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Entre uma carta e outra.pmd - Teia Notícias

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Caio Derosso<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong><br />

e <strong>outra</strong><br />

Cinco histórias no mesmo tempo<br />

xx


<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong><br />

e <strong>outra</strong><br />

Cinco histórias no mesmo tempo


Agradecimentos<br />

A<br />

meus pais, João e Suzana, pelo apoio e pela confiança creditada<br />

em mim e aos seus cônjugues, Claudia e Rinaldo com quem eu<br />

percebi que sempre poderei contar. À minha namorada Lediane<br />

e ao meu irmão João Paulo, pelo companheirismo, paciência, ideias e<br />

broncas. Ao Franklin por toda a diagramação do livro. Ao meu orientador<br />

Marcelo Lima e aos meus colegas de sala, em especial a Karla Dudas,<br />

pelas ideias mirabolantes. E, em especial, meu agradecimento a todos<br />

os meus entrevistados que tornaram o livro possível.<br />

Por mais humilde que seja, um bom<br />

trabalho inspira <strong>uma</strong> sensação de vitória.<br />

Jack Kemp


Caio Derosso<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong><br />

Cinco histórias no mesmo tempo<br />

Conheça as histórias alegres, tristes, boas e ruins, os fatos<br />

marcantes e os diversos ataques de cachorros que ocorrem<br />

todos os dias entre <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong>.<br />

Curitiba<br />

2009


Universidade Positivo, 2009<br />

1ª Edição, <strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong><br />

Cinco histórias no mesmo tempo<br />

Produção<br />

CAIO DEROSSO<br />

Revisão<br />

MARCELO LIMA, KARLA<br />

DUDAS, LEDIANE FILUS,<br />

NATASHA SCHIEBEL,<br />

ISADORA HOFSTAETTER<br />

Capa e diagramação<br />

FRANKLIN DE FREITAS<br />

Material fotográfico<br />

CAIO DEROSSO<br />

e arquivo pessoal<br />

SANDRO MICHAILEV<br />

M5 Editora e<br />

Distribuidora Ltda.<br />

Rua Dr. Roberto Barrozo, 22 Centro Cívico<br />

CEP 80530-120 - Curitiba - PR<br />

Telefone (041) 3350 6600<br />

e-mai: m5@m5.com.br<br />

www.m5.com.br


<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong><br />

Cinco histórias no mesmo tempo


Sumário<br />

Apresentação______________________________________________17<br />

Capítulo I<br />

1. Histórico dos Correios_____________________________________23<br />

Capítulo II<br />

2. Prazer, me chamam de amigo_________________________________30<br />

3. Um título não comemorado_________________________________35<br />

4. Ela vai até o fim___________________________________________43<br />

5. O amor nos tempos de greve__________________________________49<br />

6. Carteiro Futebol Clube_____________________________________51<br />

7. Um homem de sorte e com muitas histórias_______________________58<br />

Capítulo III<br />

8. Diário de bordo__________________________________________64


Caio Derosso<br />

21 anos<br />

Brasileiro<br />

Fale com o autor<br />

caio.derosso@gmail.com


Apresentação<br />

O<br />

livro <strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> – Cinco histórias no mesmo tempo é<br />

o resultado obtido do Trabalho de Conclusão de Curso de<br />

Comunicação Social – Jornalismo, da Universidade Positivo. A ideia<br />

do projeto nasceu em novembro de 2008, quando o autor do livro teve que ir ao<br />

Centro de Distribuição Domiciliar (CDD) mais próximo de sua casa para retirar<br />

<strong>uma</strong> correspondência, pois o carteiro de sua rua tentou durante três dias seguidos<br />

entregar a <strong>carta</strong> sem sucesso porque ele necessitava da assinatura do remetente.<br />

Após esses dias o envelope só pode ser retirado no CDD da sua região.<br />

Para conseguir a correspondência, a segunda via da carteira de motorista,<br />

tive que pedir autorização dos meus superiores – leia-se chefes, para ir durante o<br />

horário vespertino do expediente buscar a <strong>carta</strong> enviada pelo Detran-Pr. Voltando<br />

ao trabalho surgiu a pergunta norteadora que deu origem ao projeto do livro: E se<br />

não existissem carteiros?<br />

Passei o dia inteiro pensando em como seria ruim ter que buscar suas<br />

correspondências em um local que seria o balcão de armazenamento de <strong>carta</strong>s e<br />

encomendas. À noite, contei minha ideia aos colegas de sala. Sucesso! Motivado,<br />

comecei a pesquisar mais sobre os Correios e os carteiros e como formular um<br />

livro a partir deles.<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> – Cinco histórias no mesmo tempo apresenta o<br />

perfil de cinco carteiros que trabalham ou trabalharam entregando <strong>carta</strong>s na<br />

cidade de Curitiba e em sua Região Metropolitana. O livro é composto por quatro<br />

homens e <strong>uma</strong> mulher, que por sinal é a única não oriunda da capital paranaense.<br />

A escolha de fazer um livro-reportagem de gênero perfil foi feita pelo fato de que<br />

nesse estilo o texto coloca o personagem como protagonista de sua própria história.<br />

Além de protagonizar o personagem entrevistado, o perfil jornalístico permite<br />

que no texto sejam reproduzidas as entrevistas, opiniões e descrições – dos espaços<br />

físicos, épocas, feições, comportamentos e intimidades – que o personagem revela<br />

sempre de maneira não-verbal. O fato de eu ser curioso e gostar de prestar atenção<br />

em tudo que aconteça em minha volta contribuiu inconscientemente para essa<br />

escolha, que hoje afirmo ter sido correta.<br />

As pesquisas realizadas durante o final de 2008 e começo de 2009 foram feitas<br />

para contabilizar o número de vezes que os carteiros eram citados na mídia,<br />

principalmente imprensa – jornais, revistas, livros e internet – e em quais assuntos<br />

eles são abordados. Em <strong>uma</strong> pesquisa simples no site “Google”, foram encontradas<br />

187 mil páginas online que continham a palavra “carteiros”.<br />

17


Porém, apenas na décima página, ou seja, mais de noventa links de reportagens<br />

depois, foi encontrada a primeira matéria cujo assunto não era greve. Foi<br />

constatado então que a maioria esmagadora das notícias relacionadas a esses<br />

trabalhadores só surgem quando ocorrem greves. Em <strong>uma</strong> enquete, realizada<br />

rapidamente com dez pessoas, a palavra “greve” foi associada com unanimidade<br />

quando a pergunta era: Qual a primeira coisa que vem em seu pensamento quando<br />

você ouve a palavra “carteiro”?<br />

No projeto inicial do livro, as greves realizadas e as notícias sobre elas<br />

publicadas não teriam muita importância e nem seriam utilizadas como pauta<br />

na hora de entrevistar os personagens e produzir os textos. <strong>Entre</strong>tanto, durante<br />

as entrevistas com os carteiros, <strong>uma</strong> greve foi instaurada. No começo eu não<br />

sabia dizer se as paralisações dos trabalhos ajudariam ou atrapalhariam. Hoje,<br />

com todos os personagens entrevistados, perfis escritos e <strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong><br />

– Cinco histórias no mesmo tempo pronto, posso afirmar com toda a certeza que<br />

os protestos feitos pelos carteiros foram positivamente importantes para a<br />

realização deste livro.<br />

Digo que foi positivo, pois antes da greve encontrei <strong>uma</strong> dificuldade maior<br />

para realizar as entrevistas, <strong>uma</strong> vez que o horário de trabalho dos personagens é<br />

das 8 horas até as 18 horas. Com a paralisação de quatorze dias, houve tempo<br />

suficiente, durante o dia e a noite, para os nossos encontros. Sendo que <strong>uma</strong><br />

entrevista foi realizada antes da greve, em um acompanhamento nas ruas de<br />

Santa Felicidade e as <strong>outra</strong>s quatro durante os protestos.<br />

A Greve<br />

Nos últimos cinco anos, foram pelo menos nove greves praticadas pelos<br />

carteiros. Em média, por ano ocorrem quase duas paralisações no estado do<br />

Paraná. A segunda greve deste ano começou no dia 14 de setembro e se encerrou<br />

duas semanas depois, no dia 28. A ideia inicial dos grevistas era bater o recorde<br />

estabelecido em 2007, onde a greve que durou 21 dias foi considerada a maior em<br />

tempo de paralisações dos carteiros.<br />

Neste ano a greve, mais especificamente a segunda, foi motivada por problemas<br />

salariais. Os carteiros reivindicavam <strong>uma</strong> reposição salarial de 41,03%, que<br />

segundo o Sindicato dos Trabalhadores nos Correios do Paraná (Sintcom-PR),<br />

corresponde a perdas ocorridas desde agosto de 1994. A Empresa Brasileira de<br />

Correios e Telégrafos ofereceu um reajuste de 4,5%.<br />

Outros aspectos de mudanças foram o reajuste do vale refeição, cuja proposta<br />

da empresa foi de acrescentar R$ 0,90, o aumento linear de R$300 no piso salarial<br />

da categoria, que é de R$ 640, um Plano de Carreiras e Salários que beneficie os<br />

funcionários, segurança armada e portas giratórias nas agências e a redução da<br />

jornada de trabalho.<br />

Acompanhei diariamente e presencialmente todos os dias da greve, mesmo<br />

18


que em alg<strong>uma</strong>s oportunidades apenas por alguns minutos. O livro-reportagem<br />

começou a ser produzido, leia-se primeira entrevista, na segunda-feira (14),<br />

último dia de trabalho dos carteiros e primeira noite da greve. Nessa entrevista<br />

tive o prazer de andar pelo conhecido bairro italiano de Santa Felicidade, mas<br />

em ruas pouco conhecidas e com muitos buracos.<br />

Na terça-feira pela manhã fui à sede dos Correios acompanhar o primeiro dia<br />

de paralisação. Meio receoso, pois havia muitos carteiros, carro de som e muito<br />

barulho. Confesso que fui lá para desmitificar a ideia de que todo grevista é<br />

vagabundo, comentário que ouvi em sala de aula na segunda-feira à noite. Como<br />

um bom jornalista inspirado no new journalism, apenas observei as<br />

movimentações dos carteiros sem interagir com ninguém.<br />

No outro dia, a segunda entrevista foi realizada. Porém, desta vez fui aos<br />

Correios após o trabalho, no período da noite, com a ideia de passar a noite lá<br />

com os grevistas. A conversa com Jefferson foi inteiramente feita com nós dois de<br />

pé, durante horas, na calçada, local onde estava montada a barraca dos carteiros,<br />

com cobertor, travesseiro, um colchão inflável, banquetas e <strong>uma</strong> churrasqueira<br />

improvisada. Durante a entrevista diversos automóveis passaram buzinando e<br />

alg<strong>uma</strong>s vezes gritando ofensas.<br />

Cheguei em casa quase meia noite, cansado, mas animado. Quando eu não<br />

contava para minha mãe sobre a entrevista que havia feito, estava pensando no<br />

próximo personagem que conheceria na manhã de quinta-feira. Na verdade era<br />

a personagem.<br />

Liguei para ela às 9 horas para confirmar a entrevista que aconteceria <strong>uma</strong><br />

hora depois. <strong>Entre</strong>tanto a carteira explicou que durante a noite, no piquete<br />

montado em frente aos Correios, ela não se sentiu muito bem e foi para casa.<br />

Marcamos o encontro para às 16h. Confesso que fiquei um pouco preocupado,<br />

pois havia marcado <strong>uma</strong> entrevista para às 14h. O maior medo era ficar muito<br />

tempo na primeira conversa e me atrasar para a <strong>outra</strong>.<br />

Perto do meio dia, o primeiro entrevistado da quinta-feira liga avisando que<br />

não teria tempo de falar comigo, pois havia conseguido o cargo de motorista da<br />

van dos Correios e explicou que, com a greve dos carteiros, tudo fica paralisado,<br />

menos os motoristas de automóveis e motos, que, segundo ele, dobram o número<br />

de serviço de entregas.<br />

À tarde, pedi licença do trabalho e fui rumo à terceira entrevista do livro<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> – Cinco histórias no mesmo tempo. Todos os detalhes<br />

dessa conversa bem humorada e extrovertida você confere no capítulo “Ela vai<br />

até o fim!”. A prosa foi tão boa que só terminou a noite e infelizmente não consegui<br />

ir para as aulas.<br />

Enfim sexta-feira! Último dia útil da semana e última entrevista, mas a greve<br />

continuava. O dia começou lindo, sol a pino, noite bem dormida e empolgação<br />

19


máxima, pois a cada entrevista realizada a sensação de euforia aumentava. Porém<br />

- sempre há um “porém” - acordei atrasado e <strong>uma</strong> série de empecilhos começaram<br />

a surgir e o atraso começava a aumentar. Será que a entrevista ocorreu? Será que<br />

foi adiada? Quem sabe cancelada? A resposta, é claro, você encontra no livro.<br />

No final de semana a barraca montada pelos carteiros foi desarmada e todos<br />

os grevistas ferrenhos foram para suas casas descansar, tendo em vista que segundafeira<br />

bem cedinho o piquete deveria estar montado novamente. E foi isso que<br />

ocorreu no início da semana. Antes mesmo de começar o expediente do pessoal<br />

da administração dos Correios, os carteiros já haviam se estabelecido na calçada<br />

em frente ao edifício administrativo.<br />

Durante a semana que passou e essa que se iniciava agora, os trabalhadores<br />

em greve conseguiram companhia de muitas pessoas que não faziam parte do<br />

quadro trabalhista da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. A grande<br />

maioria desses “estrangeiros” era formada por repórteres de rádio e televisão,<br />

jornalistas de jornais impressos e online e repórteres fotográficos e<br />

cinematográficos. Assumo que também ataquei de fotógrafo em alguns<br />

momentos. Humildade à parte, as fotografias ficaram com boa qualidade e podem<br />

ser conferidas no livro.<br />

Apesar de muitos colegas de profissão estarem presentes em alternados dias<br />

de greve, inclusive com telejornais pautando protestos e panelaços para que eles<br />

aconteçam no horário determinado para que possa ser mostrado ao vivo, pouco<br />

foi falado sobre os carteiros, peça chave da greve.<br />

A mídia, de <strong>uma</strong> maneira geral, acabou realizando <strong>uma</strong> cobertura jornalística<br />

padrão, utilizando sempre as mesmas fontes, como o secretário geral do Sindicato<br />

dos Carteiros, mesmas imagens - panelaço dentro e fora das agências, caminhada<br />

até o calçadão da Rua XV de Novembro, lavagem da calçada da sede dos Correios,<br />

carro de som com o volume altíssimo entre <strong>outra</strong>s figuras já saturadas.<br />

<strong>Entre</strong> os dias que ocorreram as greves pude observar bem o vai-e-vem dos<br />

jornalistas encarregados de cobrir as manifestações. A maioria chegou durante o<br />

período do almoço, fez <strong>uma</strong> entrevista e foi embora. Os fotógrafos tiraram meia<br />

dúzia de retratos e voltaram correndo para a redação para poder passar as fotos<br />

para o computador.<br />

Todos os trabalhadores, inclusive meus colegas de redação do Jornal do Estado,<br />

vivem sempre na correria para fechar a edição do jornal de amanhã ou para<br />

manter o portal de notícias online do veículo sempre atualizado. A falta de tempo<br />

para aprofundar determinados temas caminha junto sempre do estresse cotidiano<br />

causado por tudo que está em nossa volta (ônibus lotado, trânsito, dia chuvoso,<br />

discussões com amigos, etc.), trazendo então um desinteresse forçado do jornalista<br />

por <strong>uma</strong> reportagem mais aprofundada e dinâmica.<br />

20


De nada adianta a imprensa divulgar as greves, manifestações e reivindicações<br />

dos trabalhadores, quando a mesma trata os carteiros apenas como números e<br />

estatísticas. As únicas informações encontradas em reportagens são sobre o salário<br />

ganho e o salário reivindicado, quantos dias dura greve, qual o número percentual<br />

de servidores paralisados e quantas <strong>carta</strong>s deixaram de ser entregues na última<br />

greve. Que, por sinal, foram muitas.<br />

Em todo o Brasil, durante as duas semanas de greve, foram 53,4 milhões de<br />

<strong>carta</strong>s que ficaram acumuladas nas agências e centros dos Correios. Segundo a<br />

assessoria da estatal, em <strong>uma</strong> semana, com horas extras, 23 milhões dessas<br />

correspondências já foram entregues. Foram mais de 500 mil encomendas que<br />

ficaram sem destino. Destas, apenas 77 mil ainda não foram entregues. A<br />

administração dos Correios afirma que em apenas três dias os Correios, ou melhor,<br />

os carteiros, entregaram 265 mil encomendas de carga atrasada.<br />

O fim da greve no Paraná foi decretado mesmo com os trabalhadores não<br />

aceitando a proposta feita pela direção nacional da Empresa Brasileira de Correios<br />

e Telégrafos. Isso ocorreu porque 16 sindicatos aceitaram a proposta e outros 15<br />

rejeitaram, mas concordaram em voltar ao trabalho. Com isso o Sindicato<br />

paranaense avaliou que não poderia manter o movimento sozinho e voltou ao<br />

trabalho.<br />

Já que o assunto é números, você sabia que, em média, 210 carteiros são<br />

atacados todos os anos no Paraná? Esse número representa casos oficiais, ou seja,<br />

que foram registrados nos sindicatos e na Empresa Brasileira de Correios e<br />

Telégrafos (ECT). Os números não-oficiais são muito maiores e não há como<br />

definir um mínimo de ataques.<br />

Porém, aqui no livro você encontra diversas histórias que abordam os ataques<br />

de cachorros e de tantos outros animais de forma mais h<strong>uma</strong>nizada. Tem a<br />

chance de conhecer o carteiro que em 2007 recebeu o título nada especial de<br />

