You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Gentileza: resto de feira.<br />
Este poema épico suburbano se constrói sobre o comportamento<br />
<strong>do</strong> brasileiro de baixa renda. A relação entre mães e filhos, uma<br />
catarse inscrita no samba, no funk, no ódio, na praia ou – no<br />
caso <strong>do</strong> poema – numa churrascada pela vizinhança.<br />
Na busca lírica pela identificação com o leitor jovem, pouco<br />
afeito à leitura, menos ainda à poesia, mergulha<strong>do</strong> em sons e<br />
fúrias, estudante, sonha<strong>do</strong>r ou desemprega<strong>do</strong>, exposto às<br />
cobranças e à necessidade de se expressar através da rede<br />
mundial de computa<strong>do</strong>res, enfim, o poema inscreve personagens<br />
e convida este tipo de leitor ao cenário familiar de um churrasco<br />
em que uma senhora de língua solta, dispara sua metralha<strong>do</strong>ra<br />
verbal conversan<strong>do</strong> com a filha (e com o leitor).<br />
“Educação se traz de casa!”<br />
Esta frase é frequentemente berrada em ocasiões não muito<br />
civilizadas ou quan<strong>do</strong> uma família ocupadíssima julgue que<br />
professores tenham por obrigação fazer o milagre da multiplicação<br />
<strong>do</strong> respeito e da generosidade entre os estudantes.
6<br />
Helton Lacerda<br />
Dona Creusa não manda reca<strong>do</strong>.<br />
Rédea - curta em casa antes que o mun<strong>do</strong> lhe encha de coices os<br />
mais inúteis arrependimentos.<br />
O poema vai desenhan<strong>do</strong>, ao longo <strong>do</strong> churrasco, inconformidades<br />
que vão <strong>do</strong> sonho à frustração, passan<strong>do</strong> pela esperança que<br />
renasce em meio à vasta pancadaria sentimental por compreender<br />
nossas <strong>do</strong>res e sofrimentos, ainda que fazen<strong>do</strong> piada, ameaça<strong>do</strong><br />
pela comédia de sorrir só para não incomodar os outros.<br />
No meio <strong>do</strong> churrasco, esta senhora desbocada e escandalosa<br />
abre o verbo contra o falso riso da juventude, contra a ignorância<br />
<strong>do</strong>s que sabem ler, contra a hipocrisi a de se criar os filhos para<br />
serem ousa<strong>do</strong>s e bonitos, embora cruéis e sem caráter.<br />
Por fim, deixo à sanha de sociólogos fãs de Roberto DaMatta<br />
o lega<strong>do</strong> desta versalhada que se propõe educativa tanto<br />
quanto os gritos daquela mãe – que esbravejava até dar me<strong>do</strong><br />
– que só quer ajudar a crescer, sem superproteger. O que<br />
pode parecer cruel. E é.
A mão desengoliu a pedrada<br />
na quina <strong>do</strong> cochicho degola<strong>do</strong>,<br />
carne queiman<strong>do</strong> na grelha,<br />
prato de farofa ofereci<strong>do</strong> com cuida<strong>do</strong><br />
naquela churrascada<br />
Assim falou d. Creusa<br />
onde cachorro esfomea<strong>do</strong> lambe até asfalto.<br />
O suor, respingo esfregância,<br />
era berra<strong>do</strong> no calor sur<strong>do</strong> da batida,<br />
no arranco da ira sonora,<br />
inhaca de bafo e saliva rançosa,<br />
estalo de cuspe no ritmo,<br />
rosna<strong>do</strong> de gata no ouriço,<br />
fato joga<strong>do</strong> no rio,<br />
que porre de calha é sangria<br />
e marra de ladrão é caçapa!
