisão, as artes<br />
plásticas, a moda, em todas essas áreas houve uma busca<br />
de saídas novas. E o rock foi a linha que costurou todas<br />
essas manifestações, a grande forma de expressão da<br />
década.<br />
O jovem do pós-guerra usava os cabelos curtos, um<br />
resquício ainda do corte militar de seus pais. As meninas<br />
usavam as saias rodadas, os vestidos godê. Com os Stones<br />
e Beatles, os cabelos dos homens cresceram e as saias das<br />
meninas subiu a barra acima do joelho quando Mary<br />
Quant lança a minissaia.<br />
A literatura, hibernando há décadas, renasce na<br />
América nos 60 <strong>com</strong> as publicações dos poetas e escritores<br />
beat. As artes plásticas ganham nova conotação <strong>com</strong> a<br />
pop-art de Andy Warhol e outros artistas. O teatro vai à<br />
rua <strong>com</strong> o Living Theatre. As universidades descobrem que<br />
o ensino precisa mudar e no mundo inteiro os estudantes<br />
saem às ruas em manifestações de reivindicação e protesto.<br />
Tudo embalado pelo rock. E o rock se mantém, antes de<br />
tudo, <strong>com</strong>o manifestação cultural e <strong>com</strong>portamental. Este<br />
livro tenta explicar um pouco de tudo isso.
<strong>Rock</strong> ,<br />
<strong>Sonho</strong><br />
&<br />
<strong>Revolução</strong><br />
A MÚSICA CONTANDO A HISTÓRIA DOS ANOS 60<br />
Luiz Carlos Lucena<br />
sampa, nov/2001<br />
luca_lucena@uol.<strong>com</strong>.br
Índice<br />
Introdução:<br />
Uma sinopse rápida 06<br />
Parte I<br />
1. Primeiro <strong>com</strong>passo 11<br />
2. Um clube detona a bomba 15<br />
3. Stones: rolam as pedras 19<br />
O som e os versos de uma geração 26<br />
4. Clapton: um deus desce do Olimpo 28<br />
5. Beck & Page: raízes novas 35<br />
6. Led Zeppelin: chumbo no rock 38<br />
7. Árvores vizinhas 43<br />
8. Hendrix: o deus negro da guitarra 45<br />
O rock dá o toque 49<br />
Parte II<br />
9. Ecos americanos 51<br />
10. Ventos novos na América 53<br />
11. Drogas e beats 56<br />
12. A antena parabólica de Dylan 59<br />
Ressonâncias 61<br />
Parte III<br />
13. O movimento híppie 65<br />
14. Underground, LSD e psicodelia 67<br />
15. Sem Destino, um filme síntese 72<br />
16. Morre o híppie, nascem os yuppies 75<br />
17. Os EUA dançam na guerra 77<br />
18. Os festivais 81<br />
4
Apêndice<br />
19. As mulheres no rock 85<br />
Janis: salve rainha! 85<br />
20. Mitos de passagem 89<br />
A dissonância do King Crimson 89<br />
O rock lisérgico do Pink Floyd 92<br />
21. Lou Reed: a por-art patrocina o rock 97<br />
Pos-fáscio<br />
O rock morreu? Viva o pós-rock! 101<br />
(o rock do novo milênio)<br />
5
Uma sinopse rápida<br />
O negro escravo lança nos campos de algodão da<br />
América seu grito primal, cantando seu banzo, sua tristeza e<br />
saudade da mãe África. O processo de aculturação e o<br />
contato <strong>com</strong> a tradição da harmonia européia vai moldando<br />
o grito em canção e nascem as work songs, o blues. Uma<br />
música simples, estruturada basicamente em cima de uma<br />
escala de doze <strong>com</strong>passos divididos em três partes iguais.<br />
Ao fim de casa frase, um tempo livre, preenchido por uma<br />
resposta instrumental. Para responder, o negro usa a gaita,<br />
instrumento fácil de carregar. E o violão.<br />
O fim da guerra da Secessão concede ao negro<br />
americano a liberdade nos campos e cidades e nas primeiras<br />
décadas deste século sua voz se expande. Após os anos 30,<br />
surgem os violões elétricos e a guitarra, e o negro já ocupa<br />
os guetos das cidades grandes <strong>com</strong> seus blues, cantando em<br />
bares e clubes barulhentos.<br />
<strong>Música</strong> intimista, para se sobrepor ao barulho o negro<br />
força o ritmo e grita ainda mais alto para ser ouvido. Da<br />
guitarra explora a escala rítmica nos mesmos 12 <strong>com</strong>passos<br />
e surge o rithm'blues, o blues urbano, eletrificado, mais<br />
rápido, sincopado. A música negra amplia seu público,<br />
deixa o campo, ganha espaço na cidade. Sai do gueto para<br />
um público maior.<br />
No início dos anos 50 alguns brancos se apoderam da<br />
energia dessa "música de negros", fundem os <strong>com</strong>passos do<br />
rithm'blues ao country, a música rural do "branco pobre", e<br />
ao western, a música dos cowboys do Oeste. Aparece o<br />
rock'n roll. E, mais uma vez, um negro mistura aquele ritmo<br />
novo ainda mais, quando toma Chicago de assalto,<br />
transpondo a escala rítmica do booggie wooggie do piano<br />
para os bordões da guitarra e respondendo <strong>com</strong> solos nas<br />
primas, as cordas finas, agudas. E a América inteira dança<br />
6
<strong>com</strong> Chuck Berry. Johnny Be Good, Oh! Carol, Roll Over<br />
Beethoven, os sempre clássicos balançam as cadeiras da<br />
juventude que <strong>com</strong>eça a usufruir as benesses do baby-boom<br />
no pós-guerra.<br />
Outros nomes marcantes da "escola de Chicago":<br />
Muddy Waters e Bo Diddley. Esse trio, principalmente<br />
Chuck Berry, será a grande inspiração no além mar, da<br />
juventude inglesa, quando ela se apropria da energia do<br />
rithm'blues e da escala quadrada do rock'n roll e cria na<br />
década de 60 o rock. <strong>Rock</strong> apenas, sem o <strong>com</strong>plemento. Os<br />
filhos da guerra detonam assim um novo Renascimento,<br />
<strong>com</strong> o mais importante movimento cultural das últimas<br />
décadas. Entre o rock'n roll e o rock, um denominador<br />
<strong>com</strong>um: a juventude branca assume a porção cultural<br />
reprimida do negro <strong>com</strong>o bandeira para suas reivindicações,<br />
para sua própria repressão em relação à sociedade. E a<br />
música passa a ser o fio condutor da história naquela<br />
década, conduzindo o <strong>com</strong>portamento, a estética, a cultura,<br />
as artes, a moda, influenciando e sendo influenciada, em<br />
um processo de autofagia e catarse, assimilação e explosão.<br />
Os anos 60 foram, portanto, o caldeirão onde se<br />
"cozinharam" as manifestações artísticas que deixaram<br />
marcas e reflexos até hoje -- o teatro, o cinema, a televisão,<br />
as artes plásticas, a moda, em todas essas áreas houve uma<br />
ebulição e uma busca de saídas novas. E o rock foi a linha<br />
que costurou todas essas manifestações, a grande forma de<br />
expressão da década.<br />
O jovem do pós-guerra usava os cabelos curtos, um<br />
resquício ainda do corte militar de seus pais. As meninas<br />
usavam as saias rodadas, os vestidos godê. Com os Stones e<br />
Beatles, os cabelos dos homens cresceram e as saias das<br />
meninas subiu a barra acima do joelho quando Mary Quant<br />
lança a minissaia em 62.<br />
7
A literatura, hibernando há décadas, renasce na<br />
América nos 60 <strong>com</strong> as publicações dos poetas e escritores<br />
beat. A própria indústria fonográfica, <strong>com</strong> os cofres cheios,<br />
financia novas publicações, incentivando de certa maneira o<br />
movimento underground, a contracultura, que vai gerar<br />
trabalhos importantes e fazer crescer revistas <strong>com</strong>o a<br />
Rolling Stones, a bíblia da música jovem. As artes plásticas<br />
ganham nova conotação <strong>com</strong> a pop-art de Andy Warhol e<br />
outros artistas. O teatro vai à rua <strong>com</strong> o Living Theatre. As<br />
universidades descobrem que o ensino precisa mudar e no<br />
mundo inteiro os estudantes saem às ruas em manifestações<br />
de reivindicação e protesto. Tudo embalado pelo rock.<br />
Este livro tenta explicar um pouco de tudo isso. O<br />
leitor não antenado, o jovem de hoje, deve se perguntar:<br />
mas por que voltar a falar dos anos 60, por que o rock?<br />
Primeiro porque não é possível entender o presente sem<br />
conhecer o passado. Ninguém pode se considerar moderno<br />
sem conhecer suas raízes, porque o conceito de<br />
modernidade implica necessariamente conhecer o passado e<br />
na música mais que nunca -- para entender o que é um rap,<br />
é necessário conhecer as suas raízes e o mesmo pode ser<br />
dito <strong>com</strong> relação às várias manifestações musicais que<br />
proliferaram nos últimos 20 anos: punk, new wave, heavymetal,<br />
trash, hardcore, e mais recentemente, até a música<br />
eletrônica, <strong>com</strong> a house, o techno e suas sub-variações.<br />
Os anos 60 representam o auge da criação, do<br />
experimentalismo e da consolidação do rock; os anos 70<br />
decretaram a sua morte (não esquecendo aqui a importância<br />
do movimento punk, é claro). Os 80 foram apáticos e no<br />
ano 2000 o rock, quase sepulto pelo reinado dos DJ's e suas<br />
pick-ups e samplers eletrônicos, volta <strong>com</strong> tudo quando<br />
esses mesmos moderninhos usuários dos <strong>com</strong>putadores<br />
descobrem a raiz pura do rock (nada mais rock do que<br />
Prodigy) <strong>com</strong>o base para suas criações pós-modernosas.<br />
8
Aliás, nesse final de milênio já nasceu um novo termo,<br />
vindo principalmente do experimentalismo de músicos<br />
alemães e ingleses, que já recebeu inclusive o nome de pósrock,<br />
onde as bases do rock sessentista, o velho power-trio<br />
guitarra-baixo-bateria serve agora para o sampler e fusões<br />
<strong>com</strong> a mais avançada tecnologia eletrônica.<br />
O rock se mantém, antes de tudo, <strong>com</strong>o manifestação<br />
cultural e <strong>com</strong>portamental. No entanto a visão hoje é outra.<br />
Para o português Miguel Esteves Cardoso, em seus<br />
<strong>com</strong>entários no final do livro "Popmusic-rock", dos<br />
franceses Philippe Daufouy e Jean-Pierre Sarton, "a partir<br />
de Woodstock, o idealismo puro de uma geração de "filhos<br />
das flores" degenerou para misticismos estéreis, irrealidades<br />
alucinógenas e uma profunda e debilitante apatia coletiva<br />
que passou a ser a ressaca adiada das ilusões de maio de 68.<br />
A banda sonora dessa apatia, ou seja, o rock, que o refletiu<br />
e depois adensou, abandonaria a simplicidade musical e a<br />
relevância sócio-política dos anos 60 para se perder num<br />
labirinto fedorento de <strong>com</strong>plexidade e de monotonia".<br />
Mas o sonho grupal, a viagem coletiva, embalada<br />
muitas vezes pelo ritual de passar o baseado ou dividir o<br />
microponto de LSD, deixaram marcas profundas que é<br />
impossível esquecer. Esse livro conta a trajetória de um<br />
movimento que <strong>com</strong>eça no início dos anos 60 e, para mim,<br />
agoniza em 69 no festival de Woodstock e recebe o tiro<br />
final no festival que os Stones realizam em Altamont, no<br />
início de dezembro de 70. Depois disso, <strong>com</strong>o disse John<br />
Lennon, the dream is over, o sonho acabou e quem não<br />
dormiu no sleeping bag não sonhou. Agora vamos retomar<br />
esse sleepin bag, subir num magic carpet ride, viajar num<br />
submarino amarelo e procurar recuperar o que houve de<br />
importante na memória daqueles anos para dar um salto<br />
para o futuro, para o moderno.<br />
9
O sonho acabou, nossos heróis não existem mais. Che<br />
Guevara, talvez o personagem que mais possa exemplificar<br />
o sonho de liberdade daqueles anos 60, hoje estampando<br />
camisetas do Movimento dos Sem Terra e sempre em pauta<br />
no guarda-roupa dos jovens rebeldes modernos, morreu<br />
assassinado pelo exército da Bolívia em outubro de 67. Em<br />
homenanagem a ele a John Lennon, Hendrix, Janis, Briam<br />
Jones, Jim Morrison, Duane Allman, Kurt Cobain, Sid<br />
Vicius, Júlio Barroso, Keith Moon, Renato Russo, Mama<br />
Cass, Cazuza, Raul Seixas, Cartola, Moreira da Silva e<br />
todos que se foram, saravá! Let's dreaming again!<br />
10
1. Primeiro Compasso<br />
Como <strong>com</strong>eçou a acontecer todos os dias, o clube<br />
lotava para ver o show <strong>com</strong>eçar. No palco aqueles músicos<br />
sujos, mal vestidos, cabelos mais <strong>com</strong>pridos do que<br />
normalmente se via naquela swing London de l962. A<br />
banda tocava um cover de Little Richard, esquentando a<br />
platéia para a entrada daquele vocalista magro, de boca<br />
grande, lábios grossos, cabelos rebeldes, ensebados, um<br />
misto de contestação e raiva no olhar e um inconfundível<br />
sotaque cockney.<br />
Entre balcão e mesas passavam gente, copos e<br />
cigarros, <strong>com</strong>entários e brincadeiras daquele grupo que<br />
arquitetava sem querer o movimento que iria deflagrar uma<br />
revolução ainda maior do que aquela que havia nascido no<br />
baby-boom do pós guerra americano <strong>com</strong> o som da fúria e<br />
raça de Berry, Richards, Lewis e Presley.<br />
O Ealing Club reunia a nata do nada em tudo que<br />
rolava na música naquele <strong>com</strong>eço dos anos 60. John Mayal,<br />
Jeff Beck, Jimmy Page, Eric Clapton, Keith Richards, Brian<br />
Jones..., todos eles circulavam ali, bebendo e trocando fusas<br />
e colcheias enquanto Mick Jagger não aparecia. E de<br />
repente ele surge do fundo do palco, segura o velho<br />
microfone e solta um clássico de Chuck. Podia ser qualquer<br />
um, Oh! Carol, Come On, mas sempre, qualquer que fosse,<br />
vinha carregado de uma nova energia que fluía naquele<br />
grupo de músicos que escreveria a segunda fase da história<br />
da música jovem mundial. Uma mistura do rock básico de<br />
quatro acordes de Chuck Berry <strong>com</strong> toques "sampleados"<br />
dos bluseiros; um ritmo forte, uma guitarra pesada, solos<br />
cortantes, primeiras brincadeiras <strong>com</strong> a distorção e um<br />
estilo forte e marcante de cantar.<br />
Nascia ali, em Londres, a revolução que iria<br />
influenciar o mundo da moda, dos costumes, que iria mudar<br />
11
<strong>com</strong>portamentos e regras de conduta, que provocaria<br />
rupturas e saídas novas na <strong>com</strong>unicação, na mídia, nas<br />
artes. Um movimento que influencia <strong>com</strong> sua energia a<br />
maneira de ver de todas as gerações que dali partiam no<br />
expresso do futuro. Foi assim que tudo <strong>com</strong>eçou!<br />
A Inglaterra dos anos 50 vivia o processo de<br />
recuperação do pós-guerra sob o ideal de seu grande herói,<br />
Sir Winston Churchil. O clima na grande ilha era de alívio,<br />
de um lado, e sacrifício, ainda, de outro. A guerra acabou<br />
em 45, mas o racionamento de alimentos só iria terminar<br />
em 54, nove anos depois. Nesse panorama, nasceriam as<br />
bases do movimento que deflagra alguns anos mais tarde o<br />
rock. E que transforma a década de 60 nos anos mais<br />
criativos da música jovem em todos os tempos.<br />
A Inglaterra do pós-guerra seguia a tradição das leis<br />
econômicas, reativando sua abalada economia e seu<br />
<strong>com</strong>ércio <strong>com</strong> o mundo. E reativar o <strong>com</strong>ércio significava<br />
também reativar o intercâmbio cultural. Mas as inovações<br />
chegam atrasadas. A programação de rádio é controlada<br />
pela BBC e um acordo <strong>com</strong> a indústria fonográfica havia<br />
criado uma espécie de "reserva de mercado" para a<br />
produção local, <strong>com</strong> pouco espaço para o som que vinha do<br />
exterior. Somente depois da metade anos 50, a juventude<br />
inglesa <strong>com</strong>eça a descobrir nos discos os novos ritmos que<br />
vinham do outro lado do oceano.<br />
Nos clubes predominavam conjuntos tradicionais que<br />
imitavam as bandas de dixieland, muito poucos tentando<br />
alguma incursão no blues, em covers de Muddy Waters,<br />
John Lee Hooker e outros "étnicos". Na realidade, a<br />
Inglaterra não tem nenhuma tradição na música popular,<br />
tendo <strong>com</strong>o marca cultural as baladas folclóricas do século<br />
XIX. Nos anos 50 haviam surgido alguns artistas ingleses<br />
cantando rock'n roll, nada porém significativo.<br />
12
A conjuntura política, cultural e social da Inglaterra<br />
naqueles anos 50 foi, porém, o fator mais importante para a<br />
aceitação entusiasmada do rock pela juventude. Winston<br />
Churchill renunciou ao cargo de primeiro ministro em<br />
1955, substituído por Anthony Eden, porém deixou as bases<br />
que motivaram a revolução, <strong>com</strong> a democratização do<br />
ensino no país, obtida pelos trabalhistas britânicos depois<br />
da Guerra.<br />
Luiz Carlos Maciel, uma das mais lúcidas cabeças da<br />
crítica brasileira desse período, dá o toque: "Com a<br />
tendência socializante que se impôs, dentro das novas<br />
condições sociais e econômicas da Inglaterra, a Nova<br />
Legislação Inglesa sobre Educação colocou o sistema<br />
educacional britânico, altamente sofisticado e aristocrático -<br />
- e até então privilégio dos jovens das classes superiores --<br />
ao alcance das classes sociais mais baixas. O choque<br />
cultural provocado por esse encontro inesperado entre<br />
jovens modestos e humildes e a cultura ocidental, no que<br />
tinha de mais avançado, passou a agitar o tradicionalmente<br />
tranquilo panorama cultural britânico, a partir dos anos<br />
cinquenta, pelo menos".<br />
Dá para perceber o nível de contradição e choque.<br />
Pobres, porém muito bem instruídos (qualquer guitarrista<br />
de rock inglês frequentou, no mínimo, uma escola de artes),<br />
os jovens adolescentes proletários <strong>com</strong>eçaram a observar os<br />
"podres" da terra da rainha, as injustiças sociais, o<br />
excessivo conservadorismo. Vagando por Londres, os<br />
teddy-boys e rockers, blusões de couro e muita vontade<br />
para agitar, acharam na música a válvula de escape e o<br />
canal para suas reivindicações. Afinal, o que pode fazer um<br />
garoto a não ser tocar em uma banda de rock'n roll. Essa<br />
frase de uma música dos Stones sintetiza tudo isso.<br />
Essa conjuntura explica também porque houve tantas<br />
diferenças entre o movimento inglês <strong>com</strong> o renascimento<br />
13
do rock -- que colocou a música <strong>com</strong>o veículo principal de<br />
todas suas reivindicações -- e as manifestações<br />
principalmente políticas ocorridas nos Estados Unidos e em<br />
todas as partes do mundo. Ao jovem inglês, a música serviu<br />
para canalizar todas as suas angústias e necessidades de<br />
expressão. O jovem americano saiu as ruas, brigou nas<br />
universidades, caiu fora do sistema para sacar o que era<br />
necessário modificar em sua vida, e, grande pena, cai nos<br />
anos 80 no mais retrógrado conservadorismo. Mesmo<br />
assim, a música também foi a grande ferramenta de apoio<br />
do americano na década de 60.<br />
Escreve novamente Luiz Carlos Maciel, na revista<br />
<strong>Rock</strong>, a História e a Glória: "Os jovens rebeldes (ingleses)<br />
não estavam organizando diretórios acadêmicos, uniões,<br />
federações, etc., nem se ocupavam de política, nada disso:<br />
antes, haviam simplesmente abandonado as aulas e estavam<br />
nas ruas, cantando ROCK." Então vamos ver <strong>com</strong>o as<br />
coisas andavam no país que ia gerar os Stones!<br />
14
2. Um clube detona a bomba<br />
O rock'n roll se infiltra na Inglaterra a partir de 1956.<br />
A crítica musical "apadrinha" o novo estilo junto <strong>com</strong> o<br />
rithm'm blues, apresentando à meninada o rock de Chuck<br />
Berry e Bo Diddley e o blues elétrico de Robert Johnson e<br />
turma. Nesse ano, contudo, um cantor faz enorme sucesso<br />
<strong>com</strong> uma música de Leadbelly (blueseiro americano,<br />
famoso pelo trabalho que desenvolveu dentro das prisões e<br />
morto em 1949), transformando <strong>Rock</strong> Island Line em um<br />
hit do ano, só que <strong>com</strong> uma roupagem estranha, um<br />
coquetel insular que misturava o folk europeu ao blues,<br />
criando a onda que passou a ser chamada skiffle. O ritmo<br />
pegou de tal maneira que Big Bill Bronzi teve que se<br />
apresentar em Londres apenas de violão, sem seu grupo.<br />
Um ano depois, porém, Muddy Waters choca o público<br />
londrino, usando uma guitarra elétrica e a voz rascante. A<br />
água turva dava o toque.<br />
A garotada recebe de forma estranha aquele som. Os<br />
meninos das escolas de arte e o bando de adolescentes que<br />
<strong>com</strong>eçava a se apegar à guitarra fica pasmada. Aquilo era o<br />
máximo. O líder de um grupo que se apresentava nos clubes<br />
percebeu a energia latente na meninada, capitalizou e<br />
divulgou a novidade. Seu nome: Alexis Korner.<br />
Korner dividia <strong>com</strong> outro músico, John Mayal, a<br />
paixão pelo blues. Tocava <strong>com</strong> o Blues Incorporated.<br />
Mayal "dava aulas" para uma meninada que <strong>com</strong>eçava a<br />
trocar as salas de artes pelos acordes da guitarra. Entre seus<br />
alunos, alguns garotos <strong>com</strong> a mesma paixão e nomes que<br />
ficariam famosos: Eric Clapton, Jeff Beck.<br />
No final dos 50 Korner abriu o London Blues e o<br />
Barrelhouse Club, no Roundhouse, pub do centro de<br />
Londres. Mas sua música não atraia o público ligado na<br />
mania dançante do skiffle e ele encerrou essa primeira<br />
15
aventura. Primeira, porque, logo depois, em março de 1962,<br />
abriu outra casa, o Ealing Club, <strong>com</strong> o mesmo som mas na<br />
época exata. A principal atração da casa era seu grupo e<br />
músicos convidados.<br />
Antes do Ealing, Alexis Korner dividia <strong>com</strong> bandas de<br />
jazz os poucos espaços em que podia se apresentar <strong>com</strong> seu<br />
Blues Incorporeted. Com ele tocavam Ciryl Davies, na<br />
harmônica, Keith Scoot, piano, Andy Hoogenboom, baixo,<br />
e um baterista que iria ficar muito famoso: Charlie Watts.<br />
Korner percebeu que blues e rithm'blues agradavam e<br />
decidiu abrir o Ealing. A estréia foi no dia 17 de março de<br />
1962. Foi uma noite histórica.<br />
O momento era o certo, por uma série de<br />
coincidências. A meninada carecia de alguma coisa nova e<br />
havia uma inflação de músicos jovens que formava aquela<br />
audiência em desenvolvimento. Assim, Korner se viu<br />
cercado por um exército de pretendentes a uma vaga no seu<br />
grupo; outros suplicavam apenas por um espaço no clube<br />
para mostrar seu trabalho. Era <strong>com</strong>um as noites do Ealing<br />
Club serem regadas <strong>com</strong> drinks e papos envolvendo nomes<br />
<strong>com</strong>o Mick Jagger, John Paul Jones, Long John Baldry,<br />
Eric Burdon, Dick Heckstall-Smith, Graham Bond, Jack<br />
Bruce, Ginger Baker, Brian Jones, Keith Richards, John<br />
MacLaughlin, John Surmann, Davey Graham e muitos<br />
outros.<br />
A casa de Korner atraía todos os grupos de Londres,<br />
dominando o cenário da noite onde até então o espaço era<br />
preenchido pelos grupos do jazz tradicional. E ainda em 62<br />
Korner tocou <strong>com</strong> Jack Bruce e Ginger Baker (baixo e<br />
