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Jornada dos Anjos - Além do Arco Íris

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JORNADA DOS<br />

ANJOS<br />

PELO ESPÍRITO<br />

LUCIUS<br />

ROMANCE PSICOGRAFADO POR<br />

SANDRA CARNEIRO<br />

Os direitos desta obra foram <strong>do</strong>a<strong><strong>do</strong>s</strong> a VivaLuz Editora<br />

contribuin<strong>do</strong> com a divulgação da <strong>do</strong>utrina espírita. Portanto<br />

faça diretamente uma <strong>do</strong>ação ou compre um exemplar.<br />

http://www.vivaluz.com.br/<br />

3


PREFÁCIO<br />

O TEMPO É CURTO. E imprescindível estarmos prontos e disponíveis para<br />

fazer o trabalho que se apresenta diante de nós. Não percamos momentos preciosos<br />

corren<strong>do</strong> atrás de ilusões efêmeras, que não nos levarão a nada.<br />

Acordemos <strong>do</strong> longo e pesa<strong>do</strong> sono que nos entorpece os senti<strong><strong>do</strong>s</strong> e,<br />

principalmente, a percepção espiritual, dificultan<strong>do</strong> nossa compreensão <strong>do</strong> que<br />

é verdadeiro e perene.<br />

Façamos uso da prece e não nos permitamos a<strong>do</strong>rmecer de novo. Aban<strong>do</strong>nemos<br />

definitivamente a atitude que nos afasta de Deus e traz sobre nós<br />

profun<strong>do</strong> sofrimento.<br />

É hora de despertar!<br />

Que Jesus, da luminosa morada onde nos aguarda há quase 2 mil anos,<br />

nos ajude a trilhar o caminho <strong>do</strong> bem, da renúncia e <strong>do</strong> amor, libertan<strong>do</strong> nossas<br />

consciências e nossas vidas para iniciarmos a jornada da iluminação interior,<br />

rumo à perfeição, ao Cria<strong>do</strong>r.<br />

Amigo leitor, que a paz <strong>do</strong> Mestre envolva o seu coração, bem como<br />

nossa morada terrestre, em fulgurante esperança de renovação.<br />

Lúcius<br />

4


INTRODUÇÃO<br />

O MAR ESTAVA AGITADO. A pequena embarcação se afastava com dificuldade,<br />

buscan<strong>do</strong> alcançar o navio que esperava para partir. Com as vestes<br />

ensopadas e água até a cintura, João 1 e os outros cristãos tentavam atingir a<br />

praia, mas eram joga<strong><strong>do</strong>s</strong>, pelas fortes ondas da arrebentação, exatamente onde<br />

acabavam de ser deixa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Cefas - uma senhora cristã, exilada junto com os<br />

demais <strong>do</strong> grupo - caiu e, na tentativa de se levantar, chorava desesperada:<br />

- O que será de nós agora? Como sairemos deste lugar? Vamos morrer aqui!<br />

Paciente e amoroso, João procurava acalmá-la:<br />

- Tenha fé, minha irmã, Deus nunca nos desampara. Ele sempre cuida de<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

E enquanto a ajudava a se erguer, prosseguiu:<br />

- Não desanime. Por mais difícil que seja nossa situação, vamos confiar no<br />

Mestre.<br />

Um pouco mais confortada, a mulher assentiu com a cabeça e enxugou as<br />

lágrimas misturadas à água <strong>do</strong> mar. Explicou a razão de sua angústia:<br />

- Não temo por mim, apóstolo João, e sim por meus filhos, que ficaram em<br />

Efeso. E por eles que me angustio. Estou pronta a dar a vida pelo Senhor, se<br />

ele assim o desejar, mas e meus filhos? Como é difícil para uma mãe ver os<br />

filhos ameaça<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Eu posso imaginar, Cefas, posso mesmo. No entanto, Jesus está no coman<strong>do</strong><br />

de nossas vidas, não está?<br />

Cefas o olhava calada e, ao chegarem finalmente à praia, exaustos, ele aconselhou:<br />

- Agora descanse. Precisamos recuperar as forças.<br />

Aqueles eram mais alguns <strong><strong>do</strong>s</strong> muitos cristãos exila<strong><strong>do</strong>s</strong> por ordem <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r<br />

romano Domiciano. Os componentes <strong>do</strong> pequeno grupo estenderam-se<br />

na areia quente e fina, enquanto tentavam recompor as forças e os corações,<br />

abala<strong><strong>do</strong>s</strong> pela longa e difícil jornada.<br />

Não obstante a solicitude com que atendia e se preocupava com to<strong><strong>do</strong>s</strong>, João<br />

parecia cansa<strong>do</strong>. Olhou ao re<strong>do</strong>r, notan<strong>do</strong> a beleza <strong>do</strong> cenário: Patmos era<br />

uma ilha esplen<strong>do</strong>rosa, localizada no leste <strong>do</strong> mar Egeu. Acostuma<strong>do</strong> aos encanta<strong>do</strong>res<br />

cenários já vistos quan<strong>do</strong> saía para a pesca, e depois pelas viagens<br />

que empreendera para difundir o Evangelho de Jesus, ele estava embeveci<strong>do</strong><br />

diante da pequena ilha grega. Já ouvira muitos falarem daquele lin<strong>do</strong> lugar,<br />

1 João foi um <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>ze apóstolos de Jesus.<br />

5


porém nunca estivera ali antes. Acomo<strong>do</strong>u-se ao la<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> demais e ficou a<br />

contemplar a bela paisagem. A brisa perfumada soprava suavemente. O sol se<br />

punha devagar, deixan<strong>do</strong> no horizonte um rastro de tons avermelha<strong><strong>do</strong>s</strong> e intensos.<br />

A vegetação da ilha parecia acalentar o entardecer e recebê-lo com to<strong>do</strong> o<br />

prazer, pois o aroma exala<strong>do</strong> pelas plantas era <strong>do</strong>ce e agradável.<br />

Não demoraria a anoitecer. Ebenezer tocou o ombro de João e sugeriu:<br />

- Não seria melhor procurarmos abrigo para passarmos a noite? Será que<br />

conseguiremos encontrar ainda hoje outros cristãos, também presos na ilha?<br />

- Não tenho a menor idéia de onde possam estar...<br />

- A ilha é pequena, João, e não creio que estejam muito longe da praia. Seria<br />

melhor que nos colocássemos logo a caminho.<br />

Ao observar o olhar de João, que focalizava o grupo, Ebenezer aconselhou:<br />

- Embora estejamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> cansa<strong><strong>do</strong>s</strong>, não podemos passar a noite aqui. Temos<br />

de procurar abrigo.<br />

João sorriu ao admitir:<br />

- Seu bom senso é inegável.<br />

E dirigin<strong>do</strong>-se ao grupo, pediu:<br />

- Vamos, irmãos, precisamos de um abrigo. Sei que estão to<strong><strong>do</strong>s</strong> esgota<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

mas não podemos demorar mais.<br />

- Também parece cansa<strong>do</strong>, apóstolo. João abriu sincero sorriso e respondeu:<br />

- E estou mesmo! A idade chegou de vez para mim, minha irmã...<br />

Entregan<strong>do</strong>-se a enorme esforço, puseram-se a caminho, em busca de outros<br />

que já estivessem na ilha. Caminharam cerca de meia hora e avistaram<br />

algumas casinhas improvisadas, feitas de madeira e cobertas com vegetação.<br />

Antes que alcançassem o minúsculo vilarejo, alguns mora<strong>do</strong>res correram ao<br />

encontro <strong>do</strong> grupo. Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens perguntou, ainda a distância:<br />

- São cristãos?<br />

Foi João quem respondeu:<br />

- Somos, viemos de Éfeso.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> que vinham mais atrás gritou:<br />

- João! Apóstolo João? É você mesmo?<br />

Quan<strong>do</strong> reconheceu o companheiro de longos anos, com quem fizera muitas<br />

viagens ten<strong>do</strong> por objetivo disseminar o Evangelho, João exultou:<br />

- Ananias, é você?<br />

Ao se encontrarem, trocaram aperta<strong>do</strong> e carinhoso abraço. Emociona<strong>do</strong>, o<br />

mais jovem disse, enxugan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Não pouparam nem a você, João!<br />

- Ora essa, e por que poupariam?<br />

6


- Já está com idade avançada! Eles deveriam levar isso em conta. <strong>Além</strong> <strong>do</strong><br />

mais, você só faz o bem a to<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

João sorriu e fitou o outro nos olhos:<br />

- Você esquece que não pouparam o melhor de nós to<strong><strong>do</strong>s</strong>, Ananias? Aquele<br />

que só fez o bem em toda a sua vida? Quem pode exigir ser tolera<strong>do</strong> ou aceito<br />

depois <strong>do</strong> tratamento que teve o Mestre <strong><strong>do</strong>s</strong> Mestres? Não, não podemos nos<br />

iludir jamais. Nossa luta é difícil. Jesus já nos ensinou que o caminho para<br />

aqueles que desejam segui-lo é estreito.<br />

Fez-se longo silêncio, e Ananias convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos à minha casa. Mesmo pequena e improvisada, to<strong><strong>do</strong>s</strong> nos arranjaremos<br />

por lá.<br />

Depois de conversarem muito e trocarem informações sobre o dia-a-dia na<br />

ilha e o que acontecia no continente, com notícias de amigos e parentes de<br />

muitos daqueles que ali estavam há mais tempo, Raquel, a irmã de Ananias,<br />

aproximou-se e sugeriu:<br />

- Devem estar com fome. Vou servir o jantar. Embora bastante frugal, vai<br />

alimentar a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Depois da leve refeição, sentaram-se à volta de João e alguns pediram:<br />

- João, conte-nos uma história sobre Jesus. Temos ouvi<strong>do</strong> muitas, mas sei<br />

que você deve saber de outras que ainda não conhecemos.<br />

O rosto de João iluminou-se, refletin<strong>do</strong> suave luminosidade que imediatamente<br />

envolveu a to<strong><strong>do</strong>s</strong>. O cansaço que sentia desapareceu, ele ajeitou-se no<br />

assento que ocupava e disse sorrin<strong>do</strong>:<br />

- E sempre uma grande alegria poder relembrar as experiências preciosas<br />

que tivemos ao la<strong>do</strong> de Jesus de Nazaré.<br />

E pôs-se a narrar episódios que vivenciara como discípulo de Jesus. Ficaram<br />

acorda<strong><strong>do</strong>s</strong> até muito tarde, relembran<strong>do</strong> as <strong>do</strong>ces experiências.<br />

No plano espiritual, em torno <strong>do</strong> pequeno agrupamento, brilhava intensa<br />

luz. Se os olhos materiais o permitissem, eles se surpreenderiam ao observar a<br />

numerosa companhia espiritual com que contavam naquela noite. Um grupo<br />

bem maior de espíritos envolvia aqueles que se reuniam na Terra, e com eles<br />

apreciava as histórias sobre o envia<strong>do</strong> de Deus. Entre seus integrantes estava<br />

Ernesto, outrora exila<strong>do</strong> de Capela. Só muito mais tarde, João disse:<br />

- Bem, agora gostaria de descansar.<br />

Ananias concor<strong>do</strong>u com a cabeça e o aju<strong>do</strong>u a se levantar, enquanto dizia:<br />

- Ficaria aqui a noite toda ouvin<strong>do</strong> você.<br />

Ao colocar-se de pé, João bateu levemente nos ombros <strong>do</strong> mais novo e disse:<br />

- Teremos muitas ocasiões para conversar, não é mesmo?<br />

- Acha que ainda ficaremos muito por aqui?<br />

7


- Quem sabe? De toda forma, vamos aproveitar bem nosso tempo. Tenho<br />

uma porção de histórias sobre Jesus para compartilhar.<br />

Depois de acomodar a to<strong><strong>do</strong>s</strong>, distribuin<strong>do</strong>-os pelos espaços disponíveis nas<br />

pequenas casas, Ananias voltou, sentou-se e, sorven<strong>do</strong> um copo de água fresca,<br />

em um suspiro desabafou com Raquel:<br />

- Não sei se fico triste ou feliz com a chegada de João. A irmã afirmou:<br />

- Quanto a mim, estou aliviada por tê-lo conosco. Já estava começan<strong>do</strong> a<br />

perder as esperanças...<br />

No dia seguinte, mal os primeiros raios de sol surgiram no horizonte, João<br />

já se levantara e, silencioso, saíra da pequena cabana que os abrigava. Caminhou<br />

devagar em direção ao mar e em algum tempo avistou a praia. Admirou a<br />

beleza <strong>do</strong> alvorecer, com os raios cada vez mais fortes <strong>do</strong> astro-rei rasgan<strong>do</strong> o<br />

céu até <strong>do</strong>minar o espaço. O dia amanhecia belo e cheio de energia. João olhou<br />

ao re<strong>do</strong>r e notou uma pedra bem desenhada que poderia servir de banco. Sentou-se,<br />

ainda contemplan<strong>do</strong> o mar e o céu. Depois, indagou em pensamento:<br />

- Deus, meu Pai, Mestre Jesus, o que desejam de mim? Estou aqui, isola<strong>do</strong><br />

de tu<strong>do</strong> e de to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Como prosseguir com a tarefa de levar o Evangelho ao<br />

povo, de difundir seus ensinamentos, se permitiram que para cá eu viesse? É<br />

chega<strong>do</strong> o momento da minha passagem para o mun<strong>do</strong> espiritual?<br />

Ernesto, espírito que fora seu pai em existência longínqua, em Capela, afagou-lhe<br />

os cabelos e sussurrou-lhe ao ouvi<strong>do</strong>: "Não, queri<strong>do</strong> Henrique, não é o<br />

momento da sua transição. Serene seu coração e espere tranqüilo. Ainda tem<br />

muito trabalho a fazer. Contamos com você, com sua força física e sua fé em<br />

Jesus".<br />

Registran<strong>do</strong> no coração aquelas palavras, João sorriu e falou baixinho:<br />

-Estou aqui, Senhor, pronto para fazer tu<strong>do</strong> o que de mim desejar. Sou seu<br />

servo.<br />

Ele se calou. Mais uma vez Ernesto afagou-lhe os cabelos e beijou-lhe a<br />

fronte envelhecida. Aquela altura João já somava 85 anos de vida, e ainda<br />

mantinha vigor físico que impressionava a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

O apóstolo continuou a meditar e orar por mais algum tempo. Foi interrompi<strong>do</strong><br />

pela voz amiga de Ananias:<br />

- Sabia que o encontraria aqui.<br />

João sorriu para o companheiro, que logo se acomo<strong>do</strong>u ao seu la<strong>do</strong> e comentou:<br />

- É lin<strong>do</strong> ver o nascer <strong>do</strong> sol deste local. Muitas vezes tenho vin<strong>do</strong> para apreciar<br />

a beleza e orar...<br />

8


- É um lugar ideal para a prece. O silêncio ainda <strong>do</strong>mina a paisagem e tu<strong>do</strong><br />

vai despertan<strong>do</strong> aos poucos, à medida que oramos. E como se nos integrássemos<br />

a toda a natureza, louvan<strong>do</strong> a Deus pelo <strong>do</strong>m da vida.<br />

Ananias ficou cala<strong>do</strong>. Lágrimas brotaram em seus olhos e lhe desceram pela<br />

face. Limpou o rosto, porém elas teimavam em cair. João tocou-lhe o ombro<br />

fraternalmente e indagou:<br />

- O que foi, Ananias? O que o entristece tanto, meu irmão?<br />

- Eu não enten<strong>do</strong> bem o que acontece, João. Por que estamos aqui, separa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

de nossos parentes e amigos? Estamos tentan<strong>do</strong> fazer o bem, conforme<br />

Jesus nos ensinou, e somente isso. Não infringimos nenhuma lei, e tantos cristãos<br />

já foram sacrifica<strong><strong>do</strong>s</strong>, tantos... Por que isso está ocorren<strong>do</strong>, João? Você<br />

compreende?<br />

- Meu caro Ananias, não se deixe abater. A tristeza pode vir, é normal, mas<br />

não permitamos que ela tome conta de nós. Lutemos contra a tentação <strong>do</strong> abatimento<br />

e <strong>do</strong> sentimento negativo de derrota. Lembre-se de que somos mais <strong>do</strong><br />

que vence<strong>do</strong>res por aquele que nos amou até a morte.<br />

Depois de breve silêncio, Ananias continuou, enxugan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Eu sei, João, e por isso me entristeço. Não consigo ter fé igual à que vejo<br />

em você e em tantos outros cristãos. Apesar de amar o Mestre e confiar nele,<br />

às vezes fico realmente cansa<strong>do</strong> de lutar tanto. Por que tu<strong>do</strong> isso acontece?<br />

- As resistências e oposições que levaram Jesus ao madeiro são as mesmas<br />

que nos perseguem e querem nos calar. Assim como acham que emudeceram<br />

Jesus, matan<strong>do</strong>-o, pretendem matar a to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós, para silenciar a própria consciência<br />

que lhes desperta sutilmente na alma. Não querem enxergar, pois isso<br />

os obrigaria a mudar, a abrir mão de seus interesses, de seu orgulho, das ilusões<br />

sobre si mesmos e sobre o mun<strong>do</strong> que acalentam no íntimo. Jesus os incomo<strong>do</strong>u,<br />

Ananias, e nós, igualmente, muito os incomodamos.<br />

Ananias ficou novamente pensativo. João prosseguiu:<br />

- Apesar de tu<strong>do</strong>, veja que eles não conseguem calar os cristãos. Alguns<br />

realmente foram sacrifica<strong><strong>do</strong>s</strong>, mas muitos outros estão abraçan<strong>do</strong> a causa <strong>do</strong><br />

Evangelho.<br />

- E dá para crer que logo seremos aceitos e finalmente poderemos viver<br />

nossas vidas, tentan<strong>do</strong> aplicar e ensinar o que Jesus nos deixou? Isso só fará<br />

bem às pessoas... Como é possível que não percebam?<br />

Dessa vez foi João que nada disse. Ananias suspirou fun<strong>do</strong>, em curto intervalo,<br />

e confessou:<br />

- Estou cansa<strong>do</strong>, João. Foi muito <strong>do</strong>loroso para mim perder entes queri<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

da minha família. Você sabe, meu pai e meus irmãos foram mortos por ordem<br />

de Domiciano. Minha mulher e meus filhos estão em Efeso, escondi<strong><strong>do</strong>s</strong> na<br />

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casa de amigos. Não consigo per<strong>do</strong>ar totalmente, conforme Jesus nos ensinou.<br />

Sinto muita <strong>do</strong>r no coração, muita saudade...<br />

- Ananias, você sabe que seu pai e seus irmãos não morreram! Estão vivos<br />

e a serviço de Jesus, em outra dimensão da vida. Eles estão bem, muito bem!<br />