“Carteiro mais mordido do ano” e de acompanhar um dia de trabalho de um<br />

servidor que em todos os seus dias de expediente dispõe da companhia de um<br />

cachorro – isso mesmo, do maior inimigo dos carteiros – durante a entrega de<br />

<strong>carta</strong>s.<br />

No último levantamento do Ministério do Trabalho, o Brasil havia registrado<br />

491.711 acidentes causados no trabalho. O livro-reportagem não fica para trás e<br />

apresenta <strong>uma</strong> carteira que, por complicações de saúde devido a muito trabalho,<br />

ficou quatro meses parada e, o melhor, diz que só para de trabalhar quando não<br />

conseguir mais andar, porque ama o que faz.<br />

Os dois últimos perfis também são muito especiais, pois abordam assuntos da<br />

vida pessoal e suas curiosidades. Em um, a vida profissional sai de cena, e o<br />

carteiro abre sua casa e sua vida para os leitores, contando suas alegrias, suas<br />

decepções, seus hobbies e o que gosta de fazer nos momentos de lazer. O perfil de<br />

21


encerramento apresenta tantas histórias curiosas que poderiam ser feitos capítulos<br />

exclusivos para cada <strong>uma</strong> delas, tamanha a diversão e complicações de cada<br />

fato.<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> – Cinco histórias no mesmo tempo é um sonho que<br />

se realiza. O título do livro foi decidido já na fase final da produção e com o<br />

auxílio dos meus amigos de sala de aula e de trabalho. O livro já havia se chamado<br />

“Os pés mais importantes da cidade”, “Os pés que movimentam a sociedade”,<br />

“Cartas na mesa”, entre tantos outros nomes que com o tempo e com o nervosismo<br />

do autor iam caindo de acordo com as críticas.<br />

No mais, espero que gostem do livro e se identifiquem com alg<strong>uma</strong>s histórias<br />

desses carteiros que, acima de tudo, são h<strong>uma</strong>nos.<br />

Boa leitura!<br />

22


Histórico dos Correios<br />

I<br />

A<br />

Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), popularmente<br />

conhecida como Correios, teve sua essência criada no Brasil,<br />

segundo dados do sítio da instituição, no dia 25 de janeiro de 1663,<br />

quando João Cavalheiro Cardozo foi nomeado para o cargo de Correio de<br />

Capitania do Rio de Janeiro, onde se originaram os correios-mores. Essa é<br />

considerada a data inicial da instituição da atividade postal regular no país e<br />

também é comemorado o dia do Carteiro.<br />

A missão dos Correios, segundo as informações oficiais, é “facilitar as<br />

relações pessoais e empresariais mediante a oferta de serviços de correios com<br />

ética, competitividade, lucratividade e responsabilidade social, tendo como<br />

visão ser reconhecida pela excelência e inovação na prestação de serviços de<br />

correios”.<br />

Na época de criação do serviço, ainda segundo o site, as entregas de <strong>carta</strong>s<br />

eram realizadas por escravos, tropeiros e maçons. Em 1178 foi instituído o<br />

Correio Marítimo Regular entre Brasil e Portugal. <strong>Entre</strong> 1877 e 1879, os<br />

Correios passaram a se chamar União Geral dos Correios, cujo nome foi<br />

decidido na Suíça. Foi lançado então o primeiro selo postal em duas cores:<br />

verde e amarelo. No final de 1879, a União Geral dos Correios deu lugar à<br />

União Postal Universal, nome sugerido no Congresso de Paris.<br />

No mesmo ano da Proclamação da República, em 1889, surgiu o primeiro<br />

Museu Postal Brasileiro. Tempos depois, a Nação unia-se a <strong>outra</strong>s do continente<br />

em um Congresso, formando o embrião da futura União Postal Sul Americana.<br />

O primeiro transporte de correspondências via aérea ocorreu em 1º de<br />

fevereiro de 1921 e em 1929 começa a operação “Graff Zeppelin”, na qual um<br />

dirigível sobrevoava os céus do Brasil transportando, entregando e recebendo<br />

23


<strong>carta</strong>s e correspondências.<br />

O decreto lei nº 20.859/31, instituído pelo presidente Getúlio Vargas fez<br />

com que a União Postal passasse a se chamar Departamento de Correios e<br />

Telégrafos (DCT) e o mesmo fosse subordinado ao Ministério de Viação e<br />

Obras Públicas (MVOP). Nesse período, o Departamento de Correios e<br />

Telégrafos ficou caracterizado por empregos vitalícios, funcionários sem<br />

treinamento, instalações precárias, atendimento seletivo, franquias tarifárias,<br />

tarifas aviltadas e arrecadação para o Tesouro Nacional, que não cobria metade<br />

das despesas.<br />

No dia 20 de março de 1969, o DCT foi transformado em <strong>uma</strong> empresa<br />

pública denominada Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT),<br />

vinculada ao Ministério das Comunicações pelo decreto-lei nº 509/69. O<br />

patrimônio do antigo DCT foi transferido para a ECT. A empresa passou<br />

então a ter maior autonomia econômico-financeira e a buscar <strong>uma</strong> política de<br />

recursos h<strong>uma</strong>nos centrada em um plano de cargos e salários (sem empregos<br />

vitalícios), treinamento e<br />

valorização das funções.<br />

Na década de 1970, os<br />

Correios contrataram <strong>uma</strong><br />

empresa de consultoria<br />

francesa que detectou total<br />

precariedade das instalações, o<br />

despreparo absoluto dos<br />

trabalhadores, a obsolescência<br />

do material e <strong>uma</strong> tarifa alta,<br />

além do descrédito da<br />

população.<br />

A partir daí a empresa<br />

começou a investir em infraestrutura<br />

operacional e<br />

administrativa influenciada<br />

pelo crescimento de 18% ao<br />

ano do tráfego postal.<br />

Nos anos 80, o<br />

crescimento postal foi de<br />

apenas 3,2% devido à<br />

recessão que o país sofreu.<br />

As tarifas foram congeladas<br />

pelo Plano Cruzado e os<br />

investimentos da empresa


caíram de 12% para 3%. Começaram a surgir então ações voltadas para a<br />

diversificação do trabalho dos Correios. A instituição começou a expandir as<br />

suas atividades para além de <strong>carta</strong>s, telegramas e pequenas encomendas. Os<br />

investimentos começaram a ser distribuídos para a estrutura operacional e<br />

administrativa com o objetivo de que os serviços atingissem todo o território<br />

brasileiro. Fato que se consolidou em 1985 com o início do trabalho dos<br />

Correios nos meios rurais. Os principais concorrentes na época foram a<br />

popularização do aparelho de fax e as empresas particulares de entrega.<br />

No final da década de 1980, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos<br />

obteve o primeiro lugar dentre as “Melhores e Maiores” empresas listadas<br />

pela revista Exame. Esse prêmio incentivou a empresa a reformular a sua<br />

estrutura organizacional para se tornar mais flexível, modernizando e<br />

atualizando os sistemas e adotando <strong>uma</strong> postura de marketing mais agressiva<br />

e objetiva.<br />

Nessa mesma época, foram criados também diversos projetos, como o<br />

Serviço de Atendimento ao Usuário (SAU), agências-modelo, integração dos<br />

Correios com a comunidade o sistema de franquias.<br />

Em 1990, a ECT passou a ser vinculada ao Ministério de Infra-Estrutura,<br />

situação que durou um curto período, pois dois anos depois a empresa foi<br />

remetida junto ao Ministério dos Transportes e Comunicações e recebeu o<br />

prêmio de melhor organização pública de todas as empresas brasileiras.<br />

Ainda na década de 90, novos serviços foram implantados, tais como<br />

solicitação e entrega de passaporte; venda de fichas de telefone; cadastramento<br />

de CPF; inscrições de vestibulares e concursos, inscrição e pagamento de INSS;<br />

entrega de carteira de habilitação e recebimento da taxa e de solicitação de<br />

licenciamento de veículos; recebimento das solicitações do seguro-desemprego;<br />

recebimento de imposto de importação e de multas do Código Eleitoral;<br />

distribuição de livros; recebimento de formulários de Cadastro Geral de<br />

Empregados e Desempregados e do Programa de Alimentação do Trabalhador<br />

(PAT).<br />

Outra inovação que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos<br />

desenvolveu foi um plano de ação para as empresas privadas para preparar e<br />

entregar faturas, operacionalizar a coleta e entrega de correspondência e<br />

documentos internos e transportar qualquer objeto. Com isso, o faturamento<br />

saltou de US$ 890 milhões em 1989 para US$1,7 bilhões em 1993.<br />

O faturamento total da ECT em 2007 foi de R$ 10 bilhões. O resultado da<br />

atividade postal gerou à União receitas de impostos e dividendos da ordem de<br />

R$ 1,2 bilhão.<br />

Em linhas gerais, os segmentos de atuação da ECT são transporte postal<br />

(objetos postais, carga industrial) e telemático (correspondências, encomendas,<br />

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malotes, telegramas, fax, produtos filatélicos) e atendimentos especiais<br />

(seguridade social, recebimento de contas, venda para terceiros, emissão de<br />

documentos, inscrição para concursos, telemarketing, fornecimento de talões<br />

de cheques, correio eletrônico).<br />

Os correios ainda possuem um código de ética, em que a empresa valoriza:<br />

Satisfação dos clientes; Respeito aos empregados; Ética nos<br />

relacionamentos; Competência Profissional; Compromisso com as diretrizes<br />

governamentais; Responsabilidade Social; Excelência empresarial.<br />

Sedex<br />

O Sedex (Serviço de Encomenda Expressa Nacional) foi um programa<br />

criado em 1982 pelos Correios. Sua função básica era a de entregar o mais<br />

rápido possível as encomendas. Nos últimos anos, a empresa percebeu que o<br />

programa Sedex estava ficando ultrapassado. Para superar o problema, foram<br />

criados então novos programas voltados a determinados nichos de mercado.<br />

O “e-Sedex”, por exemplo, consiste em o cliente comandar suas entregas via<br />

internet; o “Sedex 10” tem como seu objetivo entregar os produtos até às 10h<br />

da manhã do dia seguinte; com o “Sedex Hoje”, como o próprio nome revela, as<br />

encomendas são entregues no mesmo dia que foram solicitadas; o último<br />

programa é o “Sedex Mundi”, em que as encomendas são entregues em qualquer<br />

lugar do planeta.<br />

Dia Mundial dos Correios<br />

A comemoração do Dia Mundial dos Correios é realizada todo dia 09 de<br />

outubro. A data marca a fundação, no ano de 1874, da União Postal Universal<br />

(UPU), organização intergovernamental ou internacional que agrupa os<br />

serviços postais de 191 países.<br />

A UPU é considerada a segunda entidade internacional criada, ficando<br />

atrás apenas da União Internacional de Telecomunicações. A missão da União<br />

Postal Universal é coordenar os diversos serviços postais dos diferentes países<br />

membros, sem interferir nas políticas próprias dentro dos estados. Dessa<br />

maneira, cada administração postal é livre para definir como distribuir as<br />

correspondências, que serviços efetuar, qual o número de pessoal necessário<br />

para o seu funcionamento e qual o plano de edição de selos.<br />

Universidade dos Correios<br />

Desde sua fundação, em 1969, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos<br />

afirma investir em recursos h<strong>uma</strong>nos, visando à formação de pessoal<br />

especializado e a melhoria da qualidade operacional.<br />

Segundo informações do site dos Correios, no final da década de 70, a ECT<br />

26


passou a dispor de dois órgãos para treinamento e desenvolvimento de seus<br />

empregados: a Escola Superior de Administração Postal - ESAP, voltada ao<br />

ensino do pessoal de nível superior e o Departamento de Recursos H<strong>uma</strong>nos<br />

- DRH, com representações regionais para treinarem empregados de nível<br />

básico, médio e técnico.<br />

Nos anos seguintes, em virtude de a concorrência ter se tornado mais<br />

agressiva, a ECT aumentou a receita operacional destinada às atividades de<br />

treinamento e amadureceu a ideia de conceber <strong>uma</strong> orientação única para o<br />

setor de educação empresarial, à qual caberia a função de preencher as lacunas<br />

deixadas pelo então sistema vigente. Em termos práticos, era preciso alinhar<br />

os programas educacionais com as estratégias da Empresa e também ampliar<br />

o público alvo desses programas.<br />

A essas necessidades somou-se o fato de que nos últimos anos tomou lugar<br />

<strong>uma</strong> verdadeira multiplicação de universidades corporativas, sistema adotado<br />

por grandes empresas estrangeiras e nacionais. É nesse cenário que, em<br />

dezembro de 2001, a Universidade Corporativa dos Correios - UNICO foi<br />

criada, com intuito de unificar as ações educacionais dentro da Empresa e<br />

estendê-las para toda a cadeia de valor.<br />

Baseada no conceito de learning organization - empresa que aprende - a<br />

Universidade pretende firmar-se como referência em termos de formação e<br />

desenvolvimento de profissionais do setor de serviços postais.<br />

Ações Culturais e Esportivas<br />

Os Correios também contribuem para o desenvolvimento da sociedade<br />

brasileira e têm como um de seus valores a responsabilidade pública e a<br />

cidadania, com apoio às ações culturais e ao esporte.<br />

A empresa investe em projetos culturais e realiza diversas atividades que<br />

contribuem para o bem comum. As ações culturais dos Correios são<br />

coordenadas pelo Departamento de Comunicação Estratégica.<br />

Nos esportes, o Correio é patrocinador de alg<strong>uma</strong>s modalidades olímpicas<br />

como a Natação, Saltos Ornamentais, Nado Sincronizado, Pólo Aquático,<br />

Maratona Aquática e Tênis. A empresa também patrocina outros esportes<br />

não olímpicos, como o Futsal, cuja parceria iniciou-se em 2004 nas competições<br />

da Seleção Brasileira de Futsal masculina e feminina.<br />

A Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos também é patrocinada pelos<br />

Correios desde 1991, e a Natação é o esporte “carro-chefe” da entidade. Os recursos<br />

provenientes da parceria CBDA – Correios foram fundamentais para que o esporte<br />

alcançasse um nível técnico inédito e desse ao país mais pódios mundiais e olímpicos.<br />

A parceria possibilitou que nadadores se tornassem ídolos nacionais e nomes<br />

respeitados internacionalmente, como foi o caso de Gustavo Borges e Fernando<br />

27


Scherer. Além de <strong>uma</strong> geração inteira que cresceu com o patrocínio dos<br />

Correios, que hoje formam a elite do esporte. Atletas como os recordistas<br />

mundiais Kaio Márcio Almeida, Thiago Pereira e César Ciello. A parceria<br />

com os Saltos Ornamentais começou em 1991, patrocinando os atletas César<br />

Castro, Cassius Duran e Juliana Veloso. Os dois últimos foram responsáveis<br />

por conquistar as primeiras medalhas pan-americanas na história da<br />

modalidade no Brasil.<br />

Recentemente a Maratona Aquática recebeu <strong>uma</strong> brasileira como<br />

vencedora: Poliana Okimoto. A brasileira venceu 9 das 12 etapas disputadas e<br />

conseguiu ganhar um título inédito para o Brasil.<br />

Programa de Qualidade<br />

O Programa Nacional de Qualidade dos Correios – PNQC - consistiu em<br />

<strong>uma</strong> ampla ação mobilizadora, promovida a partir do termo assinado em<br />

dezembro de 1997 pela diretoria da Empresa, no sentido de adotar <strong>uma</strong> gestão<br />

empresarial participativa, tendo como estratégia a melhoria contínua do<br />

ambiente de trabalho de seus colaboradores e de seus processos, visando à<br />

máxima satisfação dos clientes.<br />

O Programa constituiu-se em um conjunto de projetos e ações<br />

implementados no âmbito da Empresa, cuja definição levou em consideração<br />

três grandes vertentes: Gestão pela Qualidade Total - GQT, Normas da<br />

International Organization for Standardization - ISO, e Critérios do Prêmio<br />

Nacional da Qualidade - PNQ.<br />

Cabe enfatizar que a responsabilidade pela implementação e manutenção<br />

das iniciativas preconizadas pelo Programa é de todos os órgãos e<br />

colaboradores da Empresa, com o estímulo e apoio permanentes da direção<br />

da Empresa de Correios e Telégrafos.<br />

Correios no Paraná<br />

Os Correios paranaenses são comandados por <strong>uma</strong> diretoria que<br />

representa <strong>uma</strong> das 28 representações regionais. A regional do Paraná conta<br />

com quatro assessorias (Comunicação, Gestão, Jurídica e de Planejamento) e<br />

dezesseis gerências - Contabilidade e Controle Financeiro, Atendimento,<br />

Vendas no Varejo, Recursos H<strong>uma</strong>nos, Saúde, Educação Corporativa, Relações<br />

do Trabalho, Administração, Encaminhamento e Administração da Frota,<br />

Logística, Engenharia e Sistemas e Telemática. A diretoria é composta de<br />

seis regiões de vendas: Curitiba, Região Metropolitana, Ponta Grossa,<br />

Cascavel, Maringá e Londrina. O Brasil conta com aproximadamente 115 mil<br />

funcionários dos Correios, sendo 55 mil carteiros. No Paraná o número de<br />

carteiros é de aproximadamente 5,8 mil trabalhadores. Os 75 bairros que<br />

compõem Curitiba são representados por 77 unidades dos Correios, divididas<br />

28


em Centro de Distribuição Domiciliar (CDD) e Agências de Correios<br />

Franqueadas (ACF). O primeiro é o local onde os carteiros se reúnem todos<br />

os dias e batem o cartão-ponto. Todas as encomendas da região abrangente<br />

saem deste local. As Agências Franqueadas são locais que a população pode<br />

despachar a <strong>carta</strong> que pretende enviar. Os carteiros também podem receber<br />