bateria no futuro Cream) e deixou subir ao palco aquele<br />
magricela arrogante, de sotaque enrolado e presença já<br />
mágica <strong>com</strong>o o nome Mick Jagger. Entre os admiradores de<br />
Korner havia um guitarrista que cantava em pubs de bairro<br />
em troca de copos de cerveja e que, ocasionalmente,<br />
16
substituía Mick no palco, "quando ele estava <strong>com</strong> dor de<br />
garganta": Eric Clapton.<br />
Esses dois formam nesse início dos sessenta a árvore<br />
genealógica do rock britânico. John Mayal e Alexis Korner<br />
seriam as raízes. Mick Jagger e Erick Clapton formariam o<br />
tronco de onde floresceriam todos os grandes grupos do<br />
início dessa revolução. O solo de guitarra passa a ganhar<br />
importância no novo som e todos os grandes grupos nascem<br />
e evoluem em torno de um grande guitarrista. Enquanto<br />
isso, num clube chamado Cavern, em Hamburgo,<br />
Alemanha, quatro outros ingleses agrediam e eram<br />
agredidos pelo público <strong>com</strong> os covers de Chuck Berry. Um<br />
grupo de quatro rapazes de Liverpool que iria estourar na<br />
parada aquele ano <strong>com</strong> seu primeiro <strong>com</strong>pacto e um nome<br />
sonoro: The Beatles.<br />
O estopim estava pronto. Bastava atear fogo. Do<br />
Ealing Club aqueles músicos partiram para o disco. Beatles<br />
de um lado, Stones de outro, Kinks, Animals... Por onde<br />
<strong>com</strong>eçar? Os beatlemaníacos que me perdoem, mas esse<br />
privilégio não será deles. Primeiro porque os Beatles<br />
tomariam todo esse livro. Depois porque a energia que<br />
pulsava naquele movimento e que iria determinar os<br />
caminhos da música nos anos 60 não estava em Paul,<br />
George, Pete Best (o baterista que foi substituído por<br />
Ringo). Estava em John, latente, contestatória <strong>com</strong>o foi sua<br />
carreira solo. Mas estava muito mais nos Stones, em<br />
Clapton.<br />
Os Beatles enquanto grupo existiram antes de gravar<br />
seus primeiros discos. Depois se transformaram em<br />
excelentes músicos de estúdio, <strong>com</strong> gravações lindas,<br />
perfeitas, discos antológicos, porém, cercados por uma<br />
produção grandiloquente de orquestrações e músicos<br />
convidados que quase nunca apareceram nos créditos das<br />
capas. Os Beatles do Cavern Club não são os Beatles de Let<br />
17
it Be. A revolução de Sargent Pepper's foi o fim porque<br />
teria que ser assim, <strong>com</strong> um disco revolucionário porém<br />
não um disco de puro rock.<br />
Os Beatles são a atitude posada. Os Stones o<br />
<strong>com</strong>portamento transgressivo natural. Os Beatles a música<br />
de estúdio. Os Stones o rock de garagem, puro, que deixa<br />
filhos -- Vernon Reid, o satânico guitarrista do ex-Living<br />
Colour, simbiose de Jimmy Hendrix e Keith Richards,<br />
Steve Ray Vaugham, o mestre do blues pulsante da<br />
Califórnia, os grunges de Seatle. No Brasil, Roberto Frejat<br />
e o Barao Vermelho. Os Beatles, ao contrário, deixaram<br />
apenas imitadores. Por isso Stones e Clapton merecem abrir<br />
esta conversa. Afinal, <strong>com</strong>o já dissemos, eles formam o<br />
tronco da árvore do rock inglês. E numa árvore, cada<br />
macaco deve ocupar seu galho.<br />
18
3. Stones: rolam as pedras<br />
"If I could stick my pen in my heart<br />
I'd spill it all over the stage<br />
Would it satisfy ya or would is slide on by ya...<br />
... I know, it's only rock'n roll but I like it"<br />
Jagger/Richards<br />
A maior banda de rock do mundo nasceu em um<br />
subúrbio de Londres, em um "trabalho de parto" que<br />
misturou coincidências felizes, momento adequado e três<br />
músicos excepcionais: Mick Jagger, Keith Richards e Brian<br />
Jones.<br />
Michael Philip Jagger era o filho de Joseph Jagger, um<br />
professor de educação física que queria o filho atleta, mas o<br />
coração do menino sempre balançou no ritmo do blues.<br />
Keith Richards morava na rua do lado, no mesmo subúrbio<br />
de Dartford. O pai não esperava nada daquele menino<br />
franzino, mas o avô Augustus Theodore Dupree, antigo<br />
saxofonista, guitarrista e líder de banda nos anos 30, via<br />
refletida no neto sua paixão pela música e deu ao pequeno<br />
Keith um saxofone. Porém o instrumento era muito pesado,<br />
por isso o avô ficava tocando tudo que sabia para o neto<br />
atento e foi quem ensinou os primeiros acordes na guitarra<br />
Spanish Roseth que a mãe deu a Keith quando ele fez<br />
quinze anos.<br />
No outro lado de Londres, Brian só trazia problemas<br />
para a família Jones <strong>com</strong> sua beleza pura e inocente e uma<br />
rebeldia prematura: aos 13 anos foi enviado para um<br />
internato para que pudesse ser melhor controlado. Brian,<br />
contudo, tinha um talento nato: aos 11 anos já tocava piano,<br />
aos 12 era clarinetista na banda juvenil.<br />
Jagger, de família mais abastada, tinha os discos que<br />
Keith só conseguia ouvir quando participava das reunioões<br />
dos teddy-boys de seu conjunto habitacional -- um grupo<br />
19
nada convencional, tipo gang de arruaceiros. Com eles<br />
Keith delirava ouvindo aquele negro que sempre foi seu<br />
guru, sua inspiração (Chuck Berry, é claro), repetindo na<br />
guitarra os solos rascantes de uma escala quase sempre<br />
igual mas que cada vez soava diferente. Nessa época a BBC<br />
controlava a programação das rádios na Inglaterra e ouviase<br />
apenas um pouco de Elvis (que estava no exército), Jerry<br />
Lewis (já pirado, o velho Killer) e Little Richards. Eddie<br />
Cockram e Buddy Holly haviam morrido. Chuck Berry<br />
estava na cadeia.<br />
Um dia Keith entra no trem a caminho de Londres e<br />
encontra Mick a caminho da escola (ele estudava economia,<br />
acreditem!). Mick estava <strong>com</strong> dois discos -- <strong>Rock</strong>in' at the<br />
Hops, de Chuck Berry, e The Best of Muddy Waters. Depois<br />
desse dia nunca mais se largaram. Agora só interessava aos<br />
dois uma coisa: fazer música. Encontram outro guitarrista,<br />
Dick Taylor, e passam os dias ensaiando.<br />
No Ealing Club, Alexis Korner é dono do show <strong>com</strong><br />
seu Blues Incorporated, onde toca um baterista do Blues for<br />
Five, Charlie Watts. No dia em que os Stones dividem o<br />
palco <strong>com</strong> o Blues for Five Charlie desiste do salário e das<br />
roupas elegantes que usava e entra na nova banda. Brian<br />
Jones um dia foi apresentado por Korner e tocou uma slide<br />
guitar <strong>com</strong>o só ele sabia tocar. Mick e Keith o convidaram<br />
imediatamente e ele aceitou mais rápido ainda entrar na<br />
nova banda, levando a dupla de "bons meninos" à perdição<br />
total: convenceu os dois a sair de casa, alugaram um<br />
apartamento conjugado e foram morar juntos. Vivem de<br />
pequenos furtos nos supermercados, de vender garrafas e<br />
jornais. O baixista que entrou para <strong>com</strong>pletar o grupo foi<br />
apresentado por um baterista que os Stones experimentaram<br />
antes de Charlie entrar no grupo. Seu nome era Bill<br />
Wyman, outro precoce: cantava no coral da igreja e batia<br />
nas teclas do piano aos 4 anos.<br />
20
Os primeiros shows foram no Bricklayer"s Arms, em<br />
62. Depois passam a tocar no Marquee, no próprio Ealing<br />
Club e no Crawdaddy. Não têm dinheiro para <strong>com</strong>prar as<br />
roupas bonitas dos mods, não têm nenhuma afinidade <strong>com</strong><br />
o <strong>com</strong>portamento burguês tradicional: são a irreverência e o<br />
ódio, a contestação e a briga <strong>com</strong> o sistema, sujos, malditos.<br />
As primeiras capas dos discos dos Stones mostram <strong>com</strong>o<br />
procuravam parecer "feios". Uma postura rock que mantêm<br />
na música que fazem até hoje.<br />
Bem, tocar no club da moda não era lá grande coisa,<br />
porém ninguém queria investir naquele bando de mal<br />
encarados. Foi aí que surgiu o anjo da guarda da banda, um<br />
garotão de 19 anos chamado Andrew Loog Oldham, sem<br />
dinheiro <strong>com</strong>o eles, sem mentalidade e sem meios de<br />
investir em uma imagem para o grupo. Uma paixão,<br />
contudo, o unia aquelas pedras rolantes selvagens: a<br />
adoração pelo blues e pelo rock'n roll. Sem ter o que perder,<br />
radicalizou, incentivando o grupo a ser, cada vez mais, um<br />
bando rebelde e inconformado que não gostava de cortar os<br />
cabelos nem usar roupas bonitinhas. Eles eram totalmente o<br />
contrário de grupos <strong>com</strong>o os Kinks, Animals ou Beatles,<br />
que se apresentavam <strong>com</strong> terninhos e jaquetas de babados<br />
<strong>com</strong>o uniforme.<br />
Oldham também não tinha dinheiro para alugar<br />
estúdios caros, daí o som áspero e contundente que<br />
conseguiu nas primeiras gravações. O primeiro <strong>com</strong>pacto<br />
dos Stones trazia uma música de Chuck Berry, é claro:<br />
Come On. Era o ano de 1963. Depois veio Not Fade Away<br />
e a excursão pelos Estados Unidos. Mas Jagger e Richards<br />
ainda burilavam aquelas que seriam as suas primeiras<br />
grandes obras primas, lançadas nos dois anos seguintes,<br />
<strong>com</strong>o o sempre clássico Satisfaction. Daí pra frente<br />
produziriam o repertório que os consagrou <strong>com</strong>o a maior<br />
banda de rock do mundo.<br />
21
Curiosidades...<br />
- O termo rithm'blues, a base dos Stones, foi<br />
"oficializado" em 1949, quando a revista Billboard o<br />
utilizou na sua lista de hits, para classificar alguns músicos<br />
que <strong>com</strong>eçavam a ganhar espaço nas paradas.<br />
- Beatles e Stones nunca foram inimigos. Muito pelo<br />
contrário. Mick Jagger assistiu a gravação de Sargent<br />
Peppers e uma foto histórica registra-o sentado em frente a<br />
Paul, que dirige uma orquestra de 40 músicos. Aliás, a<br />
primeira música de sucesso dos Stones, I Wanna Be Your<br />
Man, é de Lennon e McCartney. A lenda (pode ser real) diz<br />
que depois de assistir um show dos Stones, Mick chegou<br />
até Lennon e pediu uma música. Os dois Beatles saíram<br />
para um canto e logo depois entregavam a Jagger a letra. Aí<br />
ele percebeu que, se Lennon e Paul faziam aquilo assim tão<br />
rápido, porque ele também não podia escrever suas próprias<br />
canções?<br />
- Mais Beatles na história dos Stones: Mick fez parte<br />
do coral em All You Need is Love. Brian Jones toca sax na<br />
música que saiu no <strong>com</strong>pacto de Let it Be (You Know my<br />
Name).<br />
- Existe um disco pirata chamado The Beatles and The<br />
Rolling Stones at the Rarest. When Two Legends Collide -<br />
The Beatles and The Stones, é um pirata confuso, mas<br />
mostra os dois grupos juntos. O resultado dizem que é bom.<br />
- Agora só Stones: Mick Jagger papou a primeira<br />
mulher de Brian Jones. Keith <strong>com</strong>eu a segunda e ficou <strong>com</strong><br />
ela. O caso <strong>com</strong> Mick aconteceu no início da formação da<br />
banda, quando Brian morava sozinho <strong>com</strong> uma garota e o<br />
filhinho (antes de morar <strong>com</strong> Keith e Mick). Mick foi até o<br />
apartamento procurar Brian e ele não estava. Transou <strong>com</strong> a<br />
garota (disse que estava bêbado). O caso <strong>com</strong> Keith<br />
aconteceu em Marrakesh, quando todos "viajavam" <strong>com</strong><br />
22
ácido. Brian tinha levado a namorada, a atriz Anita<br />
Pallenberg. Keith diz que quando a situação <strong>com</strong>eçou a<br />
ficar pesada fugiu <strong>com</strong> Anita para Tanger. Marlon Richards<br />
é filho de Anita.<br />
- Bem, não foi por isso, sem dúvida, que Brian se<br />
suicidou. Entre eles muita gente <strong>com</strong>eu muita gente. Angie<br />
Bowie, por exemplo, depois que terminou o acordo que<br />
manteve por dez anos <strong>com</strong> o marido, David Bowie, tempo<br />
pelo qual nenhum poderia revelar os segredos do outro,<br />
abriu a boca e falou alto e em bom som: Jagger <strong>com</strong>eu<br />
Bowie. Ou Bowie <strong>com</strong>eu Jagger, não importa. Os dois<br />
transaram, e isso é um fato. Estorinha ou lenda, só os dois<br />
sabem a verdade. Mas nunca fizeram nenhum esforço pra<br />
desmentir. Lembrando: a música Angie dos Stones, Mick<br />
fez especialmente pra mulher de Bowie. Será que ele<br />
também não traçou a moça?<br />
- Outra lembrança: o nome de Bowie é David Jones, e<br />
ele assumiu o sobrenome Bowie depois que foi ferido <strong>com</strong><br />
uma faca que tem esse nome e ganhou aquele olho<br />
diferente. Bowie tem um olho verde e outro azul!!!<br />
- Mais estórias dos Stones e essa é bem real e quem<br />
quiser conferir pode assistir o filme. Aconteceu durante a<br />
excursão americana dos Stones em 70. Jagger havia<br />
passado um ano de cão, <strong>com</strong> a morte de Brian e o final da<br />
relação que mantinha <strong>com</strong> Mariane Faithfull. Mesmo assim<br />
não conteve sua megalomania, agora que era o líder<br />
absoluto dos Stones, e resolveu encerrar a excursão <strong>com</strong> um<br />
grande concerto, grátis. O show foi montado às pressas, no<br />
estacionamento da pista de corrida de Altamont, na<br />
Califórnia, no dia 6 de dezembro. E se transformou em uma<br />
das maiores tragédias do rock. Contratados (isso mesmo),<br />
contratados <strong>com</strong>o seguranças do espetáculo, os Hell's<br />
Angels, o grupo de motoqueiros rebeldes que apavoravam<br />
as estradas dos EUA, assassinaram um negro na frente do<br />
23
palco e dos atônitos Stones. Naquele dia morreriam quatro<br />
pessoas, o que transformou Altamont em um triste marco<br />
na história do rock e um divisor de águas na cultura jovem<br />
(este livro, aliás, deve acabar em Altamont). Este show está<br />
registrado no filme Gimme Shelter, que vez em quando<br />
pode ser visto nos circuitos alternativos do cinema. Jagger<br />
cantava Under My Thumb.<br />
- l969 seria um ano particular na vida dos Stones, o<br />
ano das tragégias. Em junho, depois de muita disputa entre<br />
Jagger e Richards, de um lado, e Brian Jones, de outro (para<br />
ver quem detinha a liderança do grupo), Jones, mais frágil,<br />
anunciou que deixaria o grupo. No seu lugar entrou<br />
imediatamente um garoto prodígio da guitarra, "aluno" de<br />
John Mayal e que também deixaria sua marca na passagem<br />
breve pelo grupo. O nome do garoto era Mick Taylor, loiro<br />
<strong>com</strong>o Brian Jones mas sem o carisma de anjo caído do<br />
genial suicida. Brian Jones não era apenas um grande<br />
músico e um arranjador inspirado: era um elemento básico<br />
nos Stones <strong>com</strong> sua figura angelical e desprotegida, o<br />
contraponto sexual e ambíguo de Jagger. Taylor entrou e<br />
um mês depois Brian Jones foi encontrado morto, na<br />
piscina de sua mansão em Sussex. Os Stones estavam<br />
ensaiando para a apresentação oficial de Mick Taylor no<br />
grande concerto grátis que estava programado para o Hyde<br />
Park de Londres. Decidiram então manter a data e mudar o<br />
objetivo do show: agora era um show em homenagem<br />
póstuma a Brian Jones. Nesse dia dois grupos arrasaram<br />
antes da apresentaçaõ dos Stones, sendo lançados para o<br />
mundo: o Family, que pouca gente conhece, e o King<br />
Crimson, este sim, o mega grupo do mega guitarrista<br />
Robert Fripp, um dos "dissonantes" do rock de quem<br />
falaremos adiante. No meio do show, Mick Jagger, todo de<br />
branco, declamou um poema de Shelley em homenagem a<br />
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Brian; "Ele não dorme/ele não morreu/apenas acordou do<br />
sonho da vida"<br />
- Mais estórias: em 1965 os Stones são multados<br />
porque urinam em um posto de gasolina. Em 66 processam<br />
14 hotéis de Nova York que se recusaram hospedá-los. E é<br />
desse ano a primeira prisão de Jagger, Brian e Richards por<br />
uso de drogas.<br />
- Uma mais pesada: dizem que Keith Richard fez duas<br />
transfusões totais de sangue para se livrar do vício da<br />
heroina. Bom, hoje parece que prefere ninfetas e o velho<br />
bourbon Jack Daniels.<br />
- Por falar em ninfetas, vocês sabiam que Richards<br />
chegou a casar <strong>com</strong> a filha de Patty Smith, na época, l989l990,<br />
<strong>com</strong> 18 anos e ele <strong>com</strong> quase 50. E o mais<br />
interessante: seu filho namorava a própria Patty Smith.<br />
- Uma de Mick Taylor: aquele solo em slide guitar<br />
maravilhoso de Love in Vain (clássico de Robert Johnson) é<br />
dele.<br />
- Uma de Charlie Watts: em nova York o velho Charlie<br />
frequentava um clube de jazz e ficou tão apaixonado pelo<br />
som do grupo que reuniu os músicos e gravou o álbum<br />
Charlie Watts Orquestra, <strong>com</strong> a banda de músicos e ele na<br />
bateria. Uma delícia. Foi programado um show da banda no<br />
Brasil, cancelado no final por falta de público. No último<br />
show dos Stones no Brasil, em 98, se Charlie tinha algum<br />
resquício de mágoa em relação ao Brasil, deve ter perdido,<br />
porque ele foi o mais aplaudido dos Stones, em todos os<br />
shows.<br />
- Ron Wood entrou no lugar de Mick Taylor em 75,<br />
vindo do Faces (grupo de Rod Stewart). Antes tinha tocado<br />
baixo no Jeff Beck Group. O novo Stone foi batizado <strong>com</strong><br />
um show ao vivo nas ruas de Nova York.<br />
- Na sua primeira excursão os Stones dividiram o palco<br />
<strong>com</strong> Little Richards, Bo Diddley e os Everly Brothers.<br />
25
- Andrew Oldham, quando percebeu que os Stones<br />
tinham que gravar músicas inéditas e deixar de lado os<br />
covers, trancou Mick e Keith na cozinha e ordenou: só<br />
saem quando tiverem uma música pronta. O resultado foi<br />
As Tears go By.<br />
- Satisfaction nasceu de um sonho de Richards. Ele<br />
dormia <strong>com</strong> a guitarra e um gravador ao lado da cama e<br />
lembra que acordou na madrugada, ligou o gravador e<br />
gravou alguma coisa. Quando acordou tinha trinta segundo<br />
do mais letal clássico do rock, <strong>com</strong> uns acordes de guitarra<br />
e a frase: I cant get no...Satisfation<br />
- Quando ainda era bebê de colo, a mãe de Richards o<br />
levou para fazer <strong>com</strong>pras em Dartford. Quando voltaram, a<br />
casa em que moravam tinha sido destruída por uma bomba<br />
alemã.<br />
- O primeiro sucesso real dos Stones, I Wanna be Your<br />
Man, adivinha de quem é? Da dupla Lennon e McCartney.<br />
O som e os versos de uma geração<br />
Por que os Stones são o que são e continuam na estrada<br />
até hoje, quarenta anos depois, <strong>com</strong> a mesma energia,<br />
atraindo uma platéia de adolescentes, homens maduros,<br />
velhos híppies. Bem, sem grandes divagações, a resposta é<br />
simples: eles encarnaram em um determinado momento os<br />
conflitos de toda uma geração, colocaram no caldeirão<br />
alquimista do rock energia, contestação, grandes canções,<br />
letras <strong>com</strong> uma poesia crua, direta, objetiva.<br />
Os Stones reuniram três cabeças e três músicos <strong>com</strong><br />
formações diferentes mas que sempre se <strong>com</strong>plementaram.<br />
Mick Jagger é o dionisíaco mestre de cerimonias, sensual,<br />
lascivo, irreverente, belo, arrogante, andrógino. Keith<br />
Richards acrescentou ao grupo a energia de uma guitarra<br />
que é só dele, um som próprio, mistura de acordes e solos<br />
rascantes <strong>com</strong> silêncios, pausas, e aquela presença de bruxo<br />
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no palco, a guitarra baixa, quase nos joelhos, o corpo<br />
balançando junkie <strong>com</strong>o ele foi durante muitos anos. Brian<br />
Jones e os que ocuparam depois seu lugar tiveram sempre a<br />
mesma característica, que <strong>com</strong>plementava o som de<br />
Richards: o toque mais bluesy, mais rural, as fusões jazzblues.<br />
Charlie Watts e Bill Wyman segurando o ritmo.<br />
Tão importante, porém, quanto o som são as letras de<br />
Jagger. Afinal, "o que pode fazer um garoto pobre a nao ser<br />
cantar numa banda de rock'n rool"; "vou enfiar minha faca<br />
na sua garganta, baby/ e vai doer"; "se eu pudesse enfiar<br />
uma faca no coraçao/ me suicidar no palco/ seria suficiente<br />
para sua ânsia adolescente/ iria ajudar a diminuir a dor/<br />
melhorar sua cuca?"; "por favor, dê licença pra me<br />
apresentar/ sou um homem de fortuna e bom gosto/ ando<br />
por aí há muito tempo...então tenha um pouco de gentileza/<br />
tenha <strong>com</strong>paixão e um pouco de sensibilidade/ use toda sua<br />
polidez muito estudada/ ou eu porei sua alma a perder".<br />
Esses versos fazem parte respectivamente de Street<br />
Fighting Man, Midnight Rambler, It's Only <strong>Rock</strong>'n Roll<br />
(But I like it) e Sympathy for the Devil. Há platéia que<br />
resista a voz e à maneira de Jagger cantá-los?<br />
O importante nas letras de Jagger sempre foi sua<br />
atualidade. É claro que ele escreveu muita bobagem mas<br />
músicas <strong>com</strong>o Street Fighting Man e Satisfation são um<br />
libelo contra as guerras, a mídia, o sistema. Essa a grande<br />
sacada. Unindo-se tudo temos os Stones: grandes versos,<br />
um grande cantor e performancer, um guitarrista<br />
excepcional e um ritmo forte, pungente, nervoso, agressivo,<br />
dilacerante. It's only rock'n roll, e nós gostamos.<br />
27
4. Clapton: um deus desce do Olimpo<br />
O solo de guitarra, <strong>com</strong>o dissemos, passou a ser o fato<br />
importante no rock, <strong>com</strong> os grupos nascendo<br />
invariavelmente em torno de um grande guitarrista. O<br />
"boom" dos Stones e dos Beatles levou alguns músicos a<br />
novas buscas, aos primeiros experimentos. A base era ainda<br />
a mesma: o rithm'm blues. Os caminhos porém <strong>com</strong>eçavam<br />
a se abrir. E um nome surgia <strong>com</strong>o o mestre da guitarra, e<br />
nos anos seguintes mudaria também essa história.<br />
Eric Clapton é a outra seiva do tronco do rock. Nascido<br />
também no final da guerra (30 de março de 1945), sua vida<br />
sempre foi marcada pelo estigma que a<strong>com</strong>panhou seu<br />
ídolo, Robert Johson, uma encruzilhada de dois caminhos, o<br />
céu e o inferno.<br />
Ele foi Deus quando os muros de Londres amanheciam<br />
pichados Clapton is God, na época em que tocava <strong>com</strong> os<br />
Bluebrackers de John Mayal e rastreava o braço da guitarra<br />
<strong>com</strong> solos inspirados. Foi Deus ainda maior no Cream, o<br />
supergrupo pioneiríssimo que <strong>com</strong>andou. E desceu ao<br />
inferno mais de uma vez, a última em 91, quando<br />
<strong>com</strong>eçamos a escrever este livro e seu filho de 5 anos caiu<br />
da janela do 53º andar do apartamento de luxo em<br />
Manhattan onde morava <strong>com</strong> a mãe, a estrela da televisão<br />