Subitamente, João parou de falar, fechou os olhos por um instante e em seguida<br />

os abriu.<br />

- E estão aqui agora - disse. Ananias arregalou os olhos e perguntou:<br />

- Aqui, conosco? Eles estão aqui?<br />

- Sim. Seu pai pede que você se tranquilize, pois Ester e as crianças passam<br />

bem. Estão seguras e bem protegidas.<br />

Ananias, toca<strong>do</strong> pela energia de amor que emanava <strong>do</strong> pai e <strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos desencarna<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

vertia copioso pranto. João prosseguiu:<br />

- Seu pai o envolve em terno abraço, Ananias, e lhe diz que eles partiram<br />

porque a hora havia chega<strong>do</strong>; já tinham cumpri<strong>do</strong> a tarefa que lhes cabia na<br />

encarnação. Agora precisam dar seqüência ao trabalho, no plano espiritual, e<br />

contam com sua ajuda para realizá-lo. Eles têm permaneci<strong>do</strong> muitas vezes ao<br />

seu la<strong>do</strong>, intuin<strong>do</strong>-o e orientan<strong>do</strong>-o quanto à forma de colaborar.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, ele disse:<br />

- Gostaria de poder abraçá-los também. Eu os amo tanto...<br />

- Eles sabem, sentem o seu carinho. Todavia, você os ajudará muito mais<br />

confian<strong>do</strong> na Providência e saben<strong>do</strong> que continuam por perto.<br />

Ananias calou-se, toma<strong>do</strong> pela emoção. Aos poucos se acalmou e, depois<br />

de prolonga<strong>do</strong> silêncio, afirmou:<br />

- Estou melhor, e só posso agradecer-lhe por me proporcionar tamanha alegria.<br />

Sem dizer nada, João abraçou carinhosamente o amigo. Então, Ananias<br />

convi<strong>do</strong>u:<br />

- Não seria melhor irmos? Você precisa se alimentar. Comeu algo antes de<br />

sair?<br />

- Não. Gosto de orar pela manhã, antes de me alimentar.<br />

- Só que agora deve comer.<br />

- Vá in<strong>do</strong>, Ananias. Eu sigo logo atrás.<br />

- Não, João.Vamos, terá tempo de sobra para voltar aqui quantas vezes quiser;<br />

está na hora de cuidar bem de seu corpo, ainda vai precisar muito dele...<br />

João ergueu-se e concor<strong>do</strong>u:<br />

- Tem razão; Ananias; vamos in<strong>do</strong>.<br />

Enquanto caminhavam em silêncio pela trilha que levava da praia até a cabana,<br />

João imaginava quantos cristãos deveriam estar sentin<strong>do</strong> angústia idêntica<br />

à que vira em Ananias. Por certo havia os que compreendiam o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

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sofrimento que lhes era imposto, ao passo que muitos provavelmente se questionavam<br />

sobre os motivos de tanta resistência, de tamanha oposição enfrentada.<br />

À medida que pensava, uma idéia lhe surgia, clara e nítida, no fun<strong>do</strong> da<br />

mente: escrever aos cristãos, esclarecen<strong>do</strong> e comentan<strong>do</strong> a vitória <strong>do</strong> Cristianismo<br />

no mun<strong>do</strong>.<br />

Em pensamento indagou: "Quan<strong>do</strong> começaremos?". E a resposta lhe soou<br />

na mente: "Em breve".<br />

Quase um ano se passou. Outros grupos de cristãos chegaram à ilha, contan<strong>do</strong><br />

os horrores que muitos estavam enfrentan<strong>do</strong> por causa <strong><strong>do</strong>s</strong> governa<strong>do</strong>res<br />

romanos. Por toda a parte era árdua a luta <strong><strong>do</strong>s</strong> cristãos. Certa noite, depois de<br />

ouvir alguns deles narrarem o que se passava em diversos pontos da Palestina<br />

e de outras regiões, João se recolheu com o coração <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>. Sabia que o<br />

combate seria duro, mas sempre que constatava a aridez <strong>do</strong> coração humano, e<br />

quanto de mal um homem era capaz de fazer ao seu semelhante, ficava triste.<br />

Ao acomodar-se na cama, naquela noite, ele não conseguia <strong>do</strong>rmir. Virava-se<br />

de um la<strong>do</strong> para o outro, na tentativa inútil de conciliar o sono. Sentou-se, e<br />

escutou mentalmente, com nitidez uma voz: "Durma, João, aquiete-se e durma.<br />

Hoje começará a receber as informações que deverá escrever". Ainda senta<strong>do</strong>,<br />

ia questionar, quan<strong>do</strong> a voz pediu com suavidade: "Deite-se. Logo você <strong>do</strong>rmirá<br />

e então verá, diante de seus olhos, o que deverá escrever".<br />

Acostuma<strong>do</strong> a obedecer às orientações espirituais que recebia, João deitouse<br />

outra vez, procuran<strong>do</strong> pensar apenas no rosto amigo e meigo de Jesus, que<br />

trazia na memória com to<strong><strong>do</strong>s</strong> os detalhes. Pouco a pouco a lembrança o acalmou<br />

e ele a<strong>do</strong>rmeceu. Seu corpo espiritual foi então desprendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo<br />

físico e Ernesto, que o aguardava, perguntou:<br />

- Então, Henrique, está pronto para traduzir o que ainda há por vir para os<br />

cristãos, as lutas e também as vitórias?<br />

Abraçan<strong>do</strong> o queri<strong>do</strong> amigo, João respondeu:<br />

- Estou pronto para tentar.<br />

- Vamos, está tu<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>. Você verá o desenrolar <strong><strong>do</strong>s</strong> fatos futuros lá<br />

na colônia, e, ao regressar, começará a traduzir para nossos irmãos encarna<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

aquilo a que tiver assisti<strong>do</strong>.<br />

João calou-se, pensativo.<br />

- O que foi, está preocupa<strong>do</strong>? - Ernesto indagou.<br />

- Nunca fui muito bom para escrever, você sabe, não é? Tenho lá minhas<br />

dificuldades.<br />

- Não se preocupe. Você terá muita ajuda. Preparavam-se para partir quan<strong>do</strong><br />

João perguntou, com um sorriso:<br />

- Tem visto Elvira?<br />

11


- Não, desde que ela regressou para Capela, mas sei que está sempre pensan<strong>do</strong><br />

em nós. Sinto seus pensamentos envolven<strong>do</strong> minha mente.<br />

- E como está você, Ernesto?<br />

- Fortalecen<strong>do</strong>-me com o seu exemplo. João sorriu e abraçou-o.<br />

- Podemos ir agora - falou.<br />

Partiram, Logo alcançaram a colônia, próxima ao orbe da Terra, e lá João<br />

pôde visualizar, numa tela imensa, muitos fatos que ao longo <strong>do</strong> tempo se sucederiam<br />

no planeta. Mais tarde, ao retornar, ele pediu:<br />

- Por favor, Ernesto, precisarei de ajuda para o que devo realizar. Não sei<br />

como colocar na linguagem <strong><strong>do</strong>s</strong> meus contemporâneos aquilo que vi hoje.<br />

- Voltaremos muitas vezes à colônia. Você poderá rever o que para você<br />

for motivo de dúvida e conversaremos sobre cada detalhe. Ajudaremos em<br />

tu<strong>do</strong> que estiver ao nosso alcance. Vai dar certo, não se preocupe.<br />

Na manhã seguinte, o sol já ia alto quan<strong>do</strong> João despertou. A cabana estava<br />

vazia e ele se sentia ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>. Sentou-se e meditou um pouco, buscan<strong>do</strong> compreender<br />

tu<strong>do</strong> o que sentia. Então saiu em busca de Ananias e logo encontrou<br />

Raquel, que informou:<br />

- Ananias foi pescar. Pediu que ninguém o acordasse e to<strong><strong>do</strong>s</strong> tentamos deixar<br />

a cabana sem fazer barulho.<br />

- E conseguiram. Agora, preciso de pergaminhos, pena e tinta. Tenho de<br />

escrever.<br />

Imediatamente Raquel correu para a cabana e logo surgiu à porta, avisan<strong>do</strong>:<br />

- Está tu<strong>do</strong> na mesa. Sobre o que o senhor vai escrever? É alguma orientação<br />

para nós?<br />

- Para nós e to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cristãos, Raquel.<br />

- Puxa, que notícia boa! Sorrin<strong>do</strong>, João explicou:<br />

- Vou tratar de escrever, antes que o que vi em sonho esmaeça em minha<br />

mente.<br />

Assim, durante os anos que passou na ilha de Patmos, João ocupou-se em<br />

registrar, da melhor forma possível, tu<strong>do</strong> o que observava no plano espiritual,<br />

com relação ao futuro da Terra e <strong><strong>do</strong>s</strong> homens. Embora desejasse ardentemente<br />

transmitir mensagens de otimismo e esperança, constatava, dia a dia, que o<br />

porvir da humanidade seria marca<strong>do</strong> por uma longa trajetória de <strong>do</strong>r, lutas e<br />

muito sofrimento, até que o raiar de nova era libertasse, finalmente, a consciência<br />

humana.<br />

Naquele cenário de rara beleza, João escreveu as páginas que seriam conhecidas<br />

pelas futuras gerações como o Livro <strong>do</strong> Apocalipse, retratan<strong>do</strong> uma<br />

das fases de transformação da Terra, em seu processo evolutivo.<br />

12


PRIMEIRA PARTE<br />

"Não cuideis que vim trazer paz à Terra; não<br />

vim trazer a paz, mas a espada."<br />

Jesus (Mateus, 10:34)<br />

“... Na verdade, o Cristo trouxe ao mun<strong>do</strong> a espada<br />

renova<strong>do</strong>ra da guerra contra o mal, constituin<strong>do</strong> em si<br />

mesmo a divina fonte de repouso aos corações que se<br />

unem ao seu amor; esses, nas mais perigosas situações na<br />

Terra, encontram, nele, a serenidade inalterável...”<br />

13<br />

Emmanuel / Francisco Cândi<strong>do</strong> Xavier<br />

"Caminho, Verdade e Vida


UM<br />

ROMA, ANO 324 DA ERA CRISTÃ. No salão de audiências ouviam-se os gritos<br />

<strong>do</strong> poderoso general:<br />

- Saia já da minha frente, verme inútil! Desapareça, suma, ou não sei o<br />

que faço com você!<br />

Licínio 2 , agressivo, empurrou o mensageiro que se mantinha curva<strong>do</strong> diante<br />

dele, fazen<strong>do</strong>-o cair nos degraus da escadaria próxima. O jovem logo se<br />

ergueu e, aterroriza<strong>do</strong>, saiu rapidamente da sala. Sabia <strong>do</strong> que aquele velho<br />

general era capaz.<br />

Constância entrou a tempo de presenciar a cena e, verifican<strong>do</strong> a enorme irritação<br />

<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, indagou:<br />

- Por que maltrata tanto o pobre rapaz? Ele trouxe más notícias? O experiente<br />

general <strong>do</strong> império endereçou olhar furioso à esposa e limitou-se a dizer:<br />

- E seu irmão outra vez.<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e buscan<strong>do</strong> aparentar calma, Constância insistiu.<br />

- E o que foi agora?<br />

- Sei muito bem o que ele planeja, suas intenções...<br />

- O que houve?<br />

Medin<strong>do</strong> a mulher de alto a baixo, o general disse, enquanto saía apressa<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> amplo salão:<br />

- Não vai vencer, escreva o que digo... Por Zeus! Ele não vai vencer!<br />

Constância fez Licínio estacar na porta ao argumentar:<br />

- Constantino é determina<strong>do</strong> e ardiloso. Consegue tu<strong>do</strong> aquilo que deseja.<br />

Ele virou-se para ela e esbravejou, ainda mais contraria<strong>do</strong>, deixan<strong>do</strong> perceber<br />

to<strong>do</strong> o seu furor contra o opositor:<br />

- Tem consegui<strong>do</strong> ampliar o território sob seu poder à custa de muito ouro<br />

e muitas vidas romanas. Sabe seduzir os generais com seus argumentos e pontos<br />

de vista, mas não é perfeito. Pelos deuses! Quem ele pensa que é? Quer<br />

<strong>do</strong>minar to<strong>do</strong> o império. Quer tornar-se o único César, poderoso e absoluto!<br />

Constância afirmou, hesitante:<br />

- Provavelmente sim.<br />

- Pois ele não conseguirá! Vou impedi-lo, custe o que custar! A mulher segurou<br />

o braço <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e advertiu:<br />

- Seja cauteloso. Com Constantino, to<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong> é pouco. Por favor, veja lá<br />

o que planeja. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, é meu irmão, e não quero que nada lhe aconteça.<br />

2 Valério Liciniano Licínio, coimpera<strong>do</strong>r romano no perío<strong>do</strong> de 308 a 324 d.C.<br />

14


- Não se iluda, Constância. Ele jamais teria qualquer piedade de você.<br />

A esposa argumentou:<br />

- Está engana<strong>do</strong>. Constantino é um homem determina<strong>do</strong>, ambicioso e astuto,<br />

mas é justo. Não faria nada que me prejudicasse, a menos que eu o prejudicasse<br />

primeiro. Portanto, pense muito bem antes de agir contra ele.<br />

Sem responder, o velho general desapareceu pelo corre<strong>do</strong>r, deixan<strong>do</strong> a esposa<br />

a meditar. Respeitava o mari<strong>do</strong> e admirava o irmão; queria bem aos <strong>do</strong>is,<br />

mas temia pelas atitudes sempre intempestivas de Licínio. Sentou-se e, observan<strong>do</strong><br />

pela janela a movimentação <strong><strong>do</strong>s</strong> solda<strong><strong>do</strong>s</strong> sob as ordens <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ficou<br />

a se perguntar o que exatamente estaria acontecen<strong>do</strong>. Licínio se irritava<br />

muito com as atitudes de Constantino; embora antes fossem muito próximos<br />

(até mesmo o seu casamento havia si<strong>do</strong> negocia<strong>do</strong> com o irmão, para estreitar<br />

os laços entre eles), agora estavam a ponto de um confronto direto. Depois de<br />

muitas lutas e combates, mentiras e traições, assassinatos e disputas cruéis, que<br />

não poupavam ninguém e nem mesmo laços familiares <strong><strong>do</strong>s</strong> mais próximos,<br />

Constantino havia conquista<strong>do</strong> toda a região ocidental <strong>do</strong> império, tornan<strong>do</strong>-se<br />

o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Ocidente, e Licínio era então o Augusto <strong>do</strong> Oriente. Ambos<br />

dividiam o poder <strong>do</strong> imenso território sob a égide da águia.<br />

O olhar de Constância, que parecia perdi<strong>do</strong>, encheu-se de temor. Ela continuava<br />

a refletir que haviam sobra<strong>do</strong> apenas os <strong>do</strong>is e que seu irmão não dividiria<br />

o poder. Pressentia que eles iriam entrar em confronto direto, e não demoraria<br />

muito. Tiran<strong>do</strong> de sob as roupas, junto ao peito, uma pequena cruz de<br />

madeira que trazia pendurada em uma corda fina feita de couro, apertou-a com<br />

uma das mãos e pediu, baixinho:<br />

- Ajude-me, Jesus, por favor. Proteja Constantino e também Licínio. Não<br />

deixe que minha família seja dizimada por essas disputas estúpidas de poder!<br />

Por favor, Nazareno, olhe por mim...<br />

Ainda segurava firme a pequena cruz quan<strong>do</strong> sua serva pessoal entrou, ofegante:<br />

- Minha senhora, precisa vir depressa!<br />

- Calma, Ana. O que foi?<br />

- Venha, senhora, rápi<strong>do</strong>! Uma desgraça está prestes a acontecer! A senhora<br />

precisa impedir!<br />

Constância acompanhou Ana pelos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> palácio até chegar à porta<br />

<strong>do</strong> gabinete <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> que, aberta, permitia que o escutasse a gritar pela<br />

sacada <strong>do</strong> amplo salão, diretamente aos solda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Enfureci<strong>do</strong> e enlouqueci<strong>do</strong>,<br />

ele gritava:<br />

- Meus leais servi<strong>do</strong>res, mora<strong>do</strong>res da bela e poderosa Bizâncio, obedeçam<br />

às minhas ordens. Quero que to<strong><strong>do</strong>s</strong> os funcionários cristãos deixem seus postos<br />

15


e partam imediatamente. Que não fique um só em meu reino. To<strong><strong>do</strong>s</strong> fora! São<br />

trai<strong>do</strong>res, perigosos, eu os quero longe daqui. To<strong><strong>do</strong>s</strong> servem a Constantino!<br />

Constância aproximou-se <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e, seguran<strong>do</strong>-o pelo braço, implorou:<br />

- Acalme-se, por favor! O que está fazen<strong>do</strong>?<br />

Ele arremessou-a para longe com toda a violência, fazen<strong>do</strong>-a cair sobre um<br />

banco e depois sobre uma mesa mais adiante. A serva ia entrar para socorrer<br />

sua senhora, que continuava no chão, ferida, quan<strong>do</strong> Licínio, olhan<strong>do</strong>-a com<br />

fúria, gritou:<br />

- Não ouse entrar em meu gabinete, cristã imunda! Suma daqui! A ordem é<br />

para você também! Suma da minha frente ou acabo com você com minhas<br />

próprias mãos! Já! Desapareça!<br />

Em seguida ele voltou para a sacada, e continuou a gritar aos subordina<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Até o final <strong>do</strong> dia quero to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cristãos bem longe daqui. To<strong><strong>do</strong>s</strong> eles,<br />

sejam romanos ou não! Não quero um remanescente! Aqueles que não concordarem<br />

com minhas ordens, podem partir também. Quero limpar meu reino<br />

dessa praga e vai ser hoje mesmo.<br />

Constância permanecia no chão, desacordada e ferida na cabeça. Totalmente<br />

cego pelo ódio que sentia por Constantino e por seus freqüentes avanços<br />

militares, Licínio escrevia uma ordem expressa para que, em todas as cidades<br />

de seu reino, os cristãos fossem bani<strong><strong>do</strong>s</strong> imediatamente de qualquer cargo ou<br />

função que tivessem em qualquer área relevante. Que se tornassem to<strong><strong>do</strong>s</strong> escravos!<br />

Assim que terminou, saiu da sala com o pergaminho nas mãos e sumiu<br />

no corre<strong>do</strong>r, diretamente para o grêmio onde ficavam os seus solda<strong><strong>do</strong>s</strong> mais<br />

gradua<strong><strong>do</strong>s</strong>. Levava pessoalmente a ordem.<br />

Ana, que se afastara aturdida, buscou ajuda de outra serva de confiança de<br />

Constância, que mantinha em segre<strong>do</strong> sua opção pelo Cristianismo, e pediu:<br />

- Helena, precisa ajudar a senhora! Ela está ferida.<br />

- O que houve?<br />

- Já escutou a ordem <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r Licínio?<br />