<strong>carta</strong>s para entregas durante o trajeto oriundos das ACF.<br />

29


II<br />

PRAZER, me chamam<br />

de AMIGO!<br />

Um pouco mais de mil e quatrocentos latidos documentados e<br />

gravados, 4,1km andando pelas ruas do bairro curitibano de Santa<br />

Felicidade e um cachorro vira-lata nos seguindo; assim começa a<br />

história de Oswaldo Rocha Pires. Meu primeiro personagem entrevistado<br />

entrou na história de última hora, graças a meu amigo Thiago Henrique que<br />

descobriu essa pessoa.<br />

Era meio dia de <strong>uma</strong> segunda-feira, a primeira entrevista prestes a acontecer,<br />

nervosismo correndo solto dentro do carro no aguardo por Oswaldo. Não<br />

sabia se ele viria da parte alta da rua ou da parte baixa. Região desconhecida,<br />

pois Santa Felicidade até então significava para mim apenas a Avenida Manoel<br />

Ribas e seus diversos pontos de gastronomia italiana. No telefone, um dia<br />

antes, o carteiro me informou que sempre entregava <strong>carta</strong>s entre 12h e 12h30<br />

na emissora de rádio localizada naquela rua, que então se tornou o nosso<br />

ponto de encontro. Passados quinze minutos de apreensão, começo a escutar<br />

latidos distantes que, no ritmo de minha respiração, ainda rápida e pesada, se<br />

intensificam cada vez mais. Eis que Oswaldo passa como <strong>uma</strong> flecha pela rua<br />

de baixo fazendo seu serviço. Então calculei que no máximo em cinco minutos<br />

ele estaria passando pela Rua Zem Bertapelle, na altura do número 531, onde<br />

eu me localizava. Quando o vi dobrando a esquina foi um misto de alegria,<br />

euforia e medo. Será que ele é legal, se não vai ser esnobe, tudo me passava pela<br />

cabeça. Não sabia se ligava o gravador, tirava fotos ou descrevia a cena em um<br />

papel.<br />

Quando ele se aproxima, logo percebo também a presença do outro ilustre<br />

personagem: o cachorro. Um vira-lata grande, com a pelagem marrom em tons<br />

claros e escuros e muito bonitos, precisando apenas de um banho e de <strong>uma</strong><br />

30


tosada. Logo me aproximo dele, me apresentando, gravando e anotando, tudo<br />

ao mesmo tempo, de maneira um pouco desajeitada e desorganizada, tentando<br />

não derrubar nada. Oswaldo para por um minuto seu trabalho com o intuito<br />

de se apresentar e para que eu possa pegar suas informações básicas como<br />

nome, idade e estado civil. A profissão todos sabem. Carteiro! E com orgulho.<br />

Começava aí <strong>uma</strong> caminhada com muitas histórias e cansaço.<br />

Há pouco mais de quatro anos, Wadão, como é conhecido no Centro de<br />

Distribuição Domiciliar (CDD) do São Braz, passou<br />

no concurso público organizado pelos Correios e<br />

começou a trabalhar. Já foi responsável por diversas<br />

rotas e percursos, inclusive no CDD do Bigorrilho,<br />

lugar que o carteiro afirma não ter gostado. “É longe<br />

de casa”, diz o morador de Santa Felicidade. Prestes a<br />

completar seu quinto ano entregando <strong>carta</strong>s, Oswaldo<br />

foi atacado cinco vezes por cachorros, sendo que<br />

“Nunca dei comida, mas ele continua me seguindo”<br />

/ “Ele se transformou no meu companheiro<br />

de trabalho” / “De vez em quando alguém dá comida<br />

e ele me esquece, mas no outro dia está me<br />

esperando no ponto do ônibus.”<br />

de dois ataques ele se recorda, pois os cães eram de<br />

pessoas conhecidas.<br />

“Nesse braço (o esquerdo) foi o Ping e na perna o<br />

Lobo”, afirma ele mostrando os locais de ataques, mas<br />

sem nenh<strong>uma</strong> marca aparente.<br />

Passada a primeira quadra, ele mostra um terreno<br />

enorme, com <strong>uma</strong> casa bem ao centro, cercada por <strong>uma</strong><br />

tela com fios de arames e um cachorro da raça Fila que<br />

esbravejava, latia e uivava com a chegada do carteiro.<br />

“E esse já te mordeu?”, pergunto. “Não, não, mas tive que sair correndo <strong>uma</strong>s<br />

duas vezes porque volta e meia ele escapa”, lembra Wadão dando risada. “Seria<br />

cômico, se não fosse trágico”, frase repetida toda vez que <strong>uma</strong> história de perigo,<br />

mas com final feliz era contada.<br />

Nessas duas primeiras e longas quadras, passamos por 35 casas, na qual 27<br />

tinham cães de guarda e apenas oito avisam a presença deles. Placas como<br />

“Cuidado: cão bravo”, por mais clichês que sejam, ajudam e muito um carteiro<br />

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que está conhecendo sua nova rota. Hoje, Oswaldo já sabe de cor e salteado<br />

todas as residências que abrigam os animais, mas há três meses, quando iniciou<br />

o seu novo roteiro, era <strong>uma</strong> casa, um perigo. Nesse trimestre inicial não houve<br />

mordidas, só alg<strong>uma</strong>s fugas de cachorros que odeiam carteiros e muitas<br />

chuvas. “Nós não podemos parar na chuva, o serviço continua. Eles [Correios]<br />

fornecem <strong>uma</strong> espécie de capa que não protege, só molha e por dentro sua.<br />

Prefiro não usar”, conta ele enquanto toca o interfone de um sobrado em busca<br />

de <strong>uma</strong> sonhada assinatura do morador, coisa muito difícil de acontecer,<br />

conforme relata Wadão. Depois dos cachorros e mudanças climáticas durante<br />

o dia, a não entrega de correspondências por falta de alguém assinar um pacote<br />

é outro problema. São três dias de tentativas, ou seja, três dias com peso extra.<br />

Depois desse tempo, a pessoa que receberia a encomenda terá que ir ao CDD<br />

da sua região para retirá-la.<br />

Quadras são andadas, ruas atravessadas e <strong>carta</strong>s são entregues. A conversa<br />

continua e um novo problema é relatado: as caixinhas. Existem de tudo que é<br />

tipo: de ferro, plástico, coloridas, grandes, pequenas, muito altas ou muito<br />

baixas – facilitando para os cachorros. Apesar de muitos problemas<br />

enfrentados, Wadão leva tudo muito na esportiva, não há tempo ruim com<br />

ele. Para um problema citado, há <strong>uma</strong> história cômica e trágica a ser contada,<br />

como no dia em que ele estava se dirigindo a <strong>uma</strong> rua sem saída e quando se<br />

aproximava da última casa percebeu que a caixinha de <strong>carta</strong>s estava diferente,<br />

parecia maior a cada passo dado. Quando estava a menos de um metro da<br />

suspeita caixa, mais correria, era <strong>uma</strong> colméia, cheia de abelhas que o<br />

perseguiram por <strong>uma</strong> interminável quadra.<br />

Depois de milhares de quilômetros já andados e alg<strong>uma</strong>s centenas corridos,<br />

Oswaldo finalmente anda sossegado. Uma semana antes do feriado de 7 de<br />

setembro ele teve <strong>uma</strong> surpresa ao descer do ônibus que o deixa na sua área de<br />

atuação. Havia um cachorro, de porte grande, deitado na calçada, como quem<br />

não quer nada, só observando a sua movimentação na quadra. Quando dobrou<br />

a esquina, ele ouviu uns latidos, olhou para trás e lá estava o cão. Andou um<br />

pouco, o animal foi atrás. Atravessou a rua, mesma coisa. Tentou dar um<br />

“chispa” no cachorro. Não adiantou. Então pensou: <strong>uma</strong> hora ele cansa. Ainda<br />

não cansou. E desde então, aonde o Wadão vai o cachorro vai atrás.<br />

N<strong>uma</strong> espécie de Dom Quixote e Sancho Pancho, os dois caminham<br />

diariamente pelas ruas calmas do bairro. Quando chegam à Rua Via Vêneto,<br />

que dispõe de maior tráfego de automóveis, Wadão não espera a primeira<br />

oportunidade e sai correndo para atravessá-la. Com muita calma e paciência,<br />

ele aguarda o momento certo para que ele e seu fiel escudeiro consigam<br />

atravessar a rua sem perigo. Essa não é sua única preocupação com seu novo<br />

companheiro. Oswaldo mostra a pata esquerda dianteira do cachorro, onde<br />

32


aparentemente ele parece ter deslocado um dos ossos. “Quando eu tiver um<br />

tempo, quero levar ele para minha irmã dar <strong>uma</strong> olhada, ela é veterinária, aí<br />

aproveito e já dou um banho e <strong>uma</strong> aparada nestes pêlos”, diz ele sorridente.<br />

Falando em família, Oswaldo revela que com seus 43 anos continua solteiro e<br />

sem filhos, mas não mora sozinho. Ele relembra que os anos foram se passando,<br />

os irmãos e irmãs casando e ele foi ficando “para titio”. E como o tempo passa<br />

para todos, hoje ele mora com os pais, já bem idosos e com muitas necessidades<br />

que não podem ser enfrentadas sozinhas. A dedicação exclusiva aos patronos<br />

da família não parece tirar a alegria de viver dele, mas ele diz que poderia ter<br />

feito muitas coisas diferentes, mas mesmo assim é feliz.<br />

Nas minhas contas, já havíamos andado por volta de doze quarteirões.<br />

Olhei para o cachorro e não sabia dizer quem estava mais cansado, eu ou ele.<br />

Perguntei então ao Wadão se ele alimentava o cão, a resposta foi negativa: “no<br />

máximo <strong>uma</strong> água”. Com menos de um mês de bairro, o cachorro já ganha fãs<br />

que dão comida de vez em quando, conta o carteiro. “De vez em quando ele fica<br />

comendo e me esquece, mas no outro dia está me esperando de novo”, conta em<br />

meio a risadas e esperando a melhor hora para atravessar a rua. Desde que o<br />

cachorro começou a segui-lo ele nunca foi mais atacado, mas nem por isso os<br />

barulhos diminuíram. Em cada casa visitada é aquele alvoroço dos animais de<br />

guarda. Se antes tinha apenas o carteiro para se preocuparem, agora os cães<br />

têm que cuidar também do vira-lata que marca seu território, com o seu xixi,<br />

a cada correspondência entregue.<br />

Quando a entrega é feita em algum comércio e Oswaldo é obrigado a entrar<br />

no imóvel, o seu fiel escudeiro é obrigado a ficar do lado de fora. O simples fato<br />

de Wadão ficar um pouco mais de um minuto dentro de algum lugar e fora do<br />

alcance de visão do cão faz com quem ele vá ao desespero. Começa a andar em<br />

círculos, late, arranha a porta do comércio e uiva, deixando o infernal labrador<br />

Marley do best-seller “Marley e Eu” parecer um mero cachorro. Quando o<br />

carteiro reaparece é <strong>uma</strong> festa só. Quem não acompanha o seu trabalho pode<br />

pensar que fazia anos que ele e o cachorro não se viam, mas não passavam de<br />

meros dois minutos e quinze segundos. “Semana passada eu demorei uns cinco<br />

minutos em <strong>uma</strong> loja, quando eu saí ele tinha ido embora, mas no outro dia<br />

estava lá pulando em mim quando eu cheguei”, conta Wadão, afirmando que<br />

pelo menos <strong>uma</strong> vez por dia quase cai devido aos pulos surpresa que o cachorro<br />

dá para cima dele.<br />

Passavam da <strong>uma</strong> hora da tarde, o sol brilhante e quente, eu pensando no<br />

porquê de estar de calça jeans e procurando algum lugar para comprar <strong>uma</strong><br />

água. Já pensava na hipótese de tomar metade da garrafa e a <strong>outra</strong> metade dar<br />

ao cachorro que já ostentava sua língua para fora da boca. Passamos em frente<br />

a <strong>uma</strong> loja de ração para animais, que exalava o cheiro de seu produto. O<br />

33


cachorro passou reto pelo estabelecimento. Perguntei a Wadão se o cão nunca<br />

havia atacado a loja e ele disse que não, “até porque esses tipos de cachorros<br />

só comem restos de comida”. Ele diz isso com experiência própria, pois é dono<br />

de dois cachorros e na última semana adotou <strong>uma</strong> gata que andava perdida<br />

na rua de sua casa. Infelizmente o seu companheiro não será adotado. Oswaldo<br />

se justifica argumentado que o cão já tem dono, tem lugar para dormir e que<br />

ele é muito grande, daria trabalho. E concordamos que um cachorro com este<br />

perfil aventureiro não deveria ficar preso, provavelmente ele surtaria e se<br />

transformaria em mais um cachorro louco para atacar e morder um carteiro.<br />

Meu tempo e fôlego já estavam se esgotando, foram um pouco mais de <strong>uma</strong><br />

hora e quatro quilômetros caminhados. Oswaldo tem mais duas horas e meia<br />

de serviço na rua e quase cinco quilos de correspondências em sua bolsa.<br />

Passamos pelo terminal de ônibus de Santa Felicidade onde ele afirma que<br />

seria mais fácil para ele pegar sua condução e ir para casa, mas devido ao<br />

cachorro ele anda alg<strong>uma</strong>s quadras até um ponto que fica a 100 metros da<br />

residência oficial do cão. Meio perdido de tantas voltas que demos, pergunto<br />

a Wadão como faço para voltar até a emissora de rádio onde parei o carro. Ele<br />

aponta para direção leste, onde atrás das casas estava a antena de transmissão<br />

da empresa. Após a despedida e um pulo surpresa do cachorro em cima de<br />

mim, pergunto se o cão tem nome. Wadão tem a resposta pronta.”Não sei,<br />

mas eu chamo de Amigo!”.<br />

34


UM TÍTULO não<br />

comemorado<br />

A<br />

história de Jefferson – com dois “F” enfatiza ele – na Empresa de<br />

Correios e Telégrafos começou há exatos nove anos. Curitibano da<br />

gema, Souza ou Negão, como é conhecido entre os amigos carteiros,<br />

já trabalhou em diversas regiões entregando correspondências. Seu primeiro<br />

bairro como carteiro foi o Alto da Glória, região onde ele morava e local do<br />

estádio do seu time de coração, o Coritiba Foot Ball Club. Ele ostenta com<br />

orgulho a carteira de sócio-torcedor do Coxa, diz que vai em todos os jogos,<br />

<strong>uma</strong> vez que os horários das partidas sempre são fora do expediente. Souza<br />

lamenta quando o jogo é marcado para as 21h50. “Acaba tarde e atualmente<br />

eu moro em Campo Largo, aí fica ruim de acordar cedo no outro dia”. Mesmo<br />

assim, faça chuva ou faça sol ele está lá <strong>uma</strong> vez por semana. Se o time ganha<br />

“todo mundo do CDD desaparece”, afirma ele, lamentando que quando o seu<br />

time é derrotado todos os carteiros o esperam chegar para tirar um sarro.<br />

Depois do Alto da Glória, Souza ainda trabalhou no Centro Cívico, lugar<br />

em que segundo ele se encontram as mais diversas autoridades em que ele não<br />

votou e que nunca teve o prazer ou desprazer de conhecer. <strong>Entre</strong>tanto, o bairro<br />