italiana Lory Del Santo.<br />
Viu morrer amigos e parceiros, sofreu a paixão mais<br />
alucinante e em cima dela construiu o mais belo hino de<br />
amor do rock, se afundou nas drogas, caiu fora, virou<br />
místico e aí está, ainda um tronco vigoroso, gerando frutos.<br />
O inferno de Clapton <strong>com</strong>eçou na infância, quando a<br />
mãe o abandonou <strong>com</strong> a avô e o padrasto aos dois anos,<br />
numa pequena cidade a 50 quilômetros de Londres<br />
(Ridley). Só soube disso aos 9 anos, pior ainda, pela boca<br />
de outros, e o choque o a<strong>com</strong>panhou durante toda<br />
28
adolescência -- e talvez para sempre. Na biografia<br />
autorizada de Ray Coleman, publicada em 85, ele confessa:<br />
"isso alterou muito minha conduta por toda vida: alterou<br />
muito minha perspectiva e minha aparência física porque<br />
ainda não sei quem sou".<br />
O importante porém é que naquele ano incrível, 1961,<br />
Clapton também já estava em Londres, ouvindo o som que<br />
rolava nos pubs, tocando aqui e ali, esperando a vez para<br />
substituir Mick Jagger no Ealing Club "quando ele tinha dor<br />
de garganta" e, nesse ano, descobriu também o disco<br />
mágico, The Best of Muddy Waters (lembram-se do<br />
encontro de Mick <strong>com</strong> Keith?). Aí ele recuou um pouco e<br />
descobriu Robert Johson. Estava <strong>com</strong> todas as ferramentas<br />
que precisava na mão.<br />
Formou o primeiro grupo apenas em 63, o Roosters,<br />
quando conheceu Tom McGinness, que o apresentou a<br />
Hideaway, banda instrumental de Freddie King, outro papa<br />
do blues. Em outubro deixa os Roosters e entra para a<br />
primeira de suas superbandas, os Yardbirds. Quando o<br />
grupo está pronto para explodir, Clapton sai, descontente<br />
<strong>com</strong> o rumo pop <strong>com</strong>ercial do Yardbirds. Ele queria tocar<br />
blues, não aquela música <strong>com</strong>portada e harmônica do<br />
Yardbirds. "Se não fosse música negra, era lixo", diz na<br />
biografia.<br />
O próximo grupo foi o Bluesbreakers, de Mayall, em<br />
que ficou um ano (65/66) e onde conseguiu chegar ao que<br />
queria: um grande trabalho de guitarra, deixando a voz para<br />
segundo plano. Mayall era 12 anos mais velho que Clapton<br />
e seu Bluesbreackers foi a grande escola para toda uma<br />
geração de músicos que brilharia nos 60 -- Peter Green,<br />
Jack Bruce, Mick Taylor, Aysley Dunbar, Mic Fleetwood.<br />
Eric Clapton Featured with John Mayall's<br />
Bluesbreakers, o disco gravado em 66, transcendeu tudo<br />
que havia sido feito pelos "guitarristas brancos" até então e<br />
29
se tornou uma bíblia em todo o mundo. Ali ele era o<br />
primeiro guitarrista de rock <strong>com</strong> um estilo absolutamente<br />
próprio, <strong>com</strong>binando velocidade, fluidez, sentimento,<br />
emoção, agressividade à tudo que o blues exige de um<br />
músico de blues. Nessa época, Clapton já dominava e<br />
havia aperfeiçoado técnicas <strong>com</strong>o a sustentação por<br />
feedback e o som de válvula sobrecarregada, <strong>com</strong><br />
amplificadores Marshall. Como não existiam jogos de<br />
cordas leves <strong>com</strong> a 3ª sem revestimento, substituiu essa<br />
corda por uma outra de banjo, o que lhe permitiu ampliar o<br />
âmbito de seus solos, ajudar no vibrato e na torção das<br />
notas. A revista <strong>Rock</strong> Espetacular, edição de 1976, afirma<br />
que B.B. King diria que só existiam dois guitarristas<br />
capazes de fazê-lo suar de verdade: Peter Green, que<br />
substituiu Clapton na banda de Mayall, e o próprio Eric.<br />
Outro marco na carreira de Clapton, ainda dentro do<br />
Bluesbrackers, foi o contato <strong>com</strong> Jack Bruce. Clapton havia<br />
se afastado por três meses da banda, em 65, e na volta<br />
encontrou aquele contrabaixista maluco, que incursionava<br />
pelo jazz, pelo blues, fazia uma fusão e destroçava as<br />
cordas. Com Bruce, Clapton parou de imitar os discos de<br />
blues e passou a procurar um caminho próprio. A formação<br />
jazzy de Bruce levava o grupo à improvisação e Clapton a<br />
novas descobertas. Aí surgiu o Cream. Bruce despertou em<br />
Clapton o desejo de voar mais alto e eles decidiram voar<br />
juntos. Faltava um baterista que partilhasse as mesmas<br />
idéias, que encontraram em Ginger Baker, outro que pendia<br />
para as improvisações do jazz.<br />
O Cream foi o creme de la creme do rock, abriu<br />
caminhos inteiramente novos, influenciou todos os grupos<br />
que vieram depois. Até então as platéias adolescentes<br />
urravam ao som de qualquer grande banda mais<br />
conceituada, ninguém ainda discutia ou parava para "ouvir<br />
música". Isso aconteceu <strong>com</strong> o Cream. Eles formaram o<br />
30
primeiro power trio do rock, o primeiro grupo onde cada<br />
um se revezava para mostrar suas habilidades individuais.<br />
A base ainda era o blues, mas o som viajava no palco nos<br />
solos ou na fusão brilhante dos três virtuoses. Uma marca<br />
registrada do Cream, que é imitada ainda hoje, está na<br />
música "Sunshine of Love", no famoso riff <strong>com</strong>binado de<br />
guitarra e baixo tocado em solos uníssono. No estúdio eram<br />
um grupo normal; no palco faziam um furor, dando a<br />
primeira abertura para coisas que viriam depois <strong>com</strong>o a<br />
fusion rock-jazz e o próprio heavy-metal.<br />
No Cream a guitarra de Clapton explodiu, seu som<br />
ficou mais puro, quando queria, e mais "sujo", depois,<br />
quando descobriu o woman-tone, o toque feminino,<br />
extravagante, distorcido. Apesar de toda essa revolução, um<br />
dia a revista Rolling Stone descreveu Clapton <strong>com</strong>o "o<br />
mestre do clichê". Nessa ocasião ele ouviu também o disco<br />
de um novo grupo americano que tocaria <strong>com</strong> um sujeito<br />
chamado Bob Dylan, o The Band, e decidiu: é esse o som<br />
que vou fazer agora. E o Cream acabou. Era novembro de<br />
1968. Nasceu logo depois o Blind Faith, <strong>com</strong> Steve<br />
Winwood (ex-Traffic), o mesmo Ginger Baker e Rick<br />
Grech, baixista da Family (aquela que veio ao mundo no<br />
concerto dos Stones para Brian Jones, junto <strong>com</strong> o King<br />
Crimson). O grupo durou apenas aquele 1969, mas deixou<br />
pelo menos um clássico, a linda Can't Find my Way Home,<br />
de Winwood, além do primeiro spiritual de Clapton,<br />
Presence of Lord. Nessa época, quem abria os shows do<br />
Blind Faith era um grupo <strong>com</strong>andado por Delaney e Bonnie<br />
Bramlett, <strong>com</strong> apresentações despretensiosas e misturas de<br />
soul e rock. Clapton algumas vezes viajava no mesmo<br />
ônibus <strong>com</strong> o grupo e lembra que "muitas noites tocava<br />
tamborim <strong>com</strong> eles, me divertindo mais que <strong>com</strong> o Blind<br />
Faith". Então, quando o Blind Faith acabou Clapton<br />
31
patrocinou uma excursão do Delaney e Bonnie à Inglaterra,<br />
tocando <strong>com</strong> o grupo.<br />
É dessa época o primeiro grande revés de sua vida,<br />
depois da descoberta de que fora criado pelos avos. Clapton<br />
era amigo íntimo de George Harrison, o pessoal do Delaney<br />
e Bonnie que tocava <strong>com</strong> ele estava gravando All Thing<br />
Must Pass, o álbum solo de Harrison e Clapton cai<br />
literalmente de paixão por Pattie Boyd Harrison, isso<br />
mesmo, a mulher de George. Aí ele já excursionava <strong>com</strong><br />
um grupo que chamou Derek and the Dominos, e para fugir<br />
daquela paixão louca viajou para Miami, onde produziu sua<br />
outra grande obra prima, um dos mais belos hinos de amor<br />
do rock: Layla.<br />
Nesse momento, Clapton já estava totalmente<br />
entregue à heroína e as gravações foram feitas estimuladas<br />
pela droga. Uma noite decidiram ouvir um concerto ao ar<br />
livre <strong>com</strong> a banda dos irmãos Gregg e Duane Allman, os<br />
Allman Brothers, e depois do show Clapton convidou<br />
Duane para uma jamm no estúdio. Dez dias depois estava<br />
pronto o album Layla and Other Assorted Love Songs. A<br />
ajuda de Duane e sua agonia romântica produziram Layla.<br />
Depois disso Clapton voltou para a Inglaterra, não<br />
conseguiu produzir o novo disco e passou a viver recluso<br />
em sua casa em Surrey, sustentando um vício de heroina de<br />
1000 libras por semana. Voltaria aos shows em 1973,<br />
graças principalmente à ajuda de Pete Townshend, do Who.<br />
Mas só se recuperaria totalmente em 1974, através da cura<br />
por eletroacupuntura. E paramos sua história por aqui.<br />
Curiosidades<br />
- Clapton se afundou nas drogas, loucamente<br />
apaixonado por Pattie Harrison, mas um dia ela sucumbiu à<br />
paixão e até 1986 foi a Sra. Clapton.<br />
32
- Duane Allman, grande responsável por Layla, morreu<br />
de acidente de moto em 1970.<br />
- Depois de superar a crise da dependência de heroína,<br />
o primeiro disco de Clapton foi 461 Ocean Boulevard e<br />
incluía uma canção tradicional e de nome sintomático:<br />
Motherless Children (filhos bastardos seria uma tradução<br />
pesada mas é por aí -- e essa música Richie Havens cantou<br />
em Woodstock).<br />
- O Cream foi o primeiro grupo a tocar no Madison<br />
Square Garden. E foi o primeiro grupo a gravar faixas<br />
longas em um disco.<br />
- Slowhand, nome do álbum em que aparece<br />
"Cocaine", é o apelido de Clapton: mão leve.<br />
- O velho Ginger Baker gravou um disco em 1986,<br />
Horses and Trees, <strong>com</strong> solos de bateria bem afro e adivinha<br />
quem toca <strong>com</strong> ele? Nada mais nada menos que o brasileiro<br />
Naná de Vasconcelos, que arrasa quando entra no espaço<br />
que Baker deixa pra ele na faixa Satou. Naná toca<br />
berimbau, cuíca e faz backing.<br />
- A primeira vez que tocou <strong>com</strong>o músico de estúdio,<br />
em 4 de maio de 1964, Clapton gravou duas faixas <strong>com</strong> o<br />
pianista-vocalista de blues Ottis Spann. No estúdio estavam<br />
também Muddy Waters, na guitarra, Ransome Knowling,<br />
no baixo, Willie Smith, na bateria e outro guitarrista que<br />
<strong>com</strong>eçava a chamar a atenção: Jimmy Page. Page também<br />
tocou harmônica.<br />
- O álbum "Branco", dos Beatles, de 68, tem um solo<br />
de Clapton considerado uma peça mágica para guitarra, na<br />
faixa While my Guitar Gently Weeps. Weeps é o mesmo que<br />
chorar, ok! Dá pra entender?<br />
- Ginger Baker também foi baixista e vocalista<br />
ocasional na banda de Alexis Korner.<br />
- Jack Bruce participou do "Lifetime", de Tony<br />
Williams, <strong>com</strong> John Mc Laughlin, tocou <strong>com</strong> o guitarrista<br />
33
Larry Coryel, <strong>com</strong> Mitch Mitchell e fundou o "West, Bruce<br />
and Laing". Em 74 formou um grupo <strong>com</strong> o ex-stone Mick<br />
Taylor.<br />
- O Cream foi o primeiro grupo a gravar um álbum<br />
duplo <strong>com</strong> músicas inéditas; o primeiro a improvisar <strong>com</strong><br />
liberdade; o primeiro grupo de rock a tocar peças longas.<br />
34
5. Beck & Page: raízes novas<br />
Quando Clapton deixou o Yardbirds para formar o<br />
Cream, em l965, re<strong>com</strong>endou para seu lugar um guitarrista<br />
arredio, agressivo às vezes, mas criativo e sensível <strong>com</strong>o<br />
poucos e afinado <strong>com</strong> o espírito que baixava na turma: a<br />
paixão pelo blues eletrificado. Jeff Beck já havia tocado<br />
<strong>com</strong> os Tridents, grupo de blues sem sucesso algum, apesar<br />
de ter se apresentado em locais que os Stones fizeram<br />
famosos. O Yardbirds procurava um caminho mais<br />
<strong>com</strong>ercial: Beck deu o que queriam e muito, muito mais,<br />
muito mais até que o próprio Clapton na sua passagem<br />
anterior pelo grupo.<br />
Beck usava uma guitarra Fender Squire (<strong>com</strong> um pickup<br />
ao invés de dois) e <strong>com</strong> o instrumento criou sons<br />
revolucionários, <strong>com</strong>o o solo em Shapes of Things - essa<br />
<strong>com</strong>posição mais tarde regravaria <strong>com</strong> seu próximo<br />
conjunto, o Jeff Beck Group, <strong>com</strong> Rod Stewart nos vocais,<br />
transformando-a em uma das primeiras obras-primas do<br />
rock pesado. Ele foi tão ou mais atrevido que Clapton,<br />
dominava todas as notas, virava escalas pelo avesso,<br />
desdobrando tudo em sequências novas, <strong>com</strong> acordes<br />
dissonantes e uma energia impressionante. Nas<br />
improvisações, entrava em momentos que ninguém<br />
imaginava. Um ano depois Jimmy Page, até então um<br />
requisitadíssimo músico de estúdio, entrou também no<br />
Yardbirds, <strong>com</strong>pondo <strong>com</strong> Beck duelos originais durante<br />
apresentações ao vivo que, uma pena, nunca foram<br />
gravadas. Esse trabalho, porém, está imortalizado no filme<br />
"Blow Up", de Michelangelo Antonioni, em uma cena onde<br />
Jeff Beck arrebenta sua guitarra contra o amplificador, para<br />
delírio da platéia. Logo depois deixa o grupo, partindo para<br />
o seu trabalho solo, <strong>com</strong> o Jeff Beck Goup.<br />
35
O Jeff Beck Group era outra reunião de virtuoses. Rod<br />
Stewart fazia os vocais <strong>com</strong> sua voz rascante de negro;<br />
John Paul Jones (também da turma fã de Alexis Korner no<br />
Ealing Club e mais tarde do Led Zeppelin), ficava <strong>com</strong> o<br />
teclado Hammond, Ron Wood (o substituto de Mick Taylor<br />
nos Stones) tocava baixo e Nicky Hopkins (o eterno freelancer<br />
do rock, também músico de estúdio dos Stones)<br />
dedilhava o piano acústico. Com essa banda Jeff Beck<br />
gravaria canções antológicas, <strong>com</strong>o You Shook Me, o<br />
clássico de Willie Dixon que Page depois arrasaria <strong>com</strong> o<br />
vocal de Robert Plant no Led Zeppelin, e Blues de Luxe,<br />
<strong>com</strong> o solo acústico e mágico no piano de Hopkins. Sobre<br />
You Shok Me, Beck diria, na apresentação da capa do disco<br />
(Truth): "provavelmente são os sons mais ásperos já<br />
gravados e devem ser ouvidos quando se estiver <strong>com</strong> raiva<br />
ou muito louco. A última nota da canção é minha guitarra<br />
suspirando". No álbum estava ainda o Beck's Bolero,<br />
escrita por Jimmy Page. Beck, no entanto, já não se dava<br />
bem <strong>com</strong> Rod Stewart e Ron Wood e a banda não tocou em<br />
Woodstock devido às brigas, morrendo ali, em 69. Nesse<br />
ano Beck também sofreu um acidente de automóvel,<br />
ficando em tratamento durante 18 meses. Voltaria <strong>com</strong><br />
garra depois de 72 <strong>com</strong> Tim Bogert e Carmine Apice, dois<br />
integrantes do Vanilla Fudge -- grupo norte-americano que<br />
fazia sucesso no final dos sessenta junto <strong>com</strong> o Iron<br />
Butterfly. O Beck, Bogert and Apice detonou um dos mais<br />
poderosos sons do rock pesado na metade dos 70, mas<br />
ninguém <strong>com</strong>punha e o grupo não conseguiu levar ao vinil<br />
a mesma energia que levava ao palco. Depois disso ainda<br />
participou de alguns grupos mas cada vez mais se dedicou<br />
ao seu trabalho pessoal, passando a se direcionar mais para<br />
a fusion <strong>com</strong> o jazz. Do tempo do Yardbirds restaria o seu<br />
trabalho conjunto <strong>com</strong> Jimmy Page e J.P. Jones, que<br />
36
deflaglariam no final dos sixties o que seria o grande grupo<br />
de blues-rock pesado de então: o Zeppelin.<br />
37
6. Led Zeppelin: chumbo no rock<br />
Quando procurava formar sua banda, Jimmy Page<br />
estava antenado <strong>com</strong> as mudanças que ocorriam em todo<br />
panorama cultural naquele que foi o mais importante ano da<br />
década: 68. Os estudantes franceses faziam barricadas e<br />
brigavam <strong>com</strong> a polícia, nos Estados Unidos queriam<br />
"levitar" o Pentágono em protesto contra a guerra do<br />
Vietnã, no Brasil, o teatro radicalizava <strong>com</strong> O Rei da Vela e<br />
o na música nascia o movimento tropicalista. Os Beatles já<br />
tinham lançado sua obra-prima, Sargent Pepper's; os<br />
Stones, o Their Satanic Majesties Request e o Beggar's<br />
Banquet.<br />
Alguns grupos de vida paralela -- Animals, Kinks e o<br />
próprio Yardbirds -- estavam dando lugar a novas<br />
experiências <strong>com</strong>o o King Crimson, The Who, Troggs,<br />
saindo do rithm'blues para trabalhos mais revolucionários.<br />
Page sabia que o momento era o adequado para o<br />
lançamento de uma nova banda que tivessse uma proposta<br />
nova. Já havia tocado <strong>com</strong> Clapton, John Mayall, e<br />
substituído Jeff Beck <strong>com</strong>o guitarra-solo nos Yardbirds.<br />
Agora queria seu grupo. Com o fim esperado dos<br />
Yardbirds, criou o New Yardbirds, na realidade o embrião<br />
do Led Zeppelin. Precisava porém dos músicos certos e<br />
ninguém queria investir no seu projeto. Na realidade Page<br />
pensava em fazer um trabalho mais acústico, mais folk e<br />
não o trovão que seria o Zeppelin. Queria uma música<br />
intermediária entre o suave e o pesado. O mercado,<br />
contudo, pedia um som mais pesado, <strong>com</strong>o o Iron Butterfly,<br />
que sobrevivia nas paradas americanas há anos <strong>com</strong> o<br />
álbum In-A-Gadda-Da-Vida, <strong>com</strong> suas repetitivas,<br />
saturadas e distorcidas escalas de blues. Page já havia feito<br />
incursões experimentais no Yardbirds <strong>com</strong> o arco de<br />
violino tocando as cordas da guitarra (o filme The Songs<br />
38
Remais the Same apresenta sua performance <strong>com</strong> essa<br />
estranha mistura) e queria mostrar alguma coisa a mais.<br />
Enquanto não fechava o círculo, Page trabalhava em<br />
estúdio. Na ocasião estava participando do LP de Donovan,<br />
Hurdy Gurdy Man, e John Paul Jones perguntou se ele não<br />
precisava de um baixista no novo grupo. Ok, um músico<br />
que conhecia bem, e um bom músico, ele já tinha. Agora<br />
precisava de um cantor, mas não apenas um vocalista<br />
<strong>com</strong>um, e sim alguém <strong>com</strong> força e que tivesse o domínio do<br />
palco, que pudesse ser o oposto da guitarra, o outro lado<br />
forte da banda. Os bons cantores da época estavam todos<br />
ocupados. Terry Reid, um garoto promissor de 18 anos foi<br />
consultado mas também estava contratado, então<br />
re<strong>com</strong>endou um outro garoto que cantava em um grupo de<br />
Birminghan, no norte da Inglaterra. Ele era chamado "o<br />
selvagem do blues da terra negra" e liderava a banda<br />
Hobbstweedle. Seu nome: Robert Plant.<br />
Jimmy saiu de Londres <strong>com</strong> o empresário Peter Grant<br />
e o baixista dos Yardbirds, Chris Dreja, e foi até<br />
Birmingham ver um show de Plant na faculdade local. Ele<br />
usava um caftã mouro e colar de contas, cabelos enormes,<br />
mas o que mais intrigou Jimmy foi aquele soprano, aquele<br />
uivo lancinante e a sensualidade carregada e própria de<br />
Plant. O choque foi grande mas Page demorou ainda um<br />
pouco para se decidir. Alguns dias depois convidou Plant<br />
para ir até sua casa, onde mostrou seus discos favoritos e<br />
falou, falou, falou sobre o que queria fazer: uma música<br />
pesada, porém <strong>com</strong> toques mais leves e lentos, dinâmica,<br />
luz e sombra. Plant topou a parada e re<strong>com</strong>endou o baterista<br />
que tocara <strong>com</strong> ele, John Bonham, um peso pesado,<br />
vigoroso, que todos chamavam de Bonzo por causa do<br />
personagem de uma tira de quadrinhos. Bonzo também<br />
fazia um som particular, costumava forrar o interior do<br />
bumbo <strong>com</strong> papel alumínio e a porrada de sua baqueta fazia<br />
39
aquilo soar <strong>com</strong>o um canhão. Quando ouviu Bonzo, Jimmy<br />
decidiu enfim que tipo de som faria. A formação estava<br />
<strong>com</strong>pleta. No primeiro ensaio, a primeira música que<br />
tocaram foi The Train Kept a-Rollin?, que é o número<br />
apresentado pelos Yardbirds no filme Blow-Up.<br />
Algumas semanas de ensaio depois, e eles estavam<br />
excursionando pela Escandinávia, <strong>com</strong> o nome de New<br />
Yardbirds. Na volta Jimmy percebeu que não tinha sentido<br />
aquilo, pois o grupo tinha outra identidade. Keith Moon,<br />
baterista do The Who e ídolo de Bonzo deu a sugestão para<br />
Led Zeppelin. O grupo passou a se apresentar nos clubes de<br />
Londres, mas não sensibilizava o público. Jeff Beck e<br />
Clapton chamavam toda a atenção dos jornalistas e<br />
ninguém prestava muita atenção no trabalho ainda em<br />
formação de Page. Peter Grant percebeu que não iam<br />
conseguir nada e decidiu levar o Led Zeppelin para os<br />
Estados Unidos. Uma cantora veterana, desconhecida aqui<br />
(Dusty Springfield) re<strong>com</strong>endou o grupo aos executivos da<br />
Atlantic e logo depois o Zeppelin era um dos primeiros<br />
grupos ingleses a assinar contrato <strong>com</strong> uma gravadora<br />
americana. Mas Peter era esperto e sabia que não adiantava<br />
muito concorrer <strong>com</strong> o Jeff Beck Group, onde Rod Stewart<br />
conquistava <strong>com</strong> seu carisma a atenção do público a ponto<br />
de encobrir a figura de Jeff. Esse, aliás, um dos motivos que<br />
levou ao fim do grupo. Com o Jeff Beck Group fora de<br />
cena, a pista toda era do Zeppelin. O primeiro disco saiu<br />
ainda em 68 e foi sucesso imediato.<br />
Durante alguns anos o Led Zeppelin deixaria alguns<br />
clássicos, muitas histórias envolvendo misticismo, magia,<br />
alguns acidentes e duas mortes que levariam o grupo ao<br />
fim. Os acidentes <strong>com</strong>eçaram quando o Led decidiu voltar a<br />
Inglaterra para uma excursão, após o lançamento do álbum<br />
Phisical Graffiti, um dos discos mais caros do rock até<br />
então <strong>com</strong> sua capa cheia de janelinhas vazadas. Eles<br />
40
haviam se apresentado na Inglaterra um ano e meio atrás e<br />
agora planejavam a que seria a maior excursão do Zeppelin,<br />
quando Plant tem uma infecção de garganta. Logo depois<br />
Jimmy Page tem o dedo médio da mão esquerda prensado<br />
na porta de um trem. A excursão foi um sucesso porque o<br />
Zeppelin tinha um equipamento revolucionário de som e<br />
luz e John Bonham e J. Paul Jones seguraram o pique do<br />
grupo. J.P. Jones não era apenas um tecladista e baixista<br />
inspirado. Ele foi a essência musical do Zeppelin, o<br />
construtor da tecitura harmônica do grupo. Bonzo, de seu<br />
lado, segurava o pique <strong>com</strong> sua bateria de trovão.<br />
Curiosamente, naquele ano a Playboy elegeu Karen<br />
Carpenter "a melhor baterista do ano", <strong>com</strong> Bonzo<br />
ocupando a segunda colocação.<br />
Plant voltaria a se acidentar logo depois,<br />