- Sim, já correu por to<strong>do</strong> o palácio.<br />

- A nossa senhora tentou intervir e ele a empurrou...<br />

Ana começou a chorar angustiada. Helena trouxe-lhe um pouco de água e<br />

pediu:<br />

- Fale, o que houve?<br />

- Eu acho que a matou...<br />

- Não é possível! Ele não seria capaz...<br />

16


- Acho que foi sem querer. Ele estava com muita raiva, jogou-a com força<br />

e ela caiu e bateu a cabeça na mesa... Vi que sangrava... Se não está morta,<br />

acho que está morren<strong>do</strong>...<br />

Pálida, Helena ergueu-se dizen<strong>do</strong>:<br />

- Precisamos ajudá-la!<br />

- Eu não posso. O impera<strong>do</strong>r me impediu de entrar em seu gabinete e me<br />

quer fora <strong>do</strong> palácio. Se me encontrar de novo por aí, é capaz de me matar...<br />

Precisava ver como ele estava... Parecia fora de si, enlouqueci<strong>do</strong>... Você precisa<br />

ajudá-la... Eu não posso fazer nada!<br />

Helena pensou por um instante e, viran<strong>do</strong>-se para Ana, pediu:<br />

- Vá então, Ana, vá antes que ele a encontre. Mas primeiro peça a Juliano<br />

para vir até aqui; diga que a mãe está ferida, não fale de suas suspeitas mais<br />

graves.<br />

Olhan<strong>do</strong> para o céu, disse:<br />

- Tenho esperança de que ela esteja apenas ferida. Agora vá. Procure por<br />

Juliano e diga que me encontre no gabinete de Licínio. Vamos socorrer Constância.<br />

Antes de sair, ao alcançar a porta, Ana se voltou e disse, em lágrimas:<br />

- Tome cuida<strong>do</strong>, Helena. Ele está fora de si...<br />

Ana saiu depressa e Helena correu pelos corre<strong>do</strong>res, encontran<strong>do</strong><br />

amigos e parentes que, com alguns pertences nas mãos, fugiam assusta<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ela<br />

seguiu até atingir a parte mais alta <strong>do</strong> edifício, onde ficava o amplo salão de<br />

Licínio. Observou que estava vazio e correu até Constância. Havia sangue espalha<strong>do</strong><br />

sob sua cabeça e Helena constatou que o ferimento era grave. Debruçou-se<br />

sobre o peito da outra e escutou-lhe o coração. Ainda batia. Logo, Juliano<br />

entrou, à procura das duas:<br />

- Estou aqui.<br />

Ele estava lívi<strong>do</strong>, com as mãos trêmulas e suan<strong>do</strong> frio. Olhou para a mãe e<br />

depois para Helena e perguntou, assusta<strong>do</strong>: -Ela... está...<br />

- Ela está viva, mas precisamos tirá-la logo daqui e tratá-la. Se perder mais<br />

sangue, não sei o que poderá acontecer...<br />

- É claro! Mas o que foi que deu no meu pai dessa vez?<br />

- Não sei, Juliano. Acho melhor você se preocupar com isso depois. Agora<br />

precisamos socorrer sua mãe.<br />

- Claro...<br />

Helena rasgou parte de suas vestes e cobriu o ferimento, procuran<strong>do</strong> estancar<br />

o sangramento. Assim que o curativo improvisa<strong>do</strong> ficou pronto, Juliano<br />

carregou a mãe para seu quarto e colocou-a na cama.<br />

- E agora, o que faremos? Helena não titubeou:<br />

17


- Vou procurar ajuda. Fique aqui com ela e não deixe ninguém se aproximar<br />

antes que eu chegue, está bem?<br />

O rapaz balançou a cabeça afirmativamente.<br />

DOIS<br />

JULIANO SENTOU-SE À BEIRA da cama e afagou com ternura o rosto da mãe.<br />

Seu coração batia descompassa<strong>do</strong>; suas mãos suavam frio e de seus olhos desciam<br />

pesadas lágrimas que corriam pela face alva, alcançan<strong>do</strong>, vez por outra,<br />

as mãos de Constância. Esta, imóvel, empalidecia mais e mais, e agora já tinha<br />

os lábios arroxea<strong><strong>do</strong>s</strong>. O rapaz olhava para a porta a to<strong>do</strong> instante, ansioso para<br />

que alguém aparecesse em socorro da mãe. Ele a beijou na face e sussurrou,<br />

angustia<strong>do</strong>:<br />

- Por favor, mamãe, agüente! Helena foi buscar ajuda. Não morra, por favor...<br />

Escutou a voz forte e irritada <strong>do</strong> pai:<br />

- O que está fazen<strong>do</strong> aqui? Onde está sua mãe? Juliano ergueu-se indigna<strong>do</strong>:<br />

- Não está ven<strong>do</strong> que ela está aqui, prestes a morrer por sua causa?<br />

Sustentan<strong>do</strong> o olhar arrogante, Licínio, incrédulo, acercou-se da ampla<br />

cama que acomodava a esposa. Fitan<strong>do</strong>-a, exclamou:<br />

- Não tive a intenção de machucá-la, mas ela insistia em interferir em minhas<br />

ordens!<br />

- Não sente nada por ela, mesmo, não é?<br />

- E quem você pensa que é para questionar meus sentimentos, rapaz?<br />

Ainda não sabe nada da vida, das dificuldades e desafios que o mun<strong>do</strong> nos<br />

impõe. Não tem o direito de julgar-me ou discutir meus atos.<br />

- Você machucou a minha mãe, tratou-a com violência, e é só isso que me<br />

diz? Vem ainda me censurar...<br />

Juliano interrompeu-se, em pranto. Licínio aproximou-se mais da mulher,<br />

auscultou-lhe o coração, ergueu-lhe a cabeça e observou o curativo e o ferimento.<br />

Depois, recolocan<strong>do</strong>-a com cuida<strong>do</strong> na cama, ergueu-se e disse:<br />

- A mim você não puxou, definitivamente. Parece uma mulherzinha choramingan<strong>do</strong>.<br />

Vou buscar alguém que a possa ajudar.<br />

Sem esperar pela resposta <strong>do</strong> rapaz, Licínio saiu decidi<strong>do</strong>. Antes de deixar<br />

o cômo<strong>do</strong>, no entanto, viran<strong>do</strong>-se para o rapaz, disse:<br />

18


- Mandarei um <strong><strong>do</strong>s</strong> sacer<strong>do</strong>tes vir vê-la. Depois partirei com meus melhores<br />

homens para terminar o que comecei. Quero expulsar definitivamente to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os funcionários cristãos que trabalham em áreas administrativas <strong>do</strong> meu<br />

reino.<br />

- Por que tanto ódio, meu pai?<br />

- Você pensa que sabe alguma coisa sobre esses cristãos, mas não sabe. Eles<br />

são como uma praga que se espalha por toda parte e se infiltra em todas as<br />

áreas <strong>do</strong> império. Um sem-número de aristocratas da mais alta casta romana<br />

está se juntan<strong>do</strong> a esses segui<strong>do</strong>res de um mestre nazareno que faz milagres e<br />

promete vida eterna... Vida eterna... Promete o paraíso...<br />

- Eu realmente não o compreen<strong>do</strong>, meu pai. Não foram você e meu tio que<br />

fizeram promulgar o Édito de Milão, em que determinam que haja tolerância<br />

religiosa no império? Você apoiou tio Constantino e fez valer essa lei. Por que<br />

fez isso, se não aprecia os cristãos?<br />

Licínio, de cenho fecha<strong>do</strong> e olhar distante, considerou:<br />

- Eram outros tempos, muito diferentes de agora. Constantino ainda tinha<br />

algum respeito pelos seus colegas militares, e talvez até mesmo pelos desgraça<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

cristãos. Agora, to<strong><strong>do</strong>s</strong> não passam de instrumentos de seus interesses, de<br />

bonecos em suas mãos... De coisas, entendeu? Coisas que ele usa conforme<br />

seus desejos e caprichos. A cada um ele usa e descarta, como fez comigo. Ou<br />

você acha que seu tio vai descansar enquanto não me enfrentar?<br />

Licínio parou por um momento, depois bra<strong>do</strong>u, ainda mais enfureci<strong>do</strong>:<br />

- E vou derrotá-lo! Ele não me vencerá!<br />

Juliano baixou a cabeça, limpan<strong>do</strong> as lágrimas, e fitou a mãe com terna<br />

tristeza. Licínio sumiu esbravejan<strong>do</strong> pelo corre<strong>do</strong>r. Podia-se escutar sua voz<br />

ecoan<strong>do</strong> pelo palácio e desaparecen<strong>do</strong> aos poucos. Logo que Licínio afastouse,<br />

Helena entrou depressa, trazen<strong>do</strong> consigo um médico romano, que havia<br />

pouco se tornara cristão. Já conhecen<strong>do</strong> a gravidade <strong>do</strong> problema de Constância,<br />

ele não demorou a fazer-lhe novo e cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>o curativo, e em seguida fê-la<br />

beber um prepara<strong>do</strong> que ele fizera com muitas ervas, para restituir-lhe a força<br />

e ajudar seu próprio corpo na restauração <strong>do</strong> ferimento. Helena o ajudava, observan<strong>do</strong>-o<br />

em silêncio. Juliano se afastara um pouco, pois não suportava ver a<br />

mãe naquelas condições. Otávio não havia ainda termina<strong>do</strong> os seus cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

quan<strong>do</strong> Gripínio, o sacer<strong>do</strong>te mais gradua<strong>do</strong> e responsável pelos serviços aos<br />

deuses romanos, entrou no quarto em busca da mulher de Licínio. Juliano adiantou-se<br />

e informou:<br />

- Otávio já cui<strong>do</strong>u dela.<br />

- Seu pai ordenou que eu a visse.<br />

19


- Pois ele não está aqui agora. Eu, sim, e digo que ela já recebeu os cuida<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

de que necessitava. Deixe-nos. Meu pai não sabia que eu já mandara vir<br />

ajuda, por isso foi procurá-lo.<br />

- Engano seu. Ele foi à minha procura porque confia em mim e sabe que<br />

farei o que é o melhor para salvar sua mãe.<br />

- Ela já foi socorrida. Agradeço, mas não necessitamos mais de sua ajuda.<br />

- Pois bem, se algo acontecer a ela, será sua responsabilidade!<br />

- Minha?! Ora essa! Meu pai foi quem quase a matou e você vem me dizer<br />

que a responsabilidade será minha?<br />

- Então me deixe vê-la!<br />

Otávio, que terminara o atendimento, interveio:<br />

- Consinta que ele a veja, Juliano. Que mal pode haver? O esta<strong>do</strong> dela é<br />

muito grave e toda a ajuda é bem-vinda.<br />

O rapaz afastou-se da cama para que Gripínio se aproximasse. Ele a examinou<br />

minuciosamente; depois se ajoelhou e fez alguns gestos, pedin<strong>do</strong> socorro<br />

aos deuses. Em seguida, fitou Otávio, que aguardava em silêncio, e disse a<br />

Juliano:<br />

- Ela recebeu cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> adequa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Agora está nas mãos <strong><strong>do</strong>s</strong> deuses. Vou<br />

até o templo preparar um sacrifício especial pela vida dela. Eles haverão de me<br />

escutar.<br />

Juliano balançou a cabeça sem dizer nada e Gripínio saiu <strong>do</strong> quarto. Otávio<br />

aproximou-se <strong>do</strong> rapaz e, tocan<strong>do</strong>-lhe o ombro, disse:<br />

- Como disse antes, o esta<strong>do</strong> dela é bem delica<strong>do</strong>. O que podemos fazer<br />

agora é pedir a Deus por ela.<br />

- Será que está sentin<strong>do</strong> muita <strong>do</strong>r?<br />

Dessa vez foi Helena quem se aproximou e disse:<br />

- Uma das ervas que Otávio lhe deu tem efeito de atenuar a <strong>do</strong>r. Dirigin<strong><strong>do</strong>s</strong>e<br />

ao médico, ela indagou:<br />

- Não há mais nada que possamos fazer?<br />

- Continue dan<strong>do</strong> o chá de hora em hora. Isso vai ajudá-la. Se seu esta<strong>do</strong><br />

piorar, veremos o que podemos fazer. Por enquanto, temos de aguardar.<br />

Helena se prontificou:<br />

- Se você me permitir, Juliano, vou ficar aqui cuidan<strong>do</strong> dela, dia e noite.<br />

Otávio também se ofereceu:<br />

- Tenho algumas tarefas para terminar, mas depois posso ficar aqui também.<br />

Apertan<strong>do</strong> as mãos de Helena e depois de Otávio, ele concor<strong>do</strong>u:<br />

- Aceito, por certo.<br />

20


O esta<strong>do</strong> de Constância alternou fases de ligeira melhora e de piora acentuada<br />

nos dias que se seguiram. Ela permanecia inconsciente. Às vezes sussurrava<br />

palavras desconexas, quase incompreensíveis, em outras calava completamente.<br />

Juliano, dedica<strong>do</strong> e amoroso, não saía <strong>do</strong> la<strong>do</strong> da mãe. Otávio e Helena<br />

também se revezavam em cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> e atenção e a jovem, vez por outra, ajoelhada<br />

à beira da cama, orava ao Mestre que há pouco conhecera, rogan<strong>do</strong> pela<br />

vida daquela mulher aparentemente frágil, mas cheia de força interior. Muitas<br />

vezes, ao terminar suas orações, ia devagar até a cabeceira da cama e sussurrava<br />

no ouvi<strong>do</strong> de Constância:<br />

- Não nos aban<strong>do</strong>ne. Por favor, lute!<br />

Algumas semanas depois, a notícia <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong> com a irmã chegou aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

de Constantino 3 . Ele permanecia senta<strong>do</strong>, ocupan<strong>do</strong> o lugar de maior<br />

destaque no centro de seus conselheiros, e ouvia a narrativa sobre as últimas<br />

ações de Licínio sem esboçar nenhuma reação. Constantino era um general<br />

respeita<strong>do</strong> pelos seus homens e pelos seus súditos. Conquistara cada pedaço <strong>do</strong><br />

território romano que ora estava sob seu controle com muita astúcia e arguta<br />

estratégia, o que o tornara um conquista<strong>do</strong>r queri<strong>do</strong> e respeita<strong>do</strong>.<br />

Com rosto de forte ossatura, transparecia em seu corpo e sua postura a determinação<br />

e a coragem de, destemida e sabiamente, lutar pelas suas aspirações.<br />

Constantino parecia incansável e inabalável. Nada tirava dele a calma e a<br />

determinação na tomada de decisões e nas ações. Ele raramente reagia e, sim,<br />

utilizava toda e qualquer informação ou situação em seu favor. Quan<strong>do</strong> o mensageiro<br />

terminou de narrar o que se passava no império <strong>do</strong> Oriente, ele parecia<br />

distante, mas logo perguntou:<br />

- E como está minha irmã agora?<br />

- Não sabemos exatamente, parece que seu esta<strong>do</strong> é muito grave.<br />

- Está receben<strong>do</strong> os cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> devi<strong><strong>do</strong>s</strong>, ou Licínio a aban<strong>do</strong>nou à própria<br />

sorte?<br />

- Juliano, seu sobrinho, é quem está toman<strong>do</strong> conta dela. Constantino calou-se,<br />

pensativo. O silêncio era absoluto no salão, quan<strong>do</strong> um solda<strong>do</strong> surgiu<br />

à porta e interrompeu a reunião:<br />

- Senhor, um mensageiro da fronteira chegou apressa<strong>do</strong> e deseja falar-lhe.<br />

Diz que é extremamente urgente.<br />

Constantino não respondeu, apenas inclinou a cabeça afirmativamente. O<br />

solda<strong>do</strong> reproduziu o sinal positivo e saiu apressa<strong>do</strong>. Logo retornou com o<br />

mensageiro, que aparentava abatimento e cansaço extremo.<br />

- Senhor, trago notícias da fronteira. Más notícias, senhor. Constantino disse,<br />

atento:<br />

3 Constantino I, Constantino Magno ou Constantino, o Grande.<br />

21


- O que houve?<br />

- Os sármatas se preparam para invadir o reino <strong>do</strong> Ocidente. Já arregimentaram<br />

grande número de homens, que não param de chegar. O exército deles<br />

está crescen<strong>do</strong> a cada dia.<br />

O impera<strong>do</strong>r guar<strong>do</strong>u silêncio. Seus generais mais leais e seus conselheiros<br />

já o conheciam bem e sabiam que seu silêncio era a maior ameaça contra seus<br />

inimigos. To<strong><strong>do</strong>s</strong> esperavam pelo que diria Constantino, sem se manifestarem.<br />

Ele se levantou, caminhou até um mapa de seu reino e de suas fronteiras, examinou<br />

o desenho com atenção, depois virou para o solda<strong>do</strong> e perguntou:<br />

- Mostre-me onde exatamente se concentram.<br />

O jovem foi até o desenho coloca<strong>do</strong> sobre uma mesa enorme, observou o<br />

mapa com atenção, depois apontou:<br />

- Estão aqui, entre as montanhas...<br />

Constantino observou o lugar exato que o jovem apontara, depois sorriu<br />

levemente e sugeriu:<br />

- Descanse e coma um pouco. Parece exausto.<br />

- Agradeço, senhor, mas estou a seu serviço, aguardan<strong>do</strong> suas ordens. Só<br />

descansarei depois que o atender, meu senhor.<br />

Tocan<strong>do</strong>-lhe o ombro, Constantino insistiu:<br />

- Descanse, pois tenho planos para seu regresso.<br />

O jovem escutava o impera<strong>do</strong>r com atenção, assim como os demais ouvintes.<br />

Constantino aproximou-se <strong>do</strong> mapa, analisan<strong>do</strong> ainda melhor cada detalhe,<br />

depois se virou para o rapaz e disse:<br />

- Amanhã quero que parta bem ce<strong>do</strong> e vá direto ao meu amigo, Augusto <strong>do</strong><br />

Oriente, Licínio.<br />

Sem compreender, to<strong><strong>do</strong>s</strong> aguardavam o esclarecimento de seu líder, que<br />

prosseguiu depois de longa e premeditada pausa:<br />

- Quero que Licínio nos permita atravessar seu território para exterminarmos<br />

os sármatas. Quero que ele me autorize a atravessar suas cidades mais<br />

lucrativas, para surpreender os sármatas, pelos flancos, certamente por onde<br />

não esperam que ataquemos.<br />

Um de seus generais apenas balbuciou:<br />

- Mas esse é o caminho mais longo... Constantino comentou, com sorriso<br />

irônico:<br />

- Pode até ser mais longo, mas iremos conquistan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que estiver em<br />

nosso caminho. Ao nos defrontarmos com os sármatas, não somente nosso<br />

exército será maior, como meu império estará consolida<strong>do</strong>. Confie em mim,<br />

Galenius, sei o que estou fazen<strong>do</strong>.<br />

22


Erguen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o seu corpo e estican<strong>do</strong> o braço em sinal de profun<strong>do</strong> respeito,<br />

Galenius sau<strong>do</strong>u o seu impera<strong>do</strong>r:<br />

- Não tenho a menor dúvida disso! Ave César! To<strong><strong>do</strong>s</strong> em uníssono repetiram:<br />