é disputado por muitos carteiros pelo fator imobiliário presente. Nas ruas, ao<br />

contrário da maioria dos 75 bairros curitibanos, o predomínio é de edifícios,<br />

o que facilita a entrega e a deixa mais segura, pois o número de cachorros é<br />

significativamente menor. Cachorros, sempre eles! Jefferson trabalhou ainda<br />

no Campo Comprido, região com muitas residências, muitos cachorros e<br />

muitos sustos. Ele conta que em toda a sua carreira de carteiro já fugiu por<br />

volta de setenta vezes de cães. Já subiu em árvores, muros e entrou em casas,<br />

lojas e garagens fugindo dos cachorros. Hoje, trabalhando no Bigorrilho, ele<br />

conta que está mais tranquilo, sendo que há apenas dois empecilhos. As<br />

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numerosas subidas e descidas do bairro, que, segundo Souza, fazem com que o<br />

peso da bolsa triplique. O outro problema ocorre na única rua de seu trajeto<br />

que tem casas, e adivinhem só qual é o problema? Cachorro! Ele conta que<br />

toda vez que dobra a esquina sentido a essa quadra sem saída ele tem que<br />

pegar <strong>uma</strong> espécie de bastão, feito com o resto de madeira de <strong>uma</strong> obra, que<br />

serve como <strong>uma</strong> espécie de escudo, já que basta ele pisar na calçada que o<br />

cachorro residente da última casa pula o muro e em<br />

<strong>uma</strong> linha reta traça seu objetivo: a canela do carteiro.<br />

Seu cajado que há mais de um mês o defende<br />

demonstra sinais de mordidas e já está frágil, podendo<br />

não ser mais útil na próxima expedição do carteiro a<br />

esta rua. Então, Jefferson não foi atrás de um novo<br />

“Ganhei o prêmio em 2007: Fui mordido 6 vezes<br />

nesse ano” / “Levei quatro pontos e a empresa<br />

não considera isso acidente de trabalho” / “ A greve<br />

serve para conseguirmos os nossos direitos”.<br />

escudo, mas protocolou nos Correios <strong>uma</strong> queixa<br />

sobre essa rua, especificamente sobre a última<br />

residência. Desde que tomou este ato administrativo<br />

a quadra do cão saltador de muros está sem receber<br />

correspondências, n<strong>uma</strong> espécie de exílio, onde todos<br />

os moradores foram notificados que devem se dirigir ao posto de distribuição<br />

mais perto do lar para buscar suas correspondências, pois o atendimento só<br />

voltará ao normal quando o proprietário da casa tomar as providências<br />

necessárias para que mais nenhum carteiro seja atacado. Para quem pensou<br />

que essa história pode ser considerada um fato ruim é que ainda não sabe o<br />

que está por vir.<br />

O ano era 2002, e Jefferson havia sido transferido recentemente para a<br />

sucursal de Colombo, na Região Metropolitana de Curitiba. Ele tinha duas<br />

opções: trabalhar lá ou aguardar n<strong>uma</strong> fila de espera de um pouco mais de<br />

dois anos, sem ganhar salário, para ter o seu emprego perto de casa. Escolheu<br />

a primeira opção, mesmo morando em Campo Largo. Todos os dias acordava<br />

às 5 horas da manhã, enfrentando 1h30 de viagem e 48 quilômetros de distância.<br />

“Eu levantava no escuro e chegava em casa também no escuro, mas eu precisava<br />

36


ganhar dinheiro”, relembra Souza com <strong>uma</strong> certa mágoa desses primeiros dias<br />

sofridos.<br />

O tempo foi passando e ele foi se acost<strong>uma</strong>ndo com a rotina, já sabia em<br />

qual quadra corria algum risco de ataque de cães, fato que ele ainda lamenta<br />

muito, pois não tem raiva dos animais e sim dos seus donos. Para ele falta a<br />

conscientização das pessoas de que um cão solto pode ser perigoso para os<br />

outros, pois o dever dele que é cuidar da casa ele sabe fazer, mas que segundo<br />

Souza os ataques podem ser evitados se os cachorros ficassem presos entre<br />

12h e 18h, que é o horário de entrega das correspondências. Outro apelo que<br />

ele faz, caso a pessoa não queira prender seu cachorro durante o dia, é mudar<br />

a localização da caixinha de <strong>carta</strong>s. Segundo ele, 90% das caixinhas ficam em<br />

<strong>uma</strong> altura que o cachorro não precisa nem pular, basta apenas se levantar<br />

para efetuar <strong>uma</strong> mordida.<br />

Voltando a Colombo, Jefferson completava seis meses da sua rota, conhecia<br />

já toda região, havia feito amizade com os moradores e comerciantes locais.<br />

Como todos sabem, o inverno na região Sul do Brasil é rigoroso e intenso e<br />

Souza não escapou de pegar um resfriado. Ficou dois dias de licença médica<br />

descansando em casa. No terceiro dia, já revigorado, ele voltou ao trabalho e a<br />

dura rotina de enfrentar os ônibus lotados. Chegando ao CDD da cidade,<br />

durante o período vespertino, fez os trabalhos de separar as correspondências<br />

por regiões e depois começou a separar o que ele iria levar em sua bolsa na<br />

ordem de entrega que ele havia traçado. Ele lembra muito bem desta quartafeira,<br />

como se fosse ontem. Relembra que, como já estava adaptado à cidade,<br />

tinha no seu mapa cerebral em quais ruas poderia andar tranquilo e em quais<br />

teria que tomar cuidado. Jefferson completava um pouco mais de 75% de<br />

trabalho realizado no dia e caminhava distraído, ouvindo música no seu CD<br />

Player, em <strong>uma</strong> quadra classificada por ele como “calma”.<br />

A melhor forma de descrever a cena a seguir é com as próprias palavras do<br />

personagem:<br />

“Lá estava eu dobrando a esquina, ouvindo meu reggae, de cabeça baixa<br />

olhando as correspondências que viriam a seguir e seus números, <strong>uma</strong> vez que<br />

nessa rua não havia cachorros. Eu já havia decorado até altura das caixas de<br />

correio. Colocava as <strong>carta</strong>s sem olhar. Mas é sempre assim, basta um momento<br />

de distração para que aconteçam os acidentes. Eu estava no meio da quadra e<br />

fui colocar a correspondência na caixa da casa de <strong>uma</strong> mulher que sempre foi<br />

simpática comigo. Quando estiquei o braço esquerdo em direção à casa, ouvi<br />

um barulho estranho e, quando olhei, tinha um Rottweiler com metade do<br />

corpo para fora do muro agarrando meu braço. Achei que ele iria arrancar<br />

todo meu braço, eu batia nele com a bolsa, gritava e ele não soltava, cada vez<br />

mordia com mais intensidade e eu via todo aquele sangue jorrando e não sabia<br />

37


mais o que fazer. Até que sem mais nem menos ele abriu a boca e eu caí no chão<br />

com <strong>uma</strong> dor jamais sentida. Lembro que rapidamente os vizinhos me<br />

socorreram, enfaixaram meu braço e de carro me levaram para o Posto de<br />

Saúde mais próximo. É por isso que me chamam de azarado, bastou eu ficar<br />

dois dias afastados para que a dona da casa comprasse um cachorro e ele na<br />

primeira ocasião me atacasse. Levei quatro pontos no braço e tenho essa<br />

cicatriz”.<br />

Cicatriz que, passados sete anos, ainda o incomoda. Jefferson lembra que<br />

por causa do acidente ficou quatorze dias parado. Como os Correios só cobrem<br />

quinze dias de licença médica, foi aconselhado a buscar <strong>uma</strong> nova licença no<br />

INSS, o que ele não fez, pois segundo ele “é muita burocracia até para as coisas<br />

mais simples”, então após o encerramento de sua licença voltou ao trabalho<br />

como o braço ainda inchado, com dor e com <strong>uma</strong> cicatriz que causava<br />

desconforto. Souza afirma que o fato aconteceu em <strong>uma</strong> época em que ele não<br />

sabia ao certo os seus direitos, que poderia ter processado a proprietária do<br />

cachorro para que ela cobrisse seus gastos com medicações. Segundo ele, os<br />

Correios pagaram boa parte do tratamento, menos os remédios, que foram<br />

muitos e <strong>uma</strong> operação estética do antebraço esquerdo de Jefferson. “Os<br />

Correios argumentaram que a cicatriz não alterava em nada meu rendimento,<br />

por isso negaram o pagamento da cirurgia plástica. Mas se quando entrei eu<br />

não tinha nenh<strong>uma</strong> cicatriz, e agora eu tenho por causa do trabalho, nada<br />

mais justo que eles pagarem. Até para ir à praia eu me sinto meio mal”, afirma<br />

ele, um pouco irritado.<br />

Após esse relato, feito durante a greve realizada em setembro de 2009, mais<br />

precisamente às 21h15, na calçada em frente à Sede Estadual dos Correios no<br />

Paraná na Rua João Negrão, Jefferson respira fundo, vai até a barraca<br />

improvisada, onde ele passaria a noite com mais quatro pessoas, e pega um<br />

cigarro. Esse era seu segundo cigarro da noite. O primeiro foi quando cheguei<br />

ao encontro dele e me apresentei. Num mecanismo automático de defesa, logo<br />

após eu falar a palavra “entrevista” dava para notar seu nervosismo e o alívio<br />

que o fumo dava. Interpretei então o fato de ele acender um novo cigarro como<br />

<strong>uma</strong> forma de aliviar a tensão e troquei de assunto. Fomos para a família.<br />

Jefferson está namorando há pouco mais de dois anos. Sua namorada<br />

também entrega <strong>carta</strong>s, mas esta história está descrita no próximo capítulo.<br />

Seu pai foi carteiro durante trinta anos e virou a inspiração para que ele tentasse<br />

o concurso público. Hoje sua maior alegria é seu filho de sete anos. Todos os<br />

momentos em que ele é citado seus olhos brilham. Ele conta que agora o filho<br />

está começando a entrar na fase difícil. Quer tudo para ele, não quer saber de<br />

estudar, só de jogar vídeo-game. “Esses dias aí ele quebrou os dois controles<br />

do PlayStation e eu não tive como jogar”, conta Souza, dando risada. A pior<br />

38


parte da noite é quando ele tem que obrigar o filho a desligar o aparelho para<br />

estudar ou dormir. “Dá <strong>uma</strong> pena, mas se eu não fizer isso é capaz de ele não ir<br />

para a aula”, explica o carteiro antes de emendar: “tudo que eu quero é que ele<br />

seja um grande homem, <strong>uma</strong> grande pessoa”. Além do futebol, do filho e do<br />

vídeo-game, Jefferson ainda apresenta mais dois hobbies.<br />

“O primeiro é o reggae”, diz ele ostentando seu cabelo com trancinhas.<br />

Relembra dos tempos em que fez um dread lock na cabeça igual ao Bob Marley<br />

e enaltece esse lado bom de ser carteiro dizendo “que aqui nós não precisamos<br />

usar cabelo cortadinho, com gel, topete e também não é necessário apresentar<br />

a barba e o bigode bem cortadinho”. Jefferson diz isso exemplificando com a<br />

história de um primo que foi demitido de <strong>uma</strong> rede de supermercados por não<br />

ter cortado a barba. Enquanto falava, ele mostrava no celular as fotos do<br />

último show que ele foi, da banda O Rappa. Lamentou ainda a interdição da<br />

Pedreira Paulo Leminski, dizendo que isso só ocorreu porque na região do São<br />

Lourenço moram muitos juízes e promotores. “Pelo menos eu fiz minha parte,<br />

assinei o abaixo assinado. Tem que liberar para show, nem que ele ocorra<br />

durante a tarde”, afirma ele citando o show da banda inglesa Oasis que criticou<br />

em seu site o fato de eles terem se apresentado em um estacionamento de um<br />

centro de eventos na região de Pinhais. “Apesar de considerar os integrantes<br />

da banda uns malas, concordo com eles, para quem tocou no estádio de<br />

Wembley, tocar em um estacionamento deve ser horrível”, comenta ele aos<br />

risos. O outro hobbie que ele ostenta com orgulho é o prazer de preparar um<br />

churrasco quase todo fim de semana. Basta meia hora livre em um domingo<br />

para Souza assar <strong>uma</strong> carne, regada por cerveja, de preferência Skol, muito<br />

reggae e, é claro, muita diversão. É assim que em pelo menos três finais de<br />

semana por mês ele reúne toda a família.<br />

Passado esse momento de descontração e com o cigarro já totalmente<br />

tragado, resolvo voltar a alguns assuntos mais delicados. O fato de ele afirmar<br />

que o chamam de azarado me chamou a atenção e retomei o assunto do azar.<br />

E não é que os colegas de profissão o apelidaram de azarado com propriedade.<br />

Em nove anos como carteiro, Jefferson já foi mordido em quinze ocasiões, o<br />

que dá <strong>uma</strong> média de mais de 1,5 mordidas por ano. Em 2007 ele se superou e<br />

conquistou um título que até rendeu reportagens para jornais impressos e<br />

programas de televisão, mas que não foi comemorado e muito menos o deixa<br />

orgulhoso, e sim bastante dolorido. Jefferson foi o carteiro com o maior número<br />

de ataques efetivos sofrido por cães no ano. Ao todo foram seis mordidas que<br />

atingiram o braço, a perna e até mesmo a virilha. Ele conta essas histórias<br />

com o maior espírito esportivo possível, no famoso “seria cômico se não fosse<br />

trágico”.<br />

39


Já são quase 22 horas, a fome começa a bater. Os carteiros que estão<br />

acampados em frente à sede dos Correios fazem <strong>uma</strong> “vaquinha” e compram<br />

alguns pedaços de costela no restaurante do outro lado da rua. Não nos<br />

servimos da carne, mesmo sendo convidados duas vezes, porque o papo está<br />

interessante e Jefferson lembra do último aperto para colocar <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> em<br />

<strong>uma</strong> caixinha de Correio. Descreve a cena de <strong>uma</strong> casa grande com um cachorro<br />

também de grande porte. Explica que, todos os dias ao chegar em frente à<br />

residência, o cão já está pulando tentando agarrar sua mão. Surgiu então a<br />

ideia de distrair o animal com <strong>uma</strong> pedrinha. Com a mão direita ele ia com a<br />

<strong>carta</strong> em direção a caixinha e com a mão esquerda ele jogava a pedrinha para<br />

o outro lado causando assim a distração do cachorro. Segundo Souza, essa<br />

tática durou um pouco mais de <strong>uma</strong> semana e, infelizmente, agora o cão<br />

entendeu a jogada do carteiro. Na última tentativa de tirar a atenção do<br />

cachorro ele atirou quase cinco pedrinhas e o animal ficou estático em seu<br />

lugar, mexendo apenas a boca para latir.<br />

Continuamos conversando e chegam mais dois grevistas para passar a<br />

noite junto ao piquete montado pelo sindicato. Jefferson aponta para um deles<br />

e fala que aquele ali já foi mordido várias vezes, mas menos que ele. Questiono<br />

se em algum dia ele sofreu alg<strong>uma</strong> tentativa de assalto ou se já foi assaltado.<br />

Neste momento, ao contrário das <strong>outra</strong>s perguntas, cujas histórias lembrava<br />

rápido, ele teve que parar para pensar. “Já sim, faz uns anos, é comum tentarem<br />

assaltar, mas comigo foi <strong>uma</strong> vez só”, conta ele começando a explicação de que<br />

os assaltantes geralmente rendem os carteiros com arma de fogo e levam toda<br />

a bolsa. O objetivo, segundo Souza, é roubar os talões de cheques, mas como<br />

não há tempo de abrir as correspondências, o mais prático é levar toda a<br />

bolsa. “Mas e aí? Vocês têm quem pagar pela bolsa? Como funciona o<br />

procedimento?”, eu questiono. Jefferson explica então que, em todos os casos<br />

que envolvem assalto, o carteiro envolvido deve fazer um boletim de ocorrência<br />

na delegacia mais próxima do ocorrido e então passa por <strong>uma</strong> sindicância<br />

interna, com perguntas e investigações realizadas por <strong>uma</strong> comissão<br />

especializada em apurar esses tipos de casos. Tudo isso para provar, ou não,<br />

que o carteiro que sofreu o assalto não estava envolvido com o esquema da<br />

pessoa que praticou o assalto. “Pode levar dias, meses, mas não me recordo<br />

algum caso em que um carteiro tenha sido considerado cúmplice do assalto”,<br />

diz ele citando dois casos que ficaram marcados entre os colegas de trabalho.<br />

Ambos os casos se encaixam no tempo de dois meses de investigações<br />

realizado pela equipe interna dos Correios. A primeira história ele conta que<br />

aconteceu com um conhecido que havia passado em um concurso interno da<br />

empresa e havia “evoluído” para motorista. Essa “evolução”, segundo Jefferson,<br />

está mais regulamentada nos dias atuais, pois segundo ele, antes eram feitos<br />

40


concursos aberto ao público e entravam muitas pessoas que não se encaixavam<br />

no perfil de carteiros, com disposição e gosto pelo trabalho. Outro empecilho<br />

que ele cita é o fato de que os organizadores e participantes ativos das greves,<br />

como é o caso dele, sofrem alg<strong>uma</strong>s represálias indiretas por parte da direção,<br />

como não ser aprovado em um exame para dirigir as motos ou as “viaturas”,<br />

modo como eles chamam as vans de entrega e coleta. Retomando a história,<br />

Souza lembra que seu ex-colega de rua havia acabado de assumir o volante,<br />

não chegava a fazer um mês que trabalhava como carteiro-motorista dos<br />

Correios. Em um determinado ponto de entrega parou a viatura em frente a<br />

um edifício no centro de Curitiba. Desceu rapidamente e foi em direção à<br />

portaria colher a assinatura do morador, destinatário da encomenda. Jefferson<br />

lembra que a história correu por todos os CDD’s da cidade, pois o carteiro<br />

ficou menos de três minutos na portaria, tempo mais que suficiente para que<br />

um ladrão efetuasse o roubo do veículo. Esse é o único caso que ele lembra, em<br />

nove anos de Correios de assaltantes levarem um carro da empresa. “É por<br />

essa e <strong>outra</strong>s que prefiro ficar a pé”, diz ele dando risada.<br />

Porém o risco existe de mesma forma ou até com maior intensidade para<br />

quem está no serviço a pé. Um dos casos fatídicos, segundo ele, aconteceu<br />

quando estava trabalhando em Colombo. “Lá tem uns lugares sinistros, se<br />

você não tem que cuidar com os cachorros, tem que estar de olho com os<br />

assaltos”, afirma ele, começando a desenvolver a história de um amigo seu e o<br />

assalto. Jefferson conta que certo dia, em <strong>uma</strong> rota que ele já havia trabalhado,<br />

o carteiro estava realizando a entrega das correspondências quando foi<br />

abordado por dois homens armados que realizaram um sequestro relâmpago.<br />

Foram pra um beco sem saída e começaram a vasculhar a bolsa procurando<br />

os talões de cheques e alg<strong>uma</strong>s encomendas que poderiam ter algum valor.<br />