esborrachando o carro durante as férias na Grécia. E em 77,<br />
em plena turnê, recebe a notícia de que seu filho Karac, de<br />
cinco anos, havia falecido. Bonzo morreria dois anos<br />
depois, de overdose de vodca, acreditem. Foi o fim.<br />
Curiosidades<br />
- O primeiro disco do Zeppelin, considerado o melhor<br />
álbum de estréia de um grupo de rock, foi gravado em<br />
menos de trinta horas de estúdio, ou seja, menos que uma<br />
semana. É basicamente um disco de blues, <strong>com</strong> a<br />
eletrificação chegando ao limite. Todas as faixas são<br />
antológicas.<br />
- Robert Plant foi o primeiro soprano a usar o vocal<br />
agudo em seus limites para cantar blues.<br />
- Os primeiros shows do Zeppelin nos EUA foram<br />
<strong>com</strong>o abertura dos shows do Vanilla Fudge.<br />
- A febre da pirataria era tão grande <strong>com</strong> o Zeppelin<br />
que o empresário saia antes do show procurando<br />
microfones escondidos.<br />
41
- Starway to Heaven foi a primeira letra publicada pelo<br />
grupo.<br />
- Em algumas músicas do Zeppelin, Jimmy chegou a<br />
usar até seis guitarras, superpondo as gravações para obter<br />
aquela muralha de som característica do grupo.<br />
- No filme The Songs Remains the Same, Jimmy<br />
atravessa o tempo todo, erra frases seguidamente. O filme<br />
mostra também um Robert Plant decadente, sem a energia<br />
do início do grupo e sem a menor presença de palco. Talvez<br />
por isso a <strong>com</strong>era insiste o tempo todo em focalizar abaixo<br />
de sua cintura. Mas, <strong>com</strong>o disse um jornalista na revista<br />
Violão & Guitarra, <strong>com</strong>entando o filme: "duas horas de<br />
calça justíssima de Plant não valem uma requebrada de<br />
Jagger".<br />
- Quando os punks invadiram a Inglaterra, em 77/78, o<br />
Led era a banda preferida para os ataques do grupo.<br />
42
7. Arvores vizinhas<br />
Bem, naqueles sixties, alguns novos grupos se<br />
firmariam no cenário do rock inglês, não <strong>com</strong> a força dos<br />
pioneiros, porém <strong>com</strong> importância que não pode ser<br />
desmerecida. Da mesma época dos Stones, Beatles e<br />
Clapton, e na mesma linha de resgate-recuperação do<br />
rithym'nblues, o mais importante foi Eric Burdon <strong>com</strong> o<br />
Animals. Outro veterano, este em uma linha mais popular e<br />
correndo quase que na raia dos Beatles, foi o Kinks de Ray<br />
Davies. O Deep Purple correu em raia paralela ao Zeppelin.<br />
Grupos menos importantes, mas que fizeram sucesso<br />
também na ocasião, foram o Dave Clark Five e os Hermans<br />
Hermiths.<br />
Mais importante, porém, foram quatro grupos que<br />
surgiram em meados da década e que deixaram marcas e<br />
criaram filhotes. Cada um <strong>com</strong> um trabalho particular: The<br />
Who, <strong>com</strong> a energia destrutiva-construtiva do guitarrista<br />
Pete Towshend e do baterista Keith Moon; o Traffic, de<br />
Steve Winwood e Jim Capaldi; e o mais radical de todos,<br />
um grupo que teria sua formação alterada ao longo dos 20<br />
anos seguintes e que se caracteriza pela radicalização do<br />
projeto experimental de seu líder, o guitarrista Robert<br />
Fripp. Este grupo é o mesmo King Crimson que foi lançado<br />
<strong>com</strong> sucesso no concerto dos Stones em homenagem a<br />
Brian Jones. Do King Crimson falamos no apêndice deste<br />
livro, nos ritos de passagem. O quarto grupo é bem menos<br />
conhecido, porém não menos importante. Pouca gente<br />
ouviu falar nos Troggs, precursores <strong>com</strong> certeza do punk<br />
<strong>com</strong> suas bases de guitarra distorcidas e vocal debochado.<br />
Com eles encerra-se o ciclo do rock inglês dos anos 60.<br />
Depois, é claro, surgiriam os grandes grupos do heavy-rock<br />
e principalmente do rock progressivo e da head-music,<br />
<strong>com</strong>o Yes, Genesis e Pink Floyd (também no apêndice).<br />
43
Agora atravessamos o oceano para a praia do rock<br />
americano, que não teve grupos tão importantes <strong>com</strong>o esses<br />
ingleses mas que criou bandas especiais, <strong>com</strong> linhas de<br />
trabalho pontificadas de um lado pela poesia, de outro pela<br />
protest-song e pelas fusions. Antes de tomar o navio,<br />
porém, vamos falar de um negro que, embora nascido em<br />
Seattle, Washington, no dia 27 de novembro de 1942,<br />
construiu sua carreira e seus melhores trabalhos na<br />
Inglaterra.<br />
Ele foi o primeiro negro a se impor no cenário branco<br />
dessa fase do rock e até hoje os melhores guitarristas do<br />
mundo, <strong>com</strong> toda parafernália eletrônica dos pedais e<br />
sintetizadores, continuam tentando descobrir o que ele fazia<br />
para tirar, <strong>com</strong> apenas um Fender e um wah-wah, aqueles<br />
sons mágicos. Seu nome merece ser pronunciado <strong>com</strong><br />
reverência: Jimi Hendrix.<br />
44
8. Hendrix: o deus negro da guitarra<br />
"I don't mind, I don't mind<br />
Alright, if all the hippies cut off all their hair<br />
I don't care, I don't care<br />
Dig, 'cos I got my own world to live through<br />
And I ain't gonna copy you"<br />
"Quando se ouve Jimi Hendrix percebe-se o quão<br />
besta, insípida, linear e entediante é a música que a maioria<br />
dos jovens se dedica a escutar e idolatrar atualmente". Este<br />
texto abre o <strong>com</strong>entário do jornalista Airton Seligman sobre<br />
o último disco de Hendrix lançado no Brasil, publicado no<br />
Estado de S. Paulo, dia 19 de março de 1991. Março de<br />
91!!! E a opinião de Seligman coincide <strong>com</strong> qualquer<br />
pessoa de bom senso em matéria de música, principalmente<br />
porque até hoje ninguém superou Jimi na guitarra. E muita<br />
gente tenta imitar o que ele fazia <strong>com</strong> apenas uma guitarra e<br />
um pedal simples de Wah-Wah, utilizando mesmo toda a<br />
parafernália tecnológica das baterias <strong>com</strong>pletas de pedais<br />
disponíveis. Em vão.<br />
Como guitarrista, Jimi redefiniu totalmente as<br />
possibilidades desse instrumento, da mesma forma <strong>com</strong>o<br />
Jack Bruce mostrou que o baixo não era apenas um<br />
instrumento de apoio e Charlie Parker redefiniu o saxofone.<br />
Como <strong>com</strong>positor deixou algumas jóias, puros diamantes<br />
lapidados <strong>com</strong> imagens surrealistas, místicas, sem perder a<br />
característica sensual e agressiva do blues. A revista <strong>Rock</strong><br />
Espetacular, de 1976, afirma que enquanto ele viveu não<br />
houve lugar para mais ninguém. "Ele não só eclipsou Eric<br />
Clapton e Mick Jagger, <strong>com</strong>o fez de todos os demais,<br />
músicos antiquados, quase medíocres". Acrescentamos:<br />
ainda está para nascer um guitarrista <strong>com</strong>o Jimi.<br />
James Marshall Hendrix nasceu em Seattle,<br />
Washington. A mãe, Lucile, era descendente de índios, por<br />
45
isso Jimi passou grandes temporadas <strong>com</strong> a avó, uma<br />
autêntica Cherokee. O pai lhe deu um violão aos 11 anos.<br />
Um ano depois vendeu o próprio sax para dar ao filho uma<br />
guitarra elétrica. Aos l6 anos sai da escola, aos 21 está no<br />
exército. Era o ano de 1963. Na hora de optar, Jimi vai para<br />
o Regimento de Paraquedistas, já prenunciando os vôos que<br />
faria nos anos seguintes. Quatro meses depois é<br />
desmobilizado, <strong>com</strong> um tornozelo quebrado. Segundo a<br />
história, em um único dia saltou 26 vezes. Já era um<br />
maluco.<br />
Ao sair do exército Jimi voltou a abraçar a guitarra e<br />
de conjunto em conjunto chegou a participar dos grupos de<br />
Little Richards, Isley Brothers (<strong>com</strong> quem gravou o<br />
primeiro disco), Wilson Picket e Yke and Tina Turner. Em<br />
64 passeia pelo Greenwich Village de Nova Iorque e toca<br />
<strong>com</strong> John Hammond, deixando já de boca aberta estrelas<br />
<strong>com</strong>o Dylan, os Beatles e os Stones. Foi quando teve sua<br />
grande oportunidade, pelas mãos de Chas Chandler, exbaixista<br />
de Eric Burdon nos Animals. Chas passou a<br />
produzir discos e levou Jimi para a Inglaterra. A idéia de<br />
Chas era colocar no palco, juntos, Clapton e Hendrix. Mas<br />
Clapton estava muito ocupado <strong>com</strong> os Bluesbrakers e<br />
depois o Cream. Então decidiu criar uma banda própria, nos<br />
moldes do mesmo Cream, <strong>com</strong> apenas três músicos. Mith<br />
Mitchell foi escalado na bateria, Noel Reding ficou <strong>com</strong> o<br />
baixo e surgiu o grupo definitivo para as aventuras do Deus<br />
negro: o Jimi Hendrix Experience. Antes de gravar,<br />
contudo, Jimi e banda a<strong>com</strong>panharam o roqueiro francês<br />
Johnny Halliday e quando voltou da França tocou <strong>com</strong> o<br />
New Animals. A história conta que Chas teve que vender<br />
seus seis contrabaixos para financiar a festa em que<br />
apresentou Jimi e conseguiu o contrato para o Experience<br />
a<strong>com</strong>panhar o New Animals. Na segunda apresentação<br />
roubaram a guitarra de Jimi e Chas vendeu seu último baixo<br />
46
para <strong>com</strong>prar-lhe outra. Dois dias depois, Hey Joe, gravada<br />
pelo selo Track, do empresário do Who, estourou na<br />
Inglaterra e o grupo passa a ser requisitado para tocar nos<br />
clubes e concertos por todo país.<br />
Novamente uma little help dos amigos: ia acontecer o<br />
festival de Monterrey (junho de 67), nos Estados Unidos, e<br />
Brian Jones deixa Londres para convencer os americanos<br />
que o festival não seria o mesmo sem o Experience de Jimi.<br />
Junto <strong>com</strong> Hey Joe, já havia sido lançada a cançãoidentidade<br />
de Hendrix, Purple Haze e o LP Are You<br />
Experienced. Jimi é aceito e coloca todo mundo no bolso.<br />
Sua apresentação é antológica. No fim do show Jimi ataca o<br />
clássico que havia sido sucesso <strong>com</strong> os Troggs - Wild<br />
Things -, e tem que agradecer quase meia hora de aplausos<br />
quando a platéia vai ao delírio, o palco em chamas. Jimi<br />
simplesmente "faz amor" <strong>com</strong> a guitarra, joga o líquido de<br />
um isqueiro no instrumento, toca fogo e continua tirando<br />
sons, microfonias, a guitarra em chamas na cabeça. Deus e<br />
o Diabo em um ritual de som e magia arrebatador. O filme<br />
do Festival mostra todo o espetáculo. Nesse mesmo dia,<br />
apenas uma branca do Texas faria tanto sucesso: Janis<br />
Joplin.<br />
A apresentação em Monterrey valeu um contrato para<br />
apresentação do Experience no Fillmore West, a casa de<br />
Bill Graham mais prestigiada na ocasião, e uma série de<br />
shows que consolidaram definitivamente a imagem de Jimi<br />
nos EUA. Depois, ele volta <strong>com</strong> a banda para Londres. Are<br />
You Experienced é sucesso no mundo inteiro.<br />
Com o Experience, Jimi acelerou em 68 o processo<br />
autodestrutivo de seu trabalho: destruía amplificadores,<br />
dançava <strong>com</strong> um demônio, sensualidade e beleza, som e<br />
fúria, tocando a guitarra nas costas, <strong>com</strong> os dentes, tirando<br />
som das cordas no pedestal do microfone, fazendo dos<br />
falantes caixa de ressonância para suas experiências <strong>com</strong> a<br />
47
distorção. E mantinha tudo sob controle. Mas não dava para<br />
ser tão performático a vida inteira. E Jimi percebia que<br />
aquilo teria que ter um fim, queria ser ouvido pela sua<br />
música, não pelos escândalos que provocava. É dessa fase<br />
as famosas 40 horas de fitas que o seu engenheiro de som e<br />
produtor Alan Douglas tem registradas, e que solta<br />
homeopaticamente em discos (fora os piratas que saíram<br />
depois de sua morte). Nessas jamms e brincadeiras Jimi<br />
tocou <strong>com</strong> todo mundo, de guitarristas <strong>com</strong>o John<br />
McLaughlin ao trompetista Miles Davis e qualquer um que<br />
aparecesse. A única coisa <strong>com</strong> que se ocupava eram<br />
mulheres, a droga que o consumia e iria matá-lo e a música.<br />
Toda tristeza e loucura, porém, não afetavam a música<br />
de Hendrix. Ele continuava a frente do seu tempo,<br />
subvertendo os limitados recursos da guitarra, tirando<br />
captadores de fase para melhor usar a microfonia e<br />
sustentar as notas. Sua técnica também é única, tanto que<br />
ninguém até hoje consegue executar muitas de suas<br />
músicas. Nas <strong>com</strong>posições mostra um letrista inspirado,<br />
refletindo sempre a angústia em que vivia. A letra de Purple<br />
Haze é tudo isso.<br />
Com Mitchell e Reding grava em seguida o Eletric<br />
Ladyland, recebido <strong>com</strong> indiferença, porque não trazia<br />
aquele espírito de incendiário, contestador. Um álbum,<br />
porém, criativo e forte. Depois dele o Experience se desfaz<br />
e chegamos ao ano de 69, o ano de Woodstock. Ali,<br />
novamente, Hendrix volta a brilhar <strong>com</strong>o nunca, quando<br />
toca o hino dos Estados Unidos, Star Splanged Banner, e<br />
traz para a platéia de 400 mil pessoas o som das bombas<br />
que caiam no Vietnã.<br />
No ano seguinte grava <strong>com</strong> Billy Cox, no baixo, e<br />
Buddy Miles, na bateria, o Band of Gipsies. Em agosto<br />
volta à Inglaterra e se apresenta no III Festival da Ilha de<br />
Wight. No dia 18 de setembro, numa quinta-feira de manhã,<br />
48
sua namorada, Monika Danneman, deixa Jimi dormindo<br />
para ir <strong>com</strong>prar cigarros. Ao voltar, ele está muito mal.<br />
Havia tomado remédios em excesso para dormir. Na<br />
ambulância, os médicos acham que ele está bem, o colocam<br />
sentado. Jimi não respira bem. Morreu sufocado no próprio<br />
vômito antes de chegar ao hospital. Não houve overdose ou<br />
tentativa de suicídio. Na realidade foi um acidente.<br />
O rock dá o toque<br />
Todo esse movimento musical que floresceu na<br />
Inglaterra influiu e foi a<strong>com</strong>panhado por uma revolução<br />
que se espalhou pelo mundo. A juventude inglesa criou<br />
naqueles anos 60 identidade própria na moda, no<br />
<strong>com</strong>portamento, na forma de ver e ler o mundo,<br />
antecipando os movimentos que seriam deflagrados na<br />
França, <strong>com</strong> a revolta dos estudantes em maio de 68, e na<br />
Tchecoslováquia, <strong>com</strong> a Primavera de Praga, iniciando ali o<br />
fim da Guerra Fria que seria selado <strong>com</strong> a queda do muro<br />
de Berlim. A violência estudantil explode em Roma,<br />
Berlim, Amsterdã, Cidade do México, São Paulo, Rio de<br />
Janeiro. A "revolução de 68" foi um dos acontecimentos<br />
mais importantes da história contemporânea e teve <strong>com</strong>o<br />
mola propulsora o rock e o movimento híppie. O estopim<br />
que levou os estudantes franceses à rua foi o protesto contra<br />
a prisão de um colega do <strong>com</strong>itê contra a participação<br />
americana na Guerra do Vietnã. Estes dois assuntos,<br />
infelizmente, merecem um livro à parte.<br />
Quando os Beatles e Stones deixaram o cabelo crescer<br />
os adolescentes do mundo inteiro aposentaram o estilo<br />
escovinha do exército e só iam ao barbeiro para aprimorar o<br />
corte. Mary Quant mostra que a mulher não é mais a<br />
mesma e na esteira da liberalização que ganhava impulso<br />
<strong>com</strong> o movimento feminista lança a mini-saia,<br />
revolucionando para sempre a maneira da mulher se vestir.<br />
49
Os orientalismos se impõem nas roupas coloridas, batas<br />
indianas invadem o mundo, colares, chapéus, miçangas e<br />
todo tipo de adereço vestem a nova juventude que tem nos<br />
ídolos do rock o seu espelho. As drogas já haviam sido<br />
exploradas até em aulas das universidades americanas<br />
(vemos adiante as experiências de Timothy Leary), os<br />
festivais de música deixam a cidade e incentivam a vida no<br />
campo, o drop out leva europeus para o mais distante<br />
Oriente, os americanos para o deserto e as fazendas e os<br />
brasileiros também formam <strong>com</strong>unidades alternativas.<br />
Todos os grandes grupos ingleses já haviam invadido<br />
os Estados Unidos e a contra-influência musical estava<br />
imposta. Lembrem-se que no início dos 60 os ingleses<br />
foram buscar inspiração nos blueseiros americanos; agora<br />
eram os americanos que reincorporavam o som<br />
desenvolvido pelas bandas inglesas. No entanto, apesar de<br />
ser o grande detonador das mudanças da década, foram os<br />
Estados Unidos que exacerbaram e venderam ao mundo a<br />
nova filosofia dos anos 60. É o que vemos na segunda parte<br />
deste trabalho.<br />
50
Parte II<br />
9. Ecos americanos<br />
A fúria e a energia do rock inglês fez eco<br />
imediatamente no solo americano, onde na verdade<br />
algumas cabeças pensantes já derivavam para novos<br />
caminhos musicais além do rock'n roll primário de Berry,<br />
Presley e parceiros. A Inglaterra, contudo, circunscrita em<br />
um horizonte geográfico menor, teria <strong>com</strong>o marca uma<br />
unidade que demoraria um pouco para se desestruturar.<br />
Todos os grandes grupos do rock inglês, nascidos até o<br />
meio da década, tinham uma característica <strong>com</strong>um: eram<br />
filhos de uma mesma raiz, galhos da mesma árvore, <strong>com</strong>o<br />
mostramos <strong>com</strong> as bandas de que já falamos anteriormente.<br />
Nesse grupo corriam por caminhos que poderiamos chamar<br />
de paralelosos Kinks, o Crimson de Fripp, os Troggs. E os<br />
Beatles, é claro. Todos os outros beberam na mesma fonte:<br />
o rithm'n blues e o rock'n roll.<br />
Nos Estados Unidos, de um lado, justamente pelo<br />
aspecto geográfico -- um país de grande extensão territorial,<br />
cheio de contrastes --, de outro pelo caldeirão em ebulição<br />
onde se misturavam os movimentos estudantis, as<br />
reivindicações dos grupos negros e a própria efervescência<br />
cultural renascida <strong>com</strong> os beatnics, o rock já floresceu <strong>com</strong><br />
vertentes diversas.<br />
Numa classificação superficial, observaremos que de<br />
um lado surgia uma linha de trabalho ligada ao rock, porém<br />
<strong>com</strong> uma base muito mais presa à canção folclórica. Nessa<br />
linha, inclusive, vamos ter os trabalhos mais fortes do ponto<br />
de vista político. Se os Stones criticavam a <strong>com</strong>odidade<br />
burguesa, Dylan, Joni Mitchel, Jefferson Airplane, Neil<br />
Youg e alguns outros batem mais fundo nas mazelas da<br />
sociedade americana. O Velvet Underground, de Lou Reed,<br />
51
"parido" pelo papa da pop art, Andy Warhol, vai tocar no<br />
bass-fond, na droga que circula na rua, no lado perigoso da<br />
rua, no wild side. O Doors de Jim Morrison brinca <strong>com</strong> a<br />
literatura e Jim faz do palco a tribuna onde canta seus<br />
poemas loucos.<br />
Aqui vale uma observação. Quando falamos dos<br />
grupos do rock inglês não esquecemos de nenhum daqueles<br />
que consideramos importantes. Nos Estados Unidos, porém,<br />
o leque abre mais e correremos o risco de deixar de fora<br />
gente importante. Vamos <strong>com</strong>eçar porém pelo poeta dos<br />
poetas do rock americano, pela voz que foi backing nas<br />
grandes passeatas de protesto dos estudantes, o homem que<br />
ensinou que não é preciso ter um homem do tempo para<br />
saber para que lado sopra o vento.<br />
Primeiro vamos nos posicionar dentro da situação<br />
americana naquele período, bastante diferente da que<br />
viviam os jovens ingleses. No final, quando concluirmos o<br />
trabalho <strong>com</strong> as "vozes e sons" da América, vocês vão<br />
perceber que tudo se une e porque terminamos a década e<br />
esse livro naquele 6 de dezembro fatídico do Festival de<br />
Altamont.<br />
52
10. Ventos novos na América<br />
Os Estados Unidos entraram na década de sessenta<br />
também <strong>com</strong> uma bomba de efeito retardado nas mãos. O<br />
fim da guerra gerou nos anos 50 os filhos do baby-boom,<br />
<strong>com</strong> os americanos <strong>com</strong>prando carros, televisões,<br />
geladeiras e todos os bens de consumo que o dinheiro fácil<br />
permite adquirir. A prosperidade econômica, contudo, tinha<br />
<strong>com</strong>o contracenso uma quase repressão cultural. Era a<br />
época da caça as bruxas do macartismo, o que, junto à<br />
necessidade do país de participar de nova guerra localizada<br />
(Coréia), praticamente eliminava a possibilidade de<br />
oposição na vida política da sociedade americana. E a<br />
cultura refletia esse estado de espírito, reproduzindo as<br />
idéias dominantes.<br />
A constante ameaça que a Guerra Fria colocava na<br />
cabeça dos americanos transformava o <strong>com</strong>unismo (e os<br />
soviéticos) no inimigo público número um (o movimento<br />
macartista, criado pelo Senador McCarty nasceu <strong>com</strong>o uma<br />
verdadeira caça aos <strong>com</strong>unistas) e a própria universidade<br />
vivia este conservadorismo e nacionalismo exacerbados.<br />
Essa situação foi explodir no que vimos depois, <strong>com</strong> os<br />
grandes movimentos estudantis e o surgimento dos híppies<br />
(falamos deles mais tarde). Mas vamos por etapas.<br />
O baby-boom do pós-guerra viria enfrentar logo em 53<br />
e 54 o primeiro choque <strong>com</strong> a recessão e os reflexos do<br />
envolvimento dos Estados Unidos na Guerra da Coréia (50-<br />
53). A recessão voltaria a atingir o país em 57 e 58. No<br />
meio dessas crises, por volta de 56, <strong>com</strong>eçam a surgir as<br />
primeiras lutas pelos direitos cívis no norte do país<br />
enquanto na Califórnia crescia a "esquerda literária" da beat<br />
generation. Os poetas e escritores beats -- Allen Ginsberg,<br />
Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Jack Kerouac entre<br />
os principais --, criticavam os valores "estabelecidos",<br />
53
investiam contra o american way of life. Suas armas eram<br />
as palavras, sua maneira de vida antecipava o que fariam<br />
depois os híppies: os beats atravessavam o país na tentativa<br />
de conhecer a América (ler On the Road, de Jack Kerouac,<br />
bíblia obrigatória para se entender o movimento). A<br />
marijuana era a droga de todos; o be-bop, a vertente ágil do<br />
jazz de Charlie Parker, a música que gostavam de ouvir.<br />
Essa busca do "paraíso artificial" levou à repressão<br />
policial e o movimento acabou, na virada da década. Mas<br />
suas raízes estavam plantadas. Em outubro de l959 os<br />
estudantes da universidade de Berkeley fazem<br />
manifestações contra o treinamento militar. Em maio de 60,<br />
os protestos estouram em São Francisco. Em fevereiro de<br />
61, quando o presidente Kennedy rompe relações<br />
diplomáticas <strong>com</strong> Cuba e proíbe o deslocamento de<br />