-Ave!<br />

Constantino manteve-se sério e em silêncio. No entanto, um observa<strong>do</strong>r atento<br />

registraria em seu olhar a enorme satisfação que sentia pela destacada<br />

posição que ocupava, pela admiração que recebia de seus subordina<strong><strong>do</strong>s</strong> e súditos,<br />

bem como pela perspectiva cada vez mais próxima de tornar-se o único<br />

impera<strong>do</strong>r de Roma.<br />

TRÊS<br />

À MEDIDA QUE os GENERAIS e conselheiros deixavam a sala em alvoroçada<br />

conversa, Constantino acomo<strong>do</strong>u-se em sua cadeira suntuosa, seu trono. Sentou-se<br />

e observou seus homens se afastan<strong>do</strong>; apenas os mais próximos ainda<br />

permaneceram com ele. Mentalmente, felicitou-se por estar mais uma vez aproveitan<strong>do</strong><br />

tão bem as circunstâncias em seu favor. Claro que não ficara feliz<br />

com a notícia de que a irmã estava <strong>do</strong>ente, mas a agressão de Licínio contra<br />

ela era desculpa mais <strong>do</strong> que suficiente para que seus homens o seguissem em<br />

sua condição de Augusto feri<strong>do</strong> no orgulho familiar. Licínio mais uma vez<br />

passava por um brutamontes, e deveria ser conti<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> o custo.<br />

Ele acompanhou a movimentação com o olhar, depois fitou Marco e indagou:<br />

- Está comigo no que preten<strong>do</strong> fazer?<br />

- Sim, sem restrições, senhor.<br />

Constantino levantou-se, tocou-lhe o ombro e comentou:<br />

- Meu bom Marco, eu sei que posso contar com você. O outro respondeu<br />

sem pensar:<br />

- E como poderia ser diferente? Licínio quase lhe mata a irmã!<br />

Constantino aproveitou e, ainda que demonstrasse fixar apenas Marcos, estudava<br />

de canto de olho as mínimas reações de Helenus e Domenico; consciente<br />

da admiração e <strong>do</strong> respeito que ambos dedicavam aos cristãos, arrematou:<br />

- Ele está pioran<strong>do</strong> a cada dia. E esse problema com os cristãos, agora?<br />

Os outros <strong>do</strong>is permaneciam cala<strong><strong>do</strong>s</strong>. Marco, Helenus e Domenico eram os<br />

três homens de confiança absoluta de Constantino, o que no império romano<br />

daquela época era algo quase impossível. Temia-se até a própria sombra. Os<br />

três generais que ocupavam a mais alta graduação <strong>do</strong> exército pretoriano haviam<br />

si<strong>do</strong> transforma<strong><strong>do</strong>s</strong> em guarda pessoal <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Ocidente e agora<br />

23


acompanhavam-no em tu<strong>do</strong>, participan<strong>do</strong> de todas as suas decisões. Experientes<br />

e astutos, apoiavam Constantino, não sem questionar-lhe, muitas vezes, as<br />

ações.<br />

Constantino calou-se, usan<strong>do</strong> o silêncio como tão bem sabia fazer. Voltou<br />

a sentar-se e fixou o olhar para fora da janela, distante. Pensava ativamente nas<br />

estratégias que usaria para vencer Licínio. Esperava pelo apoio de seus homens<br />

de confiança, pois sabia <strong>do</strong> tremen<strong>do</strong> desafio que vencer o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

Oriente representaria. Seria uma batalha das mais difíceis, pois o próprio Licínio<br />

era igualmente um general experiente e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r, possuin<strong>do</strong> um exército<br />

muito maior <strong>do</strong> que o de Constantino, em número de homens.<br />

Finalmente, Helenus e Domenico aproximaram-se de Constantino e, reverencian<strong>do</strong>-o,<br />

afirmaram:<br />

- Também estamos com você em sua decisão. Licínio precisa ser deti<strong>do</strong>.<br />

- Ótimo. Logo mais nos reuniremos para traçar um plano de ataque detalha<strong>do</strong>.<br />

Já tenho algumas idéias e poderemos definir nossa estratégia.<br />

Helenus e Domenico se retiraram, enquanto Marco permaneceu ao la<strong>do</strong> de<br />

seu impera<strong>do</strong>r, a quem tanto admirava. Daria a própria vida por ele, tamanha<br />

sua admiração. Constantino, confortavelmente instala<strong>do</strong> em seu trono, pensava<br />

em suas estratégias, e, apesar de estar convicto de sua decisão, sentia um desconforto<br />

ao imaginar-se confrontan<strong>do</strong> Licínio. Era a sua consciência que buscava<br />

espaço para alertá-lo <strong>do</strong> perigo de suas intenções.<br />

Ao perceber-lhe o titubear sutil, duas entidades espirituais, trajan<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong><br />

manto negro, aproximaram-se dele e sussurraram-lhe aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> da mente:<br />

"Licínio precisa ser deti<strong>do</strong>. Não há nada de erra<strong>do</strong> nisso. Você, e somente você,<br />

deve ser o único e absoluto César de Roma. Será muito melhor para o império.<br />

Um reino dividi<strong>do</strong> não pode subsistir. Roma precisa de você. Você,<br />

Constantino I, será um impera<strong>do</strong>r que marcará a história de sua época e jamais<br />

será esqueci<strong>do</strong>. Um reino dividi<strong>do</strong> não pode subsistir... Um reino dividi<strong>do</strong> não<br />

pode subsistir...".<br />

Registran<strong>do</strong> as palavras <strong>do</strong> espírito ao seu la<strong>do</strong>, Constantino tomou-as como<br />

seus próprios pensamentos e sentiu-se alivia<strong>do</strong>. Sem dúvida, estava fazen<strong>do</strong><br />

o correto.<br />

Distante dali, Juliano acabara de pousar sobre a mesa uma cumbuca com<br />

água fresca que dera à mãe. Olhan<strong>do</strong> pela janela, suspirou profundamente.<br />

Com olhar distante, pensava no pai, no tio e em toda a situação <strong>do</strong> império. Ele<br />

desprezava a atitude de Licínio, sua ganância e seu desejo de poder o enojavam<br />

- especialmente porque detectava na corte, e naqueles que circundavam<br />

seu pai e acompanhavam seus passos de perto, os interesses acima de tu<strong>do</strong>.<br />

Percebia o ambiente hostil em que passara toda a sua vida, com me<strong>do</strong> de to-<br />

24


<strong><strong>do</strong>s</strong>, sempre protegi<strong>do</strong> pela mãe. Aquilo não era a vida que ele imaginava. Não<br />

apreciava aquela disputa pelo poder a qualquer preço. Quan<strong>do</strong> acompanhava o<br />

pai em alguma viagem perigosa, a mãe sempre o cercava de uma guarda pessoal<br />

reforçada, temen<strong>do</strong> pela sua vida. Ela temia até que o próprio pai lhe fizesse<br />

mal, e ele também. Definitivamente não confiava no pai. Também não<br />

confiava no tio. A única pessoa em quem de fato confiava era sua mãe. E naquele<br />

momento ela estava naquele esta<strong>do</strong>, praticamente entre a vida e a morte.<br />

Estava distraí<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> escutou:<br />

- Meu filho...<br />

Sem acreditar, correu até a mãe. Ajoelhan<strong>do</strong>-se, beijou-lhe a face e em lágrimas<br />

balbuciou:<br />

- Mãe... graças aos céus...<br />

- Onde está seu pai?<br />

- Eu não sei. Ele viajou, acho. Fique calada, mãe, você não pode fazer nenhum<br />

esforço. Foi ferida gravemente e precisa ficar tranqüila para se curar.<br />

- Seu tio...<br />

- Constantino?<br />

- Sim... Precisamos falar com ele...<br />

- Por quê?<br />

- Sei que algo ruim vai acontecer...<br />

- Não, mãe, você precisa se acalmar. Tu<strong>do</strong> ficará bem, mas precisa ficar<br />

calma. Como se sente?<br />

- Estou com fome. Juliano exclamou sorrin<strong>do</strong>:<br />

- Isso é um ótimo sinal! Você está melhoran<strong>do</strong>! Que maravilha, mal posso<br />

crer...<br />

- Pensou que iria livrar-se de mim tão fácil?...<br />

- Não diga isso, mãe. Não sabe o quanto sofri esse tempo to<strong>do</strong>.<br />

- Faz tempo que estou aqui, nesta cama?<br />

- Umas duas semanas.<br />

Fazen<strong>do</strong> menção de erguer-se, foi impedida pelo rapaz:<br />

- Não, mãe, o que está fazen<strong>do</strong>? Não pode levantar-se ainda. Deixe que<br />

Otávio a examine primeiro. Você ficou muito mal...<br />

Constância, impedida pelo filho, voltou a deitar-se enquanto falou:<br />

- Sinto-me bem. Apenas um pouco tonta e fraca, mas estou bem. Não tenho<br />

nenhuma <strong>do</strong>r.<br />

- Mas seu corte foi fun<strong>do</strong> e você perdeu muito sangue. Agora vai precisar<br />

de uma dieta especial por algum tempo para poder recuperar-se por completo.<br />

Portanto, fique aí quietinha. Logo Helena virá e então pedirei que chame Otávio.<br />

Somente ele poderá autorizá-la a se levantar.<br />

25


- Estou aflita por seu pai. Onde ele está?<br />

- Já disse que viajou, mãe.<br />

- Para onde? Quan<strong>do</strong> volta?<br />

- Ele saiu daqui enfureci<strong>do</strong>. Sabe que tio Constantino o irrita profundamente.<br />

- Eu sei.<br />

- E receio, mãe, que não haja mais nada que possamos fazer.<br />

- Eles se enfrentarão em breve.<br />

- O que me diz? Ele lhe falou que iria atacar Constantino?<br />

- Não. Constantino marchará contra seu pai.<br />

- Como sabe?<br />

- Eu simplesmente sei e temo por ele.<br />

- Como pode ainda querer-lhe bem, depois de tu<strong>do</strong>? E não somente o que<br />

lhe fez agora, mas a forma como a tratou a vida inteira?<br />

- Fui e sou fiel aos meus deveres. E você também deve ser. O caráter de<br />

um homem se mede pelo respeito que ele tem por si mesmo e pelos seus semelhantes.<br />

- Acontece que meu pai não tem respeito por ninguém.<br />

- E como aprenderá, se o tratarmos de igual mo<strong>do</strong>?<br />

Juliano sorriu afetuoso e comentou, depois de longo perío<strong>do</strong> de silêncio:<br />

- Simplesmente não sei como consegue, mãe. Constância insistiu:<br />

- Sabe onde ele está?<br />

- Não, mãe, ele não me disse nada e realmente não me interessei em saber.<br />

Em breve estará de volta.<br />

Apreensiva, ela balbuciou:<br />

- Não tenho tanta certeza...<br />

Helena entrou e ao deparar com os <strong>do</strong>is conversan<strong>do</strong>, correu ao encontro<br />

deles, choran<strong>do</strong>:<br />

- Minha senhora, graças a Deus acor<strong>do</strong>u! Está melhoran<strong>do</strong>...<br />

A madura senhora respondeu:<br />

- Seria melhor estar no mun<strong>do</strong> espiritual agora, mas ainda tenho tarefas a<br />

cumprir por aqui.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas Helena disse, seguran<strong>do</strong> as mãos de sua senhora:<br />

- Fico feliz, a senhora nos faria muita falta.<br />

26


QUATRO<br />

DUAS TESTEMUNHAS espirituais assistiam àquela cena repleta de alegria,<br />

suavidade e amor. Com vestes diáfanas e luminescentes, Angélica acompanhava<br />

o despertar de Constância, de quem havia cuida<strong>do</strong> carinhosamente. Sorrin<strong>do</strong>,<br />

ao constatar finalmente a recuperação de sua protegida, comentou com<br />

Maurício:<br />

- Pode voltar agora à colônia. Ela ficará bem.<br />

O belo rapaz, que mais lembrava a figura de um anjo, tão insistentemente<br />

retrata<strong>do</strong> por artistas de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tempos, fitou Angélica com ternura e perguntou:<br />

- Tem certeza?<br />

- Sim, ela conseguiu responder muito bem ao nosso tratamento. Seu corpo<br />

está em recuperação e o quadro é promissor.<br />

Fazen<strong>do</strong> pequena pausa, ela prosseguiu, com suave entonação na voz:<br />

- Você aju<strong>do</strong>u muito, agradeço mais uma vez.<br />

- Não me agradeça. Devemos tu<strong>do</strong> a Jesus.<br />

- Sim, eu sei. Agora é importante que você retorne à colônia, levan<strong>do</strong> a Ernesto<br />

as boas notícias. Pelo empenho com que tem acompanha<strong>do</strong> o processo<br />

de expansão <strong>do</strong> Evangelho de Jesus sobre a Terra e pelo seu envolvimento em<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os detalhes, ele gostará de saber que conseguimos impedir a partida de<br />

Constância antes <strong>do</strong> previsto.<br />

- Vou agora mesmo. Você me parece cansada. Vai demorar-se muito ainda<br />

aqui?<br />

- Ficarei até que a situação se acalme.<br />

- Mas parece agravar-se cada vez mais.<br />

- Você sabe o porquê.<br />

Ambos emudeceram por longo tempo. Maurício, por fim, comentou:<br />

- É... Não podemos desanimar.<br />

- De mo<strong>do</strong> algum; vamos perseverar. O Cristianismo haverá de triunfar sobre<br />

a Terra. Por mais que haja resistência de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>, a verdade que Jesus<br />

veio trazer à humanidade prevalecerá!<br />

- Por quanto tempo ainda negaremos e deturparemos seus ensinamentos?<br />

Por que o homem não compreende o que o Mestre veio ensinar?<br />

- Porque somos ainda crianças, espiritualmente falan<strong>do</strong>. Temos muito a aprender,<br />

e enxergamos tu<strong>do</strong> com nossa limitada compreensão da realidade.<br />

- E por que alguns conseguem e outros não?<br />

27


- É por causa da humildade e da fé. Alguns já conseguem ser humildes o<br />

suficiente para intuir que são limita<strong><strong>do</strong>s</strong> demais, e não podem confiar nas próprias<br />

interpretações; precisam buscar a verdade. E mais <strong>do</strong> que isso: estão dispostos<br />

a fazer o esforço necessário para trilhar o caminho da iluminação espiritual,<br />

da regeneração de si mesmos. Estão dispostos a abrir mão <strong><strong>do</strong>s</strong> prazeres e<br />

ilusões passageiros, para dedicar seus esforços àquilo que é essencial e perene.<br />

- Por quanto tempo ainda os cristãos sofrerão tamanha perseguição? Não<br />

deveria ser assim, não é mesmo?<br />

- Quem somos nós para tirar esse tipo de conclusão? No entanto, meu mais<br />

profun<strong>do</strong> desejo é que os homens despertem <strong>do</strong> sono da ignorância em que<br />

ainda estão imersos. Mas agora é melhor que você vá. Leve notícias e peça<br />

novas orientações. Preciso saber em que poderei ajudar, no caso de as suspeitas<br />

de Constância estarem certas. As circunstâncias se precipitam cada vez<br />

mais e estou receosa pelas decisões que Constantino tem toma<strong>do</strong>; ele vem colaboran<strong>do</strong><br />

com os nossos objetivos, como se propôs, mas sinto que pouco a<br />

pouco distancia-se, na essência, daquilo que deveria fazer.<br />

- Mas ainda age em nosso favor.<br />

- Aparentemente. Entretanto, sinto que suas motivações estão se desvirtuan<strong>do</strong>.<br />

- Se estiver certa, ele poderá perder-se a qualquer momento.<br />

- Esse é o meu receio. Preciso da ajuda de nossos orienta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mais Alto.<br />

Sem demora, ambos se despediram e Mauricio partiu em direção a uma colônia<br />

espiritual situada sobre a região da Europa central. Não teve dificuldade<br />

de ultrapassar a grande diferença de vibrações entre os planos material e espiritual,<br />

e logo cruzava enorme portão que se abria para uma região espiritual de<br />

serena suavidade e intensa atividade <strong>do</strong> bem. A atmosfera se fez mais leve,<br />

<strong>do</strong>ce fragrância de flores as mais diversas invadia o ar; pássaros e borboletas<br />

coloridas cruzavam o céu. Maurício deteve-se diante da beleza da colônia e<br />

respirou fun<strong>do</strong>, haurin<strong>do</strong> com satisfação as energias sutis que vibravam no<br />

ambiente. Entrou. Logo estava em companhia de Ernesto, que o aguardava:<br />

- Maurício, é bom vê-lo. Que notícias nos traz <strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>?<br />

Acomodan<strong>do</strong>-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r, Maurício suspirou:<br />

- A situação continua difícil.<br />

- Tenho percebi<strong>do</strong> grande adensamento energético sobre o planeta.<br />

- Sim, como se nuvens negras e pesadas se acumulassem sobre a Crosta.<br />

Apesar disso, trago-lhe boas notícias. Conseguimos contribuir efetivamente<br />

para a melhora de Constância. Ela acaba de despertar e se recupera muito bem.<br />

- Excelente trabalho, Maurício. Ela é nossa grande aliada no senti<strong>do</strong> de<br />

manter Constantino nos trilhos de sua programação. Ela é fundamental.<br />

28


O rapaz prosseguiu, interessa<strong>do</strong>:<br />

- Angélica continua dedicada à sua recuperação.<br />

- Ela tem consegui<strong>do</strong> maior influência sobre Constantino?<br />

- Tem trabalha<strong>do</strong> muito, mas também está receosa de que ele se desvie de<br />

sua tarefa.<br />

- Honestamente, Maurício, eu também estou, e muito.<br />

O jovem fitou Ernesto sem dizer palavra. Também estava apreensivo. Depois<br />

de breve pausa, indagou:<br />

- Achei que talvez Angélica exagerasse... Então ele realmente está se desvian<strong>do</strong><br />

da tarefa?<br />

- Pouco a pouco, quase imperceptivelmente, vem se distancian<strong>do</strong> de nossa<br />

programação.<br />

- E o que podemos fazer?<br />

- Faremos tu<strong>do</strong> o que estiver ao nosso alcance, mas a decisão é dele.<br />

Sério, Maurício indagou:<br />

- Conhece-o há muito tempo?<br />

- Sim, desde Capela. Surpreso, Maurício comentou:<br />

- É... faz tempo mesmo. Também vieram de lá?<br />

- E chegamos antes de você, um pouco antes.<br />

- A grande maioria já retornou....<br />

- Contu<strong>do</strong>, há ainda muitos por aqui. Estamos tentan<strong>do</strong>, não é mesmo?<br />

- Sinto saudade de meu verdadeiro lar. Desejo retornar assim que for possível;<br />

mas como fazer isso, deixan<strong>do</strong> para trás tantas pessoas queridas? Não<br />

posso, por enquanto.<br />

- Sei bem o que sente. É o caso de Ferdinan<strong>do</strong>, ora viven<strong>do</strong> na Terra como<br />

Constantino.<br />

- Ele já tem preparo suficiente para realizar a tarefa que se propôs.<br />

- Certamente. Entretanto, não importa quão prepara<strong><strong>do</strong>s</strong> estejamos, sempre<br />

poderemos falhar; basta uma distração, um enveredar pelo caminho <strong>do</strong> orgulho<br />

e nos deixar <strong>do</strong>minar por ele, e pronto. O retorno fica muito difícil.<br />