Encontraram um pacote de talões e obrigaram-no a continuar a entrega<br />

normalmente, sem demonstrar que estava sendo seguido. Quando apertou o<br />

interfone da residência, detentora dos cheques, a empregada abriu o portão<br />

para assinar o recibo de entrega e rapidamente foi abordada pelos assaltantes.<br />

O carteiro e a empregada foram obrigados a entrar na casa e ficar trancados<br />

em um banheiro, ele apenas de cueca. “Fizeram <strong>uma</strong> limpa na casa, levaram<br />

dinheiro, aparelhos eletrônicos e até o uniforme dele”, conta Souza,<br />

demonstrando um pouco de indignação.<br />

Nas ruas, basta passar alg<strong>uma</strong> pessoa com <strong>uma</strong> camisa de predomínio<br />

amarelo que você pensa: é carteiro. O uniforme amarelo e azul se transformou<br />

em <strong>uma</strong> marca registrada dos trabalhadores dos Correios. Assim como em<br />

qualquer empresa que adota o uso de uniformes, os carteiros apresentam<br />

alg<strong>uma</strong>s reclamações sobre a vestimenta usada por eles. Jefferson explica que<br />

a cada seis meses todos os carteiros deveriam receber três novos conjuntos de<br />

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sapato, calça, bermuda, camisa e agasalho. Deveria, mas há mais de um ano<br />

isso não ocorre. Aos trabalhadores, foi informado que está ocorrendo um<br />

problema com a licitação das empresas que se candidataram para fabricar as<br />

roupas. Souza sabe que “esse negócio de licitação é complicado”, mas sugere<br />

que sejam feitas mudanças em alguns itens do uniforme.<br />

- Repare na calça, ela é <strong>uma</strong> calça social, não há nenh<strong>uma</strong> mobilidade nela.<br />

É ruim de andar muito tempo com ela e desconfortável para correr quando<br />

necessário. Já manifestei a opinião que as calças deveriam ser daquele material<br />

de uniformes esportivos, o poliéster. “A capa de chuva não é impermeável e só<br />

serve para fazer peso extra, já que os nossos sapatos pesam 1 kg e causam<br />

muitos calos.<br />

- Falando em peso, quantos quilos você pode levar na bolsa?<br />

Jefferson responde que o máximo estimulado é 8 kg para as mulheres e 10<br />

kg para os homens, mas que é comum esse peso ser ultrapassado. E quanto<br />

mais pesada estiver a bolsa, menor é agilidade do carteiro. E isso compromete<br />

também a segurança. Bicicleta, moto, ônibus e automóvel. Souza quase foi<br />

atropelado por esses quatro tipos de veículos e com as mãos mostra como<br />

carrega a bolsa para não derrubar nenh<strong>uma</strong> correspondência na hora que tem<br />

que correr para atravessar a rua.<br />

O meu tempo de entrevista com ele vai se esgotando, quase onze horas da<br />

noite, o frio começa a aumentar, Jefferson explica que ainda vai a um<br />

hipermercado com a mulher comprar alguns alimentos para passar a noite<br />

acampado. Eu olho para a barraca e vejo que não há mais costela na travessa,<br />

essa seria a sua janta. Despeço-me agradecendo a paciência pelas quase duas<br />

horas conversando em pé, no frio, sem comida e com apenas dois cigarros que<br />

logo virarão três, pois em sua mão esquerda o isqueiro já dava sinais de vida.<br />

Antes de ir embora, Souza quer mostrar-me um vídeo que gravou. A entrada<br />

em campo do Coritiba no jogo contra o Corinthians Paulista. Orgulhoso diz:<br />

foi <strong>uma</strong> festa linda, pena que o time não colaborou.<br />

Trocamos contatos de email e telefone, ele apresenta sua namorada, que<br />

seria a entrevistada do dia seguinte e nos cumprimentamos. Aguardo o sinal<br />

ficar vermelho para atravessar a rua e andar mais três quadras até a Rua<br />

Rockfeller, onde estacionei meu carro, pois lá não havia Estar. Quando estou<br />

no meio da quadra, andando, pergunto meio gritando: E esse ano, já foi<br />

mordido por algum cachorro? Ele dá risada, espera eu terminar a travessia e<br />

responde: Não, esse ano ainda não, mas calma que o ano ainda não terminou!<br />

42


ELA vai<br />

até o FIM<br />

Nasceu em Araruna, a 480 km da capital, aos cinco anos se<br />

mudou para Campo Mourão, passou um tempo em<br />

Prudentópolis e cursou o ensino médio em um colégio integral<br />

de Cruz Machado. Descendente de ucranianos, com sangue forte como<br />

ela se define, e batalhadora, aos 19 anos resolveu mudar de vida e tentar a<br />

sorte na “cidade grande” de Curitiba. Essa é a trajetória de Bernadete,<br />

popularmente conhecida como Dete, seu nome de “guerra”.<br />

Nossa conversa começa em <strong>uma</strong> lanchonete, na esquina da sede dos<br />

Correios. São quase 16 horas e o carro de som alugado pelos grevistas já<br />

está em funcionamento, diversos dirigentes sindicais passam recados,<br />

protestam e organizam a passeata que está programada para começar às<br />

17 horas até o calçadão Rua XV de Novembro. O barulho é muito grande,<br />

temo pela captação de som do gravador, mas seja o que Deus quiser. Bato<br />

um papo com Dete sobre a greve, suas reivindicações, sobre a entrevista e<br />

qual é a ideia do livro. Enquanto conversarmos, Jefferson nos serve <strong>uma</strong><br />

cerveja, enche seu copo e sai para conversar com outros carteiros. Bernadete<br />

completa neste semestre oito anos como carteira e sete Centros de<br />

Distribuições trabalhados. Já caminhou pelo São Braz, Santa Felicidade,<br />

Hauer, Centro Cívico, Araucária, Campo Comprido – onde está<br />

atualmente e Cidade Industrial de Curitiba, que segundo ela foi o pior<br />

lugar onde trabalhou. O porquê ela explica:<br />

- Eu ficava trabalhando apenas na parte interna da sucursal, eram só<br />

trabalhos administrativos. Não gosto disso, ficar parada não é comigo.<br />

43


Gosto mesmo é de ser carteira e de andar pelas ruas.<br />

Assim como a maioria dos carteiros e com nenhum privilégio nisso,<br />

Dete já foi mordida por cachorros, mas sem nenhum ferimento grave.<br />

Ela conta que a mordida em si não é o pior, e sim o ataque. “Você leva um<br />

susto na hora, não sabe o que fazer, eu me sinto tão pequena, sem reação.<br />

A gente chora, chora e não quer saber de mais nada”, conta um pouco<br />

alterada lembrando que no último ataque sofrido ela ficou sem defesa e<br />

entrou em estado de choque. Igualmente a Oswaldo, Jefferson e aos outros<br />

carteiros entrevistados, ela também tem um cachorro de estimação, <strong>uma</strong><br />

cadela pit bull que nunca mordeu ninguém. “O muro de casa é alto”, justifica<br />

Dete. Também não sente raiva dos animais, mas nervosa e explosiva que<br />

é, odeia seus donos. Ela então descreve <strong>uma</strong> cena cotidiana que a deixa<br />

com mais raiva.<br />

- Sempre tem <strong>uma</strong> residência com o portão aberto e invariavelmente<br />

nesse momento o cão de guarda está solto e começa a latir. Dirijo-me até<br />

a caixa de correio com receio de ser atacada. Quando o dono da casa<br />

aparece geralmente diz algo como “calma, ele não é violento, ele não<br />

morde”. Não morde ele, que é seu dono. É só ele virar de costas que o<br />

bicho volta a te ameaçar.<br />

Bernadete conta que, na época em que trabalhava em Araucária e agora<br />

que anda pela periferia de Curitiba, o número de cachorros soltos é muito<br />

grande e que perdeu as contas de quantas vezes teve que bater no animal<br />

com pedaços de pau e pedras para se proteger. Lembra dando risada de<br />

um dia em que o cachorro pulou o muro de <strong>uma</strong> casa e foi para cima dela.<br />

A dona começou a gritar, mas o cão não obedeceu. O instinto de<br />

sobrevivência falou mais alto e ela pegou a<br />

bolsa com as correspondências e começou<br />

a se defender e agredir o cachorro, que diante<br />

do seu insucesso voltou para a sua casinha.<br />

Quando chegou ao seu CDD e com a história<br />

na ponta da língua para contar aos seus<br />

colegas, ela é solicitada a comparecer a sala<br />

“Preciso repousar por causa da saúde, mas<br />

amo o que faço” / “Fiquei quatro meses parada<br />

e já não sabia mais o que fazer”.<br />

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de um superior, pois a empresa havia recebido <strong>uma</strong> reclamação de que<br />

<strong>uma</strong> carteira agrediu um cachorro. “Acredita que a mulher teve a cara de<br />

pau de ligar reclamando?”, comenta Dete, aparentemente irritada.<br />

Como estamos falando de assuntos comuns entre os carteiros, pergunto<br />

se ela já foi assaltada. De imediato responde que não, mas que já sentiu<br />

muito medo em alguns lugares que passou. Explica que conhece alg<strong>uma</strong>s<br />

regiões de tráfico de drogas intenso como o Itatiaia e o Caiuá, mas que<br />

trabalhava normalmente. “Os usuários de drogas mexiam de vez em<br />

quando. Falavam que eu era mais bonita que o último carteiro, assobiavam,<br />

passavam cantadas... essas coisas assim. Já os traficantes sempre eram<br />

discretos e me tratavam como <strong>uma</strong> simples trabalhadora fazendo o seu<br />

serviço, que é o que eu sou”. Segundo ela, o pior lugar para se trabalhar na<br />

região do Campo Comprido é no Jardim Gabineto. Dete explica que nessa<br />

vila muitos carteiros passaram por problemas e foram assaltados com a<br />

“arma na cara”, diz como se tivesse acontecido com ela. O local é tão<br />

complicado que os carteiros não podem trabalhar em determinadas ruas<br />

após as 17 horas. Conforme Dete, os traficantes avisam os novos carteiros<br />

dos riscos de extrapolar esse horário.<br />

Ela nunca foi assaltada, mas não pense que ela é um exemplo de pessoa<br />

precavida, muito pelo contrário. “Sou muito distraída, várias vezes já dei<br />

de cara com um poste ou com <strong>uma</strong> árvore”, diz Dete se divertindo. A sua<br />

última presepada aconteceu há pouco mais de dois meses. Conta que estava<br />

caminhando apressada, sua marca registrada – afirma que consegue dar<br />

32 passos por minuto, ou seja, em um dia de trabalho ela coloca os pés no<br />

chão 12.160 vezes, e enquanto anda ela vai conferindo os números das<br />

correspondências dentro da bolsa. Eis que surge em sua frente <strong>uma</strong> lixeira<br />

e a atropela. “Juro que no dia anterior não existia aquele lixo”, diz ela<br />

dando risada.<br />

Infelizmente esta distração já rendeu muitos problemas. Em certo<br />

momento de sua carreira como carteira, Bernadete efetuava suas entregas<br />

em um conjunto habitacional no Itatiaia. Tudo ocorria normalmente,<br />

porém, na hora de ir embora, se distraiu ao se despedir do zelador e<br />

tropeçou em um degrau que segundo ela não passava de cinco centímetros<br />

de altura. Essa pequena elevação causou <strong>uma</strong> torção muito forte de toda a<br />

região do pé. Felizmente nenhum ligamento foi rompido e nenhum osso<br />

quebrado, mas Dete teve quer ficar quatro meses afastada do emprego.<br />

Para ela, foram intermináveis meses, cujos dias eram preenchidos à base<br />

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de remédios, tratamento fisioterápico e uso de <strong>uma</strong> bota ortopédica. Não<br />

queria nem mais saber de televisão. “Se ao menos eu tivesse <strong>uma</strong> televisão<br />

a cabo para ver alguns jogos do campeonato italiano ou espanhol”, lamenta<br />

ela que também é viciada em futebol. Torcedora do Coritiba por influência<br />

do namorado, vai em todos os jogos e diz gritar mais que Jefferson, mas<br />

quem encontra ela toda vestida de verde e branco no estádio não imagina<br />

que na infância, por causa dos pais era santista, quando veio para Curitiba<br />

descobriu que as irmãs eram todas torcedoras do Paraná Clube e até hoje<br />

fazem cara feia pela mudança de time. Dete tem <strong>uma</strong> explicação na ponta<br />

da língua para isso: “Eu falei para as minhas irmãs que a culpa era delas,<br />

nunca me levaram à Vila Capanema, já o Jefferson na primeira semana<br />

de namoro me levou para o Couto Pereira”.<br />

Passados os quatro meses de descanso forçado, Dete finalmente voltou<br />

a seu trabalho. Estava recuperada daquela lesão, que até hoje ela considera<br />

por um motivo ridículo, mas havia muitos outros problemas físicos<br />

incomodando. Bernadete conta então seu pior pesadelo: as dores na<br />

coluna. Durante os cinco primeiros anos de serviço ela afirma que não<br />

dava atenção para sua saúde. Como era afobada, sempre tentava fazer de<br />

tudo para conseguir terminar de entregar as correspondências antes do<br />

prazo estipulado. Para que seu objetivo fosse alcançado com sucesso ela<br />

começou a trabalhar também durante o horário de almoço. Com o tempo,<br />

as dores começaram a surgir e ela percebeu então que aquela <strong>uma</strong> hora e<br />

quinze minutos disponibilizadas para o almoço e um descanso eram<br />

essenciais para a saúde. “Só depois da primeira dor mais aguda nas costas<br />

que eu coloquei a mão na consciência e vi que o descanso era necessário.<br />

Acho que percebi tarde demais, mas desde então comecei a me alongar<br />

de maneira mais correta e séria”, conta apontando para o local exato da<br />

dor.<br />

O agravamento dos problemas de coluna de Bernadete foi ficando cada<br />

vez mais evidente e as consultas no médico estavam mais frequentes.<br />

Para Dete, um dos motivos da constante piora de seu quadro é o fato de<br />

que o teto máximo de 8 kg de correspondências na bolsa para mulheres<br />

sempre foi ultrapassado. Outro fator contribuinte é o crescimento<br />

demográfico e imobiliário da Capital. “Na região onde trabalho, mais<br />

precisamente na parte periférica de Curitiba, está ocorrendo um aumento<br />

muito grande e rápido de residências. Imagine <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> nova entregue<br />

por dia, no fim do ano o peso de correspondências aumentou muito e o<br />

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percurso percorrido também, mas o efetivo não”. A falta de novas<br />

contratações é um dos pontos que ela mais reclama, pois há mais de dois<br />

anos que não é realizado um concurso público aqui no Paraná. Porém,<br />

Dete revela que a situação também é ruim por causa de muitos colegas de<br />

trabalho. Revela que muitos funcionários fazem corpo mole durante o dia<br />

e levam o expediente com a barriga, isso tudo porque há <strong>uma</strong> lei federal<br />

que protege o trabalhador concursado. “Para que alguém seja demitido<br />

por justa causa ele deve te feito <strong>uma</strong> besteira muito grande”, diz ela enquanto<br />

eu tiro alg<strong>uma</strong>s fotos para a ilustração do perfil.<br />

Uma vez por semana Bernadete faz hidroginástica e toda terça-feira e<br />

quinta-feira é dia de fisioterapia. Todos os tipos de tratamentos de<br />

recuperação, como o RPG, cuja etapa ela concluiu, são pagos pelo Correios,<br />

mas 10% são descontados todo mês do salário dos carteiros. Isso vale<br />

também para os exames, de sangue e ressonância magnética, ambos feitos<br />

por Dete. Você deve estar pensando que o problema dela não tem cura.<br />

Calma, ter tem, mas ela não quer. Para que as dores desapareçam, a médica<br />

que a examina disse que ela tem duas opções: largar o emprego e fazer um<br />

tratamento intensivo ou ir até o limite, complicar cada vez mais a região<br />

lombar e ter que enfrentar <strong>uma</strong> cirurgia nos discos e parar de entregar<br />

<strong>carta</strong>s.<br />

- Se eu penso em parar? Nunca, jamais, irei até o meu limite, até onde<br />

meu corpo aguentar. Se for o caso farei a cirurgia e tentarei voltar. Amo o<br />

que faço e não tem sensação melhor do que andar livremente pelas ruas.<br />

Só você e as <strong>carta</strong>s.<br />

Esse amor pela sua profissão surgiu quando Bernadete havia recém<br />

chegado a Curitiba. Um belo dia foi à Rua da Cidadania do bairro Portão<br />

procurar emprego. Não encontrou, mas quando voltava para casa no<br />

ônibus biarticulado Santa Cândida – Capão Raso viu um carteiro<br />

aparentando cansaço, mas com um sorriso na cara e disse para ela mesma<br />

que queria ser assim. Começou a estudar para o concurso público e na<br />

primeira tentativa conseguiu a vaga e o emprego. Dete mantém <strong>uma</strong><br />

decepção no emprego que é bem visível na suas expressões quando fala<br />

sobre isso. Motoqueira, ela conta com muita frustração que até hoje não<br />

conseguiu passar no teste para ser entregadora motorizada. O teste é<br />

simples, basta o candidato passar entre oito cones duas vezes. Ela tentou<br />

o exame quatro vezes e nunca obteve aprovação. “É a caixinha atrás que<br />

me desconcentra”, diz ela em tom de brincadeira. Motocicletas são <strong>uma</strong><br />