americanos para aquele país as manifestações ganham<br />
maior impulso. Os beats haviam rompido <strong>com</strong> o<br />
conformismo e a alienação cultural.<br />
Nova recessão no início de 6l deixa 5.700.000<br />
americanos desempregados. Os que nasceram durante a<br />
guerra não tinham emprego. A crise atinge também a<br />
universidade e o ensino em geral. Kennedy, <strong>com</strong>eçando o<br />
mandato, pede verbas no seu plano de auxílio ao ensino.<br />
Em setembro o Congresso vota e veta o pedido do<br />
presidente. Os jovens abandonam as escolas e caem no<br />
desemprego. Os negros, principalmente. Enquanto isso o<br />
Pentágono desembarcava conselheiros militares, armas e<br />
soldados em Saigon. Em l963 acampavam no Vietnã,<br />
l6.500 soldados. Em l965 esse número chegava a 125.000<br />
homens.<br />
As agitações cresciam, criavam-se organizações<br />
(Students for Democratic Society), organizavam-se<br />
manifestações pacifistas (Campaign for Nuclear<br />
Disarmament), os brancos se aliavam aos negros na<br />
54
campanha contra o racismo de Martin Luther King. A<br />
situação preocupa o governo e Kennedy lança uma<br />
campanha de integração e consegue obter mais verbas para<br />
a educação. Mas é tarde. A universidade de Berkeley é o<br />
palco principal das agitações. As autoridades universitárias<br />
avisam que vão proibir toda propaganda política no<br />
campus. Os militantes não aceitam. No dia 1º de dezembro,<br />
seis mil estudantes, utilizando os métodos assimilados dos<br />
negros no sul, ocupam o campus e as instalações<br />
universitárias. A polícia entra em ação e 750 manifestantes<br />
são presos.<br />
55
11. Drogas e beats<br />
Enquanto Berkeley e São Francisco polarizavam os<br />
movimentos de contestação, na universidade de Harvard<br />
(Cambridge, Massachussets), Timothy Leary, professor de<br />
psicologia clínica, em ruptura <strong>com</strong> os métodos tradicionais<br />
experimentou nas aulas, <strong>com</strong> os alunos, os efeitos da<br />
pcilocybina e do LSD. Em l960, o professor Leary havia<br />
ingerido cogumelos contendo psilocybina, <strong>com</strong>ponente<br />
químico dos cogumelos sagrados dos mexicanos, de efeito<br />
alucinógeno. Quando voltou aos EUA estudou os efeitos da<br />
droga nele próprio e depois levou para dentro da<br />
universidade. É claro que em 63, Leary e seu colaborador, o<br />
Dr. Richard Alpert, são expulsos da universidade. A<br />
informação chegou à imprensa, que transformou o caso em<br />
manchete nacional. O LSD, até então praticamente<br />
desconhecido, passou a existir e naturalmente aguçar a<br />
curiosidade do jovem americano. Brotava assim o que<br />
alguns anos depois viria a se chamar de psicodelismo.<br />
Outro fato importante nesse processo foi o retorno à<br />
cena dos principais escritores beat a partir de 63. William<br />
Burroughs volta de Tanger, Allen Ginsberg chega da Índia.<br />
Porém agora eles não se reúnem na livraria City Lights, de<br />
Ferlingheti, em São Francisco, que <strong>com</strong>eça a editar os<br />
trabalhos do grupo incentivado por Mary Beach, filha do<br />
editor de Joyce que chega da França junto <strong>com</strong> o poeta<br />
Claude Pelieu (que traduz e publica depois os beats na<br />
França). Os beats ocupam agora a área de Big Sur, refúgio<br />
de outro escritor ilustre (Henry Miller) e que de certa<br />
maneira tinha laços <strong>com</strong> o movimento. Os textos dos beats<br />
chegam então as universidades, colocando mais lenha na<br />
fogueira.<br />
Do outro lado, em Nova Iorque, um grupo revoluciona<br />
o teatro, realizando performances, exposições de jovens<br />
56
pintores e happenings. É o Living Theatre, que deixaria<br />
marcas profundas nessa arte, e é considerado o primeiro<br />
núcleo daquilo que também seria típico do movimento<br />
híppie: a vida em <strong>com</strong>unidades. Atuando fora dos meios<br />
<strong>com</strong>erciais em representações improvisadas, usando o<br />
corpo <strong>com</strong>o elemento de encenação, levando para a vida<br />
social suas experimentações artísticas e vivendo em<br />
condições miseráveis, o Living Theatre sofre a repressão<br />
policial e se organiza em <strong>com</strong>unidade. Em 1963, se exila<br />
em Paris. Para os franceses Daufouy e Sarton, o Living<br />
Theate exprimia, numa linguagem diferente, as mesmas<br />
obsessões da beat generation e pode ser considerado <strong>com</strong>o<br />
uma transição entre os beatniks e os futuros híppies.<br />
Essa mesma Nova Iorque concentra em seu bairro<br />
boêmio, o Greenwich Village, uma fauna de pintores,<br />
músicos, vagabundos e um grupo underground (outro<br />
movimento que ganhava força), os Fugs, <strong>com</strong>posto de sete<br />
músicos de folk rock e dirigido por Ed Sanders, um louco<br />
visionário também adepto do LSD e que <strong>com</strong>punha músicas<br />
onde misturava provocação e sexualidade.<br />
Os quatro mil quilômetros que separam Nova Iorque<br />
de São Francisco não impedem que se cruzem os beats e os<br />
Fugs. Sanders publica uma antologia de poemas inéditos<br />
dos beats (Burroughs, Ginsberg, Ferlingheti e alguns<br />
outros, bem <strong>com</strong>o textos dele próprio), em uma revista que<br />
chama de Fuck You, A Magazine of The Arts. Louco. A<br />
polícia cai em cima e ele passa a distribuir o material pelo<br />
correio.<br />
Nesse mesmo Village, circula pelos coffee e pubs um<br />
rapaz de violão e gaita, cantando canções que falam de<br />
guerra, bombas, paz. Seu nome é Bob Zimmerman, filho de<br />
judeus, voz esganiçada e palavras cortantes. Ele já havia<br />
gravado um álbum em 62, onde adota o Bob Dylan que<br />
provoca controvérsias e alimenta a mídia. Nesse disco ainda<br />
57
grava remakes de contry blues e gospels. Seu nome ganha<br />
projeção em 62 <strong>com</strong> Blowin'in the Wind - que logo é<br />
gravada por inúmeros artistas e entra na parada das dez<br />
mais <strong>com</strong> Peter, Paul and Mary. Era a primeira vez que uma<br />
canção pacifista fazia sucesso. Isso leva os promotores do<br />
Festival folk de Newport a incluí-lo na programação, e<br />
Dylan surge para o mundo. Assume então a posição de<br />
"profeta da juventude" veiculada pela imprensa e grava seu<br />
disco mais politizado.<br />
O panorama então poderia ser resumido dessa maneira:<br />
a Inglaterra <strong>com</strong>eçava a assimilar o rock visceral e enérgico<br />
dos Stones e Clapton (e, claro, a música dos Beatles). Os<br />
Estados Unidos -- pode-se dizer inclusive que essa era a<br />
melhor forma de expressão para o que acontecia no país<br />
naquele momento -- entram fundo no folk-rock, <strong>com</strong> Dylan<br />
e os grupos que passam a tocar suas músicas: The Band,<br />
Birds. Essas correntes iriam logo se auto-influenciar <strong>com</strong> a<br />
vinda dos Stones, Beatles e seus discos para os EUA e a<br />
chegada dos trabalhos de Dylan, Birds e The Band a<br />
Londres. O Led Zeppelin, apesar de toda energia de seu<br />
hard rock, tem um lado totalmente acústico e folk, aquilo<br />
que Page queria fazer quando ouviu o disco do The Band.<br />
Mas vamos agora a Dylan.<br />
58
12. A antena parabólica de Dylan<br />
"How many times must the cannon balls fly<br />
efore they're forever banned"<br />
Era assim que Dylan sentia aquele momento: ele<br />
captava toda a angústia da juventude americana e<br />
transformava aquilo em grandes poemas musicados. O<br />
nome das músicas do segundo disco (The Freewheelin'Bob<br />
Dylan) dá um panorama do que as letras dizem: Masters of<br />
War, Blowin'in the Wind, Talking World War III Blues,<br />
Oxford Town. O sucesso cria a lenda: Bob teria "chupado"<br />
o sobrenome Dylan do poeta Dylan Thomas, outro pirado,<br />
que morreu em 1953, de "overdose" de uísque (l8 doses).<br />
Thomas era um santo para os beats, e quem de certa<br />
maneira provocou o renascimento da poesia nos Estados<br />
Unidos, estimulando os poetas beat a escreverem. A gaita e<br />
o violão seriam uma herança recebida de Woodie Guthrie, a<br />
quem visitou quando estava para morrer.<br />
Guthrie era um folk singer famoso que corria o país<br />
cantando nos campos e bares e fugindo da polícia. Sua terra<br />
natal, Oklahoma, vivia hostilizada entre dois extremos: a<br />
seca e as tempestades. Woodie deixou cedo a família e <strong>com</strong><br />
o violão e a gaita foi o principal desmistificador da<br />
depressão, cantando nos pátios das fábricas, nos campos de<br />
algodão, chamando a atenção do povo para aquela situação.<br />
Existe inclusive um filme interessante sobre sua vida -- This<br />
Land is My Land - <strong>com</strong> o kung-fu Karradine no papel<br />
principal.<br />
Durante a década de 30, Guthrie percorreu os EUA de<br />
carona, se apresentou em circos, feiras, bares. Seus temas<br />
falavam da pobreza, da miséria, do abuso dos patrões.<br />
Dylan o conheceu pouco antes de morrer e o seu trabalho<br />
tem em Woodie o grande inspirador.<br />
59
Assim <strong>com</strong>o Woodie, Dylan deixa cedo a família. A<br />
lenda diz que fugiu de casa aos 10, 12, 13, 15, 17 e 18 anos.<br />
Não é possível saber a verdade, mas o certo é que naquele<br />
<strong>com</strong>eço dos 60, <strong>com</strong> 20 anos (nasceu em Duluth, Minesota,<br />
a 21 de maio de 41), perambulava por Greenwich Village,<br />
<strong>com</strong> o violão e a gaita, tocando nos coffees do bairro. O<br />
primeiro disco sai por obra de John Hammond (que logo<br />
depois tocaria <strong>com</strong> Hendrix, ou seja, o mundo é pequeno),<br />
do qual já falamos. Segundo Roberto Muggiati (<strong>Rock</strong>, o<br />
Grito e o Mito), custou 403 dólares e foram prensadas<br />
4.200 cópias. No seu primeiro concerto <strong>com</strong>pareceram 53<br />
pessoas.<br />
A antena de Dylan, porém, estava sempre ligada. Ele<br />
tirava do noticiário dos jornais e da TV a matéria-prima<br />
para suas canções, falava a linguagem que a juventude em<br />
"guerra" nas universidades queria ouvir. Um crítico do New<br />
York Times aposta naquela "mistura de menino-de-coro e<br />
beatnick" e cria o rótulo "canção de protesto", que passa a<br />
ser sinônimo do trabalho de Dylan. O estouro de Blowin'in<br />
the Wind consolida essa imagem.<br />
O terceiro disco saiu em 64, e mantinha a linha política<br />
inclusive no nome: The Times they are A'Changing. Junto<br />
<strong>com</strong> Joan Baez (que infelizmente virou a Mercedes Sosa do<br />
rock), lidera o movimento de rebeldia. "Quantas vezes<br />
devem as balas do canhão explodir até que sejam banidas<br />
para sempre": os versos de Blowin'in the Wind são<br />
cantados nas manifestações de todo país. Dylan é o portavoz<br />
da nova esquerda, brilha no Festival de Newport,<br />
aparece em um especial de TV e a imprensa do mundo<br />
inteiro fala no seu nome. Aí, parece, ele cansa.<br />
No quarto disco, ele quebra <strong>com</strong> a imagem de garoto<br />
pré-fabricado e passa a fazer <strong>com</strong>posições autobiográficas.<br />
O público considera a virada em seu trabalho uma traição,<br />
suas letras não são mais <strong>com</strong>preendidas facilmente, ele<br />
60
exacerba o lado surrealista da poesia, faz longas digressões,<br />
fala da in<strong>com</strong>preensão dos homens pelo que fazem e ao se<br />
apresentar em l965 no mesmo festival de Newport é vaiado.<br />
Na verdade Dylan faz nova revolução musical, quando se<br />
apresenta a<strong>com</strong>panhado pelas guitarras elétricas do The<br />
Band: uma heresia para a folk music. A imprensa<br />
imediatamente cria um novo nome para aquele som: folk<br />
rock. Nasce logo em seguida a música que os Birds iriam<br />
consagrar <strong>com</strong>o a primeira psicodelic song, Mr. Tamborim<br />
Man, o primeiro hit de uma longa lista de drug songs que<br />
aparecem depois.<br />
O folk-rock estava definitivamente estabelecido.<br />
Depois disso Dylan sai <strong>com</strong> uma série de trabalhos --<br />
Subterranean Homesick Blues, Like a Rolling Stone. No<br />
verão de 66 sofre um acidente de moto e fica fora de cena<br />
por alguns anos. Voltaria no início dos 70, mas aí sua<br />
música já não era a mesma coisa, Dylan se perde em<br />
procuras religiosas, volta ao judaísmo, converte-se<br />
novamente ao cristianismo mas sua música não reflete mais<br />
aquela energia do rapaz do Village. Por isso paramos <strong>com</strong><br />
Dylan por aqui!<br />
.<br />
Ressonâncias<br />
Dylan se afasta mas deixa o seu nome e seu trabalho<br />
no cenário da música americana. Suas canções continuam<br />
nas rádios, na boca dos estudantes, e nos discos de dois<br />
grupos que gravam suas canções e dominam até certo ponto<br />
o panorama do folk-rock: The Band e os Byrds. Mas<br />
alguma coisa <strong>com</strong>eçava a mudar. Os Stones já haviam<br />
passado sua avassaladora sonoridade pelos States (1964), os<br />
Beatles já haviam tocado antes pelo país. As duas correntes<br />
<strong>com</strong>eçavam a se misturar, o folk e o rock. A partir de<br />
meados da década surgem então os primeiros grupos<br />
voltados para um trabalho que poderíamos dizer "mais<br />
61
ock" e menos folk. Grupos <strong>com</strong>o o Vanilla Fudge, o Iron<br />
Butterfly, o Steppenwolf, o Allman Brothers.<br />
A disseminação do LSD, o <strong>com</strong>eço do movimento<br />
híppie trazem para o palco os grupos "lisérgicos", <strong>com</strong>o o<br />
Gratefull Dead; a dissonância do Mothers of Invention, de<br />
Frank Zappa, a banda que faz a trilha sonora para os junkies<br />
e inconformados; a crônica ácida e lúcida dos poemas<br />
decadentes e brilhantes de Lou Reed, no Velvet<br />
Underground; a corrida paralela de Janis Joplin pelos<br />
caminhos do puro blues; o inconformismo da canadense<br />
Joni Mitchel, que emigra para os EUA <strong>com</strong> outro<br />
<strong>com</strong>panheiro de terra natal famoso e <strong>com</strong>o ela um cáustico<br />
crítico da situação americana, Neil Young. O Jefferson<br />
Airplane, de Grace Slick, é outra antena da época. São<br />
muitos grupos, <strong>com</strong> novas propostas.<br />
Mas voltamos ao folk e ao caminho aberto por Dylan:<br />
a canção de protesto. Aqui <strong>com</strong> um representante tão ferino<br />
<strong>com</strong>o ele, porém <strong>com</strong> um trabalho que continua até hoje a<br />
soltar farpas na poesia e renovar na música: Neil Young.<br />
Ele trocou Toronto por Los Angeles, "a procura do<br />
sol". Tocou em alguns grupos antes de entrar no Buffalo<br />
Springfield, onde encontra o parceiro <strong>com</strong> quem sempre<br />
dividiu grandes canções, Stephen Stills. O Buffalo marcou<br />
sua presença no cenário americano dos 60 mas Young<br />
queria mostrar seu trabalho solo, principalmente suas letras.<br />
Como Dylan ele sempre usou o violão e a gaita. A voz<br />
é o soprano mais angustiado do rock, um mixto de desafino<br />
na voz <strong>com</strong> precisão no canto, se assim pode-se dizer.<br />
Quando toca guitarra faz suas letras e sua música parecerem<br />
mais ácidas.<br />
Thin soldiers and Nixon <strong>com</strong>ing/ They're finally on<br />
your own/Last summer I hear the drummer/Four dead in<br />
Ohio. Os soldadinhos de chumbo da canção abrem a letra<br />
de Ohio, um dos grandes libelos da canção de protesto.<br />
62
Nela Young <strong>com</strong>enta o caso da Guarda Nacional que abriu<br />
fogo contra os estudantes que protestavam em Kent State,<br />
Ohio, matando quatro garotos. É um marco.<br />
No segundo álbum solo, Young se une a uma banda<br />
<strong>com</strong> a qual trabalha até hoje -- a Crazy Horse. O seu<br />
trabalho <strong>com</strong> guitarras é vigoroso, suas músicas sempre<br />
canções-manifesto. Um dia Stephen Stills, o parceiro no<br />
Buffalo Springfield, apresenta Neil Young a Graham Nash,<br />
ex-Hollies, e a David Crosby, ex-Bird. Ensaiam juntos na<br />
casa de Joni Mitchel e nasce o primeiro supergrupo vocal<br />
americano, o Crosby, Stills, Nash & Young. O álbum ao<br />
vivo Four-Way Street registra o melhor trabalho do grupo.<br />
Juntos o C,S,N&Y hipnotizam Woodstock <strong>com</strong> o momento<br />
talvez mais lírico do festival. Gravaram ainda canções que<br />
sintetizaram muito do sentimento da América da época. O<br />
grupo porém, se desintegrou, cada um partiu para suas<br />
carreiras solos, mas vez em quando se unem uns nos discos<br />
dos outros.<br />
Neil Young foi o que manteve a carreira mais regular,<br />
lançando mesmo na década de 80 grandes álbuns, sempre<br />
<strong>com</strong> uma característica: cada um de seus discos adotou uma<br />
linha contrária ao anterior, em um trabalho de criação<br />
espetacular que o manteve sempre um mito do rock.<br />
Na linha da protest-song, outro cantor foi sucesso<br />
nacional nessa época. Seu nome era Barry McGuire e sua<br />
música Eve of Destruction (Véspera da Destruição) atacava<br />
violentamente o governo americano e a guerra do Vietnã (o<br />
conflito <strong>com</strong>eçou em 64 e terminou em 68). A violência de<br />
Eve of Destruction revelava o estado de consciência dos<br />
estudantes, que sentiam que a qualquer momentos poderiam<br />
ser convocados para a luta.<br />
O sucesso de McGuire levou a indústria a criar novos<br />
ídolos e alguns grupos se destacam nessa nova onda do<br />
folk-rock, <strong>com</strong>o o Loving'Spoonful, de John Sebastian, os<br />
63
Byrds, de Roger "Jim" McGuinn, Mamas and Papas, Simon<br />
& Garfunkel. Desses grupos, mesmo não tendo obtido o<br />
sucesso <strong>com</strong>ercial do Mamas ou de Simon & Garfunkel,<br />
merece destaque o trabalho realizado pelos Byrds, grupo<br />
que influenciou dezenas de bandas, inclusive alguns grupos<br />
recentes <strong>com</strong>o o REM e a banda de Tom Petty. Os Byrds<br />
conseguiram uma sonoridade única, e por isso atual,<br />
principalmente pelo trabalho de Roger McGuinn em sua<br />
velha guitarra Rickenbaker de 12 cordas.<br />
Os Byrds se uniram em 64. A formação inicial --<br />
Michael Clark (bateria), Chris Hillman (baixo), Gene Clark<br />
(vocais), David Crosby (guitarra, vocal) e Roger McGuinn<br />
(guitarra e vocais) -- durou de janeiro de 65 a maio de 66.<br />
Depois o grupo foi marcado por várias mudanças em sua<br />
formação.A música dos Byrds já era um cruzamento do<br />
folk <strong>com</strong> o som dos Beatles, <strong>com</strong> destaques para as<br />
harmonias elaboradas e o trabalho de vocalização. Quando<br />
lançam Mr. Tamborim Man, de Dylan, em abril de 65,<br />
consolidam o folk <strong>com</strong>o ritmo nacional e plantam as<br />
primeiras sementes do psicodelismo. O crítico Fernando<br />
Naporano, <strong>com</strong>entando o relançamento de uma caixa <strong>com</strong><br />
quatro CDs do grupo diz que "eles não eram virtuosos,<br />
apenas possuíam uma concepção sui generis capaz de<br />
transformar a simplicidade num relâmpago de magia,<br />
permeado pelo talento implacável de suas harmonias vocais<br />
e dos timbres idiosincráticos das guitarras".<br />
Até 1970, todos os seus discos tinham canções de<br />
Dylan. E às raizes folk os Byrds mesclaram o rock'n roll,<br />
blues e mesmo jazz, produzindo porém um som único,<br />
conhecido por jargões <strong>com</strong>o Byrds conception, Byrds lookalike,<br />
quando a crítica "redescobriu" o grupo identificando<br />
no trabalho do REM, Tom Petty, The Church, Smiths a<br />
influência do grupo.<br />
64
Parte III<br />
13. O movimento híppie<br />
A partir dos primeiros meses de 1966, os híppies<br />
invadiram São Francisco e Los Angeles, na costa Oeste, e o<br />
East Village, em Nova York. Nessas cidades era forte o<br />
movimento underground, que encampou e se fundiu <strong>com</strong> o<br />
ideário dos híppies. Como observam os franceses Sarton e<br />
Daufouy, "eles não tinham sido vítimas (<strong>com</strong>o os negros)<br />
da violência física da classe dominante, responderam à<br />
guerra e à violência <strong>com</strong> o amor e a liberdade; à segregação<br />
opuseram a fraternidade e a igualdade... E para afastar<br />
momentaneamente a alienação, propagaram os méritos da<br />
droga. Exerciam algumas tarefas marginais (trabalhos de<br />
artesanato, lavouras alternativas) para proverem suas<br />
necessidades. Os cabelos <strong>com</strong>pridos e o vestuário<br />
excêntrico exprimiam um desprendimento provisório."<br />
A reação do governo foi imediata. Já em fevereiro de<br />
66, vários estados proibiram o LSD. O presidente Johnson,<br />
dia 2 de março, ordenou ao FBI a realização de um<br />
inquérito sobre o consumo da droga, porém era tarde. A<br />
"cultura da droga" estava amplamente divulgada, e<br />
numerosos distribuidores individuais <strong>com</strong>ercializavam<br />
LSD, maconha e haxixe. Segundo dados da polícia, entre<br />
l960 e l966 as apreensões de maconha pela polícia<br />
novaiorquina aumentaram dezessete vezes. Entre 1965 e<br />
1966, o uso da maconha, na Califórnia, aumentou em<br />
140%.<br />
Em abril acontece o primeiro caso sério, quando um<br />
ex-estudante assassina a sogra e declara ter agido sob efeito<br />
do LSD. Imprensa, psiquiatras, conservadores pressionam e<br />
o governo proíbe o LSD em todo país. Mas o drop out (caia<br />
fora, o slogan do movimento) aumentou nas férias de verão,<br />
65
quando mais de cem mil pessoas acampavam em<br />
<strong>com</strong>unidades pelo país. Timothy Leary havia apelado da<br />
sentença, estava em liberdade e dá um golpe ao observar na<br />
Constituição um texto que reconhece a utilização de<br />
alucinógenos na celebração de cultos religiosos: funda uma<br />
nova religião, a League for Spiritual Discovery, cujo<br />
sacramento era dado pelo LSD. O primeiro ofício da nova<br />
seita foi realizado em um teatro de Nova Yorque. Grande<br />
pirado o Sr. Leary.<br />
66
14. Undergroud, LSD e psicodelia<br />
"There's a new generaation<br />
With a new explanation..."<br />
Scott Mackenzie - San Francisco<br />
A polícia no entanto agia <strong>com</strong> rigor. Contra a repressão<br />
e a violência, <strong>com</strong>eçou a crescer a partir de 64 uma corrente<br />
ideológica fora do círculo oficial, logo batizada de<br />
underground. Era underground toda manifestação artística<br />
ou produção que não circulasse pelas vias normais de<br />
<strong>com</strong>ercialização, que sobrevivesse <strong>com</strong> recursos próprios<br />
alocados fora do sistema convencional. Todos,<br />
naturalmente, eram opositores do regime. Nos primeiros<br />
dois anos, o underground se caracterizou pelo trabalho<br />
artesanal (que depois seria retomado pelos híppies); depois<br />