Calaram-se novamente. Ernesto ergueu-se, caminhou até uma grande janela<br />

que dava para flori<strong>do</strong> jardim e comentou, por fim:<br />

- Continuemos oran<strong>do</strong> e confian<strong>do</strong>. Deus jamais permite que se coloque<br />

sobre qualquer de seus filhos peso maior <strong>do</strong> que está prepara<strong>do</strong> para suportar.<br />

Confiemos que Constantino será capaz de reencontrar-se e ser vitorioso, afinal.<br />

29


CINCO<br />

ERA MADRUGADA QUANDO o mensageiro de Constantino alcançou os portões<br />

de Bizâncio. Constância, que se recuperara quase completamente <strong>do</strong> triste<br />

incidente com o mari<strong>do</strong>, deu um pulo na cama e sentou-se, tremen<strong>do</strong>, assustada.<br />

Ofegante, tirou o pequeno crucifixo que trazia junto ao peito e suplicou:<br />

- Mestre Jesus, socorra-me e à minha família. Meu coração está opresso e<br />

me diz que algo sombrio está por acontecer. Ajude-nos, por favor...<br />

Sem compreender por que a <strong>do</strong>r no peito a oprimia tanto, não pôde conter<br />

as lágrimas que lhe desciam pela face alva. Pedin<strong>do</strong> repetidamente o socorro<br />

de Jesus e de seus envia<strong><strong>do</strong>s</strong>, ela finalmente conseguiu acalmar-se e voltou a se<br />

deitar. Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia conciliar o sono e revirou-se<br />

na cama até o sol brilhar intenso no céu <strong>do</strong> Mediterrâneo.<br />

Assim que adentrou os portões da fortificada cidade, o mensageiro <strong>do</strong> Augusto<br />

<strong>do</strong> Ocidente deu de comer ao seu cavalo e descansou brevemente. Tinha<br />

ordens de seu general para retornar com a resposta de Licínio tão logo a obtivesse.<br />

Quan<strong>do</strong> o dia amanheceu, <strong>do</strong>is solda<strong><strong>do</strong>s</strong> da guarda pessoal <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r<br />

vieram buscá-lo:<br />

- O impera<strong>do</strong>r Licínio irá recebê-lo agora. Acompanhe-nos.<br />

Prontamente o mensageiro os seguiu até o impera<strong>do</strong>r. Ajoelha<strong>do</strong> diante <strong>do</strong><br />

grande general que dividia o poder <strong>do</strong> império romano com Constantino, o<br />

jovem permaneceu cala<strong>do</strong>, aguardan<strong>do</strong> as instruções <strong>do</strong> soberano, que depois<br />

de longo silêncio indagou:<br />

- O que quer Constantino?<br />

- Os sármatas ameaçam nossa fronteira, senhor, e Constantino pede autorização<br />

para cruzar seu território, a fim de surpreender o inimigo, antes que este<br />

avance sobre Roma.<br />

- O quê? Que estratégia ridícula é essa de seu impera<strong>do</strong>r? O que ele pretende?<br />

Vamos, responda!<br />

Sem erguer os olhos, o rapaz apenas disse:<br />

- Eu não sei, senhor. A única orientação que recebi foi para pedir-lhe a autorização<br />

e retornar imediatamente com sua resposta.<br />

Licínio sorriu, cínico, e insistiu:<br />

- Não sabe? Tem certeza? Vociferou então, com o rapaz:<br />

- Vamos, diga o que Constantino planeja! Você não é um solda<strong>do</strong>? Deve<br />

saber, então.<br />

Trêmulo, o rapaz redarguiu:<br />

- Eu não sei, senhor, apenas cumpro ordens.<br />

30


- E por que Constantino planeja atacar os sármatas por minhas terras? É<br />

certamente o caminho mais longo. Decerto ele planeja algo contra mim.<br />

Licínio levantou-se e caminhou até a janela da ampla sala. Ficou longo<br />

tempo em silêncio, olhan<strong>do</strong> pela janela. Depois, aproximou-se <strong>do</strong> rapaz e, encostan<strong>do</strong><br />

a cabeça na dele, segurou-lhe a face com uma das mãos e gritou com<br />

violência:<br />

- Sei muito bem o que ele planeja. Vou esperá-lo muito bem prepara<strong>do</strong>. E<br />

quanto a você, meu rapaz, se quiser fixar residência aqui, a partir de agora,<br />

será poupa<strong>do</strong> de longa e <strong>do</strong>lorosa viagem.<br />

O jovem solda<strong>do</strong> fitou o general, que naquele momento lhe parecia ainda<br />

mais alto e mais forte, antes de responder com estranheza:<br />

- Não posso, senhor... Meu general me aguarda. Com ar prepotente e arrogante,<br />

Licínio ordenou:<br />

- Pois bem, que assim seja. Quero dar uma resposta contundente ao seu senhor.<br />

E chaman<strong>do</strong> um de seus homens, ordenou:<br />

- Levem-no ao poste. Cem chibatadas, depois deixem-no partir.<br />

O rapaz fitou o impera<strong>do</strong>r com os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong>, mal acreditan<strong>do</strong> no<br />

que escutava. Sabia que Licínio era um general duro e muito experiente, mas<br />

jamais esperaria tal atitude de um outro solda<strong>do</strong>. Sem dizer palavra, foi arrasta<strong>do</strong><br />

pelos guardas e chicotea<strong>do</strong> impie<strong><strong>do</strong>s</strong>amente. Depois, colocaram-no sobre<br />

o cavalo t mandaram-no partir. Embora muito machuca<strong>do</strong>, ele conseguiu conduzir<br />

seu cavalo até a divisa <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> Oriente com os <strong>do</strong> Ocidente. Foi<br />

socorri<strong>do</strong> pelos colegas e logo acomoda<strong>do</strong> em um leito, para receber tratamento.<br />

Antes de ficar inconsciente, disse com enorme esforço:<br />

- Ele não permitirá...<br />

O general, que pessoalmente o auxiliava, acalmou o rapaz:<br />

- Nós já sabemos. Agora, descanse.<br />

Logo o solda<strong>do</strong> ficou inconsciente. E depois de duas noites naquele esta<strong>do</strong>,<br />

não resistiu aos ferimentos que, associa<strong><strong>do</strong>s</strong> à longa jornada, ceifaram-lhe a<br />

jovem vida. Alguns dias depois, Constantino chegou ao acampamento, com<br />

seu exército já arregimenta<strong>do</strong> e ordenan<strong>do</strong> que to<strong><strong>do</strong>s</strong> os seus melhores homens,<br />

espalha<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo império, se juntassem a ele para a batalha iminente.<br />

Policarpo, o general responsável pelo acampamento próximo à divisa, detalhou<br />

o esta<strong>do</strong> em que o jovem chegara. Cheio de ódio, Constantino fê-lo repetir a<br />

narrativa a to<strong>do</strong> o acampamento e, ao final, mostran<strong>do</strong>-se indigna<strong>do</strong>, proferiu<br />

suas ordens da maneira mais eloqüente:<br />

- E por essas decisões arbitrárias que temos de tomar o reino <strong>do</strong> Oriente<br />

das mãos de Licínio. Invadiremos Bizâncio e subjugaremos o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

31


Oriente e seus homens mais fiéis. Chega de agressões descabidas. Primeiro os<br />

cristãos, depois minha própria irmã quase morreu nas mãos desse monstro, e<br />

agora esse jovem inocente, que simplesmente cumpria ordens, deixan<strong>do</strong> sua<br />

família, por estupidez absoluta.<br />

Fez longa e calculada pausa, e depois concluiu:<br />

- Não toleraremos mais isso! Sigam-me e seremos vitoriosos! Vou liderálos<br />

pessoalmente nesta batalha e, ouçam bem o que digo, nós venceremos!<br />

Envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong> pela emoção que as palavras inflamadas de Constantino lhes<br />

causavam, eles gritaram, lidera<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos homens de confiança <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r:<br />

- Ave César, único impera<strong>do</strong>r de Roma!<br />

Constantino fitou os seus homens a ovacioná-lo e emocionou-se. Eram<br />

mais de 100 mil homens a gritar diante dele. Sentia com todas as forças que<br />

venceria Licínio e se tornaria o único impera<strong>do</strong>r. Era esse, agora, seu propósito.<br />

Toda a sua força estava voltada para esse fim. Retirou-se com seus generais,<br />

para organizar o ataque que fariam em breve à capital <strong>do</strong> Oriente.<br />

Durante vários dias o exército de Constantino avançou mais e mais, rumo a<br />

Bizâncio, cidade que pretendiam <strong>do</strong>minar e ocupar. De fato, Constantino desejava<br />

fazer dela a sede de seu império. Famosa pela posição estratégica que<br />

ocupava, desde muito havia desperta<strong>do</strong> o interesse <strong>do</strong> grande general. Quanto<br />

mais avançavam, mais crescia o número de solda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Acampavam à noite, e<br />

mal o dia amanhecia to<strong><strong>do</strong>s</strong> se punham a caminho. Superaram o frio e regiões<br />

de difícil acesso, mas foi às margens <strong>do</strong> rio Ebro, pouco distante de Bizâncio,<br />

que foram obriga<strong><strong>do</strong>s</strong> a parar, dada a violenta correnteza que dificultava a travessia<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> 120 mil solda<strong><strong>do</strong>s</strong>, entre homens de infantaria e cavalaria.<br />

Constantino determinou que acampassem:<br />

- E inútil avançarmos agora. Precisamos entender bem a situação de nosso<br />

oponente. Passaremos esta noite aqui.<br />

Marco observou, preocupa<strong>do</strong>:<br />

- Acho bom mesmo descansarmos. Os homens estão exaustos<br />

- Pois ficaremos aqui por ora. Marco, quero que envie uma pequena tropa<br />

de seus melhores homens - pequena mesmo, <strong>do</strong>is ou três - para que verifiquem<br />

a situação logo após o rio. Precisamos saber exatamente a situação de Licínio.<br />

Atenden<strong>do</strong> de pronto à ordem de seu impera<strong>do</strong>r, Marco retornou algum<br />

tempo depois, informan<strong>do</strong>:<br />

- Estão a caminho. Enviei três de meus melhores solda<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Ótimo. Aguardaremos o retorno deles. Quero que montem vários turnos<br />

de descanso, e que metade <strong><strong>do</strong>s</strong> homens esteja sempre desperta e em alerta.<br />

Licínio pode atacar a qualquer momento.<br />

Marco indagou, surpreso:<br />

32


- Acredita mesmo que ele planeja atacá-lo, senhor?<br />

- Acredito que um homem desespera<strong>do</strong> seja capaz de qualquer ação.<br />

Ao final da tarde seguinte, os três experientes solda<strong><strong>do</strong>s</strong> retornaram trazen<strong>do</strong><br />

informações precisas e preciosas, que foram logo levadas a Constantino.<br />

- As tropas de Licínio ocupam as planícies de Adrianópolis. Estão espalhadas<br />

por terrenos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong>, o que definitivamente lhes garante vantagem,<br />

pelas condições <strong>do</strong> terreno.<br />

- Quantos homens?<br />

- E grande demais o seu exército. Meus homens ficaram muito impressiona<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Relataram que o campo está como coberto por formigas. São<br />

muitos homens. Garantem que excede em número nosso exército.<br />

Constantino ficou longo tempo pensan<strong>do</strong> e depois ordenou:<br />

- Iniciaremos a construção de uma ponte ainda de madrugada. Quero muitos<br />

envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong> nessa construção. Metade <strong><strong>do</strong>s</strong> homens deve se dedicar à empreitada.<br />

Os generais de Constantino o ouviam atentos. Jamais questionavam suas<br />

ordens ou suas estratégias, que muitas vezes não compreendiam, mas sabiam<br />

que elas já haviam concedi<strong>do</strong> àquele exército mais de dezessete vitórias; portanto,<br />

confiavam em seu general. E o seguiriam lealmente até a morte.<br />

Vários dias se passaram, e a ponte se erguia pouco a pouco sobre o rio.<br />

Naquela noite, ao despedir-se de seus homens, Constantino sabia que a hora<br />

de atacar havia chega<strong>do</strong>. Sabia que o oponente acompanhava suas manobras,<br />

e chegara a hora de surpreendê-lo. No meio da madrugada, man<strong>do</strong>u chamar<br />

seus três principais generais e ordenou:<br />

- Quero um regimento com cinco mil arqueiros. Vamos atravessar o rio e<br />

nos embrenhar pela floresta densa; surpreenderemos os homens de Licínio<br />

pela retaguarda. Eles não nos esperam. Meu objetivo é atacar o acampamento<br />

de Licínio.<br />

Os generais se entreolharam, surpresos pela ordem inesperada; no entanto,<br />

não ousaram sequer fazer qualquer comentário. Obedeceram de pronto. Sabiam<br />

que o elemento surpresa seria fundamental na ousada estratégia de Constantino.<br />

Antes de saírem, Marco virou-se para Constantino e perguntou:<br />

- Permita-me saber se poderei estar entre os líderes desse ataque.<br />

- Você e os demais, meus homens de confiança. E eu, pessoalmente, vou<br />

liderar o ataque.<br />

Fazen<strong>do</strong> posição de senti<strong>do</strong> e olhan<strong>do</strong> com profunda admiração para aquele<br />

jovem general que estava diante dele, Marco se retirou. Ao sair da tenda de<br />

Constantino, cruzou com Crispus, filho mais velho <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, que entrou<br />

ansioso, indagan<strong>do</strong>:<br />

33


- Vai sair à batalha, meu pai?<br />

- Assim que os homens estiverem prontos.<br />

- Quero acompanhá-lo.<br />

- Seja paciente, Crispus, tenho planos para você.<br />

- Que planos, senhor?<br />

- Dada a sua habilidade náutica, quero poupá-lo para o possível confronto<br />

que teremos com a armada de Licínio, que ocupa o estreito de Helesponto.<br />

Temos de derrotá-los no mar para poder aniquilá-los de fato. Não podemos<br />

correr o risco de desembarcarem e nos atacarem no momento em que estivermos<br />

para invadir Bizâncio. O que sabe sobre a armada?<br />

- Sei que é poderosa, com mais de 350 navios grandes e bem equipa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

ocupan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o Helesponto.<br />

Fitan<strong>do</strong> o rapaz como a desafiá-lo, o mais velho inquiriu:<br />

- E o que você pensa sobre isso? O que acha? Pode vencê-los? Crispus<br />

pensou um pouco, depois continuou:<br />

- Nossa frota é bem menor, é verdade, mas nossos homens são leais e corajosos.<br />

Aguardam suas ordens, prontos a obedecer.<br />

Tocan<strong>do</strong> com a mão direita o ombro <strong>do</strong> filho, Constantino autorizou:<br />

- Muito bem, meu filho, aguarde minhas ordens. Permaneça no acampamento.<br />

Sua luta será no mar.<br />

Diligente, o rapaz assentiu com a cabeça e respondeu:<br />

- Atenderei prontamente às suas ordens.<br />

- Voltarei em breve com a vitória para prosseguirmos rumo à conquista definitiva<br />

de Bizâncio e à derrota final de Licínio. Quero que destrua completamente<br />

sua força náutica; transforme-os em fumaça...<br />

Crispus tão-somente respondeu:<br />

- Pois assim será!<br />

Logo em seguida Marco entrou e comunicou:<br />

- Estamos prontos, senhor.<br />

Constantino vestiu a armadura, empunhou a pesada espada que o acompanhara<br />

em tantas outras batalhas e, fitan<strong>do</strong>-a como a conversar com ela, conclamou<br />

em alta voz:<br />

- À vitória!<br />

34


SEIS<br />

ENQUANTO CAMINHAVA pela colônia, em um <strong><strong>do</strong>s</strong> grandes jardins flori<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

Angélica cumprimentava os amigos e colegas com quem compartilhara trabalho<br />

e aprendiza<strong>do</strong>. Ela também viera de Capela e alcançara, através de esforço<br />

e dedicação em diversas encarnações penosas, significativo progresso. Estava<br />

pronta para retornar à constelação <strong>do</strong> Cocheiro, mas embora sua alma suspirasse<br />

por voltar ao lar, seu coração se enchera de compaixão pelos habitantes<br />

da Terra e seu difícil caminho de evolução. Queria ajudar e, como Ernesto,<br />

resolvera permanecer para isso.<br />

Finalmente chegou a uma grande construção, onde Ernesto a aguardava.<br />

Assim que a viu, encheu-se de alegria. E abraçan<strong>do</strong>-a exultou:<br />

- É bom vê-la outra vez, Angélica.<br />

Retribuin<strong>do</strong>-lhe o carinho, ela o abraçou ternamente e disse:<br />

- Também estava com saudade, mas achei melhor permanecer junto a<br />

Constância.<br />

Deixan<strong>do</strong> visível sua preocupação, Ernesto comentou:<br />

- A situação está pioran<strong>do</strong> muito, não é?<br />

- Muito. Constância já não consegue acesso ao irmão. Constantino distanciou-se<br />

emocionalmente de toda a família. Inclusive <strong><strong>do</strong>s</strong> próprios filhos. Tem<br />

se enclausura<strong>do</strong> em si mesmo cada vez mais, e perigosamente acredita naquilo<br />

que falam sobre ele.<br />

Entristeci<strong>do</strong>, Ernesto lamentou:<br />

- O poder o está cegan<strong>do</strong> totalmente.<br />

- Eu temo que sim.<br />

- O poder que ele deveria utilizar para fortalecer o bem e a verdade, para<br />

fazer expandir-se sobre a Terra a luz <strong>do</strong> Evangelho, está usan<strong>do</strong> para satisfazer<br />

as próprias paixões.<br />

- E isso mesmo. Infelizmente, creio que ele não conseguirá! Ernesto calouse<br />

e meditou por longo tempo. Depois, perguntou:<br />

- E como está Constância?<br />

- Apesar de fisicamente recuperada, sua alma sofre muito, pois sabe que<br />

ambos, Licínio e Constantino, se desviaram de suas tarefas, e estão prestes a se<br />

confrontar.<br />

- E eram <strong>do</strong>is impera<strong>do</strong>res justamente para se ajudarem mutuamente em tarefa<br />

de tamanha responsabilidade.<br />

- Não resistiram aos apelos da personalidade, <strong>do</strong> ego. Ao egocentrismo e<br />

ao endeusamento de si mesmos.<br />

35


Suspiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong>, Angélica emen<strong>do</strong>u:<br />

- Nossa irmã sofre profundamente, pois intui a <strong>do</strong>r e o sofrimento que os<br />

aguarda após deixarem a Terra.<br />

A jovem fez uma pausa, depois continuou:<br />

- O que poderemos fazer, Ernesto? Uma programação reencarnatória tão<br />

preparada, longamente planejada, agora prestes a se perder...<br />

- E... O livre-arbítrio. Não podemos impedir que Constantino faça suas escolhas.<br />

Ele tem esse direito. E aqueles que o seguem também. O que podemos<br />

fazer, agora, é rogar ao Pai Celeste nos socorra e nos oriente.<br />

- Eles estão prestes a se enfrentar. Talvez o façam agora, enquanto nos falamos.<br />