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de suas paixões, tanto que tem duas, “mas a vermelha já está bem<br />

ruim, solta muita f<strong>uma</strong>ça. Não sei quem produz mais f<strong>uma</strong>ça, a<br />

moto ou os cigarros do Jefferson”, diz ela enquanto ele nos servia<br />

com mais <strong>uma</strong> garrafa de cerveja.<br />

48


O AMOR nos<br />

tempos de GREVE<br />

A<br />

história do namoro entre Bernadete e Jefferson foi contada por ela<br />

sob os olhares atentos dele, que confirmou toda a versão contada.<br />

Então nada melhor que as palavras de Dete sobre o acontecimento:<br />

- O dia exatamente eu não lembro, era o último dia da greve que durou<br />

vinte dias durante o mês de setembro de 2007. Lembro que ficamos três semanas<br />

parados. Na última noite eu estava sentada ali – aponta para <strong>uma</strong> mesa ocupada<br />

por outros carteiros à nossa esquerda – quando o Jefferson chegou ao meu<br />

lado, fedendo cachaça e cerveja, completamente bêbado, e começou a me falar<br />

um monte de palavras bonitas, carinhosas, que gostava de mim entre <strong>outra</strong>s<br />

coisas. Como eu nunca tinha visto ele, não tinha a mínima noção de quem ele<br />

era, nem dei bola. Passada quase <strong>uma</strong> hora estávamos fazendo um churrasco,<br />

improvisando <strong>uma</strong> churrasqueira na calçada. Sem mais, nem menos ele<br />

apareceu do meu lado com <strong>uma</strong> garrafa, jogou água e apagou o fogo que<br />

havíamos acabado de acender. Mandei-o embora dali e ele saiu. Não passou<br />

quinze minutos e um colega me chama pedindo que tirasse o Jefferson do<br />

outro lado da rua antes que ele fosse preso. Olhei para o outro lado e lá estava<br />

ele perturbando os policiais militares que estavam<br />

de plantão. Atravessei rápido a rua e exigi que ele<br />

fosse dormir. Ele sempre foi bonzinho e me<br />

obedeceu. Ele deitou-se no chão e eu fui lá cobrilo,<br />

imaginando que ele não se lembraria de nada<br />

“Conheci em <strong>uma</strong> greve, bêbado, e jurando<br />

que ele não lembraria nada no dia seguinte”<br />

49


no dia seguinte. Isso que ainda não tínhamos nada um com o outro.<br />

- Exatamente do lado daquele portão – ela aponta qual – ele ficou com um<br />

amigo cantando e berrando várias músicas a madrugada inteira. Como a<br />

noite estava fria, encostei-me em um amigo e dormi sem me importar com a<br />

barulheira causada por ele. No outro dia fui tomar o café da manhã com os<br />

outros grevistas e ele não foi. Ficou no seu canto com <strong>uma</strong> cara de poucos<br />

amigos. Quase na hora do almoço ele veio falar comigo, disse que havia ficado<br />

com ciúmes de eu ter dormido ao lado de um amigo e disse “preciso falar com<br />

você, mas tudo aquilo que te falei no bar ontem é verdade”. Fiquei sem saber o<br />

que responder, com <strong>uma</strong> cara de surpresa. Marcamos um almoço e trocamos<br />

os números dos telefones. Durante <strong>uma</strong> semana nos falamos todos os dias<br />

por telefone. No outro fim de semana pós greve já estávamos namorado.<br />

Hoje eles ainda não moram juntos, mas isso está no plano futuro, porém se<br />

encontram todos os dias. Bernadete busca e leva Jefferson para a casa dele<br />

todos os dias, tempo pequeno que ficam juntos, mas sempre bem aproveitado.<br />

Pergunto a ela se, fora a casa, há mais algum planejamento. Dete responde que<br />

sim, que ainda sonha em voltar a estudar, mais especificamente em cursar<br />

Educação Física em <strong>uma</strong> Universidade. Brinca dizendo que para ela seria mais<br />

útil, na verdade. realizar um curso de Fisioterapia ou de Yoga para melhorar<br />

suas dores. O sonho de voltar aos estudos está na pauta, mas ficará em segundo<br />

plano enquanto ela não realizar o seu maior sonho, que, segundo ela, já está<br />

sendo bem tratado, que é ser mãe!<br />

50


CARTEIRO Futebol<br />

CLUBE<br />

Sandro Michailev, carteiro curitibano, já pode ser considerado um<br />

velho conhecido e amigo “dos tempos de faculdade”. Já foi<br />

protagonista de um perfil para a revista <strong>Entre</strong>linha, produzida pelos<br />

alunos-colegas da Universidade Positivo, onde teve parte de sua vida contada.<br />

Com certeza alg<strong>uma</strong>s histórias serão abordadas novamente e alg<strong>uma</strong>s<br />

curiosidades ficarão expostas. Na universidade ele é visto como um aluno<br />

exemplar, alguém a ser copiado, segundo seus colegas de classe. Quando<br />

pergunto sobre o Sandro, 90% o definiu com um palavra: batalhador. Elogio<br />

esse que começou a se sustentar em 2007 quando ingressou no curso de<br />

Comunicação Social – Jornalismo. Muitos admiram Sandro pelo fato de<br />

trabalhar durante todo o dia, ir para aula à noite com a maior disposição e<br />

ir bem nas provas bimestrais.<br />

Mas o que mais chama a atenção no carteiro em sala de aula é o bordão:<br />

“Que absurdo”, falado entre risadas durante a aula quando algum colega faz<br />

um comentário maldoso ou quando o assunto é polêmico. Já é até comum<br />

alg<strong>uma</strong>s pessoas da turma repetirem o bordão em conversas fora de sala.<br />

Nossa conversa, como entrevista oficial, começa no sábado, após o término<br />

da vitória do Atlético Paranaense – sua paixão – por um a zero contra o Sport<br />

Recife. O jogo foi considerado de baixo nível técnico, torcida vaiando ao apito<br />

final do juiz e, apesar de conquistar os três pontos, muitos torcedores saíram<br />

de cabeça quente da Arena da Baixada. Sandro foi um dos sócios do clube que<br />

deixaram o estádio inconformado com a atuação do time. Durante a carona<br />

que dei a ele o assunto sempre estava ligado ao futebol e, quando não estávamos<br />

falando, é porque nossos ouvidos estavam atentos às entrevistas coletivas<br />

dos jogadores em um programa esportivo pós-jogo.<br />

51


No caminho sentido à residência de Sandro, faço um desvio na rota para<br />

pegar seu filho Iadji na casa do seu pai, no fim de Santa Felicidade, quase em<br />

Campo Largo. Esperamos aproximadamente cinco minutos até sua família<br />

chegar a casa. Estavam todos na igreja. Na rápida conversa que tive com o<br />

patriarca da família, o assunto não foi outro a não ser futebol. Sandro, Iadji e<br />

eu entramos no carro, agora sentido sua casa e ele começa a contar como<br />

conheceu sua mulher, mãe do seu filho.<br />

Tudo começou, segundo ele, com seu irmão mais velho que namorava <strong>uma</strong><br />

mulher que se mudou para Barbacena, em Minas Gerais. Lá ela começou a<br />

fazer propaganda de Sandro para as amigas. Certo dia sua futura esposa ligou<br />

para ele. A conversa cada dia mais ficava interessante e em março de 2001<br />

começaram a namorar por telefone. A vontade de se ver cada dia crescia mais.<br />

Faziam planos de se conhecer pessoalmente até que um belo dia Cleo apareceu<br />

em Curitiba.<br />

- Lembro que era feriado de Páscoa. Toda a paixão que tinha por ela no<br />

telefone se repetiu quando a vi ao vivo e a cores pela primeira vez. A sintonia<br />

foi tão boa que ela voltou para Minas Gerais grávida.<br />

O ano de 2001 ainda guardava alg<strong>uma</strong>s surpresas agradáveis e<br />

desagradáveis. No mês de junho, devido a um câncer, sua mãe morre. “Foi bem<br />

complicada essa fase”, relembra. Ainda no primeiro ano do novo século, o<br />

Atlético se sagrava Campeão Brasileiro pela primeira vez. Título que faz Sandro<br />

sorrir.<br />

“Namorei minha esposa durante um mês, só que<br />

por telefone, sem conhece - lá pessoalmente” / “Hoje<br />

graças a Deus consigo ir a todos os jogos”/ “Não sei<br />

como começou, mas amo minhas camisas”.<br />

52


Adentramos em sua nova casa, à beira da Rodovia do Café – BR 277, ao<br />

lado de motéis. “É impressionante como tem movimento aqui durante todo o<br />

dia”, conta ele dando risada. Sentamos na cozinha para continuarmos o papo,<br />

ele pede desculpas devido às compras feitas no mercado não estarem<br />

guardadas e volta a falar de como conheceu sua mulher. Em janeiro de 2002,<br />

nasceu seu filho e menos de um mês depois Sandro conseguiu ser transferido<br />

para Minas Gerais. Não conseguiu emprego em Barbacena, apenas em Juiz de<br />

Fora, cidade a duas horas de viagem. Na cidade mineira era conhecido pelos<br />

seus colegas de ofício apenas como Sandro, como ocorre na universidade.<br />

Para lá levou tudo que tinha, menos o seu apelido: Tatuapu. Segundo ele, o<br />

apelido surgiu enquanto a novela das 7, Uga Uga fazia sucesso na Rede Globo.<br />

Sua semelhança com o índio Tatuapu, personagem central da novela foi o<br />

grande motivo da criação do apelido.<br />

Tatuapu, mas lá ainda é Sandro, se queixou muito de quando foi carteiro<br />

na principal cidade da Zona da Mata Mineira. Conforme explicava suas queixas<br />

de que lá era muito quente e que o relevo era acidentado, causando um desgaste<br />

físico enorme, Sandro observava o que o filho estava fazendo.<br />

- Fiquei na cidade até 2004, não aguentava mais o clima diferente e os<br />

milhares de morros. Quando fui trabalhar lá eu pesava 65 kg. Deixei Juiz de<br />

Fora com 58 kg. E hoje (batendo na barriga), passei um pouco dos 70 kg.<br />

Sandro conta que Cleo se mudou para Curitiba dois anos depois, em 2006.<br />

Ano passado compraram um apartamento, porém tiveram problemas com<br />

os vizinhos e se mudaram para a atual casa. Durante toda a história de como<br />

conheceu sua mulher, fomos interrompidos três vezes por seu filho. Na<br />

primeira interrupção Iadji perguntou se poderia jogar video-game. Ouviu um<br />

“depois” como resposta. Passados quatro minutos, perguntou sobre a<br />

possibilidade de mexer no computador. Obteve a mesma resposta. A última<br />

interrupção foi a que rendeu mais que um “depois” como resposta. Vale a pena<br />

reproduzir o diálogo:<br />

- Pai, quando você era criança tinha televisão?<br />

- Ai ai, ele está com <strong>uma</strong> mania de achar que eu sou velho. Tinha sim, por<br />

quê?<br />

- Já tinha desenho animado? Qual você assistia?<br />

- Tinha sim meu filho, mas não lembro qual.<br />

- E em 2001, qual desenho assistia?<br />

- Papai não era mais criança em 2001.<br />

- Tá, e em 2002?<br />

- Também não era mais criança, filho.<br />

- Que chato isso, não quero mais ser adulto.<br />

53


Após o término dessa conversa, questiono Sandro sobre a sua opção de<br />

cursar Jornalismo. Sua primeira frase é fatídica e autoexplicativa. “Minha vida<br />

sempre foi futebol”, diz ele se lembrando da sua infância. Nos seus cálculos,<br />

com 4 anos de vida, em 1985, ele já se interessava por tudo voltado aos esportes,<br />

principalmente ao futebol. “Desse ano lembro que o time (Atlético) não fez um<br />

bom Campeonato Paranaense e por incrível que pareça e graças a Deus não<br />

me lembro do título de campeão Brasileiro conquistado pelo Coritiba nesse<br />

ano”, conta dando risada e jurando ser verdade a história. Verídica ou não, o<br />

fato é que Tatuapu - gostei deste apelido já pensava em fazer Jornalismo, voltado<br />

à área esportiva. Quando terminou o ensino médio, a vontade ficou mais<br />

evidente, porém ele precisava ajudar financeiramente sua família e trocou os<br />

estudos pelo trabalho. Quando se firmava no emprego e pronto para tentar<br />

um vestibular, acontece a gravidez da sua então namorada. “E assim foi indo”,<br />

justifica, olhando para o teto como se estivesse tentando achar mais algum<br />

empecilho.<br />

Em 2006, quando tudo já estava acomodado, o filho um pouco mais velho<br />

e a esposa morando em Curitiba, Sandro começou a frequentar um curso prévestibular.<br />

No final do ano prestou o Enem e conseguiu <strong>uma</strong> bolsa para o ano<br />

de 2007. Diz que não tentou a Universidade Federal do Paraná porque<br />

dificilmente conseguiria ajustar os horários das aulas com o do serviço.<br />

Iniciado ano letivo de 2007, Tatuapu estava convicto de ser jornalista<br />

esportivo. Explica que quando criança, assim como a maioria dos brasileiros,<br />

queria ser jogador de futebol. Define-se, no futebol, como um centroavante<br />

com estilo de jogar parecido com Walter Casagrande Jr e Serginho Chulapa.<br />

54


Relembra da primeira vez que esteve no estádio Joaquim Américo,<br />

popularmente conhecido como Baixada.<br />

- Foi em meados de 1991. A Baixada estava desativada, lembro que tinha<br />

limo por tudo que era lado. Apenas o campo estava bem cuidado, pois os<br />

jogadores treinavam ali. Fiquei com meu irmão na saída do campo para pegar<br />

os autógrafos, em um caderno, dos jogadores campeões em 1990. Tenho até<br />

hoje esse caderno.<br />

Pergunto se o caderno está guardado em sua casa. Ele para um pouco para<br />

pensar e responde que não. “Está guardado na casa do meu irmão”, diz<br />

demonstrado <strong>uma</strong> expressão de alegria. Tudo relacionado ao futebol, Atlético<br />

e coleção de camisas – hobby de Sandro – está totalmente ligado ao seu irmão.<br />

“A minha história de vida sempre andou junto com a dele”, afirma Tatuapu. Ele<br />

explica que o sonho de ser um astro do futebol sempre recebeu incentivos do<br />

irmão mais velho, que o acordava todo domingo de manhã para jogar bola no<br />

clube de campo Três Marias. Sua única reclamação era da posição imposta<br />

para jogar: goleiro. Diz que no futebol de salão a bola era muito pesada e que<br />

sempre foi um verdadeiro “frangueiro”.<br />

Recorda dos tempos em que jogava pelo Três Marias e de um jogo específico<br />

contra o temido Pinheiros, time forte e de tradição, que na fusão com o<br />

Colorado fundou o Paraná Clube. No primeiro turno do campeonato, o time<br />

de Sandro havia perdido por 8 a 0. “Eu não era o goleiro”, diz dando muitas<br />

risadas. No dia do confronto, Sandro conta como se tivesse contando um<br />

segredo, até abaixa a cabeça para mais perto da mesa: nos vestiários ele e os<br />

outros jogadores armaram um “cai cai” coletivo na quadra do jogo. “Até hoje<br />

não sei como me deixaram jogar de titular aquele jogo”, afirma. Como seu time<br />

não tinha reservas, todas as vezes que alguém se “machucava” o atendimento<br />

acontecia na hora e o tempo ia passando. Quando chegou a sua vez de simular<br />

<strong>uma</strong> contusão, Sandro saiu do gol em direção ao atacante que estava com a<br />

bola. Quando preparava o bote em cima do jogador adversário, o atacante<br />

chutou. “Com <strong>uma</strong> força que eu nunca tinha visto e, pior, pegou bem no<br />

estômago. Acabei me machucando de verdade”, lembra dando mais risada. A<br />

bolada que levou realmente doeu, mas, como prometido, ele fez <strong>uma</strong> encenação,<br />

rodou no chão e dizia ao massagista que havia machucado vários lugares.<br />

Sandro termina a história feliz e contente: “a partida terminou com um glorioso<br />

0 a 0 e saímos aplaudidos do ginásio do Três Marias”<br />

Brincadeiras e histórias à parte, Sandro rememora o começo dos anos 90,<br />

quando ia aos jogos do Atlético sem pagar, pois possuía a carteira de atleta da<br />

Federação Paranaense de Futebol. Sua cronologia de acompanhamento de<br />

jogos é repleta de altos e baixos. Na reinauguração da Baixada em 1994, contra<br />

o Flamengo, não conseguiu ingresso para o jogo. Depois, pelos jornais, ficou<br />