pela ampliação cultural da sua ideologia <strong>com</strong> a proliferação<br />
de revistas de música, quadrinhos, produção de filmes.<br />
Pregou a pornografia, valorizou o sexo e o misticismo e<br />
afirmou principalmente a não-violência. Nesse momento, o<br />
LSD era conhecido em todos os Estados Unidos e muitos<br />
grupos musicais e de outras atividades artísticas utilizavam<br />
a droga <strong>com</strong>o "fonte de inspiração". Não esquecer que os<br />
Stones já haviam enfrentado sua primeira condenação<br />
pública por porte de maconha.<br />
Kennedy havia sido assassinado em 63 e no seu lugar<br />
assumiu o presidente Lyndon Johnson, marcado por uma<br />
administração mais repressiva. A guerra do Vietnã em 65<br />
requisitava mais e mais estudantes para o front e <strong>com</strong> isso<br />
unificaram-se as lutas e as tendências políticas. No dia 22<br />
de janeiro, alguns bonzos sacrificaram-se pelo fogo para<br />
denunciar a agressão dos Estados Unidos no Vietnã.<br />
Seguiram-se manifestações anti-americanas violentas em<br />
Saigon.<br />
67
Em fevereiro os Estados Unidos aumentam seus<br />
ataques, <strong>com</strong> bombardeios acima do paralelo 17. Os<br />
estudantes não deixam passar a oportunidade e organizam,<br />
na Universidade de Michigan, o teach in, uma nova forma<br />
de luta que iria se estender no mês seguinte para todo o<br />
país. "O teach in reunia alunos e professores em debates<br />
sobre a política americana no Vietnã. Estes debates<br />
envolveram, no espaço de três meses, mais de cem mil<br />
estudantes". (Daufouy/Sarton).<br />
No mês de junho, quando <strong>com</strong>eçaram os bombardeios<br />
<strong>com</strong> as fortalezas voadoras B52, que voltariam à ativa na<br />
guerra contra o Iraque, os Estados Unidos tinham 54.000<br />
soldados no Vietnã. Em julho esse número subiu para<br />
125.000, além dos marines e da aviação da 7ª esquadra. Em<br />
Berkeley, os estudantes tentam impedir um embarque de<br />
tropas. Em Watts, as revoltas causam mortes, os negros<br />
proclamam a desobediência cívica, muitos recusando se<br />
incorporar às tropas, no que são imitados pelos brancos. Em<br />
setembro-novembro, em todo país, são realizadas em<br />
público as queimas de carteiras militares. Em novembro<br />
dois americanos se suicidam pelo fogo, imitando o gesto<br />
dos monges budistas.<br />
Nesse contexto, a droga invadiu as universidades.<br />
Timothy Leary, expulso de Harvard, foi para o México, de<br />
onde também é expulso e volta aos EUA, se instalando na<br />
propriedade de 8 mil hectares de um milionário em<br />
Millbrook, próximo de Nova Iorque. Em dezembro de 65<br />
tenta voltar ao México e é preso na fronteira, julgado e<br />
condenado a 30 anos de prisão. Pouco antes da prisão de<br />
Leary, em São Francisco, próximo da mesma <strong>com</strong>unidade<br />
radical de Berkeley, um festival reúne o beat Lawrence<br />
Felinghetti, recitando suas poesias, o Jefferson Airplane e<br />
os Fugs do Village, na música, e Allen Ginsberg, que faz os<br />
três mil participantes cantarem "mantras". A partir desses<br />
68
fatos, <strong>com</strong> o aumento dos teach in, a partir de 1966, e dos<br />
movimentos de contestação à guerra, estudantes de todo<br />
país <strong>com</strong>eçam a abandonar as suas casas e escolas e se<br />
organizar em pequenas <strong>com</strong>unidades. O movimento híppie<br />
nascia, fruto de uma crise de identidade e de valores da<br />
sociedade americana.<br />
Interrompendo um pouco essa história, é interessante<br />
observar <strong>com</strong>o foi desenvolvido e <strong>com</strong>o foi utilizado o LSD<br />
antes que intelectuais <strong>com</strong>o Timothy Leary e Aldous<br />
Huxley fizessem a apologia dessa droga. Albert Hofmann<br />
descobriu por acaso a síntese de dietilamida do ácido<br />
lisérgico. Foi em 1939, quando ele era um dos químicos<br />
que trabalhavam para a Sandoz e produziu uma substância a<br />
partir de um fungo do centeio que pretendia utilizar <strong>com</strong>o<br />
estimulante do sistema circulatório. A Sandoz não se<br />
interessou pela descoberta de Hoffman porque os resultados<br />
desejados não puderam ser obtidos em experiências <strong>com</strong><br />
animais. Quatro anos depois, em abril de 1943, Hofmann<br />
ingeriu acidentalmente o LSD e entrou em parafuso. A<br />
droga provocou alucinações por cerca de duas horas e<br />
Hofmann afirmou mais tarde: "sentia algo estranho, as<br />
cores haviam mudado, as paredes haviam mudado, meu<br />
humor havia mudado. Ao fechar os olhos, <strong>com</strong>ecei a ter<br />
fantasias"<br />
O relatório que Hofmann entregou a Sandoz sobre essa<br />
experiência pessoal circulou depois entre pesquisadores de<br />
todo o mundo e durante as duas décadas seguintes foram<br />
feitas muitas experiências sobre o uso terapêutico do LSD<br />
em terapia. Nos anos 50 <strong>com</strong>eçaram as pesquisas <strong>com</strong><br />
cobaias humanas e a própria CIA e as forças armadas dos<br />
Estados Unidos utilizaram a droga em pessoas que não<br />
haviam sido informadas sobre a experiência. O objetivo era<br />
desenvolver o uso do LSD <strong>com</strong>o "soro da verdade". Leary<br />
disseminou o uso da droga depois de suas "experiências"<br />
69
em Harvard. Até hoje, porém, não existe um estudo<br />
detalhado e claro sobre os mecanismos de ação do LSD no<br />
sistema nervoso.<br />
Mas voltando ao movimento híppie, em 1967 o<br />
número de <strong>com</strong>unidades cresceu. Só em Nova Yorque<br />
existiam 23, reunindo entre quatrocentos e quinhentos<br />
híppies, uma delas chefiada pelo beat Allen Ginsberg. As<br />
<strong>com</strong>unidades recolhiam tudo que pudesse servir <strong>com</strong>o<br />
<strong>com</strong>ida e distribuíam aos grupos. Abbie Hoffman, um dos<br />
líderes do movimento, abriu inclusive a primeira loja<br />
gratuita na cidade. Em São Francisco, Emmet Grogan<br />
fundou os Diggers, que saiam pela cidade recolhendo<br />
donativos e distribuindo pratos quentes gratuitos. A<br />
Morning Star especializou-se em cultivar legumes. Outras<br />
<strong>com</strong>unidades espalharam-se por outras cidades,<br />
funcionando de forma semelhante. Recriando o teach in,<br />
agora os híppies promoviam os love in (manifestações de<br />
amor e paz). No dia 14 de janeiro de 67 organizam uma<br />
espécie de congresso, que chamam de human be in, <strong>com</strong> 35<br />
mil participantes, entre eles Ginsberg e Leary. Ali nasceu a<br />
expressão flower power, pois a "festa" foi realizada ao som<br />
do Jefferson Airplane, Grateful Dead, Quicksilver<br />
Messenger Service e o adereço básico era uma flor no<br />
cabelo. A música aqui novamente é o fio condutor da<br />
história. Os híppies se manifestam através do violão e da<br />
guitarra. Alguns grupos que se apresentam recusam-se a<br />
assinar contrato <strong>com</strong> as gravadoras (o Grateful Dead e o<br />
Quick Silver).<br />
Nesse momento, particular, as duas correntes do rock -<br />
- o rock inglês e o folk que predominava nos Estados<br />
Unidos -- se misturam. Os Beatles lançam o seu álbum mais<br />
importante, o Sargent Pepper's, claramente inspirado em<br />
experiências <strong>com</strong> o LSD e o movimento híppie. Os Stones<br />
lançam o Beggar's Banquet e o seu álbum revolucionário,<br />
70
Their Satanic Majestic Request. E logo surgem os dois<br />
principais grupos americanos da corrente verdadeiramente<br />
rock do movimento, <strong>com</strong> um trabalho forte e pessoal: o<br />
Steppenwof e os Doors. Outros grupos interessantes<br />
também já estavam na estrada, <strong>com</strong> um som furioso, forte,<br />
<strong>com</strong>o o Vanilla Fudge e o Iron Butterfly. Começam nessa<br />
época também os grandes festivais. Falamos agora do filme<br />
que melhor representou aqueles anos loucos, Easy-Rider.<br />
71
15. Sem Destino, um filme-síntese<br />
O cinema já namorava <strong>com</strong> o rock, desde os<br />
Yardbirds, quando Antonioni colocou em Blow-up a cena<br />
antológica de Jeff Beck quebrando a guitarra no palco.<br />
Antes, muito antes, na fase do rock'nroll, Hollywood quis<br />
tranformar Elvis Presley em ator, em uma série de filmes<br />
que hoje passam nas sessões da tarde da TV. Os Beatles<br />
fariam A Hard Days Night, Yellow Submarine. O Led<br />
Zeppelin filmou The Songs Remais the Same. Mas o filme<br />
que melhor representou uma época, que mais refletiu o<br />
espírito musical naqueles EUA de meados de 60, sem<br />
dúvida, foi Easy Rider, <strong>com</strong> Peter Fonda e Denis Hooper<br />
nos papéis principais, além de Jack Nicholson.<br />
Easy Rider é quase uma retomada das viagens dos<br />
beats, embalado por pérolas do rock. O filme iria colocar<br />
para o mundo um dos mais importantes grupos da corrente<br />
psicodélica, que já tinha porém um som hard, muito rock,<br />
um avanço da linha melódica dos grupos folk. Liderado<br />
pelo vocalista John Kay, o Steppenwolf tem em Easy Rider<br />
as músicas temas principais do filme: The Pusher, uma<br />
pungente colocação do papel do traficante (pusher) em<br />
música, e Born to be Wild, o hino de todo motoqueiro que<br />
cai na estrada e trilha sonora obrigatória ainda hoje em<br />
filmes e documentários sobre motos.<br />
Easy Rider conta a história de dois híppies, que vão<br />
buscar droga no México, passam a um traficante e têm que<br />
atravessar os EUA para chegar a Los Angeles, na<br />
Califórnia. No caminho encontram outros personagens,<br />
<strong>com</strong>o um Jack Nickolson novo e roubando a cena desde a<br />
primeira fala.<br />
O filme é lindo já na segunda sequência, quando Peter<br />
Fonda passa a droga no Aeroporto sob o barulho dos aviões<br />
e o Steppenwolf entra <strong>com</strong> The Pusher, <strong>com</strong> o acorde-solo<br />
72
de abertura. Quando a voz de John Kay, uma das mais<br />
lindas do rock, <strong>com</strong>eça a declamar os versos iniciais (You<br />
know I've smoked a lot a grass.. got then, the pushman), a<br />
câmera passeia em close pela carenagem da moto de Fonda,<br />
desenhando <strong>com</strong>o que um corpo de mulher em um quadro<br />
psicodélico, amarelo e laranja. Depois sobe lenta, brilha nos<br />
guidões inoxidáveis da moto, desliza no desenho da<br />
bandeira azul, branco e vermelho do tanque e para em<br />
Fonda, que esconde o dinheiro em mangueiras que depois<br />
vai esconder dentro do tanque.<br />
A moto é uma fora-de-estrada, linda, longilínea,<br />
guidão alto. E vem o corte e o Steppenwolf conduz<br />
novamente a dupla pela estrada cantando Born to Be Wild<br />
(get your motor running/Head out on the railway...). Essas<br />
duas cenas já valem pelo filme.<br />
Mas a história continua. Passam a noite na estrada,<br />
procuram um quarto mas ninguém quer dar pousada<br />
àqueles dois híppies cabeludos. Dormem no mato, ao lado<br />
da fogueira, sonhando <strong>com</strong>o vão gastar o dinheiro. Aqui<br />
outra sequência linda, quando a câmara brinca de luz e<br />
sombra. Amanhece e as costas do casaco de couro de Fonda<br />
<strong>com</strong> a grande bandeira são o foco. Ele é o Capitão América,<br />
<strong>com</strong>o o apresenta Denis Hopper. O pneu fura. Na fazenda,<br />
consertam o pneu enquanto o fazendeiro conserta a<br />
ferradura do cavalo. Contrastes.<br />
Aqui eles dão a primeira carona. Uma carona <strong>com</strong> o<br />
som puro dos Birds. Acordes guitárricos e coral de vozes<br />
dos Birds. Um carona filósofo, que não diz o nome porque<br />
é muito <strong>com</strong>prido. De onde veio? De uma cidade. Sem<br />
lugar, sem nome. No acampamento híppie em que param, o<br />
sinal do movimento, a marca da paz e amor que enfeitou<br />
medalhões e camisetas.<br />
Na sequência, são presos por desfilarem <strong>com</strong> as motos<br />
junto <strong>com</strong> a banda da cidade. é quando Jack Nickolson<br />
73
entra na história. Filho de um rico local, está preso "até<br />
curar a bebedeira". Ao sair livra os dois. Quem assistir o<br />
filme deve prestar atenção no diálogo de Nickolson, na<br />
entonação de sua voz. Uma interpretação soberba, de um<br />
grande ator. A música que entra depois diz: I gonna be a<br />
bird!<br />
Mas o filme não para aí. Tem mais Birds, Hendrix, e a<br />
cena antológica da viagem <strong>com</strong> LSD, ao som do Kyrie<br />
Eleison. Uma cena que parece não se enquadrar na proposta<br />
do filme, trágica, de horror. A apologia avessa da droga que<br />
era a marca do movimento. Mas por tudo isso, mesmo pelo<br />
final trágico, Easy Rider é um filme para rever, pois <strong>com</strong><br />
Zabriskie Point (outro de Antonioni que tem a ver <strong>com</strong> o<br />
movimento) são os filmes-sintese da década.<br />
74
16. Morre o híppie, nascem os yuppies<br />
O rock havia assimilado e sido envolvido pelo flowerpower,<br />
e nesse ponto não podemos esquecer certos nomes<br />
essenciais e envolvidos na filosofia daquele momento. Os<br />
Mamas & Papas são um deles; Scott Mackenzie é outro,<br />
<strong>com</strong> sua canção símbolo, San Francisco (If you're going to<br />
San Francisco/Be sure to wear some flowers in your head).<br />
Há toda uma nova geração <strong>com</strong> uma nova explicação, canta<br />
Mackenzie -- por coincidência depois um dos integrantes<br />
do Mamas & Papas que esteve no Brasil.<br />
Porém o fim dos híppies estava previsto, não porque<br />
aquela filosofia de paz, amor e vida em <strong>com</strong>unidade não<br />
fizesse sentido. Tinha que ter algum sentido, senão a polícia<br />
não teria iniciado logo cedo seu processo de repressão. O<br />
drop-out, porém, se alastrou entre os adolescentes de 14/15<br />
anos, que abandonavam a família e caiam fora, engordando<br />
as fichas de "pessoas perdidas", os runaways, nas<br />
delegacias. A polícia passou então a invadir as<br />
<strong>com</strong>unidades, aumentando as prisões por porte e consumo<br />
de drogas (37 mil, em 1967, na Califórnia). Os híppies<br />
trocam assim a cidade pelo campo, as drogas pela religião,<br />
pela yoga, meditação e outros orientalismos -- influência<br />
aliás que deve-se <strong>com</strong> certeza também aos Beatles depois<br />
de sua "descoberta" do guru Maharishi.<br />
No dia 6 de outubro de 1967, a própria imprensa<br />
underground que floresceu <strong>com</strong> o movimento decreta sua<br />
morte. E o conservadorismo típico da sociedade americana<br />
emergia novamente. Os Diggers sentiam isso e presidiram a<br />
cerimônia que anunciava a morte oficial do híppie,<br />
pregando o nascimento do homem livre. O novo<br />
movimento foi batizado de Freebie - The Brotherhood of<br />
Freeman. Mais uma coisa típica de americano: colocar<br />
75
nome e slogan em tudo. O movimento tentava mudar de<br />
rumo mas estava morto.<br />
A mudança nos caminhos do movimento híppie não<br />
estancou porém o movimento estudantil. Os campus<br />
continuaram palco de agitações durante 1968, <strong>com</strong><br />
manifestações contra a guerra do Vietnã (ocupação da<br />
universidade de Berkeley em maio, <strong>com</strong> reflexos no<br />
movimento estudantil na França), renúncia do presidente<br />
Johnson à disputa pela reeleição - e há quem acredite que<br />
os estudantes tenham muito a ver <strong>com</strong> essa decisão --,<br />
formação de partidos de extrema-esquerda, <strong>com</strong> destaque<br />
para o Peace and Freedom Party, que chegou a apresentar<br />
uma dupla <strong>com</strong>o candidatos às eleições presidenciais.<br />
Durante o Festival da Vida, organizado paralelamente<br />
à convenção de Chicago, ocorreram tumultos e encontros<br />
lamentáveis entre os manifestantes e a polícia, <strong>com</strong> um<br />
saldo de várias centenas de feridos e muitas prisões. A<br />
publicidade que a convenção ganhou ajudou, inclusive, a<br />
eleger Nixon, que logo depois autoriza a suspensão dos<br />
bombardeios sobre o Vietnã do Norte, cumprindo parte da<br />
promessa eleitoral de por fim ao conflito, e o movimento se<br />
desintegrou, a partir do início de 69.<br />
76
17. Os EUA dançam na guerra<br />
Vale a pena aqui <strong>com</strong>entar en-passant sobre a Guerra<br />
do Vietnã, principal argumento contra o qual se levantaram<br />
os estudantes americanos. E também um dos motivos do<br />
levante dos estudantes franceses.<br />
Na realidade os Estados Unidos não tinham porque se<br />
meter no conflito do Vietnã. Mas continuam se metendo<br />
onde acham que devem - Iraque, Bósnia, Kosovo. Bem,<br />
naquela década, os EUA já haviam entrado em conflito<br />
<strong>com</strong> Cuba, que não envolveu o envio de tropas porque<br />
existia um perigo sério do outro lado (a União Soviética,<br />
desde julho de 1960, era o maior <strong>com</strong>prador do açúcar<br />
cubano). Não esquecer que o macartismo do início dos anos<br />
50 via <strong>com</strong>unistas em todas as esquinas (<strong>com</strong>o aconteceria<br />
no Brasil anos mais tarde, na fase da ditadura militar).<br />
Depois do incidente <strong>com</strong> Cuba, os americanos invadiriam<br />
ainda São Domingos, em 65, de onde saem apenas l7 meses<br />
depois, além de ajudarem a Nigéria na Guerra de Biafra,<br />
um conflito quase tribal, marcado por diferenças étnicas,<br />
econômicas e religiosas, onde morreram cerca de 1 milhão<br />
de pessoas. O Vietnã, contudo, foi uma guerra real, que<br />
envolveu o envio de tropas e armas e nem o cinema<br />
conseguiu até hoje mostrar toda a realidade que foi esse<br />
conflito. Apocalypse Now, o filme de Coppola embalado<br />
pelo som de Wagner e dos Doors (olha o rock de novo<br />
ajudando a contar histórias), mostrou o lado negro dessa<br />
guerra pela primeira vez.<br />
A história da Guerra <strong>com</strong>eça bem antes dos anos 60.<br />
Para ser mais exato, antes do final do século passado, <strong>com</strong> o<br />
domínio dos franceses em 1887 na recém-criada União<br />
Indochinesa, que englobava a colônia da Cochinchina e os<br />
protetorados do Cambodja, Anã, Tonquin e,<br />
posteriormente, do Laos. No <strong>com</strong>eço deste século, porém,<br />
77
<strong>com</strong>eçaram os movimentos de oposição nacionalista contra<br />
a administração francesa, que se dividiriam em duas<br />
grandes tendências: a do Partido Nacional do Vietnã,<br />
fundado em 1927, e que desejava aliar-se à China de<br />
Chiang Kai-Shek; e a do Partido Comunista Indochinês,<br />
fundado em 1930 por Ho Chi Minh.<br />
Os franceses perderam o poder na região em 1940,<br />
quando os japoneses estabeleceram bases na Indochina.<br />
Mas ficaram administrando a colônia até 1945, quando os<br />
mesmos japoneses desarmaram e prenderam os franceses<br />
declarando a independência da região e colocando no poder<br />
o imperador Bao Dai. Os viets porém não querem também<br />
saber de japoneses e se articulam em novos movimentos de<br />
oposição. Ho Chi Minh volta à luta e funda em 41 a Liga<br />
Revolucionária para a Independência do Vietnã (Vietminh).<br />
Quando o Japão se rende em 45, o Vietminh forma uma<br />
coalizão <strong>com</strong> outros grupos nacionalistas que se recusavam<br />
a aceitar a autoridade de Bao Dai e instalam a República<br />
Democrática do Vietnã, <strong>com</strong> sede em Hanói. A França<br />
tentou recuperar o poder na região e fez uma grande<br />
trapalhada: reconheceu a República do Vietnã <strong>com</strong>o Estado<br />
livre, parte da União Francesa (março de 46) e ao mesmo<br />
tempo, através de um <strong>com</strong>issário colonialista, apoiou em<br />
Saigon a proclamação de uma República da Cochinchina<br />
(junho de 46). Ou seja, reconheceu de fato dois governos.<br />
Tentou consertar à força, bombardeando Haiphong. Ho Chi<br />
Minh passa para a clandestinidade e inicia a guerra de<br />
guerrilha <strong>com</strong> seu exército revolucionário. A China apoia<br />
Ho Chi Min. Os Estados Unidos entram na história<br />
indiretamente, fornecendo armas e capital à França.<br />
Nesse período ocorre a chamada Guerra da Indochina<br />
(1946-1954). Em julho de 54 os acordos assinados em<br />
Genebra determinam o fim da guerra e a divisão temporária<br />
do Vietnã na altura do paralelo 17. Bao Dai nomeia Ngo<br />
78
Dinh Diem primeiro-ministro do Vietnã do Sul. O Vietminh<br />
de Ho Chi Minh assume formalmente o controle do Vietnã<br />
do Norte.<br />
Com a divisão, os Estados Unidos e sua paranóia<br />
anti<strong>com</strong>unista passam a ajudar o Vietnã do Sul. A partir de<br />
1955 envia seus militares para a região, treinando os<br />
soldados vietnamitas para <strong>com</strong>bater Ho Chi Minh. Nesse<br />
mesmo ano o primeiro-ministro Dinh Diem adiou as<br />
eleições previstas nos acordos de Genebra, destronou Bao<br />
Dai e se proclamou presidente. A resistência interna ao seu<br />
regime fez surgir os movimentos de oposição, <strong>com</strong>o a<br />
Frente de Libertação Nacional (dezembro de 60) e o<br />
exército vietcong (fevereiro de 61), ambos de orientação<br />
<strong>com</strong>unista, para aumentar ainda mais a paranóia americana.<br />
Kennedy aumentou então o número de conselheiros<br />
militares e criou um <strong>com</strong>ando militar na região. Em 1963<br />
Ngu Dinh Diem foi assassinado e a batata quente estourou<br />
nas mão de Johnson, que foi obrigado a intervir de fato,<br />
nomeando o general William Westmoreland <strong>com</strong>andanteem-chefe<br />
das forças norte-americanas na região (25/04/64),<br />
determinando o início dos ataques aéreos ao Vietnã do<br />
Norte em agosto.<br />
Em 1968, quatro anos depois de <strong>com</strong>eçarem os<br />
<strong>com</strong>bates de fato, os Estados Unidos acreditavam que<br />
estavam ganhando a guerra, quando foram surpreendido por<br />
uma ofensiva em grande escala da guerrilha vietcong,<br />
apoiada pelo exército do Vietnã do Norte. A chamada<br />
Ofensiva do Tet aconteceu no dia 30 de janeiro, que<br />
correspondia aos feriados do Tet, o ano novo lunar (quando<br />
se realizam os cultos aos antepassados, na tradição<br />
chinesa). Nesse dia os vietcongs e norte-vietnamitas lançam<br />
a maior operação militar desde o início da guerra, atacando<br />
Saigon e outras importantes cidades sul-vietnamitas. A<br />
ofensiva foi uma derrota militar para os <strong>com</strong>unistas, que<br />
79
perderam 30 mil homens, mas representou uma vitória<br />
política, ao provocar um choque na opinião pública dos<br />
EUA e do mundo. Walter Cronkite, âncora da CBS famoso<br />
em todo o país <strong>com</strong>entou assustado ao ver o resultado da<br />
Ofensiva: "Que diabo está acontecendo? Eu pensei que nós<br />
estávamos ganhando a guerra." A CBS colocava no ar uma<br />