Constantino alcançou as planícies de Adrianópolis com mais de 120<br />

mil homens; Licínio está acampa<strong>do</strong> com seus homens nas planícies, já mais<br />

para o la<strong>do</strong> de Bizâncio. A guerra é inevitável e...<br />

Angélica não pôde continuar. A <strong>do</strong>r tomou conta de seu coração e pesadas<br />

lágrimas desciam pela sua face. Ernesto buscou consolá-la e disse, tocan<strong>do</strong><br />

suas mãos:<br />

- Sei que é difícil...<br />

- Quantas vidas perdidas... Quanto sofrimento inútil... Quanta <strong>do</strong>r se projetan<strong>do</strong><br />

para o futuro dessas almas...<br />

- Sim, minha irmã, infelizmente. Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, ela indagou:<br />

- Por quê? Por que ainda é tão difícil para os homens compreender...<br />

- Porque a verdade incomoda os homens, Angélica.<br />

- Por quê?<br />

Ernesto pensou por alguns momentos, depois, envolto em safírica luz, disse:<br />

- Os homens tentam de todas as maneiras fugir de sua difícil, angustiosa situação<br />

espiritual.<br />

- Por que não procuram sair da situação, para serem mais felizes? A verdade<br />

nos liberta, nos faz <strong>do</strong>nos de nossos destinos, nos aproxima de Deus e nos<br />

torna seres mais felizes.<br />

- Não sem antes nos obrigar e enxergar nossa real condição espiritual. Jesus<br />

trouxe para os homens a consciência de nossa real condição espiritual, arrancan<strong>do</strong>-nos<br />

das ilusões em que nos apoiávamos, acreditan<strong>do</strong>-nos possui<strong>do</strong>res<br />

de uma superioridade que não existe.<br />

Fez curta pausa. Angélica o escutava atenta. Ele continuou:<br />

- Conscientes de nossa real situação, temos de tomar uma decisão, e arcar<br />

com as conseqüências advindas dela. Podemos optar pela iluminação espiritual,<br />

conscientes de que ela é árdua, difícil e demorada, mas o único caminho<br />

para nossa real felicidade. Ou então, abafar a consciência e escolher a fantasia,<br />

36


a mentira, pois ela nos dá maior prazer, maior satisfação e não nos obriga a<br />

empreender os esforços de resignação, humildade e desapego às ilusões, principalmente<br />

sobre nós mesmos.<br />

Angélica balançou a cabeça em sinal afirmativo e disse:<br />

- Tem razão, meu sábio amigo. A verdade nos liberta, mas depende de nosso<br />

esforço e coragem para nos vermos como realmente somos.<br />

- Exatamente. Por isso matamos Jesus impie<strong><strong>do</strong>s</strong>amente. Calan<strong>do</strong> o Messias,<br />

tentamos fazer silenciar a própria consciência que gritava dentro de nós.<br />

Angélica ia fazer uma pergunta, quan<strong>do</strong> Ernesto sugeriu:<br />

- Oremos a Deus. Ele haverá de nos orientar. E acima de tu<strong>do</strong>, tenhamos<br />

paciência, saben<strong>do</strong> que nós mesmos viemos de longa data fugin<strong>do</strong> destas verdades...<br />

Angélica sorriu ao repetir:<br />

- Paciência...<br />

E Ernesto finalizou:<br />

- E muita perseverança. O bem triunfará, isso é inevitável. A verdade será<br />

vitoriosa.<br />

SETE<br />

CONSTANTINO LIDEROU CERCA de 5 mil homens que atravessaram o rio Ebro<br />

nadan<strong>do</strong> e logo que cruzaram as águas, tal qual Constantino havia planeja<strong>do</strong>,<br />

embrenharam-se por densa floresta para atacar o acampamento de Licínio<br />

pela retaguarda. Contavam com a surpresa <strong>do</strong> oponente para enfraquecê-lo.<br />

Pouco antes <strong>do</strong> alvorecer, quan<strong>do</strong> se ouviam os primeiros pássaros aqui e<br />

acolá, fez-se grande rumor por to<strong>do</strong> o acampamento e a confusão se instalou.<br />

Licínio ergueu-se de um salto e em poucos segun<strong><strong>do</strong>s</strong> estava arma<strong>do</strong>, já sobre<br />

seu cavalo. Viam-se as flechas voan<strong>do</strong> pelos céus <strong>do</strong> acampamento, e homens<br />

tombavam por to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>. Licínio gritou enquanto tentava controlar o cavalo:<br />

- De onde vem o ataque?<br />

Um de seus generais aproximou-se, informan<strong>do</strong>:<br />

- Estão nos atacan<strong>do</strong> pela floresta.<br />

A reação <strong>do</strong> exército de Licínio foi rápida, mas perdiam muitos homens,<br />

rapidamente. Tombavam às dezenas por to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>. Os poucos minutos<br />

que levaram para conseguir se organizar, foram suficientes para conceder<br />

grande vantagem a Constantino, que se aproximava velozmente.<br />

37


Um <strong><strong>do</strong>s</strong> generais de Licínio enviou alguns de seus melhores homens à<br />

frente, para tentarem saber quão perto estava o inimigo. Dos cinco envia<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

apenas um retornou, e feri<strong>do</strong>, informan<strong>do</strong>:<br />

- Eles se aproximam muito depressa. Melhor proteger o general... não posso...<br />

não...<br />

Não suportan<strong>do</strong> os ferimentos, desfaleceu. Logo um grupo de generais se<br />

reuniu, em meio à confusão, para pedir ao impera<strong>do</strong>r que se retirasse:<br />

- Deve retornar imediatamente à segurança da cidade, senhor. O acampamento<br />

já não é seguro.<br />

Licínio nem tentou argumentar. Arregimentou rapidamente um grande<br />

número de homens e partiu em retirada, caminhan<strong>do</strong> na direção das muralhas<br />

que fortificavam e protegiam a importante cidade de Bizâncio.<br />

Constantino, por sua vez, avançava mais e mais. Os homens de Licínio, ainda<br />

que em número muito maior, eram força<strong><strong>do</strong>s</strong> a deixar sua vantajosa posição<br />

em terreno íngreme e descer para uma grande área plana em terras de Adrianópolis,<br />

conceden<strong>do</strong> assim mais vantagens aos atacantes. Quan<strong>do</strong> conseguiu<br />

alcançar o coração <strong>do</strong> acampamento, onde alguns minutos antes estava<br />

Licínio, Constantino ordenou que os arqueiros atirassem flechas flamejantes,<br />

com tochas nas pontas, para o alto, avisan<strong>do</strong> a seu exército que deveria atacar.<br />

Cruzan<strong>do</strong> bravamente o rio, o exército de Constantino avançou intrépi<strong>do</strong><br />

ao encontro de seu general. Este, de espada em punho, atacava tu<strong>do</strong> e to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

que encontrava pelo caminho. Desejava o confronto com Licínio, mas já pressentia<br />

que ele tivesse recua<strong>do</strong>. Seguiu-se, então, violenta batalha que dizimou<br />

mais de 34 mil homens.<br />

Pelo meio da tarde, Constantino vencera o exército <strong>do</strong> opositor e imediatamente<br />

se dirigiu para as muralhas de Bizâncio, com o objetivo de invadi-la.<br />

Conclaman<strong>do</strong> mais uma vez seus homens, gritava com vibrante entonação:<br />

- Não esmoreçam agora!<br />

Depois de breve pausa, gritou ainda mais alto:<br />

- A vitória está próxima! Breve Bizâncio será nossa!<br />

Marco, tentan<strong>do</strong> protegê-lo mas conhecen<strong>do</strong> seu impera<strong>do</strong>r, indagou hesitante:<br />

- Não seria melhor descansarmos um pouco, meu senhor? Precisa cuidar<br />

desse ferimento. Está sangran<strong>do</strong> muito.<br />

Descen<strong>do</strong> de seu cavalo, Constantino improvisou ataduras e amarrou-as<br />

fortemente à coxa, acima <strong>do</strong> profun<strong>do</strong> corte que sofrerá. Depois, subiu no animal<br />

e agradeceu:<br />

38


- Compreen<strong>do</strong> seus cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>, Marco, mas nada me deterá agora. Estamos a<br />

um passo da conquista completa <strong>do</strong> império. Não quero me demorar. Temos<br />

de invadir a cidade.<br />

Chaman<strong>do</strong> outro de seus generais, ordenou:<br />

- Encontrem os homens de Licínio que debandaram para a floresta. Não<br />

quero surpresas...<br />

Prontamente, o outro aquiesceu:<br />

- Sim, imediatamente.<br />

Depois, intrépi<strong>do</strong>, Constantino ergueu uma vez mais a espada já sem brilho<br />

e gritou:<br />

- Logo estaremos dentro da cidade. Sigam-me e seremos <strong>do</strong>nos de to<strong>do</strong> o<br />

império!<br />

Envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo forte magnetismo daquele homem, os solda<strong><strong>do</strong>s</strong> o seguiram<br />

sem titubear. Confiavam cegamente em seu vitorioso impera<strong>do</strong>r.<br />

Ao se aproximarem das altas muralhas de Bizâncio, Constantino ordenou<br />

que montassem um forte cerco e começassem a construir engenhosas torres de<br />

terra.<br />

Depois de montar sua tenda e acomodar-se no local, chamou um de seus<br />

melhores mensageiros e ordenou pessoalmente:<br />

- Diga a Crispus que ele deve atacar imediatamente a frota de Licínio ancorada<br />

no Helesponto. Que force a passagem e destrua os seus navios. Precisamos<br />

que os alimentos nos cheguem por terra, e somente abrin<strong>do</strong> a estreita passagem<br />

que eles controlam poderemos receber os suprimentos de que necessitamos.<br />

O mensageiro partiu no mesmo instante. Ao final daquele dia as torres começaram<br />

a ficar prontas e pouco a pouco, com muito esforço e utilizan<strong>do</strong><br />

grandes alavancas de madeira, foram posiciona<strong><strong>do</strong>s</strong> sobre elas catapultas que<br />

começaram a arremessar pesadas pedras e gigantescas tochas sobre as fortes<br />

muralhas da cidade.<br />

Em seu palácio, Licínio caminhava de um la<strong>do</strong> a outro, aflito, escutan<strong>do</strong> o<br />

barulho <strong>do</strong> impacto que as pedras enormes causavam nas muralhas. Quan<strong>do</strong><br />

um de seus generais entrou na sala, ele logo indagou:<br />

- O que estão fazen<strong>do</strong> agora? Será que terão alguma chance de transpor esta<br />

fortaleza?<br />

Preocupa<strong>do</strong>, o general respondeu:<br />

- Estão atacan<strong>do</strong> as muralhas. Inseguro, Licínio retrucou:<br />

- Elas são muito resistentes, suportarão os ataques. O outro prosseguiu,<br />

com forte tensão na voz:<br />

39


- Estão atacan<strong>do</strong> no centro da muralha, justamente no ponto onde são mais<br />

frágeis.<br />

- Como isso foi possível? Elas são muito altas.<br />

- Não conseguimos ver, mas de alguma forma colocaram as atira<strong>do</strong>ras num<br />

ponto mais alto, atingin<strong>do</strong> o centro de nossos paredões.<br />

Cansa<strong>do</strong> pelo recuo rápi<strong>do</strong> que fora obriga<strong>do</strong> a realizar, e profundamente<br />

contraria<strong>do</strong> pelos avanços e manobras inteligentes <strong>do</strong> rival, Licínio gritava<br />

descontrola<strong>do</strong>:<br />

- Eles não podem entrar, está entenden<strong>do</strong>? Tem de impedi-los. Derramem<br />

óleo ferven<strong>do</strong> sobre eles, agora!<br />

- É o que estamos tentan<strong>do</strong>, mas fomos pegos de surpresa. Não temos nada<br />

prepara<strong>do</strong> de pronto, para responder a esse ataque à altura. Se conseguirem<br />

entrar...<br />

Agarran<strong>do</strong> o subordina<strong>do</strong> pelo pescoço ele bradava:<br />

- Eles não podem entrar, está me entenden<strong>do</strong>? Vá, faça seu trabalho, seu<br />

incompetente! Estou cerca<strong>do</strong> por incapazes, homens fracos!<br />

O general saiu logo e Licínio continuou gritan<strong>do</strong> impropérios. O cerco se<br />

estendeu por toda a noite e pelo dia seguinte, sem interrupções. Constantino,<br />

acampa<strong>do</strong> em local estratégico de onde acompanhava toda a movimentação de<br />

seus homens, estava totalmente convenci<strong>do</strong> da vitória. Já podia ver-se ocupan<strong>do</strong><br />

o trono de Licínio.<br />

Amanhecia quan<strong>do</strong> o mensageiro entrou depressa pelo acampamento próximo<br />

às margens <strong>do</strong> rio Ebro, onde Crispus aguardava as ordens <strong>do</strong> pai. Tão<br />

logo o mensageiro o procurou e transmitiu as ordens para o ataque, o jovem<br />

organizou seus homens e imediatamente lançou-se ao mar, ocupan<strong>do</strong> a maior e<br />

mais bem equipada embarcação de que dispunham. Enquanto esperava, planejara<br />

detida e minuciosamente o ataque que encetaria. Estava empolga<strong>do</strong> e via<br />

naquele ataque a grande oportunidade para ocupar um lugar de destaque e honra<br />

ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai. Queria muito que o grande Constantino reconhecesse seu<br />

talento e seu empenho.<br />

Não demorou muito a alcançar as embarcações <strong>do</strong> inimigo. Travou-se<br />

grande batalha. Embora a esquadra de Licínio fosse maior e melhor equipada,<br />

a determinação e a destreza de Crispus logo fizeram sua armada sobressair.<br />

Vários navios se queimavam sob o fogo da força marítima <strong>do</strong> filho mais velho<br />

de Constantino. A batalha durou to<strong>do</strong> o dia. Na manhã seguinte, muito embora<br />

seus homens demonstrassem sinais visíveis de cansaço, Crispus seguiu atacan<strong>do</strong>.<br />

Perdeu várias embarcações importantes, e pelo meio <strong>do</strong> dia julgou que não<br />

poderia sair vence<strong>do</strong>r daquela batalha. Entretanto, de súbito, forte ventania<br />

soprou sobre o estreito <strong>do</strong> Helesponto, levan<strong>do</strong> os navios de Crispus para bem<br />

40


perto <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> opositor. O jovem não teve dúvida: ordenou ataque maciço e incendiaram<br />

a frota adversária. Vários navios partiram em retirada e 130 foram<br />

destruí<strong><strong>do</strong>s</strong>. O seu próprio navio estava em chamas quan<strong>do</strong> proclamou, erguen<strong>do</strong><br />

a espada, à semelhança <strong>do</strong> que fazia o pai:<br />

- A vitória é nossa!<br />

Ao grito uníssono da tripulação, Crispus escutou o cumprimento de seu<br />

subordina<strong>do</strong> imediato, que lhe tocava o ombro:<br />

- Brava vitória, Crispus! Excepcional! Seu pai se orgulhará de você.<br />

Sorrin<strong>do</strong> satisfeito, o belo rapaz observou, com ligeiro sinal de cabeça:<br />

- Espero que ele seja comunica<strong>do</strong> da batalha em seus pormenores.<br />

Compreenden<strong>do</strong> imediatamente o que o rapaz desejava, o outro respondeu:<br />

- Ele saberá, Crispus, to<strong><strong>do</strong>s</strong> os detalhes dessa brava e corajosa vitória.<br />

Logo depois, alimentos e água chegavam ao acampamento de Constantino.<br />

Não demorou e a primeira muralha começou a ruir. Desespera<strong>do</strong>, Licínio aguardava<br />

informações. Um de seus generais entrou, ofegante:<br />

- Precisamos partir, senhor. Um de nossos muros externos acaba de ruir.<br />

Não vai demorar para que consigam enfraquecer outros e, assim, não tardarão<br />

a entrar.<br />

Licínio ergueu-se, e logo organizou uma grande comitiva e partiu em retirada,<br />

levan<strong>do</strong> consigo muitos baús conten<strong>do</strong> suas riquezas e tesouros. Deixou<br />

para trás sua família e seu povo. Em região não muito distante, conseguiu reunir<br />

novo exército, com cerca de 60 mil homens.<br />

Constantino avançava em sua ofensiva e, pouco a pouco, outras muralhas<br />

foram derrubadas. O grande general estava prestes a invadir Bizâncio, quan<strong>do</strong><br />

foi informa<strong>do</strong> por Marco:<br />

- Licínio escapou e formou um novo exército em Bitínia.<br />

- Quantos homens conseguiu arregimentar?<br />

- Certamente mais de 50 mil.<br />

- Muito bem. Quantos homens ainda temos?<br />

- Quase 100 mil, senhor.<br />

- Mande 80 mil para Bósforo, em pequenas embarcações. O restante, quero<br />

que ocupe a cidade.<br />

E tocan<strong>do</strong> no ombro de Marco, pediu:<br />

- Você deverá ficar aqui e comandar a ocupação. Marco fez menção de retrucar,<br />

mas ele prosseguiu:<br />

- Preciso de você aqui, Marco; é em você que mais confio. Eu irei com os<br />

outros.<br />

- Mas...<br />

41


- Quero enfrentar Licínio pessoalmente. Tenho de ter certeza que ele não<br />

vai escapar desta vez.<br />

Desistin<strong>do</strong> de argumentar, Marco conformou-se:<br />

- Cuidarei de tu<strong>do</strong>.<br />

- Muito bem, seja cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>o com as mulheres e as crianças. Não quero<br />

mortes desnecessárias. E cuide de minha irmã...<br />

- Sim, meu senhor, cuidarei de tu<strong>do</strong>.<br />

- Muito bem, vamos. Não quero dar nenhuma vantagem a Licínio.<br />

OITO<br />

NÃO TARDOU E DEZENAS de pequenas embarcações atracaram. O desembarque<br />

foi rápi<strong>do</strong> e ágil. Assim que a maioria de seus homens alcançou<br />

terra firme, Constantino subiu depressa em seu cavalo e tomou a dianteira <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

solda<strong><strong>do</strong>s</strong>. An<strong>do</strong>u um pouco e logo avistou o exército de Licínio. Intensa batalha<br />

se seguiu. Embora quase 25 mil homens tenham si<strong>do</strong> dizima<strong><strong>do</strong>s</strong> naquela<br />

tarde, Constantino não se sentia satisfeito. Caminhou, sem sucesso, entre os<br />

corpos estendi<strong><strong>do</strong>s</strong> à procura <strong>do</strong> rival. Depois se aproximou <strong><strong>do</strong>s</strong> homens derrota<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

e perguntou irrita<strong>do</strong>:<br />

- Onde está seu venci<strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r? Por que não o encontro em parte alguma?<br />