55


sabendo que antes do início da partida os portões estavam abertos a todos.<br />

Notícia que o frustrou na época. “Fui no segundo jogo, contra o poderoso<br />

Londrina”, diz em tom irônico. Durante todo o ano e o seguinte, Sandro foi<br />

espectador e torcedor ativo dos jogos do Furacão. <strong>Entre</strong>tanto, o ano de 1996<br />

começou trazendo dificuldades financeiras para toda sua família e lamenta o<br />

fato de ter ido a poucos jogos na até então melhor campanha do time em<br />

campeonatos nacionais. Um terceiro lugar muito comemorado com o ataque<br />

formado pelos ídolos Paulo Rink e Oseas.<br />

O tempo foi passando e Tatuapu ficou durante onze anos frequentando<br />

esporadicamente os jogos do seu time do coração. No ano passado conseguiu<br />

enfim se tornar sócio e voltou aos jogos do Atlético. Desde então ele altera seu<br />

calendário semanal. Alg<strong>uma</strong>s quartas-feiras vai para as aulas, <strong>outra</strong>s ao<br />

estádio, sempre calculando o número de faltas para não reprovar<br />

automaticamente. Neste ano a mensalidade dos associados aumentou de R$<br />

50 para R$ 70. Ele não deixará de ser sócio, mas reclama que o preço é muito<br />

alto para um elenco que não dá mais alegria.<br />

A última vez que ficou eufórico com o time foi no Campeonato Brasileiro<br />

de 2004, em que o rubro-negro ficou como vice-campeão, mas ele prefere não<br />

comentar sobre esse ano. Quer falar sobre coisas boas e por isso puxa a história<br />

do campeonato de 2001. Logo pergunto se ele foi à final e ele responde que sim,<br />

recordando a história que envolve os jogos finais.<br />

- Em dezembro de 2001 eu trabalhava na região do Centro e Mercês.<br />

<strong>Entre</strong>gava <strong>carta</strong>s na Rua Visconde de Nácar e fiquei muito amigo dos porteiros<br />

dos prédios. Quando o Atlético passou para a final do campeonato, no dia<br />

seguinte já começaram as filas em frente à Arena para comprar ingressos. As<br />

bilheterias abririam na sexta-feira, mas no domingo, depois da semi-final com<br />

o Fluminense, começaram os acampamentos. A fila começou na Rua Buenos<br />

Aires, dobrou a esquina Rua Getulio Vargas, virou na Rua Coronel Dulcídio<br />

e terminou na Brasílio Itibere, na esquina com a Buenos Aires novamente.<br />

Calma, o Sandro não faltou o trabalho, não dormiu na fila e também não<br />

disse que estava doente para o chefe. Dando risada, conta que um porteiro<br />

tinha esquema para comprar ingressos, pois tinha amigos cambistas que já<br />

estavam na fila. É lógico que Tatuapu não pensou duas vezes e reservou seu<br />

ticket de entrada. O jogo em si não havia o que comentar. Quando o Atlético<br />

marcou o quarto gol, “eu não sabia mais o que fazer, não parava de chorar,<br />

chorava, chorava até não poder mais”, conta dando risada. E seu irmão, como<br />

sempre, estava no jogo ao lado dele.<br />

E o jogo de volta lá em São Caetano, foi? Sandro olha para baixo e diz:<br />

“Não e por um motivo besta. Na época eu era muito mão de vaca e achei que ir<br />

para lá era gastar muito dinheiro”. Atualmente, Sandro não se considera mais<br />

56


pão duro, mas acha que é muito mão aberta e está tentando encontrar o meio<br />

termo, que nunca é atingido por causa de um vício: colecionar camisas de<br />

futebol.<br />

Sandro até sente vergonha quando lembra que não sabe quantas camisas<br />

tem ao todo. Justifica-se dizendo que isso ocorreu porque ele está com apenas<br />

30% das mais de 300 camisas. “A maioria está com meu irmão”, explica com um<br />

sorriso sarcástico, pois as mais de trinta camisas do Atlético estão no armário<br />

de Sandro. Na coleção de Tatuapu podem ser encontrados os mais diversos<br />

clubes de todo o mundo. Desde camisas da década de 90, do desconhecido<br />

Dalian Wanda da China, passando pelo uniforme inglês do Aston Villa e<br />

adentrando no Brasil, pelo Maranhão, com a camisa do Sampaio Correa.<br />

A maioria da coleção não está à venda, “mas podemos negociar sempre”,<br />

diz ele mostrando <strong>uma</strong> camisa do Bangu de 1987. A única relíquia que está<br />

oficialmente sendo anunciada custa R$ 600. “Muitos acham caro o preço, mas<br />

é <strong>uma</strong> camisa do Flamengo, da época de ouro, de 1982, usada pelo Anselmo”,<br />

justifica sem revelar por quanto comprou a camisa. A fixação por sua coletânea<br />

é tão grande que Sandro já comprou camisas de catadores de papel. Dando<br />

risada, diz que a última foi <strong>uma</strong> do Coritiba de 1993. “Ofereci R$ 30 e tive que<br />

dar a minha camiseta para ele não ficar apenas de bermuda”. Ele jura que não<br />

vestiu a camisa do Coxa e que foi até em casa com <strong>uma</strong> jaqueta, mas sem<br />

camiseta por baixo.<br />

Por fim, o carteiro futebolista ainda coleciona álbuns de figurinhas dos<br />

campeonatos brasileiros, recortes de jornais e revistas que citam o Atlético e<br />

fotos do tempo da Baixada antiga, demolida em 1997. Depois das camisas, sua<br />

“menina dos olhos” é a coletânea de exemplares da revista especializada em<br />

futebol Placar. Na contagem de Sandro, faltam apenas dezoito exemplares<br />

para completar todas as edições do magazine iniciado no dia 20 de março de<br />

1970. Onze anos antes do nascimento de Sandro e trinta antes do Tatuapu!<br />

Meu celular começa a vibrar, namorada ligando, são 22 horas. Havia<br />

prometido estar em sua casa às 21 horas. Então era o momento de ir embora,<br />

mas antes precisava saber qual a perspectiva de Sandro para o futuro, que<br />

comenta já estar pensando em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)<br />

que será realizado no ano que vem. Sua ideia inicial é um radiodocumentario<br />

relacionado, é claro, ao futebol. Só que seu ânimo para produzir o pré-projeto<br />

está bem fraco, pois segundo ele as aulas de Metodologia Científica e Pesquisa<br />

são muito complicadas, chatas e desanimadoras. “Os autores rebuscam demais<br />

os textos, complicam o entendimento e escrevem mais que o necessário. Por<br />

isso ser carteiro é melhor, sou sempre exato e preciso no que faço”, diz Sandro,<br />

finalizando o encontro.<br />

57


Um HOMEM de sorte e<br />

com muitas HISTÓRIAS<br />

Muito prazer, eu sou o Jaro, Jaroslau!”, é assim, com um estilo James<br />

“<br />

Bond brasileiro, que este carteiro curitibano se apresenta quando<br />

nos encontramos no lugar marcado. A entrevista com ele tinha<br />

tudo para dar errado. Na primeira ligação, ele não atendeu. Na segunda, a sua<br />

mulher estava como o celular. Enfim, na terceira, o contato foi feito. Senti a<br />

desconfiança por parte dele no telefone. Marcamos na Praça Tiradentes às 9<br />

horas da segunda-feira.<br />

Confesso que acordei atrasado no dia da entrevista. Saí às pressas de casa<br />

e quando dirigia ao encontro dele, desculpem a onomatopéia, ouviu um<br />

“Powww!!”. Era o pneu traseiro direito que infelizmente conheceu um prego.<br />

Olhei no relógio: 9h15. Não sabia se trocava o pneu furado ou ligava para o<br />

seguro. Nenhum, nem outro. Liguei para Jaro avisando o ocorrido e ele me<br />

informou que estava indo para a sede central dos Correios, onde participaria<br />

do panelaço organizado pelo sindicato.<br />

Em quinze minutos troquei o pneu, com a ajuda do meu avô que estava<br />

voltando a pé para sua casa com um pão fresquinho da panificadora. Mais<br />

sorte que isso impossível. Finalmente cheguei aos Correios, localizada na região<br />

central de Curitiba, onde não se encontram vagas para automóveis, mesmo as<br />

destinadas pelo Estar. Rodei alg<strong>uma</strong>s quadras e nada. Resolvi parar no<br />

estacionamento de <strong>uma</strong> loja de material de construção que se localizava a <strong>uma</strong><br />

quadra dos piquetes dos grevistas.<br />

Nos encontramos em frente ao carro de som, que funcionava a todo vapor,<br />

convocando os carteiros a participarem do primeiro panelaço programado<br />

para a hora do almoço. Depois percebi que o horário foi estipulado para que<br />

<strong>uma</strong> rede de televisão entrasse ao vivo no seu telejornal. Como já tinha<br />

58


experiência em realizar entrevistas com o som “ambiente” alto, pedi para irmos<br />

a algum lugar mais silencioso. Andamos cem metros na Avenida Iguaçu e<br />

adentramos em um bar que se enquadraria na<br />

definição de “boteco”. Essa pequena caminhada<br />

foi o suficiente para Jaro reclamar de <strong>uma</strong> dor<br />

na perna, fruto de um domingo agitado, em que<br />

passou a tarde inteira na cama elástica com seus<br />

dois filhos e sua esposa.<br />

Sentamos em <strong>uma</strong> mesa, próxima a porta<br />

de entrada. Ele se dispõe a pagar <strong>uma</strong> gasosa,<br />

um ato para quebrar o clima ainda estranho.<br />

Começo a falar sobre a greve, a fim de ir se<br />

ambientando e ele vai se soltando. Explica que<br />

está completando sete anos como carteiro e que<br />

participa das greves porque acha o salário<br />

–“Que mané cachorro, já fui atacado por <strong>uma</strong> cobra!”/ “Protesto<br />

por melhores salários. Andamos muito e ganhamos pouco”/ “Me<br />

considero <strong>uma</strong> pessoa com sorte”<br />

(R$ 603,00) muito baixo tendo em vista os serviços que realizam, os riscos<br />

que correm e as responsabilidades que têm.<br />

Questiono sobre os tais riscos citados. Foi a deixa para entrarmos nas<br />

histórias. Já foi atacado por cachorros, assim como a maioria dos carteiros,<br />

mas nenh<strong>uma</strong> mordida foi considerada grave. O maior problema dele está<br />

relacionado a outros animais. Comenta que já trabalhou em ruas praticamente<br />

desabrigadas, onde predominavam terrenos baldios. A cada quadra andada,<br />

um bicho diferente era encontrado. “Eu já vi uns animais coloridos, lagartos,<br />

<strong>uma</strong> fauna inteira. Até um p<strong>uma</strong> eu vi em <strong>uma</strong> garagem. Parecia que eu estava<br />

na pré-história”, afirma Jaro, dando sua primeira de muitas risadas.<br />

Você pode pensar que ele estava exagerando quando se referia a <strong>uma</strong> fauna,<br />

mas não era exagero. Jaro trabalhou entregando correspondências em alg<strong>uma</strong>s<br />

chácaras mais afastadas do centro de Curitiba e afirma que lá os problemas<br />

não foram os cachorros, mas os gansos. Nas mãos conta o número de vezes<br />

que teve que fugir deles. “É complicado porque eles correm e voam atrás. E a<br />

bicada é doída”. Das aves, passamos para os mamíferos. Jaroslau, ainda<br />

trabalhando na região das chácaras, conta de <strong>uma</strong> rua sem saída cuja residência<br />

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parecia <strong>uma</strong> Arca de Noé. “Tinha galinha, cachorro, vaca, gato, pato e cabra. E<br />

não é que a bendita cabra decidiu que não ia com a minha cara”, conta se<br />

divertindo. Segundo ele, a cabra pulou um cercado de meio metro de altura,<br />

baixou a cabeça e partiu para cima como se fosse um touro em <strong>uma</strong> arena<br />

espanhola. Para Jaro, restou a opção de se defender das cabeçadas com a bolsa<br />

e no primeiro intervalo dos ataques subiu em um muro e em cima dele foi<br />

andando até o final da quadra para fugir da cabra.<br />

A cada história que contava ele se lembrava de <strong>outra</strong>s e o tempo foi se<br />

passando. Os contos eram descritos e toda aquela desconfiança inicial foi<br />

deixada para trás. Revelou que sofre de <strong>uma</strong> ofiofilia – atração por cobras –<br />

inconsciente. Em sua trajetória como carteiro já se encontrou alg<strong>uma</strong>s vezes<br />

com serpentes.<br />

A maioria dos encontros foi a <strong>uma</strong> distância segura. Geralmente as cobras<br />

estavam atravessando a rua em que Jaro estava entregando as <strong>carta</strong>s. Conta<br />

que certo dia localizou em <strong>uma</strong> casa <strong>uma</strong> cobra morta em cima do muro.<br />

Quando foi avisar o dono, descobriu que a cobra estava dentro da caixa de<br />

correio. O proprietário da casa a matou e deixou no muro para que o carteiro<br />

visse o animal que ele poderia ter encontrado. Seu último encontro com<br />

serpentes foi um pouco mais perigoso.<br />

- Estava entregando as <strong>carta</strong>s na Avenida Manoel Ribas, perto das lojas de<br />

móveis. Quando fui colocar a <strong>carta</strong> na caixinha ouvi um barulho diferente.<br />

Tipo um chiado. Instintivamente puxei minha mão. Não passou um segundo<br />

e <strong>uma</strong> jararaca, de um metro e meio, enrolada no portão deu o bote. Sorte que<br />

eu já havia me afastado.<br />

Após o incidente e ainda muito assustado, tocou a campainha da residência<br />

para avisar do perigo que rondava a casa. Preocupando-se com os pedestres e<br />

com os outros trabalhadores que passariam por ali, como os garis. Quando a<br />

dona da casa, já idosa, apareceu, ele mostrou a cobra pendurada no portão. A<br />

mulher olhou, analisou a situação, pegou <strong>uma</strong> vassoura, tirou a jararaca com<br />

cuidado e jogou no quintal, nos fundos da casa. Olhou para Jaro e disse:<br />

“Coitado do animal, tão inofensivo”.<br />

Se <strong>uma</strong> jararaca, cujo ataque causa necrose e o veneno é mortal, é inofensiva,<br />

o que então seria mais perigoso? Existem várias opções concorrendo a este<br />

posto. Assaltado ele nunca foi, mas descobriu que entregava correspondências<br />

a um homem procurado pela polícia. “Ele era especialista em falsificação de<br />

documentos. Todas as <strong>carta</strong>s entregue lá eram para <strong>uma</strong> pessoa que não existia,<br />

mas o documento existia”, explica Jaro.<br />

Atropelamento é <strong>outra</strong> episódio perigoso e comum na vida dele. Já perdeu<br />

as contas de quantas vezes ficou no “quase” e os infinitos atropelamentos por<br />

bicicletas, pois, “a gente (carteiros) anda distraído com as <strong>carta</strong>s e quando<br />

60


levantamos a cabeça já não temos tempo de desviar”. As “magrelas” – como<br />

são denominada as bicicletas – competem com as cobras no número de<br />

incidentes. Segundo Jaroslau, seu incidente mais recente ocorreu três semanas<br />

antes da greve. Ele estava fazendo as entregas com a bicicleta cedida pelos<br />

Correios e pedalava na rua preferencial. Na esquina, um carro vindo da rua<br />

perpendicular não freiou e colidiu com ele. “Até hoje não sei o que aconteceu,<br />

porque eu caí de pé e não me machuquei”, diz ele já na milionésima risada.<br />

<strong>Entre</strong>tanto seu maior acidente aconteceu um mês depois que começou a<br />

trabalhar como carteiro. O incidente o fez pensar em desistir da profissão,<br />

mas essa opção não existia, pois passava por problemas financeiros<br />

trabalhando como profissional autônomo e essa era a chance de ter um<br />

emprego estável. Estabilidade que ele não teve com a bicicleta<br />

- Tinha recém entrado no setor e já usava <strong>uma</strong> bicicleta, estava animado e<br />

lembro que em <strong>uma</strong> descida comecei a pegar velocidade e de repente ouvi um<br />

“crack!”. Era o eixo da magrela se soltando. Larguei a bicicleta e me joguei<br />

tentando evitar o pior. Voei parecendo o Super-Homem uns quinze metros e<br />

quando caí fui ralando o peito, perna e braços no chão. Até hoje não entendo<br />

como apareceu um furo nas costas da camiseta.<br />

Acabada a ralação, começou a se levantar, mas logo atrás vinha a bicicleta<br />

sem rumo e o atingiu na cabeça. Novamente foi ao chão. Segundo ele, pior do<br />

que a dor foi a abordagem de <strong>uma</strong> senhora que viu ele estatelado na rua e a<br />

primeira coisa que ela fez foi perguntar: ‘Machucou,meu filho?’ “Se eu tivesse<br />

forças eu tinha esganado ela”, diz Jaro em tom irônico. Apesar de todos os<br />

incidentes e acidentes sofridos, Jaroslau mantém sempre o bom humor, no<br />

estilo “podia ser pior”. Esse temperamento calmo é explicado quando histórias<br />

de outros colegas são contadas por ele. <strong>Entre</strong> tantos contos, irei reproduzir o<br />

que considerei melhor.<br />

- Um colega de CDD estava no serviço, tudo ocorrendo normalmente. Entro<br />

em <strong>uma</strong> rua sem saída e deixou sua bolsa ao lado de um poste, pois ela estava<br />

pesada. Começou a entregar as <strong>carta</strong>s que estavam selecionadas na mão,<br />

enquanto a bolsa “descansava” na sombra. Quando estava no meio da quadra<br />

ouviu um barulho de caminhão. Eram os lixeiros e eles acharam que a bolsa<br />

era lixo e jogaram para dentro da caçamba. Ele só conseguiu recuperar as<br />

correspondências depois de correr três quadras atrás do caminhão.<br />

Quando terminou a história do “furto” feito pelos lixeiros, Jaro se lembrou<br />

do dia em que quase foi atropelado por um Fusca. O detalhe é que o automóvel<br />

estava sem motorista. “Alguém se esqueceu de puxar o freio de mão. Quando<br />

percebi estava segurando um Fusca, em <strong>uma</strong> descida, gritando pelo dono ou<br />

para alguém trazer <strong>uma</strong> pedra para travar a roda”, explica, já pensando em<br />