verdade que até então a imprensa escamoteava: Os EUA e<br />
seus parceiros (Austrália, Nova Zelândia, Tailândia,<br />
Filipinas, Coréia do Sul) nunca conseguiriam ganhar aquela<br />
guerra de guerrilha, nas selvas desconhecidas do Vietnã.<br />
Não bastava desfolhar a mata <strong>com</strong> agente laranja, <strong>com</strong>o<br />
fizeram sem resultado. Os "nativos" estavam em seu<br />
território, e as táticas de guerra tradicionais não<br />
funcionavam na selva. Jonhson percebeu isso (aí o grande<br />
papel, atrasado, da mídia, por isso nas guerras contra o<br />
Iraque e a Bósnia a censura foi tão forte) e mandou<br />
suspender os bombardeios em março de 68, para dar início<br />
as negociações. Mas as conversações se arrastam enquanto<br />
os estudantes americanos aumentam suas manifestações<br />
contra o conflito.<br />
Nixon foi eleito e no início atende a promessa eleitoral<br />
de acabar <strong>com</strong> a guerra. Mas logo depois, em 1970, amplia<br />
o conflito, bombardeando o Cambodja. O movimento<br />
híppie estava morto, a sociedade puritana, conformista e<br />
reacionária americana volta-se novamente para o seu<br />
nacionalismo exacerbado e cala enquanto os ataques<br />
crescem nos dois anos seguintes. Só em 73 o conflito chega<br />
ao fim. Os Estados Unidos perderam, oficialmente, 45.941<br />
soldados em ação e tiveram 300.635 feridos e 1.811<br />
desaparecidos em ação. Ninguém sabe quantos vietnamitas<br />
morreram mas as estimativas indicam acima de 180.000<br />
pessoas.<br />
80
18. Os festivais<br />
Os festivais de música ao ar livre não eram novidade<br />
nos Estados Unidos, mas durante os anos 60 se tornaram o<br />
reflexo de toda a agitação daqueles anos de paz e amor,<br />
<strong>com</strong> muita música. Na década de 50 já era realizado<br />
normalmente o festival de Jazz de Newport, que depois se<br />
transforma em festival folk, onde Bob Dylan se projeta em<br />
63 e é vaiado dois anos depois quando se apresenta <strong>com</strong><br />
uma guitarra elétrica.<br />
O Fantasy Faire and Magic Mountain Music Festival,<br />
realizado em São Francisco em junho de 67 e chamado<br />
"primeiro festival pop do mundo" reuniu apenas 15 mil<br />
pessoas. O Festival de Monterrey, do mesmo ano, foi um<br />
grande sucesso porque contou <strong>com</strong> especialistas na<br />
produção, <strong>com</strong>o John Phillips, do Mamas & Papas, David<br />
Crosby, Andrew Oldham, o empresário dos Stones, Paul<br />
Simon e Paul McCartney. Em Monterrey, Jimi Hendrix e<br />
Janis Joplin se tornaram estrelas e se projetaram para o<br />
mundo. Além deles, o festival contou <strong>com</strong> as participações<br />
do Grateful Dead, Jefferson Airplane e The Who.<br />
O maior festival porém estava reservado para<br />
Woodstock, onde cerca de 400 mil pessoas se reuniram<br />
durante três dias. Woodstock foi o gênesis e o apocalipse,<br />
ao mesmo tempo, a exacerbação de todo o movimento<br />
flower-power e o seu fim melancólico. Altamont iria selar a<br />
época dos festivais e encerrar a década, <strong>com</strong> seu saldo<br />
negro.<br />
Woodstock aconteceu no interior do estado de Nova<br />
Iorque e reuniu gente de toda a América, formando durante<br />
três dias uma grande <strong>com</strong>unidade alternativa que parecia<br />
marcar um início de uma nova era. Joni Mitchell, contudo,<br />
a canadense que fez dos Estados Unidos o palco de um dos<br />
trabalhos mais bonitos dentro do rock, resumiu na canção-<br />
81
hino do festival do que ele realmente foi: "Somos poeira de<br />
estrelas/somos ouro/somos carbono de um bilhão de anos/e<br />
precisamos retornar ao jardim."<br />
Woodstock teve de tudo. <strong>Música</strong> sem parar, <strong>com</strong> o<br />
melhor do momento -- Hendrix, Who, Crosby, Stills, Nash<br />
& Young, Santana, Ten Years After, entre outros. Drogas<br />
circulando livremente -- tanto que um dos locutores adverte<br />
em um trecho do filme para que se tome cuidado <strong>com</strong> uma<br />
brown não muito sugar que surgiu na área. Crianças e<br />
adultos unidos no ideal de paz e amor, casais inocentemente<br />
tomando banho nus. Uma festa.<br />
Segundo informações dos organizadores, o prejuízo<br />
inicial foi de 100 mil dólares, já que o festival virou em<br />
evento aberto. O filme, contudo, gerou uma receita de perto<br />
dos 20 milhões de dólares, disseminando para o mundo,<br />
segundo <strong>com</strong>entário da revista <strong>Rock</strong> Espetacular, de 76, "a<br />
idéia de que, para fugir das pressões e desumanidades da<br />
vida urbana no mundo ocidental, bastava um fim de semana<br />
no campo em <strong>com</strong>panhia de alguns milhares de outros<br />
garotos <strong>com</strong> o mesmo problema de evasão, ao som de um<br />
rock potente."<br />
Woodstock gerou idéias semelhantes em todo mundo,<br />
inclusive aqui no Brasil, onde aconteceu o festival de<br />
Iacanga, no interior de São Paulo. O ideal, porém, não era<br />
mais o mesmo. Os festivais pós-Woodstock visavam<br />
primeiramente o lucro. A música virou mercadoria. Os<br />
grandes encontros ao ar livre passaram a ocupar ginásios e<br />
estádios de futebol e, por incrível que pareça, o Brasil nos<br />
últimos anos ganhou know-how na área e organiza o<br />
evento maior desse tipo no mundo hoje, o nosso Hollywood<br />
<strong>Rock</strong>.<br />
Woodstock marcava o fim do sonho, a decadência do<br />
flower-power, o the end na euforia e esperança que<br />
reinavam naqueles anos malucos. Meses depois a década<br />
82
fecha <strong>com</strong> o festival de Altamont, antítese total a<br />
Woodstock, marco trágico na história do rock e de todo<br />
movimento jovem daqueles anos floridos.<br />
O Festival de Altamont aconteceu, dizem, por um<br />
capricho de Mick Jagger, que queria realizar um grande<br />
encontro ao ar livre para encerrar a turnê americana dos<br />
Stones. O ano não estava nada rosa - Brian Jones morreu<br />
meses antes - mas Jagger agora era o líder absoluto dos<br />
Stones e Richards <strong>com</strong>eçava a dar sinais de que a heroína<br />
dominava seu corpo. Tanto que Jagger carregou o grupo<br />
durante praticamente toda a década de 70 nas costas. Então,<br />
Jagger decide fazer o show na Califórnia, o "país" do<br />
flower-power, e arruma as pressas o Altamont Speedway,<br />
um autódromo onde acreditava caber o público para sua<br />
megalomania. Não bastasse a má organização e a falta de<br />
grana - teria que ser um show gratuito - a organização<br />
encarrega o grupo de motoqueiros Hell"s Angels <strong>com</strong>o<br />
força de segurança.<br />
Os Anjos do Inferno não exigem dinheiro, apenas<br />
cerveja (dizem que Jagger deu 500 dólares em cerveja para<br />
o grupo). Para quem não conhece, os Hell"s Angels são um<br />
grupo de motoqueiros que apavoravam as pequenas cidades<br />
e estradas da Califórnia <strong>com</strong> suas Harley Davidson e<br />
casacos de couro <strong>com</strong> a marca da tíbia cruzada e da caveira.<br />
Não deu outra. Durante o show, justamente quando Jagger<br />
cantava Under my Thumb, um rapaz negro foi esfaqueado<br />
pelos Angels a poucos metros do palco. As câmeras<br />
registraram tudo no filme Gimme Shelter. Naquele dia<br />
morreriam mais duas pessoas atropeladas e uma afogada.<br />
Algumas histórias contam que nasceu uma criança, <strong>com</strong>o se<br />
<strong>com</strong>pensasse. Foi um choque violento na carreira dos<br />
Stones, um choque violento em todo o mito pacífico e<br />
revolucionário que Woodstock tinha ajudado a criar em<br />
torno dos festivais. Com Altamont acaba, portanto, a<br />
83
década. Chegava ao fim o rock <strong>com</strong>o manifestação cultural<br />
espontânea, criativa, envolvente. Os anos 70 marcam o<br />
início do mercantilismo total na música, o rock <strong>com</strong>o<br />
produto de consumo, os grupos trabalhando <strong>com</strong>o<br />
organizações, os shows cada vez mais shows e menos<br />
música. Infelizmente.<br />
Paramos por isso por aqui. No início do livro tentamos<br />
justificar porque nos interessava somente esses anos<br />
floridos, essa efervescência genuína e pura de um grupo de<br />
adolescentes que de repente resolveu e conseguiu ser<br />
ouvido pelo mundo adulto, pelo mundo da política, pelos<br />
caminhos tortuosos do sistema. E o rock foi, sem dúvida, a<br />
célula mater, o coração de toda a engrenagem que girou<br />
naqueles sixties. It"s only rock'n roll. Viva o rock!<br />
84
Apêndice<br />
19. As mulheres no rock<br />
Desde o início do movimento, o rock se firmou <strong>com</strong>o<br />
uma manifestação puramente machista, <strong>com</strong> pouco espaço<br />
para as mulheres. De um lado pelo fato de que fazer rock<br />
implicava quase sempre em ter uma grande banda e, melhor<br />
ainda, fazer parte ou liderar esta banda. Mesmo <strong>com</strong> todo o<br />
movimento feminista, foram poucas, porém, as mulheres<br />
que se "impuseram" entre os homens. Uma delas porque é a<br />
sua maior intérprete. Duas outras porque aliavam a palavra,<br />
o texto, à participação política e à música.<br />
A maior intérprete de que falamos é Janis Joplin --<br />
mesmo que seu rock significasse cantar blues. As duas<br />
outras são Grace Slick, líder <strong>com</strong> Martin Ballin do<br />
Jefferson Airplane, e Joni Mitchell, poetisa maior e<br />
intérprete inspirada. Mas não podemos esquecer de duas<br />
outras mulheres fundamentais naqueles anos: Mama Cass, a<br />
vocalista maravilhosa dos Mamas and Papas, e Joan Baez,<br />
no início da carreira <strong>com</strong> seu violão e canções de protesto.<br />
Abrimos este espaço para a eterna Janis.<br />
Janis: salve rainha!<br />
Ela colocou toda a amargura que a<strong>com</strong>panhou sua<br />
curta existência na garganta afiada, na voz de fera felina.<br />
Feia, para os padrões de beleza vigentes, desde a<br />
adolescência Janis Joplin teve problemas <strong>com</strong> os seus<br />
conterrâneos texanos de Port Arthur, onde nasceu em 19 de<br />
fevereiro de 1943, de uma família <strong>com</strong>um, até liberal. Mas<br />
Port Arthur nunca interessou aquela menina de sardas no<br />
rosto, roupas e colares diferentes. Isolada, sozinha, rejeitada<br />
pelas amigas sulistas, ela matava o tempo lendo muito e<br />
ouvindo velhos bluseiros negros <strong>com</strong>o Leadbelly e uma<br />
cantora que marcaria fundo toda sua vida: Bessie Smith.<br />
85
Quando terminou o curso secundário, tentou uma<br />
carreira <strong>com</strong>o estudante de arte na Universidade de Lamar,<br />
em Beaumont, vizinha de Port Arthur. Tentou ainda um<br />
curso de secretariado na Universidade de Port Arthur. Não<br />
deu certo. Aliás, nada dava certo para Janis, <strong>com</strong> sua<br />
emoção exacerbada, sua vida agitada, bebendo e saindo<br />
<strong>com</strong> os rapazes. Os pais decidiram então tirá-la do clima<br />
sufocante de Port Arthur e a mandaram para Los Angeles,<br />
onde foi morar <strong>com</strong> uma parente. Por pouco tempo, pois<br />
logo estava no seu próprio apartamento, depois em um<br />
quartinho miserável no bairro de Venice, junto <strong>com</strong> os<br />
últimos beatnics. Janis <strong>com</strong>eçava a percorrer a dura estrada<br />
que sempre caracterizou a vida dos blueseiros.<br />
Os anos sessenta nasciam e Janis descobria o mundo<br />
louco, as drogas, o sexo, o South Confort, o gim. E apurava<br />
a voz nos acordes dolentes do blues. Em São Francisco<br />
Janis fica cinco anos, cantando em bares e clubes, tocando<br />
harpa e deixando a marca de excentricidade e loucura por<br />
onde passava. Nesse período, de 61 a 65, ainda volta três<br />
vezes para Port Arthur. Mas a loucura de São Francisco é<br />
que atrai Janis, a loucura das bolinhas e da heroína, o<br />
ambiente dos bares e clubes de blues. Numa dessas voltas<br />
tentou se recuperar, procurou ajuda psiquiátrica, inscreveuse<br />
na Universidade do Texas e tentou trabalhar <strong>com</strong>o<br />
garçonete. A lenda diz que as colegas determinaram<br />
novamente o caminho de Janis quando na festa de<br />
conclusão do curso lhe dão o título de O Homem Mais Feio<br />
do Campus. Janis vai embora sem se despedir de ninguém.<br />
De volta para a estrada, para São Francisco, onde ninguém<br />
crítica ou ri de sua aparência. Sobrevive de cantar em bares,<br />
empregos temporários e venda de drogas.<br />
Mas ainda não era sua hora. E Janis volta a Port<br />
Arthur, para casar. Muda o visual, volta à terapia e aguarda<br />
o noivo, que nunca apareceu. No lugar chegou Travis<br />
86
Rivers, conhecido de São Francisco, <strong>com</strong> um recado de<br />
Chet Helms: queria que Janis fosse cantar <strong>com</strong> uma banda<br />
que estava se formando, a Big Brother & Holding<br />
Company. A proposta era fazer blues eletrificado e "só<br />
Janis podia cantar essa música", avisava Helms. Janis<br />
aceita, é claro. Fracassa mais uma vez na sua tentativa de<br />
ser uma moça correta, serena, sossegada. Assume a loucura,<br />
agora sem retorno, e deixa registrado a partir desse<br />
momento alguns hits que só ela soube cantar. Era o verão<br />
de 66. Com a Big Brother, Janis explode. Mora <strong>com</strong> o<br />
grupo em uma <strong>com</strong>unidade rural, aprende a usar rendas,<br />
flores, correntes. É uma perfeita híppie, <strong>com</strong> visual e vida<br />
adequada à nova mentalidade. Mas Janis era rainha, deusa,<br />
star, e tudo para ela tem que ser em excesso, as flores, as<br />
rendas... as drogas <strong>com</strong> que enfrenta a solidão.<br />
O canto de Janis estoura em São Francisco, nas festas<br />
<strong>com</strong>unais dos parques, nos be-ins do verão e outono de 66.<br />
Daí aconteceu o festival de Monterrey e a imagem de Janis<br />
vestida de lamê, sapatos de salto fino, dourados, cabelos ao<br />
vento, rainha cigana cortando o ar <strong>com</strong> sua voz<br />
emocionada, conquistou o mundo. Como Hendrix e o The<br />
Who, antes dela, Janis incendiou o ambiente do festival,<br />
<strong>com</strong> uma energia que só um grande cantador de blues pode<br />
soltar. Em Monterrey nascia a primeira grande dama do<br />
blues e do rock. Quase a única. De Monterrey, Janis partiu<br />
para o disco, gravando <strong>com</strong> a Big Brother o álbum Cheap<br />
Thrills, onde estão Summertime e Ball and Chain, revistas e<br />
ampliadas <strong>com</strong> sua voz única. O disco foi um sucesso<br />
imediato, mas a Big Brother terminou ali. Janis porém era a<br />
estrela maior, capa de revistas, assunto dos principais<br />
programas de TV. Continuava, contudo, a garota triste e<br />
sozinha de Port Arthur.<br />
Nessa época Janis estava totalmente vencida pelo vício<br />
da heroina. Forma nova banda mas não consegue o mesmo<br />
87
esultado que teve <strong>com</strong> a Big Brother. Quer metais no<br />
fundo e se perde no meio deles. Está zonza, dopada, só. Sai<br />
pela rua apanhando garotos para transar, enche a casa de<br />
parasitas.<br />
No <strong>com</strong>eço de 70 tenta um tratamento contra o vício.<br />
Em fevereiro passa pelo Brasil, para descansar. Na volta<br />
forma nova banda, a Full Tilt Boogie Band, atravessa a<br />
América e o Canadá em turnê, livre das drogas pesadas.<br />
Em julho <strong>com</strong>eçou a gravar novo álbum, <strong>com</strong> a voz mais<br />
limpa, bebendo pouco. Mas por pouco tempo. Em setembro<br />
recebe a notícia da morte de Jimi Hendrix. No dia 2 de<br />
outubro assina um testamento. No mesmo dia deu entrada<br />
nos papéis para o casamento. Era uma sexta-feira. No<br />
sábado desceu do hotel para <strong>com</strong>prar cigarros. Quando a<br />
encontraram no domingo ainda estava <strong>com</strong> o troco e o<br />
maço de cigarros na mão. Uma dose normal de heroína pura<br />
havia acabado <strong>com</strong> sua vida. Um susto na vida de Janis.<br />
Um susto na América. A cultura da droga deixava sua<br />
segunda grande vítima. Uma rainha de pele branca <strong>com</strong> voz<br />
negra, mágica, blues.<br />
88
20. Mitos da passagem<br />
Muitos grupos ficaram fora desta história, alguns<br />
inclusive merecedores de destaque. É o caso do Jefferson<br />
Airplane, grupo símbolo daquela califórnia dreamin. O<br />
Loving Spoonfull, de John Sebastian, o Vanilla Fudge, o<br />
próprio Mamas & Papas. O Gratefull Dead de Jerry Garcia,<br />
grupo híppie até a alma. Steppenwolf, <strong>com</strong> a trilha de Easy<br />
Rider. Mothers of Invention, de Frank Zappa, surgindo em<br />
raia própria logo depois. E muitos outros que passaram<br />
aqueles tempos loucos.<br />
Quatro nomes, porém, não podem faltar nesse livro.<br />
Eles vivenciaram parte daqueles anos todos, mas estavam<br />
adiante, pensavam grande, à frente de todos os outros.<br />
Começaram nos 60 mas representam a passagem para o que<br />
viria depois e até hoje deixam marcas profundas. Ninguém<br />
pode negar o papel de vanguarda que tiveram o Pink Floyd,<br />
o King Crimson de Robert Frip e a poesia cortante de Lou<br />
Red <strong>com</strong> seu Velvet Underground, influência de muitos<br />
grupos ainda hoje.<br />
O Pink Floyd <strong>com</strong> a cabeça maluca de Sid Barret, seu<br />
grande mentor intelectual, abriu as "portas da percepção" da<br />
head-music; Robert Fripp e o King Crimson escreveram a<br />
pauta para o rock progressivo. Lou Reed descreveu o<br />
submundo, a droga, os subterrâneos, o outro lado da rua.<br />
Vamos a eles.<br />
A dissonância <strong>com</strong> o King Crimson<br />
O King Crimson é um dos últimos "produtos" ingleses<br />
da década de 60 (formado em 1968) e nasceu sob críticas.<br />
O próprio Keith Moon, em entrevista na Melody Maker do<br />
dia 6 de julho questiona: "Mais um disco? Não tem fim. É<br />
uma música do tipo John Sebastian. Existem centenas<br />
dessas canções <strong>com</strong> as mesmas superficiais e alteradas<br />
89
letras. Os violinos estão no banheiro. Um bom desembaraço<br />
a elas". Acredito que Keith deve ter se arrependido algum<br />
dia do que falou, porque o King Crimson seria durante<br />
anos, alterando a formação a todo momento mas sempre<br />
sob o <strong>com</strong>ando do guitarrista Robert Fripp, um dos mais<br />
importantes grupos experimentais do rock.<br />
Na realidade o Crimson não fazia rock, se tomarmos<br />
por base a estrutura "quadrada" que os outros grupos<br />
tinham <strong>com</strong>o base. O Crimson explodiu escalas,<br />
sonoridades, <strong>com</strong>passos, principalmente na sua última fase,<br />
na década da obscuridade que foram os anos 80.<br />
No início Fripp formou o grupo <strong>com</strong> os irmãos Giles<br />
(Peter, baixista, e Michael, baterista). O primeiro disco foi<br />
gravado em quatro dias -- The Cheerful Insanity of Giles,<br />
Giles and Fripp -- e dele foram tirados os singles que tanto<br />
irritaram Keith Moon. O álbum <strong>com</strong>pleto só foi lançado em<br />
setembro. Por essa época entram então no grupo aqueles<br />
que também seriam os pilares da criatividade do King<br />
Crimson, o poeta Pete Sinfield e o guitarrista Greg Lake.<br />
Greg veio morar <strong>com</strong> Fripp (estudaram juntos) e <strong>com</strong> a<br />
saída de Peter Giles passa a ocupar seu lugar. Mais tarde<br />
Greg vai ser o segundo no mega trio do progressivo<br />
Emerson, Lake and Palmer. Com a entrada desses dois, o<br />
grupo adota o nome King Crimson, isso já em janeiro de<br />
69. Em abril fazem sua primeira aparição no Speakeasy de<br />
Londres e no dia 14 de maio, após uma apresentação no<br />
Revolution, Fripp foi procurado por Jimi Hendrix que disse:<br />
"toque minha mão esquerda, cara, está mais perto do meu<br />
coração". No dia 5 de julho, na abertura do show dos Stones<br />
em homenagem a Brian Jones, o Crimson toca para cerca<br />
de 600 mil pessoas e ganha o espaço na mídia que<br />
precisava. O Melody Maker foi entusiasta: "O King<br />
Crimson será um gigante -- diz o jornalista B. P. Falon.<br />
90
Talvez eu esteja errado. Talvez. Dêem um ano e saberemos.<br />
Não, menos. Seis meses..."<br />
In The Court of the Crimson King é o primeiro álbum<br />
do grupo, lançado em outubro. O sucesso é imediato e abre<br />
as portas da América para sua primeira grande excursão,<br />
onde se apresentam ao lado de nomes <strong>com</strong>o The Band,<br />
Jefferson Airplane, Janis Joplin, Johnny Winter, Rolling<br />
Stones. Keith Moon, nesse momento, certamente já havia<br />
pedido desculpas a Fripp.<br />
Em 1970 o grupo se esfacela. Greg Lake vai formar o<br />
Emerson, Lake & Palmer: antes Michael Giles e Ian<br />
Wallace, que havia entrado também no grupo, haviam<br />
deixado Fripp falando sozinho. E em fevereiro, o pintor que<br />
idealizou a capa do primeiro LP do grupo, Berry Godber,<br />
falece de ataque cardíaco aos 24 anos. A barra pesou e o<br />
disco programado para aquele ano sai estraçalhado, porém<br />
mesmo assim In the Wake of Poseidon é uma obra-prima,<br />
<strong>com</strong> uma trilogia instrumental onde Fripp toca pela<br />
primeira vez o mellotron. Segundo Valdir Montanari, no<br />
trabalho "King Crimson, ou melhor King Fripp", Elton John<br />
era para ter cantado em Poseidon, "pela cifra de 250 libras<br />
esterlinas. Entretanto, Fripp acabou não gostando dele".<br />
A partir dessa época, sem grupo, sem músicos, Fripp<br />
radicaliza. O primeiro trabalho, de dezembro de 70, é o<br />
disco Lizzard, onde incorpora o jazz ao "rock sinfônico"<br />
que <strong>com</strong>eçava a surgir <strong>com</strong> os "progressistas". Daí pra<br />
frente ninguém mais parou no Crimson, <strong>com</strong> músicos se<br />
alternado, entrando e saindo do grupo. Fripp trabalha <strong>com</strong><br />
Brian Eno, ex-Roxy Music, Bill Bruford, ex-Yes. Em 76,<br />
anuncia em um disco o fim do grupo, mas volta em 81. No<br />
intervalo trabalha <strong>com</strong> Eno, Talking Heads, David Bowie.<br />
Nos final doa anos 80 a formação fica de acordo <strong>com</strong> o que<br />
sempre norteou seu trabalho: o experimentalismo. Bill<br />
Bruford volta à bateria, Tony Levin toca o stick, um baixo<br />
91
que se toca <strong>com</strong>o se fosse um teclado, e a outra guitarra fica<br />
nas mãos de um prodígio chamado Adrian Belew, que<br />
"aprendeu" <strong>com</strong> Frank Zappa, tocou nos Talking Heads e<br />
<strong>com</strong> David Bowie (inclusive na excursão brasileira). Dessa<br />
formação sai o álbum "Discipline" e um ano depois "Beat".<br />
Duas pérolas do rock experimental.<br />
O rock lisérgico e conceitual do Pink Floyd<br />
Roger Waters havia acabado de trocar o subúrbio pela<br />
agitação de Londres e logo encontra outros dois<br />