Fugiu novamente, aquele covarde?<br />

Os solda<strong><strong>do</strong>s</strong> de Licínio mantinham-se de cabeça baixa, temerosos. Constantino<br />

insistia, erguen<strong>do</strong> mais e mais a voz:<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> ficarão a noite inteira sem água ou comida, e amanhã também, e<br />

assim sucessivamente, até que me digam onde está o covarde!<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> solda<strong><strong>do</strong>s</strong> ergueu levemente o rosto e, sem olhar diretamente para<br />

Constantino, balbuciou quase num murmúrio:<br />

- Ele fugiu para a Nicomédia.<br />

Constantino virou-se e olhou para a direção de onde vinha a voz, quase em<br />

enxergar o homem. Aproximou-se, agachou-se e, seguran<strong>do</strong>-lhe o queixo, ordenou:<br />

- Fale sem me<strong>do</strong>, homem! Não lhe farei mal. Não um mal maior <strong>do</strong> que o<br />

seu general lhes fez! Não tenha piedade de alguém que não se preocupa com<br />

seus próprios solda<strong><strong>do</strong>s</strong>!<br />

Ainda temeroso, o homem prosseguiu:<br />

- Ele fugiu assim que viu seus barcos se aproximarem; antes mesmo que<br />

seu exército tocasse o solo, fugiu para a Nicomédia.<br />

Erguen<strong>do</strong>-se satisfeito, Constantino ordenou:<br />

42


- Água e comida a to<strong><strong>do</strong>s</strong> os prisioneiros. Cuidem <strong><strong>do</strong>s</strong> feri<strong><strong>do</strong>s</strong> e coloquemnos<br />

nos barcos. Vamos voltar imediatamente a Bizâncio.<br />

E silencian<strong>do</strong> por alguns instantes, balbuciou por fim, como se pensasse alto:<br />

- Deixem esse covarde comigo...<br />

Quan<strong>do</strong> adentrou os pesa<strong><strong>do</strong>s</strong> portões de Bizâncio, o impera<strong>do</strong>r encontrou<br />

seus cidadãos a esperá-lo. Não pareciam um povo venci<strong>do</strong>, mas sim um povo<br />

que aguardava ansiosamente por seu impera<strong>do</strong>r. Aquele povo estava cansa<strong>do</strong><br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> desman<strong><strong>do</strong>s</strong> e agressões de Licínio e esperavam que ò novo impera<strong>do</strong>r fosse<br />

mais condescendente com eles, pois a fama <strong>do</strong> heroísmo e grandeza de<br />

Constantino a to<strong><strong>do</strong>s</strong> encantava.<br />

Em seu quarto, andan<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> a outro, Constância aguardava angustiada<br />

pelo irmão. Desejava notícias <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e temia pela sua vida. Pressentia<br />

que Licínio estivesse vivo, mas sabia que mesmo que isso fosse verdade, não<br />

era garantia alguma para o futuro de sua família. Estava profundamente abatida.<br />

O filho pediu:<br />

- Por favor, mãe, sente-se. Você parece exausta. Assim não terá forças para<br />

falar com tio Constantino, quan<strong>do</strong> ele chegar.<br />

Constância sentou-se ao la<strong>do</strong> de Juliano e de Helena, e seguran<strong>do</strong> as mãos<br />

<strong>do</strong> rapaz, desabafou:<br />

- Tem razão, meu filho. Estou sen<strong>do</strong> tola. É que sinto que falhei de algum<br />

mo<strong>do</strong>. Não deveria ser assim...<br />

O rapaz obtemperou:<br />

- Ora, mãe, o que está dizen<strong>do</strong>? Não conheço ninguém que tenha ti<strong>do</strong> tanta<br />

paciência e perseverança com outra pessoa, como você com meu pai. Mesmo<br />

sen<strong>do</strong> ele um homem tão rude, você jamais desistiu ou mu<strong>do</strong>u sua conduta<br />

com ele. Como pode ainda sentir-se em falta, seja da forma que for?<br />

Olhan<strong>do</strong> o filho nos olhos, ela respondeu como se olhasse para o infinito:<br />

- Não sei explicar, meu filho... Mas sinto que falhei... Meu dever era ajudar<br />

seu pai a ser, junto de seu tio, o forte pulso <strong>do</strong> império...<br />

Estranhan<strong>do</strong> muito, o rapaz comentou admira<strong>do</strong>:<br />

- Mãe, estou surpreso. Você, envolvida em questões políticas...<br />

- Não se trata disso...<br />

Antes que ela pudesse concluir, Marco entrou no quarto e comunicou, gentil:<br />

- Seu irmão a aguarda, senhora.<br />

Com o coração baten<strong>do</strong> descompassa<strong>do</strong>, ela balbuciou:<br />

- E Licínio...<br />

Abrin<strong>do</strong> a porta para que ela passasse, Marco limitou-se a dizer:<br />

- Ele está vivo.<br />

43


Constância dirigiu por sobre os ombros olhar quase alivia<strong>do</strong> para o filho e<br />

para a amiga, depois seguiu Marco em silêncio. Assim que Constantino a viu,<br />

abriu largo e sincero sorriso, estenden<strong>do</strong>-lhe os braços:<br />

- Minha irmã, como está? Fiquei deveras preocupa<strong>do</strong> com você. Tocan<strong>do</strong><br />

de leve a cicatriz na cabeça da irmã, ele continuou:<br />

- O que foi que aquele monstro lhe fez?<br />

Ela sorriu com ternura, evitan<strong>do</strong> fitar o irmão, e pediu:<br />

- Não fale assim de Licínio.<br />

- E ainda tem coragem de defendê-lo, Constância?<br />

- Ele fez isso numa hora de desespero extrema<strong>do</strong>...<br />

- Ele vive em desespero extrema<strong>do</strong>. Não consegue conviver com sua própria<br />

estupidez. E pare de defendê-lo, minha irmã. Já chega! Tem de parar com<br />

isso. Precisa desistir de vez desse homem que só lhe fez mal.<br />

Ajoelhan<strong>do</strong>-se aos pés <strong>do</strong> irmão, ela implorou:<br />

- Não lhe faça mal, por favor, meu irmão...<br />

Erguen<strong>do</strong>-a com ternura, Constantino comentou enquanto lhe afagava os<br />

cabelos:<br />

- Como você se parece com nossa mãe, é impressionante. Seus gestos, seu<br />

carinho, sua dedicação... Vocês se parecem muito. Sente-se aqui, venha.<br />

E acomodan<strong>do</strong> a irmã ao seu la<strong>do</strong>, pediu que lhe servissem comida e bebida.<br />

Convi<strong>do</strong>u seus homens de confiança para que se sentassem também.<br />

- Vamos celebrar a fragorosa derrota de Licínio. Constância calou-se por<br />

longo tempo. Bem mais tarde, quan<strong>do</strong> terminaram o demora<strong>do</strong> jantar, quan<strong>do</strong><br />

estavam praticamente a sós, Constância pediu de novo:<br />

- Meu irmão, pelo amor que você tem por mim, eu lhe imploro pela vida de<br />

Licínio. Deixe que ele viva...<br />

E, envolvida pelas energias de Angélica, que lhe influenciava o pensamento,<br />

disse sem que pudesse dar conta de suas palavras:<br />

- Não destrua sua oportunidade de reconstrução... Constantino sentiu forte<br />

arrepio a percorrer-lhe o corpo. Olhou sério para a irmã e indagou:<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

Sem esperar resposta, continuou:<br />

- Não importa. Vou descansar agora e você deve fazer o mesmo. Falaremos<br />

sobre isso em outro dia, outra hora.<br />

Constância ia insistir, mas deteve-se perceben<strong>do</strong> que naquele momento o<br />

melhor era silenciar. Constantino, por outro la<strong>do</strong>, pensou muito por quase toda<br />

a noite. Tinha ímpetos de enviar solda<strong><strong>do</strong>s</strong> para eliminar o seu rival, mas ao<br />

mesmo tempo pensava no impacto que causaria sobre o povo. Já era quase dia<br />

claro quan<strong>do</strong> finalmente decidiu o que fazer.<br />

44


Ao encontrar-se com a irmã para o desjejum, informou-lhe, solícito:<br />

- Tenho notícias que lhe agradarão muito. Decidi conceder perdão a Licínio.<br />

Vou mandar chamá-lo.<br />

Com lágrimas nos olhos, Constância quase não conseguia conter a emoção.<br />

Abraçou efusiva o irmão e agradeceu:<br />

- Deus seja louva<strong>do</strong>! Graças a Deus! Você é mesmo um homem bom e digno,<br />

Constantino. A verdadeira dignidade de um chefe de esta<strong>do</strong>, a meu ver,<br />

está em sua capacidade de clemência. Eu lhe agradeço, meu irmão.<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a também, ele comentou:<br />

- Não poderia agir diferente com você, não é mesmo?<br />

Ela sorriu e, limpan<strong>do</strong> as lágrimas de alegria que lhe desciam pela face,<br />

perguntou:<br />

- E como vai informá-lo?<br />

- Ainda não sei.<br />

- Posso ir ao encontro dele pessoalmente, assim ele confiará em você.<br />

- Não gostaria de fazê-la expor-se a uma viagem, ainda que curta, depois<br />

de tu<strong>do</strong> pelo que passou...<br />

- Não me será pesa<strong>do</strong>. Vou levar Juliano e Helena comigo.<br />

- Tem certeza?<br />

- Sim, eu quero ir.<br />

- Pois muito bem. Vou designar um grupo de alta confiança para acompanhá-los.<br />

E depois de breve pausa, perguntou:<br />

- Acha que consegue trazê-lo?<br />

- E claro, ele confiará em mim.<br />

- Então, boa sorte.<br />

Abraçan<strong>do</strong> o irmão mais uma vez, ela confirmou:<br />

- Partiremos após o desjejum. Não quero esperar mais.<br />

Sem nada acrescentar, Constantino tomou seu lugar à mesa e se acomodan<strong>do</strong>,<br />

em local cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>amente escolhi<strong>do</strong>, de onde conseguia ver pela janela<br />

as construções da cobiçada cidade que acabara de conquistar.<br />

45


NOVE<br />

CONSTÂNCIA, o FILHO, Helena e pequena comitiva saíram logo pela manhã.<br />

Seguiam rumo a Nicomédia, onde Licínio se refugiara, buscan<strong>do</strong> algum tempo<br />

para que pudesse negociar algo em seu favor, junto ao seu opositor.<br />

Assim que o pequeno grupo alcançou o seu destino, Licínio foi avisa<strong>do</strong> da<br />

chegada da família. Ao avistá-lo, o coração de Constância disparou. O mari<strong>do</strong><br />

estava páli<strong>do</strong> e abati<strong>do</strong>, visivelmente <strong>do</strong>ente. Ela correu-lhe ao encontro, angustiada:<br />

- Como está, queri<strong>do</strong>? Fiquei tão preocupada... Erguen<strong>do</strong> um pouco a cabeça,<br />

ele respondeu, agressivo:<br />

- Como acha que posso estar? Seu irmão me tirou tu<strong>do</strong>... Abraçan<strong>do</strong>-o com<br />

ternura, ela pediu:<br />

- Queri<strong>do</strong>, é hora de abrir mão dessa disputa. Acabou. Constantino ocupou<br />

Bizâncio, mas lhe concedeu o perdão e o direito de ficarmos to<strong><strong>do</strong>s</strong> juntos. Poderemos<br />

viver nossa vida...<br />

- Que vida? O que me resta além da vergonha, da humilhação da derrota?<br />

Uma vida medíocre, em um buraco qualquer, fugin<strong>do</strong> e temen<strong>do</strong> as atitudes de<br />

Constantino?<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se, Juliano tocou o ombro <strong>do</strong> pai, que permanecia senta<strong>do</strong>,<br />

cabisbaixo, e pediu:<br />

- Anime-se, pai. Com sua experiência, pode ainda realizar muitas coisas...<br />

Erguen<strong>do</strong> a cabeça o impera<strong>do</strong>r abati<strong>do</strong> fitou o filho e comentou:<br />

- Você não tem mesmo brios, não é? Estou derrota<strong>do</strong>. Minha família está<br />

envergonhada, vencida... Meu reino foi tira<strong>do</strong>, eu perdi tu<strong>do</strong>... Estou derrota<strong>do</strong>...<br />

Já nada mais me interessa...<br />

- Constantino permitirá que vivamos com tu<strong>do</strong> aquilo de que necessitamos<br />

- aduziu Constância. - Você poderá fazer as coisas de que gosta, ou pelo menos<br />

gostava quan<strong>do</strong> nos conhecemos...<br />

Olhan<strong>do</strong> para a esposa, ele permaneceu em silêncio. Depois indagou:<br />

- E para onde vai nos enviar? Decerto para algum fim de mun<strong>do</strong>, aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong><br />

por to<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Não sei bem, mas acho que nos enviará para Tessalônica. Erguen<strong>do</strong>-se,<br />

Licínio indagou:<br />

- Tessalônica?<br />

- Acho que sim.<br />

- E por quê?<br />

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-Quan<strong>do</strong> me disse que concordava em per<strong>do</strong>á-lo, ouvi uma conversa breve<br />

entre ele e Marco, e parece que falaram algo sobre Tessalônica. Gostaria de ir<br />

para lá, Licínio?<br />

- Mas é claro! É um lugar de onde posso fazer muitos contatos e, quem sabe,<br />

reorganizar um exército...<br />

Colocan<strong>do</strong> o de<strong>do</strong> indica<strong>do</strong>r sobre os lábios <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ela pediu:<br />

- Não fale nada, por favor.<br />

Olhou na direção <strong><strong>do</strong>s</strong> solda<strong><strong>do</strong>s</strong> que os haviam acompanha<strong>do</strong> e pediu:<br />

- Agora temos de ir. Constantino nos aguarda.<br />

Ainda sem ânimo, Licínio juntou-se ao grupo e retornaram para Bizâncio.<br />

Ao entrarem na localidade fortificada, Licínio não conseguia conter o ódio que<br />

sentia por ter perdi<strong>do</strong> aquela poderosa cidade. Via o desprezo no olhar daqueles<br />

que haviam si<strong>do</strong> seus súditos. Seu ódio crescia a cada passo que dava. Ao<br />

aproximar-se da ampla sala que havia si<strong>do</strong> seu lugar preferi<strong>do</strong> para governar,<br />

sua cólera aumentou ainda mais. Seu coração batia descompassa<strong>do</strong>, suas mãos<br />

estavam geladas e trêmulas, mas Licínio sabia, como ninguém, controlar e<br />

dissimular as emoções. Ao divisar seu trono ocupa<strong>do</strong> pelo rival, sentiu como<br />

se to<strong>do</strong> o sangue <strong>do</strong> corpo lhe subisse à cabeça. Seu coração parecia que explodiria<br />

dentro <strong>do</strong> peito. Ao vê-lo, Constantino ergueu-se e aproximou-se. Licínio,<br />

ciente de sua posição, ajoelhou-se diante <strong>do</strong> inimigo e permaneceu de<br />

cabeça quase no chão. Constantino observou-o atentamente e depois de alguns<br />

segun<strong><strong>do</strong>s</strong> disse:<br />

- Levante-se, Licínio. Você está per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>. Poderá passar o resto de seus<br />

dias com to<strong>do</strong> o conforto e toda a sua riqueza. Seu exílio será em Tessalônica.<br />

Partem pela manhã.<br />

Sem dizer nada, Licínio balançou a cabeça e ajoelhou-se outra vez em reverência<br />

diante <strong>do</strong> opositor. Constantino pediu:<br />

- Agora vamos, como forma de encerrarmos de vez essa disputa. E hora de<br />

agirmos como cidadãos romanos da alta estirpe que somos. Venha sentar-se<br />

comigo á mesa. Cearemos e encerraremos essa discórdia de vez. Fomos amigos,<br />

afinal. Consideremos que a posição que ocupávamos nos obrigou aos atos<br />

que tivemos. Mas entre nós, Licínio, nada existe que nos faça reais inimigos...<br />

Concordan<strong>do</strong> mais uma vez com a cabeça, em silêncio, Licínio acompanhou<br />

a comitiva que seguia Constantino até uma enorme sala onde grande mesa<br />

estava montada. Acomodaram-se. Constância, que ocupava o lugar ao la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, buscava distraí-lo e animá-lo o quanto podia. Mas sabia que aquele<br />

era um momento tremendamente difícil para ele. O ato de perdão e concórdia<br />

de Constantino tornava-o ainda mais forte diante <strong><strong>do</strong>s</strong> cidadãos de Bizancio e<br />

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de seus próprios comanda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Aquele parecia um homem perfeito, quase um<br />

deus...<br />

Na manhã seguinte, número considerável de homens seguiu para Tessalônica<br />

com Licínio e sua família. O impera<strong>do</strong>r venci<strong>do</strong> seguiu cala<strong>do</strong> a maior<br />

parte <strong>do</strong> caminho. Por mais que Constância tentasse conversar, permaneceu<br />

mu<strong>do</strong>.<br />

Depois de acomoda<strong>do</strong> em ampla mansão, com to<strong>do</strong> o conforto e trazen<strong>do</strong><br />

consigo as riquezas pessoais, conforme Constantino havia prometi<strong>do</strong>, Licínio<br />

descansou pelo resto <strong>do</strong> dia. À noite, pouco antes <strong>do</strong> jantar, avisou:<br />

- Não me esperem para o jantar. Surpresa, a esposa perguntou:<br />

- Aonde vai?<br />

- Preciso encontrar alguns velhos amigos. Espero que eles possam ajudar-me.<br />

Pressentin<strong>do</strong> com clareza as intenções <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, Constância pediu:<br />

- Queri<strong>do</strong>, acabamos de chegar e você precisa se recuperar. Ainda está cansa<strong>do</strong>...<br />

Sem esperar que terminasse ele falou:<br />

- Cale-se, Constância. Sua voz me irrita! Com lágrimas nos olhos ela respondeu:<br />

- Eu só quero o seu bem...<br />

- Então deixe-me em paz!<br />

E saiu imediatamente, sem dizer mais nada.<br />

Distante dali, Constantino jantava exultante com seus homens de confiança<br />

e com a família. Crispus estava senta<strong>do</strong> à sua direita e Fausta ocupava o outro<br />

la<strong>do</strong> da mesa. A bela e sensual esposa <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r tinha traços delica<strong><strong>do</strong>s</strong>. Sua<br />

beleza era suave e discreta, carregada de feminilidade e sutilezas. Ela sabia da<br />

atração que causava no sexo oposto e utilizava esse poder conscientemente.<br />

Era altiva, e sua posição a envaidecia e alimentava fortemente seu orgulho.<br />

Constantino conversava anima<strong>do</strong> sobre seus planos:<br />

- Vou transformar Bizâncio na capital <strong>do</strong> império. Aqui será o centro <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>!<br />

Marco sorriu e indagou:<br />

- E quanto a Roma?<br />

- Roma está decadente. Quero algo especial, que marque minha passagem<br />

sobre este império para sempre.<br />

Fausta acompanhava a conversa em silêncio. Depois de longa pausa <strong>do</strong> pai,<br />

Crispus indagou:<br />

- Confia em Licínio? Vai deixá-lo mesmo livre? Acho que ele será perigoso...<br />