<strong>uma</strong> nova história.<br />

61


De histórias em histórias, as horas se passaram e o boteco começava a<br />

receber diversas pessoas à medida que o horário do almoço estava chegando.<br />

Jaro contou ainda que fez muitas amizades com moradores e comerciantes.<br />

Existem locais em que ele é bem recebido, convidado a tomar um refresco ou<br />

um café. Há um caso de <strong>uma</strong> senhora que foi passar a semana na praia e o<br />

convidou para cuidar de sua casa, mas ele negou a proposta. “Ela ofereceu um<br />

dinheiro razoável, mas não tinha como deixar minha mulher e meus filhos<br />

sozinhos em casa”, justifica Jaro.<br />

Também trabalhou na área “nobre” de Santa Felicidade, que é onde se<br />

localizam os restaurantes. Lá encontrou muitos artistas, cantores e jogadores<br />

de futebol. O supra-sumo das suas histórias aconteceu no restaurante Veneza.<br />

- Todo dia eu entregava <strong>carta</strong> lá. Um dia eu cheguei e tinha um monte de<br />

adolescentes no estacionamento gritando, chorando e se descabelando.<br />

Descobri que o Br’oz – grupo formado em concurso do SBT – estava almoçando<br />

com seus empresários e com <strong>uma</strong> emissora de rádio local. <strong>Entre</strong>i no restaurante<br />

para fazer minhas entregas e quando abri a porta pra sair começou <strong>uma</strong> gritaria<br />

e um monte de flash. Até que <strong>uma</strong> menina falou: “calma gente, é só o carteiro”.<br />

Só para me vingar eu virei para um grupinho e disse que os cantores estavam<br />

saindo pelo fundo. Foi <strong>uma</strong> correria gigante e os seguranças ficaram me<br />

olhando tentando entender o que havia acontecido.<br />

Brincadeiras à parte, Jaroslau afirma ter visto a morte de perto quatro<br />

vezes. A primeira vez aconteceu quando estava com <strong>uma</strong> correspondência de<br />

“Mão própria” – somente a pessoa destinatária poderia receber, destinada ao<br />

Cemitério de Santa Felicidade. Entrou na administração, mas não havia<br />

ninguém. Encontrou um coveiro, que disse conhecer a pessoa procurada.<br />

Entrou no cemitério e foi seguindo o coveiro em meio aos túmulos. Andou<br />

quase dois minutos e quando estava no centro do campo-santo, o coveiro<br />

apontou para <strong>uma</strong> sepultura e disse: “Está aqui o túmulo que procura”.<br />

A segunda vez também envolve um cemitério. Desta vez o Parque Iguaçu.<br />

Quando entregava <strong>carta</strong>s lá, conta que andava muitas quadras “de graça”, pois<br />

o cemitério encontra-se localizado em terrenos de possíveis residências. “Para<br />

atravessar toda a quadra, até chegar à próxima rua eu levava em torno de<br />

cinco minutos andando”, diz ele, que ficou amigo do pessoal da administração<br />

e de vez em quando pegava carona até a esquina.<br />

- Teve <strong>uma</strong> vez que um dos motoristas buzinou e entrei no carro para pegar<br />

carona. Ficamos conversando, ele contava <strong>uma</strong>s piadas e fazia <strong>uma</strong>s<br />

brincadeiras. Tinha alg<strong>uma</strong> coisa estranha acontecendo. Comentei com ele<br />

que havia muito movimente de carro naquele dia. Ele deu <strong>uma</strong> risada e com a<br />

mão direita apontou para trás. E não é que tinha um caixão aberto com o<br />

defunto dentro. Quando olhei no espelho retrovisor percebi que estava<br />

62


participando de <strong>uma</strong> marcha fúnebre junto com uns doze carros.<br />

Com certeza Jaro pode ser considerado um homem de sorte, mas assegura<br />

ter “visto a luz” do outro mundo. Após um dia de serviço, indo para casa ele<br />

começou a sentir um mal estar e foi ao hospital. Fez exames e ficou três dias de<br />

repouso em casa. O motivo apresentado pelos médicos foi estresse causado<br />

pelo trabalho. Passou-se um ano e ele nunca mais teve queixas de dores no<br />

corpo. Há pouco mais de dez meses, Jaroslau estava trabalhando normalmente,<br />

mas...<br />

- Comecei a sentir meu braço esquerdo formigando, mas achei que era<br />

tendinite. Daqui a pouco a orelha começou amortecer. Fui ao hospital, fizeram<br />

eletrocardiograma, exames de sangue e de enzimas. Eu estava deitado em <strong>uma</strong><br />

cama quando do nada entrou <strong>uma</strong> médica gritando: “Você está infartando!”.<br />

Na hora eu pensei, “agora infartei de vez”. Eu conto no CDD que eu vi a luz!<br />

Jaroslau então se submeteu a mais alguns exames e fez cateterismo.<br />

Descobriu com <strong>uma</strong> ressonância magnética que seu miocárdio não é<br />

compactado e que por isso ele pode apresentar problemas na hora de o sangue<br />

sair do coração. Hoje os amigos brincam que ele deveria trabalhar com um<br />

desfibrilador na bolsa, mas quando o fato aconteceu e ele ficou quinze dias na<br />

UTI, todos ficaram muito preocupados. “Eles dizem que ficaram apreensivos,<br />

mas as más línguas dizem que eles já estavam sorteando meus uniformes e<br />

meu armário”, conta ele todo risonho.<br />

Passado o susto, Jaro começou a se cuidar. Faz exames frequentes e todos<br />

no hospital já o conhecem. Quando entra na recepção para ir a <strong>uma</strong> consulta,<br />

diz que as atendentes já têm sua ficha pronta. Quando ele olha para cima é<br />

sinal de que <strong>uma</strong> nova história vai ser contada, mas são 12h30 e o presidente<br />

do sindicato vem convocar a todos que participem do panelaço.<br />

Após muitos quilômetros caminhados, horas de gravações e duas cervejas,<br />

nada melhor do que terminar um livro participando ativamente em um<br />

protesto a favor dos meus personagens que, acima de tudo, são pessoas!<br />

63


DIÁRIO de<br />

BORDO<br />

Em toda a realização deste livro-reportagem, fui anotando todos os<br />

mínimos detalhes que aconteceram antes, durante e depois das<br />

entrevistas com os personagens. O nome deste último capítulo do<br />

livro foi definido segundo as definições da Marinha brasileira, que explica que<br />

um “Diário de bordo” é um instrumento utilizado na navegação para registro<br />

dos acontecimentos mais importantes.<br />

Então nada melhor de que fazer <strong>uma</strong> espécie de diário para que alg<strong>uma</strong>s<br />

lembranças, gestos e <strong>outra</strong>s linguagens não-verbal passem despercebidas.<br />

Apesar de não gostar muito de números e estatísticas, não consigo imaginar<br />

<strong>outra</strong> maneira de repassar a você, leitor, alg<strong>uma</strong>s informações curiosas.<br />

Os cinco carteiros entrevistados foram responsáveis pela rodagem de<br />

aproximadamente 76 quilômetros de automóvel, que dá <strong>uma</strong> média de 16<br />

quilômetros por personagem. Além disso, há inúmeros quilômetros não<br />

contabilizados, só que realizados a pé. Na estreia das entrevistas foram um<br />

pouco mais de 4 quilômetros caminhados e muitos registros escritos.<br />

Em média um carteiro atravessa três vezes a mesma rua para poder entregar<br />

todas as correspondências. Os cachorros realmente são chatos, as ruas de<br />

bairros afastados do Centro realmente estão esburacadas e as descidas, que<br />

depois se transformam em subidas, são de matar.<br />

A segunda entrevista ocorreu à noite e Curitiba, como nós curitibanos<br />

estamos cansados de saber, possui as quatro estações no mesmo dia. Acordei<br />

com o dia meio nublado, típico de Outono. Quase no horário de almoço surgem<br />

os primeiros raios solares e a indicação de que a Primavera estava dando as<br />

caras. Durante a tarde então eis que surge um calor, daqueles que pega todos<br />

desprevenidos, que obriga o ar-condicionado da redação a fazer seu expediente.<br />

64


Infelizmente, a noite seguiu a tendência e o inverno se estabeleceu. Lá estava eu<br />

realizando <strong>uma</strong> entrevista trajando apenas um moletom fino e <strong>uma</strong> bermuda<br />

curta.<br />

A cada hora que passava o frio aumentava. Naquela noite passei de carro<br />

na junção das ruas Silva Jardim, Tibagi e Viaduto Colorado e o termômetro<br />

instalado nessa conexão constatou que a temperatura estava em 8º centígrados.<br />

Eu, jornalista contestador que sou, não acreditei na informação passada pela<br />

máquina, porque com toda certeza estava bem mais gelada a noite.<br />

Em certo momento da entrevista, como já citado no livro, os carteiros<br />

compraram refeições para os grevistas que iriam dormir no acampamento. A<br />

refeição especificamente falando era um quilo de maionese, quatro quilos de<br />

costela bovina asssada e um prato de salada - tomate e cebola. Só de descrever<br />

já me dá água na boca, imaginem lá, sentindo o cheiro, sendo convidado para<br />

fazer parte do jantar, mas não aceitar o convite porque está trabalhando. Foi<br />

realmente sofrível.<br />

No terceiro dia de entrevistas, após alg<strong>uma</strong>s idas e vindas e alguns<br />

empecilhos já citados no livro, o encontro com Bernadete foi bem interessante,<br />

pois ela sempre passava a imagem de <strong>uma</strong> pessoa sossegada. Apesar de afirmar<br />

que fazia parte do sindicato e protestava em todas as greves, Dete não conseguiu<br />

me convencer de ser <strong>uma</strong> pessoa explosiva.<br />

Como aprendemos em Jornalismo, as fontes sempre devem ser checadas.<br />

Mesmo duvidando que ela fosse essa pessoa aguerrida, fui tirar a contraprova<br />

e me dei mal. No dia do panelaço em frente à sede dos Correios, Bernadete foi<br />

a primeira a puxar a fila em direção ao interior da agência central. Bateu<br />

panela, utilizou buzinas de ar e tirou muitas fotos. Realmente tive <strong>uma</strong><br />

impressão errada dela e afirmo que a “nova” Dete que conheci é bem mais<br />

interessante e combina mais com tudo que ela havia dito.<br />

Nessa entrevista admito que passei vontade mais <strong>uma</strong> vez. Foram<br />

consumidas duas garrafas grandes de Skol. A cobiça realmente girava em torno<br />

de pedir a terceira cerveja e depois a quarta e aí por diante. Diz um ditado<br />

popular que reunião de jornalista é feita em bar. Porém, a consciência de que<br />

iria para a aula à noite falou mais alto e ficamos por ali mesmo. Detalhe: não<br />

fui eu que paguei a conta!<br />

A quarta entrevista com certeza é a com o maior número de detalhes.<br />

Poderia me aprofundar em alguns itens como o jogo do Atlético Paranaense<br />

no sábado, vitória apertada e muito vaiada. A cara de Sandro ao término da<br />

partida, os olhos não demonstravam muita esperança em relação a <strong>uma</strong><br />

recuperação do seu clube de coração, mas sua fala, assim como em todos os<br />

assuntos, sempre é extremamente positiva.<br />

Dentre os cinco entrevistados do livro, Sandro era o único que eu já<br />

65


conhecia e, apesar de já ter sido personagem de um perfil, publicado na revista<br />

<strong>Entre</strong>linha, que é produzida pelos alunos da Universidade Positivo, achei de<br />

extrema importância contar com ele nesta obra. Tudo foi levado em conta: a<br />

amizade, as histórias e a proximidade com ele. No trajeto da Arena da Baixada<br />

até sua casa, fazendo um intervalo na residência do seu pai, o meu bloco de<br />

notas, conhecido também como diário de bordo, não funcionou pelo motivo<br />

de eu estar dirigindo. A solução era gravar tudo o que ele dizia e o que me<br />

interessava era repetido por mim.<br />

Sandro mora em <strong>uma</strong> casa humilde, à beira da Rodovia do Café, na já<br />

citada região dos motéis. A residência, que é alugada, tem um quintal, dois<br />

quartos, duas salas e a cozinha. De fato a casa é pouco mobiliada, mas a falta<br />

de mais <strong>uma</strong> estante ou de <strong>uma</strong> mesa é compensada quando <strong>uma</strong> das portas<br />

dos armários é aberta e surgem raridades de centenas de times de futebol.<br />

Hobby levado a sério e que me inspirou a entrar nesse ramo.<br />

A última entrevista, realizada com Jaroslau, também foi rica em detalhes,<br />

mas em quantidades menores. O personagem de encerramento do livro,<br />

quando apresentado, se mostrou um pouco tímido e desconfiado. Essa<br />

máscara, no bom sentido, começou a cair com o passar da entrevista e com as<br />

piadas de Wadão que acompanhou parte da nossa prosa.<br />

Como Jaro contou muitas histórias dentro de um restaurante vazio que<br />

começava a ter movimento, não havia mais nada a observar a não ser os<br />

outros trabalhadores que iniciavam o seu almoço. O ápice de extravagância<br />

dele foi no dia do panelaço, onde Jaroslau participou do protesto munido de<br />

<strong>uma</strong> colher de sopa e <strong>uma</strong> panela já amassada. Ele contou tantas histórias que<br />

havia momentos em que confiei mais no gravador digital do que no diário de<br />

bordo.<br />

Agora que o livro está completo com informações adicionais, faço meu<br />

encerramento afirmando que a experiência de escrever um livro é única e<br />

maravilhosa. As noites não dormidas, pois descobri que a minha criatividade<br />

se manifestava depois da meia noite, os doze litros de Matte Leão, as inúmeras<br />

garrafinhas de água mineral, milhares de latidos de cachorros, centenas de<br />

palavras cachorros e, o principal, dezessete horas de conversas gravadas<br />

serviram de barreiras que deveriam ser superadas e foram!<br />

Espero que tenham gostado desse livro que veio para dar mais visibilidade<br />

e voz aos carteiros, não só de Curitiba, mas de todo o Brasil. Porque onde há<br />

carteiro, com certeza há histórias. E onde há história, haverá um jornalista,<br />

pois o Jornalismo é essencial para a sociedade.<br />

66


Jornalismo<br />

Para finalizar o livro, utilizarei três trechos retirados da minha<br />

fundamentação teórica, que resumem bem a importância do jornalismo para<br />

toda sociedade e para mim:<br />

Durante todo o projeto, o jornalismo foi essencial para a realização<br />

deste trabalho. Por meio de técnicas de entrevistas, maneiras de abordagem e<br />

produção de textos e reportagens. O jornalismo ainda é responsável por trazer<br />

histórias desconhecidas e interessantes para a sociedade.<br />

O livro-reportagem “<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> – Cinco histórias no<br />

mesmo tempo” apresenta possibilidades de abordagem e estilos jornalísticos<br />

pouco utilizados no cotidiano. O uso de perfis para a construção de<br />

reportagens mostra que nem só de “lead” e “pirâmide invertida” vive o<br />

jornalismo. O perfil transforma <strong>uma</strong> reportagem “quadrada” em um texto<br />

solto, onde não apenas a fala do entrevistado é importante, mas tudo o que<br />

está em sua volta também. A aproximação com a literatura torna o livro mais<br />

atraente para o público.<br />

A única constatação com o término do projeto é de que o livro é um<br />

exemplo para que outros jornalistas percebam que não só de fatos cotidianos<br />

o jornalismo é feito. Em qualquer lugar e em qualquer pessoa, seja carteiro,<br />

lixeiro, catador de papel sempre há <strong>uma</strong> boa história e principalmente <strong>uma</strong><br />

pessoa por trás dela. Se o Jornalismo faz parte de <strong>uma</strong> Comunicação Social,<br />

nada mais justo do que olharmos em nossa volta e constatamos a riqueza de<br />

informações que esse mundo nos oferece.<br />

67


C<br />

om histórias contadas diretamente das<br />

ruas de Curitiba, <strong>Entre</strong> <strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> <strong>carta</strong> e<br />

e<br />

o o<strong>outra</strong>,<br />

o apresenta o perfil de cinco carteiros<br />

que descrevem as dificuldades e alegrias do cotidiano.<br />

Cachorros, mordidas, lagartos, assaltos e acidentes<br />

são alguns dos ingredientes que tornam este livro<br />

curioso e interessante, dando voz a esses profissionais<br />

que muitas vezes são tratados apenas como números<br />

e estatísticas.<br />

“Simples e irreverente. Fiquei com vontade de conversar<br />

com o carteiro da minha rua”<br />

Karla Dudas/Editora da Revista Imensidão<br />

<strong>Entre</strong> <strong>uma</strong> <strong>carta</strong> e <strong>outra</strong> - Cinco histórias no mesmo tempo<br />

Caio Derosso

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