8<br />
Cerveja regada na melação,<br />
podre, azeda, fraterna,<br />
queimação no goró<br />
escancara revolta,<br />
Helton Lacerda<br />
que de problema se enche a paciência<br />
embarrigan<strong>do</strong> a semana inteira<br />
sentimenta<strong>do</strong> na latrina d’esquecer<br />
que a cama onde se <strong>do</strong>rme<br />
é intestino que s’estorce.<br />
Toco de cigarro é ouro<br />
coça<strong>do</strong> na calçada<br />
pela unha <strong>do</strong> acaso,<br />
encharcan<strong>do</strong> na cachaça,<br />
essa cara de mendigo<br />
sorridente na saudade <strong>do</strong> tempo de menino.<br />
Foi quan<strong>do</strong> a roda despernada,<br />
descarnan<strong>do</strong> espevitada,
dançava que se rebolava<br />
e de lá se vinha, de muleta manquejan<strong>do</strong>,<br />
– que leseira esse <strong>do</strong>mingo!<br />
Toca-se pra longe o perrengue<br />
aos murros desembesta<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> horror que vem quican<strong>do</strong>,<br />
feito bola, futebol,<br />
lançamento cruzan<strong>do</strong> a grande área,<br />
ou no basquete,<br />
naquela sede atravessan<strong>do</strong> a secura<br />
da língua dentro <strong>do</strong> beijo resseca<strong>do</strong><br />
por três lágrimas em dinheiro,<br />
três rezas de encomenda,<br />
três pontos na final.<br />
É o que se leva dessa vida,<br />
comenta-se de fulano,<br />
a hora é de xingar quem merece,<br />
Assim falou d. Creusa<br />
9
10<br />
e o tamborim, o repique,<br />
Helton Lacerda<br />
e a vontade de abraçar essa menina em tremelique,<br />
de saia esvoaçanhosa pelo vento,<br />
de uma tarde bem mais quente que carvão<br />
respinga<strong>do</strong>, engordurassan<strong>do</strong>...<br />
na brasa <strong>do</strong> fogo alto<br />
refogan<strong>do</strong> na dança aquele tempero sem calcinha.<br />
E até criança entrava na roda,<br />
<strong>do</strong> pancadão, <strong>do</strong> batidão,<br />
na sacanaliência,<br />
extravaganagem.<br />
- Faça de besta que filha minha não se solta em baile,<br />
a pista lá em casa sou eu,<br />
que sou mãe dela,<br />
já que o pai é um safa<strong>do</strong>!<br />
Sempre foi, que Deus tenha aquele diabo!<br />
que se acabou na pinga e no teco da farra!
igão e zoadeiro, o pai dessa menina,<br />
pergunte a quem se lembra,<br />
ele brigava era de faca,<br />
e faca de churrasqueiro pra ele era navalha,<br />
da mesma que faz sangueira na barba desse pernil,<br />
dessa picanha, dess’alcatra,<br />
dessa vida mal-passada, passa o sal me faz favor,<br />
esse torresmo com limão é de lei,<br />
com rodela de cebola, fatia de salame<br />
e desce mais um prato com uns pedaço de queijo,<br />
me segura que já fico ruim,<br />
toda torta encervejilda,<br />
na chapação dessa manguaça,<br />
enquanto minha menina me olha atravessa<strong>do</strong>,<br />
pensan<strong>do</strong> que sou velha,<br />
só porque tenho ruga na cara,<br />
me deixa, garota, aproveita que tô calma,<br />
cuida bem desse beiço namora<strong>do</strong>,<br />
Assim falou d. Creusa<br />
11
12<br />
Helton Lacerda<br />
que vou de pista pra negócio,<br />
aqui na selva, beiço é couro de se dar no beijo,<br />
respeite sua mãe, filha sonsa,<br />
mas saben<strong>do</strong> que na selva não se tem mãe,<br />
no calor da hora e no gargalo da cerveja,<br />
você, criança, que já sabe fazer criança,<br />
sabe melhor <strong>do</strong> que eu,<br />
ou acha que sabe, só porque acha ridícula<br />
toda beleza que não sai de você,<br />
cala a boca e bebe,<br />
vê se não chateia,<br />
não sei quem te ensinou a ser marrenta,<br />
assim, tão cheia de vontade<br />
de não fazer nada.<br />
Eu que sou tua mãe,<br />
nunca fui assim,<br />
eu na tua idade fazia me<strong>do</strong>,<br />
de lindeza e no conceito,
que d’esperar cair <strong>do</strong> céu,<br />
só chuva, sereno e bala,<br />
contanto que me errem.<br />
Comigo ninguém tira farinha,<br />
Que de conversa já tô cheia,<br />
Vacilou é na ripada,<br />
Feito aquele bebum<br />
Que parou na esquina<br />
Falan<strong>do</strong> besteira.<br />
Chamaram o Capiroto,<br />
Vigilante da bocada,<br />
Chamou uns e outros na fala,<br />
Gaguejou levou mãozada.<br />
Apanhar se apanha to<strong>do</strong> dia,<br />
Tem gente que gosta,<br />
Tem gente q’estrila,<br />
De repente se toca,<br />
E corre a cutia,<br />
Assim falou d. Creusa<br />
13
14<br />
Na correia <strong>do</strong> cinto,<br />
Fivelada nas costas,<br />
Educan<strong>do</strong> pra vida.<br />
Estudar é pra quem quer,<br />
Trabalhar não tem querer,<br />
Vagabun<strong>do</strong> que rouba carro,<br />
A gente passa na engrena<br />
Esmagan<strong>do</strong> contra o muro,<br />
Helton Lacerda<br />
Moen<strong>do</strong> a preguiça de andar<br />
Na roda da marcha à ré.<br />
Eu conto essas coisas,<br />
Como quem vê futebol,<br />
De olho em tanto lance,<br />
Na reprise <strong>do</strong> cerol,<br />
Passa<strong>do</strong> em moto-lento,<br />
Pra torcida levantar,<br />
Na onda de telão,<br />
Passa de novo que eu quero ver...