"forasteiros" de Birmingham, Rick Wright e Nick Mason,<br />
na Escola Politécnica em que deviam estudar arquitetura.<br />
Deviam, porque nas conversas o assunto era apenas música.<br />
Um dia aparece na vida dos três um outro "desertor" da<br />
escola de Belas Artes, um sujeito estranho e <strong>com</strong> idéias<br />
malucas chamado Roger Keith Barret, apelidado Syd, 18<br />
anos de idade e experiências que incluíam as incursões<br />
pelas drogas e pelo bas-fond da cidade.<br />
Syd viera de Cambridge junto <strong>com</strong> David Gilmour, e<br />
juntos já faziam algum som e muita confusão. O contato<br />
<strong>com</strong> Syd pirou a cabeça de Roger, Rick e Nick, que<br />
abandonam a escola de Arquitetura e fundam um grupo<br />
para se apresentar nos bares. Ainda não era o Pink Floyd,<br />
nome que adotam apenas um ano depois, <strong>com</strong> muita<br />
pretensão: The Pink Floyd Sound. Idéia de Syd, que uniu os<br />
nomes de dois blueseiros, Pink Anderson e Floyd Council.<br />
Um ano depois cai o Sound. No ano seguinte esquecem o<br />
The. Era 1966, Frank Zappa já mostrava alguns caminhos<br />
<strong>com</strong> seu Mothers of Invention, Robert Fripp circulava <strong>com</strong><br />
o King Crimson e suas dissonâncias, os Beatles incluíam o<br />
sitar indiano e o cravo barroco em sua música e Syd Barret,<br />
fervoroso adepto do ácido lisérgico, abria um novo caminho<br />
para seu grupo, <strong>com</strong> melodias próprias, lindas e estranhas.<br />
92
Um som diferente, uma música espacial, erudita, feita de<br />
harmonias e efeitos. Interessante é que o próprio Waters<br />
lembra que o disco que Syd mais ouvia naquele período era<br />
o Between The Buttons, dos Stones (lançado em janeiro de<br />
67), porém não dá para perceber nenhuma influência dos<br />
Stones no seu trabalho.<br />
Foi nessa época que Syd <strong>com</strong>eçou a "viajar" <strong>com</strong> as<br />
bolhas coloridas que os grupos da Califórnia usavam nos<br />
shows, adaptando aos seus concertos toda parafernália<br />
visual que chegava a suas mãos. Todos os grupos partiam<br />
para o rock vigoroso da bateria e dos solos rascantes. O<br />
Floyd sacrificava o sucesso tecendo harmonias e estruturas<br />
sonoras límpidas, envolventes e dispersas em climas<br />
soturnos. No palco, para aumentar o efeito que queria <strong>com</strong><br />
as letras e a melodia o grupo usava as luzes estroboscópicas<br />
e coloridas, filmes, slides. Nada de sucesso, nada de disco<br />
nas paradas.<br />
O Floyd era o marginal chique, que todos deviam<br />
conhecer mas que ainda não interessava à indústria. O ano<br />
de 66 passou assim em branco. No verão de 67 estão <strong>com</strong><br />
dois avulsos, a misteriosa fábula Arnold Layne e o onírico<br />
See Emily Play. O Pink Floyd é odiado nos bailes, sua<br />
música é considerada sem ritmo, não convida à dança. É<br />
adorado porém pela "inteligentsia", pelo circuito in. Waters,<br />
porta voz do grupo, divulga o manifesto do Floyd:<br />
"tocamos o que queremos e o que achamos novo. Somos a<br />
orquestra do movimento alternativo porque tocamos o que<br />
as pessoas livres querem ouvir...". Em julho gravam seu<br />
primeiro álbum, The Piper ant The Gates of Dawn,<br />
iniciando uma histórica série de álbuns conceituais, <strong>com</strong><br />
sonoridade única, marca registrada do Floyd.<br />
O primeiro álbum do Pink Floyd sai no entanto em um<br />
momento crítico para o grupo. O louco e brilhante Syd<br />
Barret, responsável pela filosofia, pelo visual e pelos<br />
93
primeiros sucessos do grupo está irremediavelmente<br />
perdido numa nuvem de loucura, insensatez, acessos de<br />
fúria, viagens... Para no meio do show para afinar a<br />
guitarra, vive olhando para um vazio infinito. Durante um<br />
show nos EUA, insiste em tocar uma única nota. Mason,<br />
Wright e Waters têm que tomar uma decisão difícil. Syd<br />
além de grande amigo é a alma do Pink Floyd. Porém não<br />
há mais solução. O grupo decide colocar outro guitarrista<br />
no seu lugar e chama da França David Gilmour, amigo de<br />
Syd. Gilmour não tem a inspiração louca de Syd mas sua<br />
guitarra traz um som que será o som do Floyd, <strong>com</strong><br />
tecituras leves, longas sustentações nas notas, bem de<br />
acordo <strong>com</strong> o clima que o grupo passa a dar ao seu<br />
trabalho: uma fusão rock/música concreta, arranjos<br />
experimentais, climáticos.<br />
O segundo álbum, Saucerful of Secrets traz uma faixa<br />
<strong>com</strong> o mesmo nome de 11 minutos, <strong>com</strong> o órgão de Wright<br />
e a guitarra de Gilmour flutuando sobre o arranjo rítmico.<br />
Depois desse disco o grupo sai do circuito<br />
alternativo/universitário e vai para a França, onde Gilmour<br />
tem amigos. É o início de 68 e o som do Pink Floyd faz a<br />
cabeça dos estudantes de Paris que se agitam nas<br />
"barricadas" do chamado Maio de 68, movimento de<br />
contestação estudantil de que falamos na primeira parte<br />
deste livro. Na mesma Paris o som do Floyd é fundo<br />
musical para uma exposição de op-art, iniciando um outro<br />
namoro que seria uma constante no grupo: a <strong>com</strong>binação da<br />
música <strong>com</strong> outras artes, principalmente o cinema. More,<br />
filme de Barbet Schroeder, é o primeiro filme <strong>com</strong> trilha do<br />
Floyd. No ano seguinte seriam responsáveis pelo som que<br />
ilustra a cena mais importante de Zabriskie Point, outro<br />
clássico de Michelangelo Antonioni sobre a década de 60<br />
(ele já havia feito Blow-up, <strong>com</strong> os Yardbirs, lembram-se?).<br />
A música do Pink Floyd aparece na cena final, onde uma<br />
94
casa tipicamente classe média americana explode levando<br />
para o ar todos os símbolos do consumo que os híppies<br />
deixaram de lado -- tv, geladeira, carros, cachorros-quentes.<br />
Antes já haviam lançado Ummagumma, considerada a<br />
soma mais perfeita das experiências do Pink Floyd até<br />
então, onde cada um gravou sua parte separadamente.<br />
Em 69 o grupo tenta ainda trazer Barret para o estúdio<br />
e produzem um álbum-documento (The Madcap Laughs).<br />
No ano seguinte, depois de nova tentativa <strong>com</strong> o amigo,<br />
desistem definitivamente de ter Syd <strong>com</strong>o <strong>com</strong>panheiro<br />
musical. A década estava acabada, muitos grupos haviam<br />
sido desfeitos, os festivais acabaram, mas o Pink Floyd<br />
<strong>com</strong>eça a partir dali, daquele início dos 70, a abrir mais<br />
espaço para suas experiências, agora melhor recebidas. Os<br />
shows do grupo passam a acontecer ao ar livre, os sons<br />
etéreos, "pensantes" do Floyd sobrevoam as árvores do<br />
Hyde Park, as toneladas de amplificadores, filmes, bombas<br />
de efeitos, luzes gigantes correm os Estados Unidos de<br />
costa a costa e nasce nesse ano o trabalho mais discutido do<br />
grupo: Atom Heart Mother.<br />
De um lado o disco contém músicas curtas. O outro é<br />
uma longa suíte <strong>com</strong> uma miscelânea de rock, música<br />
concreta e romântica, gravada <strong>com</strong> o apoio de uma<br />
orquestra e coro. O próximo álbum, Meddle, traz outro hit<br />
longo e descritivo, Echoes, que é tema de um especial de<br />
TV, Live at Pompeii, gravado <strong>com</strong> o grupo tocando nas<br />
ruínas de Pompéia. Logo depois lançam seu trabalho mais<br />
<strong>com</strong>ovente, "uma jornada musical pelos subterrâneos da<br />
loucura", <strong>com</strong>o define Waters. É o álbum The Dark Side of<br />
the Moon, uma homenagem a Barret. "A face clara e<br />
brilhando da lua qualquer um pode ver. Mas só o louco vê o<br />
lado oculto da lua e de todas as coisas", explica Rogers<br />
Waters, que agora é a grande cabeça do Floyd.<br />
95
O disco é o maior sucesso do Floyd, estourando na<br />
Inglaterra e nos Estados Unidos. Os futuros lançamentos do<br />
Pink Floyd serão álbuns sempre conceituais, trabalhados<br />
em cima de uma idéia básica, <strong>com</strong> uma linguagem<br />
cinematográfica e o uso de todos os recursos possíveis de<br />
estúdio e amplificação. Sua aparelhagem é en<strong>com</strong>endada<br />
diretamente nas fábricas, para que o som do grupo ao vivo<br />
repita os efeitos que conseguem em estúdio. O Floyd<br />
continuaria esse trabalho durante todos os anos 70 e entram<br />
na década de 80 produzindo trabalhos marcantes <strong>com</strong>o The<br />
Wall, outra idéia brilhante de Waters que se transforma em<br />
um filme lindo e o álbum The Final Cut, um corte profundo<br />
no sistema inglês <strong>com</strong> críticas diretas a Margareth Thatcher<br />
e um tema básico em todo o disco que estava sendo<br />
frequente no trabalho de Waters: as reminiscências-críticas<br />
à guerra.<br />
"O Pink Floyd foi um conjunto de vanguarda, à frente<br />
dos demais. Seu trabalho <strong>com</strong> rock eletrônico era muito<br />
mais avançado do que a maioria das pessoas conhecia e seu<br />
uso de um terceiro som, antecipou-se ao quadrafônico. Sua<br />
música, mesmo sem ser memorável, atingiu todos os limites<br />
possíveis da pesquisa". (John Kepler, na revista Rolling<br />
Stone de janeiro de 71).<br />
96
21. Lou Reed: a pop-art patrocina o rock<br />
O movimento da pop-art <strong>com</strong>eçou na Inglaterra antes<br />
mesmo que a década de 60 <strong>com</strong>eçasse, porém os artistas<br />
dos pincéis ingleses não se envolveram tanto <strong>com</strong> os<br />
artistas das cordas <strong>com</strong>o os artistas pop americanos.<br />
Principalmente um deles, um multimídia famosos que<br />
mesmo não sendo o pioneiro é o nome mais lembrado<br />
quando se fala nesse movimento: Andy Warhol.<br />
Andy Warhol era rockeiro por natureza. Foi ele quem<br />
deu apoio e impulso a duas carreiras importantes do rock --<br />
o Velvet Underground de Lou Reed e o trabalho do<br />
camaleão mor do rock, David Bowie.<br />
Warhol já era um cara de grana e poder dentro da<br />
publicidade quando criou uma fábrica de "loucos", a<br />
Factory, imenso estúdio onde misturou artes plásticas,<br />
cinema experimental, vídeo e, é claro, rock. Além de muito<br />
homossexualismo. Tanto que a pop-art é quase sinônimo de<br />
Andy Warhol, apesar de outros nomes importantes nessa<br />
corrente das artes que balançou os sixties. Aqui vamos<br />
parar em outro personagem importantíssimo, marco divisor<br />
na música dos sixties. Falamos de Lou Reed, o suprassumo<br />
da marginalia do rock.<br />
Ele não tinha nada porque se meter naquela loucura de<br />
música. Nasceu em um bairro rico de Nova Iorque (Long<br />
Island), filho mais velho de um advogado muito rico,<br />
adolescente que tinha tudo para se adequar ao sistema. Mas<br />
Lou Reed é Lou Reed. Seus autores prediletos: Rimbaud,<br />
Shakespeare. A diversão maior: passear pelo lado sórdido<br />
de Nova Iorque, pelo wild side que colocou em música.<br />
Beats, drogados, prostitutas, este era o universo em que se<br />
sentia bem. Principalmente se pudesse colocar em ritmo de<br />
rock as poesias <strong>com</strong> que procurava mostrar suas<br />
experiências. Pesadas, diga-se de passagem.<br />
97
A família insistiu e Lou entrou na universidade, para<br />
seguir a carreira do pai. Fica um ano na escola e abandona<br />
tudo, família, dinheiro, e vai viver apenas <strong>com</strong> uma<br />
pequena mesada e o salário de balconista de uma loja de<br />
discos em Nova Iorque. Seu sonho é ser poeta, <strong>com</strong>positor.<br />
Escreve poemas atrás de poemas, manda seus trabalhos<br />
para as revistas mas ninguém aceita aqueles escritos<br />
anticonvencionais. Nem beat, nem um folk <strong>com</strong>portado:<br />
apenas uma sensibilidade exacerbada em temas<br />
absolutamente in<strong>com</strong>uns. Os estudantes fazem a apologia<br />
do LSD, ele fala de heroína. Para ela inclusive escreve uma<br />
elegia profunda, que nem mesmo os grupos <strong>com</strong> que toca<br />
querem levar a público. E ele passa de banda em banda, de<br />
bar em bar, até encontrar o parceiro certo, um inglês<br />
fleumático que toca piano clássico: John Cale. Com mais<br />
dois músicos forma então o The Falling Spikes.<br />
Aqui já estamos em 1965, e desde 1963 ele batalha na<br />
"grande maçã". Um dia lê uma novela em uma revista<br />
pornográfica <strong>com</strong> nome parecido <strong>com</strong> os nomes que<br />
floresciam na cultura psicodélica (Iron Butterfly, Borboleta<br />
de Ferro, Vanilla Fudge, Sorvete de Baunilha, Led<br />
Zeppelin, Zeppelin de Chumbo) e decide mudar o nome do<br />
grupo para Velvet Underground, Subterrâneo de Veludo. O<br />
nome certo para quem vive os subterrâneos. Mas nem assim<br />
querem saber do Velvet. Toca no Café Bizarre, do Village,<br />
bar de estudantes, pré-híppies, drogados de todos os tipos,<br />
coristas, artistas malditos <strong>com</strong>o ele. Essa platéia o entende.<br />
Mas é pequena.<br />
A mão de anjo aparece em 66, quando Andy Warhol<br />
conhece o grupo e leva Lou e banda para a Factory. Lá ele<br />
pode ensaiar, conviver <strong>com</strong> todo tipo de artistas marginais<br />
<strong>com</strong>o ele. O Velvet passa a fazer parte do projeto de "artetotal"<br />
de Warhol, fazendo backing e trilhas para seus<br />
projetos malucos; circulando pelos subterrâneos da cidade;<br />
98
participando de happenings. Nico, superestrela do<br />
underground, entra no grupo e junto <strong>com</strong> Lou canta a<br />
loucura de Nova Iorque, a droga, o que acontece na rua,<br />
<strong>com</strong> um ritmo que Cale faz ficar agressivo, violente,<br />
primitivo. Maldito em Nova Iorque é <strong>com</strong>o maldito no<br />
Brasil (que o digam Mautner, Macalé, Melodia) -- têm um<br />
público que se identifica e cresce a cada show. O Velvet, ao<br />
lado de Andy Warhol, vira in, cult. A imprensa, contudo,<br />
detesta o grupo, a América odeia a excursão que fazem em<br />
66/67.<br />
Lou Reed, porém, é Lou Reed, marginal assumido,<br />
confesso, irredutível. E o Velvet sobrevive dois anos, até<br />
que Warhol consegue um contrato de gravação. Mais por<br />
sua influência do que pelo som e pelas loucuras que o grupo<br />
<strong>com</strong>ete. "Cada disco do grupo vai, automaticamente, para a<br />
geladeira", lembra Ana Maria Bahiana (a mulher que mais<br />
entende de rock no Brasil, hoje correspondente de um<br />
jornal nos EUA). "Nenhuma divulgação, nenhuma venda<br />
digna de nome". Nico e Cale abandonam o grupo, Lou<br />
continua sozinho. "Cabelos curtíssimos, casaco de couro,<br />
cara fechada, é um estranho anacronismo ambulante",<br />
continua Ana. "Nem poeta do New Yorker, nem <strong>com</strong>positor<br />
profissional, nem astro de rock, Lou é um fracasso doloroso<br />
que se sustenta <strong>com</strong> o vício e <strong>com</strong> a amizade de Doug Yale,<br />
que apresenta <strong>com</strong>o irmão".<br />
Era quase o fim do Velvet, que termina a década<br />
tocando em uma boate de bichas e Lou desaparece. O<br />
Velvet tinha chegado ao fim. Lou se recolhe a casa da<br />
família em Long Island. Um ano depois, já em 71, é<br />
convidado e participa de um recital de poesia no mesmo<br />
Village. Ali recita as letras de Heroin, Venus in Furs,<br />
Waiting for the Man (olha os títulos!) O tempo havia<br />
passado, e <strong>com</strong>eçam a entender suas letras malditas. Recebe<br />
um convite para escrever na revista Fusion, as coisas<br />
99
<strong>com</strong>eçam a melhorar e então ele vai para a Inglaterra, onde<br />
grava o primeiro disco solo. Nada, Ninguém quer saber de<br />
Lou também em Londres. Volta aos subterrâneos, se<br />
entrega <strong>com</strong>o sempre ao mundo que conhece -- drogas<br />
pesadas, etc. -- e então acontece. Bowie, agora o protegido<br />
de Warhol, porque também teve que <strong>com</strong>er o pão que o<br />
diabo amassou até se firmar <strong>com</strong>o estrela, relança Lou<br />
Reed. Walk in The Wild Side, seu hino até hoje, chega à<br />
parada de sucessos e, voltamos a Ana Maria Bahiana, "da<br />
noite para o dia, Lou sai do subterrâneo para a luz. E não se<br />
deixa afetar. Continua mal encarado, sombrio, arrogante...".<br />
No próximo disco, já sem Bowie, grava <strong>com</strong> Jack Bruce<br />
(Cream), Stevie Winwood (Traffic), Aysley Dunbar e Steve<br />
Hunter. Faz um trabalho cinematográfico de terror e<br />
amargura, contando a história de um casal em Berlim. O<br />
nome do disco, aliás, é este: Berlin (<strong>com</strong> n, mesmo). Estava<br />
incrustrada no céu do rock mais uma estrela de brilho<br />
venusiano.<br />
"Lou Reed é o autor mais importante e mais definitivo<br />
do rock moderno. Não por causa do que ele escreve, mas<br />
pela orientação que ele dá ao que escreve. Metade dos<br />
grupos que estão por aí não existiriam sem Lou. Nova<br />
Iorque é Lou Reed". Assinado: David Bowie.<br />
100
Pós-fascio<br />
O rock morreu?<br />
Viva o pós-rock<br />
"My mind, hey, hey...<br />
<strong>Rock</strong> and Roll is here to stay...<br />
Hey, hey, my mind<br />
<strong>Rock</strong> and Roll will never die..."<br />
Neil Young<br />
Já tentaram muitas vezes matar o velho rock. Desde<br />
que a discoteca abriu o experimento para os sons<br />
eletrônicos e mais ainda quando a música eletrônica invadiu<br />
nos anos 80 as pistas de dança em todo mundo, fala-se que<br />
o rock é coisa de dinossauros, que o rock morreu. Mas ele<br />
continua vivinho da silva. Basta ver o que vêm fazendo<br />
grupos alemães, ingleses e norte-americanos, que estão<br />
usando a velha estrutura do power trio - guitarra-baixobateria<br />
- e substituindo solos megalomaníacos e vocais<br />
melódicos por zonas virtuais, tempo mecânico e interfaces<br />
híbridas, as guitarras se transformando em meio de criação<br />
de novas texturas ao invés de riffs e distorções.<br />
As bandas novas levam nomes estranhos, mas estão<br />
reinventando o mais jurássico dos estilos. São exemplos o<br />
Euphonic, Ilium, To rococo rot, Kreidler, Tortoise e<br />
Rokeback? Esses e outros grupos estão reiventando <strong>com</strong><br />
muita criatividade o dinossauro rock de quatro acordes.<br />
Nesse novo milênio onde o rei dos palcos modernos<br />
passou a ser o DJ e suas pick-ups, essas bandas estão<br />
incorporando recursos eletrônicos à velha formação<br />
guitarra-baixo-bateria, ampliando as possibilidades de<br />
criação, unindo os beats eletrônicos dos samplers e<br />
<strong>com</strong>putadores a coisas arcaicas <strong>com</strong>o moogs, piano<br />
101
acústico, sintetizadores dos anos 70. O termo para a nova<br />
onda já foi definido pela crítica: pós-rock. Mas ainda é<br />
novidade no Brasil, apesar de que o Tortoise já passou por<br />
aqui mostrando sua modernidade.<br />
A onda surgiu, <strong>com</strong>o sempre, nos EUA e Europa na<br />
segunda metade dos anos 90. E a tendência aponta um<br />
futuro promissor para o rock, onde solos megalomaníacos e<br />
vocais melódicos serão substituídos por zonas virtuais,<br />
tempo mecânico e interfaces híbridas. E uma onda retrôfuturista,<br />
<strong>com</strong>o diz o jornalista Giancarlo Lorenci, na<br />
revista Simples?, uma mistura de referências que orienta as<br />
direções para a música dos próximos tempos.<br />
Cobrindo universos estéticos muito diversos, esse é um<br />
tipo de música que não se prende a territórios demarcados,<br />
<strong>com</strong>o explicou Simon Reynolds, o criador da expressão,<br />
numa edição da revista Wired, em 94. Ele se referia a<br />
grupos que "usavam instrumentos convencionais de uma<br />
banda de rock, mas <strong>com</strong> diferente atitude e intenção<br />
estética, incorporando ainda todos os tipos de recursos<br />
eletrônicos, desde sofisticados sistemas digitais até<br />
ultrapassados equipamentos analógicos".<br />
"O que fica claro nessa conversa é que o pós-rock é a<br />
música do século XX refletindo a si mesma. O que emerge<br />
dessas re<strong>com</strong>binações de informação genética musical são<br />
verdadeiros paradoxos sonoros, onde elementos que<br />
habitualmente consideramos opostos convivem gerando<br />
inesperadas configurações, construindo criaturas híbridas<br />
num universo sem pontos fixos, onde música, arte e<br />
linguagem encontra-se em constante efervescência", diz<br />
Giancarlo Lorenci. Na realidade já havia grupos fazendo<br />
esse tipo de experimento em plenos anos 70, <strong>com</strong>o o<br />
Kraftwerk, "pai" dos eletrônicos. Giancarlo também cita o<br />
CAN, "um grupo pioneiro neste tipo de experimentação,<br />
<strong>com</strong> sua pesquisa musical ousada e densa, fundindo<br />
102
elementos de diversos tipos de música de uma forma<br />
totalmente orgânica, onde o resultado soava mais do que<br />
uma mera mistura, mas a direção de novos rumos para a<br />
música pop ocidental. Não por acaso, um de seus mais<br />
importante álbuns chama-se Future Days".<br />
Ele continua: "A música de Brian Eno, <strong>com</strong> seu<br />
conceito de ambient music, é outra importante referência,<br />
profetizando muito da estética atmosférica do pós-rock.<br />
Outros ingredientes importantes para a receita vieram dos<br />
improvisos do jazz de vanguarda, e do uso criativo de<br />
recursos eletrônicos <strong>com</strong>o o sampler e do minimalismo de<br />
<strong>com</strong>positores <strong>com</strong>o Terry Riley e Lamonte Young".<br />
E ele lembra: "Em meio a tanta diversidade e <strong>com</strong><br />
novas idéias e projetos aparecendo a toda hora, a história do<br />
pós-rock ainda está se desenhando. Mas algumas<br />
associações podem nos situar melhor no contexto dessa<br />
tendência. Alguns dos primeiros grupos a receberem a<br />
denominação, não sem alguma oposição, foram os belgas<br />
do Stereolab e os ingleses Disco Inferno, Seefeel e<br />
Moonshake. Esses grupos seguiam um caminho já trilhado<br />
pelo Joy Division, Cabaret Voltaire, Duruti Column e<br />
Cabaret Voltaire, que em plenos anos 80 faziam sucesso e<br />
misturavam rock e eletrônica. E o espectro de referências é<br />
ainda maior, sendo possível encontrarmos elementos do<br />
pós-rock também em diversas gerações do rock americano,<br />
de Velvet Underground, do velho Lou Reed, a Sonic Youth,<br />
<strong>com</strong> escala no rock progressivo".<br />
Bem, esse livro termina <strong>com</strong> esse veio de esperança<br />
para roqueiros fanáticos que não esquecem os acordes de<br />
Keith Richards e Jimi Page e se deliram <strong>com</strong> os solos de<br />
Jimi Hendrix. O velho rock and roll, portanto, não morreu.<br />
Apenas hiberna para renascer <strong>com</strong>o Fênix, inspirando<br />
novas gerações <strong>com</strong> seu conceito revolucionário.<br />
103