Deveríamos tê-lo aqui conosco, como seu prisioneiro...<br />

Constantino fitou o filho e comentou:<br />

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- Ora, Crispus, por que sempre questiona minhas ordens? Não consegue<br />

confiar em minhas decisões, não é?<br />

O rapaz ficou imediatamente lívi<strong>do</strong>. Não conseguia aproximar-se mais de<br />

seu pai e isso o incomodava muito. Respirou fun<strong>do</strong> antes de responder:<br />

- Não é isso, pai... Mas ele é um homem perigoso, você sabe... Constantino<br />

bateu com toda a força sobre a mesa e disse:<br />

- Acha que porque venceu uma batalhazinha no mar pode questionar minhas<br />

ordens, minhas decisões?<br />

Fez uma pausa, depois concluiu:<br />

- Sei muito bem o que estou fazen<strong>do</strong>.<br />

Rubro de raiva, Crispus baixou a cabeça e continuou comen<strong>do</strong>. Constantino<br />

comentou com Marco, senta<strong>do</strong> à sua direita:<br />

- Insolente, esse meu filho...<br />

Na verdade, Marco também não compreendia a reação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r.<br />

Quan<strong>do</strong> recebera a notícia da corajosa e brava vitória que o rapaz havia alcança<strong>do</strong><br />

no estreito <strong>do</strong> Helesponto, ele demonstrara quase desdém. O homem de<br />

maior confiança de Constantino não conseguia compreender-lhe a reação.<br />

Fausta, que tu<strong>do</strong> observava em silêncio, comentou com sua serva pouco<br />

depois, em seu quarto, enquanto aquela lhe penteava os longos cabelos castanhos:<br />

- Sei bem por que Constantino não reconhece a fragorosa vitória <strong>do</strong> filho.<br />

- E por que, minha senhora?<br />

- Ficou com ciúme, isso sim.<br />

- A senhora acha?!<br />

- Tenho certeza. Ele tem me<strong>do</strong> até da própria sombra. Não tardará e esse<br />

ciúme vai controlá-lo. Até porque Crispus está fican<strong>do</strong> cansa<strong>do</strong> de fazer tu<strong>do</strong><br />

pelo pai e não ser reconheci<strong>do</strong>.<br />

Sorrin<strong>do</strong> maliciosamente, ela completou:<br />

- Vamos dar uma ajudazinha à natureza, é claro...<br />

Sem compreender, a serva terminou o que fazia e então aju<strong>do</strong>u sua senhora<br />

a trocar de roupa, acomo<strong>do</strong>u-a na cama e saiu <strong>do</strong> quarto apagan<strong>do</strong> uma das<br />

velas.<br />

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DEZ<br />

ALGUNS MESES SE PASSARAM. Vez por outra chegavam aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> de<br />

Constantino rumores de que Licínio se encontrava com antigos amigos de<br />

combate. E ele calmamente comentava:<br />

- Não conseguirá fazer mais nada. Simplesmente, está acaba<strong>do</strong>.<br />

Enquanto <strong>do</strong>rmia, Constantino recebia visitas espirituais que desejavam<br />

controlá-lo para satisfazer seus interesses. A respeito dessas companhias, Angélica<br />

comentava com Ernesto:<br />

- Está cada vez mais difícil transmitirmos nossos pensamentos a Ferdinan<strong>do</strong>,<br />

ora encarna<strong>do</strong> como Constantino. Ele parece não nos ouvir mais. Continua<br />

cerca<strong>do</strong>, e cada vez mais, pelos nossos irmãos que caminham distante da luz<br />

de Jesus, opon<strong>do</strong>-se sistematicamente à expansão <strong>do</strong> Cristianismo sobre a Terra.<br />

A escuridão, pouco a pouco, toma conta da mente e <strong>do</strong> coração de Ferdinan<strong>do</strong>.<br />

Agora, mais <strong>do</strong> que nunca, pode-se observar claramente em torno de<br />

seu corpo espiritual a formação de densas energias enegrecidas e de baixo teor<br />

vibratório.<br />

Suspiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong>, Ernesto comentou:<br />

- Eles insistem em combater qualquer esforço para a expansão <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos<br />

de Jesus e, principalmente, para que eles sejam devidamente compreendi<strong>do</strong><br />

pelas pessoas.<br />

- É muito triste a situação desses nossos irmãos. Não percebem que os ensinos<br />

de Jesus lhes trarão libertação e auxílio? Não vêem quanta esperança<br />

espalham sobre a humanidade?<br />

- Eles sabem disso.<br />

- No entanto, mesmo assim se opõem sistematicamente.<br />

- Desejam deturpar os preciosos ensinos de Jesus.<br />

- E o que ganham com isso?<br />

- Persistem na ilusão que os alimentava na Terra, e ainda os alimenta no<br />

plano espiritual imediatamente liga<strong>do</strong> ao orbe terreno.<br />

Ambos ficaram pensativos por alguns instantes, depois Angélica afirmou:<br />

- Do mo<strong>do</strong> como Ferdinan<strong>do</strong> está agora, acho que não conseguirá mais nos<br />

ajudar.<br />

Ernesto comentou:<br />

- E acho até que poderá prejudicar, e muito, o processo de crescimento <strong>do</strong><br />

Cristianismo.<br />

Perceben<strong>do</strong> a preocupação de Ernesto, Angélica indagou:<br />

- Será que ele apagou por completo da memória os compromissos assumi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

antes de reencarnar?<br />

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- Por certo que não. Ele sabe, tem consciência deles, mas de seu subconsciente<br />

emergem forças que o atraem para o que ainda é no íntimo. Os defeitos<br />

morais que tenta combater exercem profunda atração sobre sua personalidade<br />

atual. Somente com muito esforço, humildade e dedicação ao bem ele poderia<br />

vencer-se e superar-se.<br />

- E a nossa grande luta interior...<br />

Abraçan<strong>do</strong> Angélica fraternalmente, Ernesto reforçou:<br />

- E é por esse motivo que nossos irmãos sobre a Terra necessitam tanto de<br />

nossa ajuda. Somente na troca entre os <strong>do</strong>is planos conseguiremos nos ajudar<br />

mutuamente e sair vitoriosos desta luta, que é de toda a humanidade, pela iluminação<br />

interior de cada ser humano e a conseqüente ascensão da Terra para<br />

um mun<strong>do</strong> de regeneração.<br />

Muito interessada, Angélica indagou:<br />

- E você sabe quanto tempo ainda levará para que isso aconteça, Ernesto?<br />

- Acho que, de fato, só Deus o sabe. Dependerá de como a humanidade<br />

conduzirá seu destino rumo ao Cria<strong>do</strong>r.<br />

Angélica ergueu-se e disse, cheia de entusiasmo:<br />

- Então temos muito trabalho a fazer.<br />

- Temos muito trabalho, minha amiga.<br />

- E o que vamos fazer de agora em diante com Ferdinan<strong>do</strong>?<br />

- Por enquanto, continuaremos a cercá-lo com toda a ajuda que pudermos,<br />

no senti<strong>do</strong> de lembrá-lo de seus compromissos. Consultaremos nossos orienta<strong>do</strong>res,<br />

mas se possível for, traremos Ferdinan<strong>do</strong> até aqui, durante o sono, para<br />

conversar com ele.<br />

- Então, volto agora mesmo para junto de nosso amigo. Estarei de prontidão<br />

para o que for necessário.<br />

- Ore muito, Angélica, pois sua vibração de amor atinge sempre o coração<br />

de nossos irmãos encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Abraçan<strong>do</strong> mais uma vez o amigo e companheiro de trabalho, Angélica abriu<br />

largo e sincero sorriso e despediu-se de Ernesto, retornan<strong>do</strong> para junto de<br />

Ferdinan<strong>do</strong>. Logo que adentrou o quarto onde ele <strong>do</strong>rmia, encontrou três entidades<br />

espirituais de pesa<strong>do</strong> teor vibratório que permaneciam em torno dele.<br />

Conversavam, sem registrar a presença de Angélica:<br />

- Ele está ceden<strong>do</strong> às nossas sugestões...<br />

- E será completamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por nós. O outro concor<strong>do</strong>u:<br />

- Com algumas interferências aqui e ali, acabaremos com a encarnação dele.<br />

Um deles perguntou, confuso:<br />

- Ele vai morrer logo?<br />

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- Claro que não, estúpi<strong>do</strong>! Se conseguirmos desvirtuá-lo <strong>do</strong> caminho que<br />

tinha toma<strong>do</strong> inicialmente, será de muita utilidade para nossos superiores...<br />

- Então ele continuará vivo.<br />

- Vivo e conquistan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> pela frente. Quanto mais sucesso tiver, no ponto<br />

em que está, mais ficará em nossas mãos. A sua gana de poder nos é muito<br />

útil.<br />

Um deles comentou:<br />

- De fato, é uma das ferramentas que nos facilita a aproximação. Uma das<br />

entidades aproximou-se <strong>do</strong> corpo físico de Constantino, sugan<strong>do</strong>-lhe as energias<br />

vitais e sussurran<strong>do</strong>-lhe ao ouvi<strong>do</strong>:<br />

- Acabe com Licínio. Ele ainda lhe trará problemas. Coloque seu plano em<br />

ação. Por que esperar mais?<br />

Por vezes, Constantino se revirava na cama agita<strong>do</strong>. Seu corpo espiritual,<br />

em profun<strong>do</strong> torpor, permanecia em repouso ligeiramente acima de seu corpo<br />

físico. Angélica suspirou fun<strong>do</strong> e, avistan<strong>do</strong> outro companheiro espiritual da<br />

luz, aproximou-se dele e comentou:<br />

- Olá, Germano, como está?<br />

- Muito preocupa<strong>do</strong> com a situação de nosso irmão.<br />

- Ernesto deverá vir buscá-lo, na tentativa de relembrá-lo de seus deveres.<br />

Os <strong>do</strong>is avaliaram a situação espiritual danosa em que se encontrava o<br />

grande impera<strong>do</strong>r e depois se entreolharam. Com os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong>, Angélica<br />

convi<strong>do</strong>u:<br />

- Oremos, Germano, pedin<strong>do</strong> aos céus que auxiliem nosso irmão.<br />

Fechou os olhos e proferiu sentida oração, rogan<strong>do</strong> o amparo divino para<br />

Constantino. Em alguns instantes o quarto encheu-se de safírica luz, e as entidades<br />

espirituais das trevas experimentaram imediato desconforto. Uma delas<br />

falou:<br />

- Estão aqui, mas não vamos sair. Um deles gritou, irrita<strong>do</strong>:<br />

- Quero ir embora! Estou me sentin<strong>do</strong> mal aqui dentro.<br />

- Pois agüente firme. Precisamos ficar.<br />

Aqueles que sugavam as energias de Constantino não conseguiram continuar<br />

e tiveram de afastar-se ligeiramente. Diante das emanações de amor e paz<br />

que envolveram o ambiente, suas próprias energias se enfraqueceram, conceden<strong>do</strong><br />

momentânea trégua ao impera<strong>do</strong>r, que pareceu <strong>do</strong>rmir mais serenamente.<br />

Germano comentou:<br />

- Bem, conseguimos uma trégua, não é mesmo? Preocupada, Angélica aquiesceu<br />

e disse:<br />

52


- Mas por quanto tempo, meu amigo? As atitudes de Constantino não ajudam;<br />

pelo contrário, fortalecem mais e mais a ação desses irmãos equivoca<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

e <strong>do</strong>entes.<br />

Depois de longa pausa, ela suspirou fun<strong>do</strong> e falou:<br />

- Confiemos em Deus. Ele é <strong>do</strong>no de tu<strong>do</strong> e de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Na manhã seguinte, Constantino acor<strong>do</strong>u ainda entorpeci<strong>do</strong>, mas decidi<strong>do</strong>.<br />

Três dias depois, em Tessalônica, Licínio despertou ce<strong>do</strong> naquela manhã. Marcara<br />

um encontro com alguns de seus amigos e estava sain<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> Constância<br />

foi ao seu encontro:<br />

- Licínio, aonde vai?<br />

Antes que ele respondesse, segurou-lhe os braços, pedin<strong>do</strong>:<br />

- Não saia hoje, por favor.<br />

- E por que não? Hesitante, ela explicou:<br />

- Tive um sonho estranho e confuso esta noite. Estou angustiada, triste.<br />

Não sei explicar, mas gostaria que você ficasse aqui hoje, por favor.<br />

Afastan<strong>do</strong>-se da esposa, ele falou, desdenhoso:<br />

- Ora, Constância, se eu for dar ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> a esses seus sonhos, não faço nada...<br />

Você vive ten<strong>do</strong> sonhos a toda hora.<br />

Ela tentou argumentar:<br />

- É que esse foi tão real...<br />

Silenciou por um instante e, em lágrimas, continuou: -Tão triste...<br />

- Não quero saber desses seus sonhos. Tenho compromisso e não venho<br />

para o almoço.<br />

Saiu. Ao aproximar-se <strong>do</strong> estábulo, um de seus servos aproximou-se e lhe<br />

entregou pequeno pergaminho com curta mensagem:<br />

"Estamos aguardan<strong>do</strong> você nas colinas. E necessário termos muito cuida<strong>do</strong><br />

e sigilo absoluto. Constantino espreita nossos passos."<br />

Licínio montou seu cavalo e dispensou o serviço de seus solda<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Não precisam me acompanhar. Vou sozinho hoje.<br />

E desapareceu depressa na direção <strong>do</strong> ponto onde era espera<strong>do</strong>.<br />

Assim que alcançou o alto da colina, de onde podia avistar a cidade, apeou<br />

e prendia o animal quan<strong>do</strong> viu um homem encapuza<strong>do</strong> aproximar-se. Antes<br />

que pudesse fazer qualquer coisa, o homem sacou uma espada e feriu-o no<br />

coração. Apesar de ser um homem de vigorosa compleição física, Licínio sentiu<br />

o forte golpe e agarrou-se à túnica <strong>do</strong> agressor, desnudan<strong>do</strong>-lhe a cabeça.<br />

De joelhos, já quase sem vida, olhou para o homem que o agredira e balbuciou:<br />

-Marco...<br />

53


Foram suas últimas palavras, antes que seu corpo tombasse ao chão sem<br />

vida. Marco certificou-se de que cumprira devidamente suas ordens e foi depressa<br />

para trás de alguns arbustos, onde escondera seu cavalo.<br />

Assim que o corpo físico de Licínio tombou, inerte, seu corpo espiritual se<br />

desprendeu. Indigna<strong>do</strong>, ele gritava, sem ter total consciência de seu novo esta<strong>do</strong>:<br />

- Eu acabo com você, seu covarde. E bem próprio de seu senhor! Eu acabo<br />

com ambos.<br />

E rapidamente, sem que Marco pudesse notar qualquer diferença, agarrouse<br />

a ele, em espírito, e seguiram a galope para Bizâncio. Marco levava consigo<br />

o inimigo de Constantino, agora desencarna<strong>do</strong>.<br />

ONZE<br />

A VIAGEM DE VOLTA a Bizâncio foi marcada por dificuldades inesperadas,<br />

ladrões e animais perigosos. Marco estava perturba<strong>do</strong> e agita<strong>do</strong>. Executou as<br />

ordens de seu impera<strong>do</strong>r, mas, ao contrário das outras vezes, em que nos campos<br />

de batalha era obriga<strong>do</strong> a executar seus inimigos, aquela situação o deixara<br />

visivelmente vulnerável.<br />

Demorou-se mais <strong>do</strong> que o previsto e, quan<strong>do</strong> adentrou os portões da bela<br />

cidade oriental <strong>do</strong> império romano, suspirou alivia<strong>do</strong>, murmuran<strong>do</strong>:<br />

- Finalmente estou em casa!<br />

Apresentou-se imediatamente ao impera<strong>do</strong>r, que o aguardava aflito. Ajoelhan<strong>do</strong>-se<br />

diante de Constantino, ouviu dele:<br />

- Levante-se, Marco. Estava a ponto de enviar alguém atrás de você. O que<br />

aconteceu afinal? Desincumbiu-se da tarefa que lhe confiei às mãos?<br />

- Certamente, meu senhor. Sua ordem está cumprida, com to<strong><strong>do</strong>s</strong> ou cuida<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

necessários. Meu atraso deve-se a problemas que tive no caminho de volta.<br />

- Que problemas? Foi segui<strong>do</strong>? Alguém presenciou?<br />

- Não, meu impera<strong>do</strong>r, não fui visto por ninguém. Enfrentei alguns percalços<br />

inespera<strong><strong>do</strong>s</strong>: animais selvagens me atacaram sem que pudesse pressentirlhes<br />

a aproximação e também <strong>do</strong>is ban<strong><strong>do</strong>s</strong> de ladrões me cercaram. Consegui<br />

fugir de um deles, mas com o outro tive de deixar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os meus bens, até<br />

mesmo meu cavalo.<br />

- Não posso acreditar. Isso aconteceu aqui, no oriente?<br />

- Não, foi ainda no ocidente.<br />

54


Sentan<strong>do</strong>-se outra vez em seu portentoso trono, o impera<strong>do</strong>r segurou firme<br />

nos braços da suntuosa cadeira e comentou, triunfante, quase sem escutar o<br />

que seu fiel servi<strong>do</strong>r lhe narrava:<br />

- Então, sou finalmente o impera<strong>do</strong>r absoluto. Fazen<strong>do</strong> sinal de reverência,<br />

Marco confirmou:<br />

- Sim, o senhor agora é o único impera<strong>do</strong>r de Roma. Constantino sorriu entre<br />

alivia<strong>do</strong> e satisfeito. Depois, levantou-se e tocou com firmeza o ombro <strong>do</strong><br />

amigo, pedin<strong>do</strong>:<br />

- Vá descansar, Marco, você merece e me parece muito cansa<strong>do</strong>. Realmente<br />

sua viagem não deve ter si<strong>do</strong> fácil.<br />

Marco agradeceu e se retirou sem conseguir parar de pensar que nada havia<br />

si<strong>do</strong> fácil naquela tarefa que cumprira para o seu senhor. Por diversas vezes,<br />

vinha à sua mente a imagem de Licínio em seus derradeiros instantes, e<br />

sentia-se atormenta<strong>do</strong> por aquela lembrança.<br />

Por sua vez, Licínio, cujo corpo espiritual ficara na sala <strong>do</strong> trono, em companhia<br />

de Constantino, sussurrou ao ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r:<br />

- Pensa que vai fazer bom uso de seu poder? Vou infernizar e destruir sua<br />

vida. Você não terá mais paz. Pensa que acabou comigo? Triste engano. Agora<br />

posso destruí-lo sem que perceba, e vou fazê-lo devagar, pouco a pouco, comprazen<strong>do</strong>-me<br />

com cada gota de seu sofrimento.<br />

Constantino remexeu-se no trono, experimentan<strong>do</strong> inexplicável desconforto<br />

e súbita sensação de perigo. Licínio achegou-se ainda mais, colocan<strong>do</strong> as<br />

mãos em volta <strong>do</strong> pescoço <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r. Sem conseguir tocá-lo, gritou mais<br />

impropérios e tentou socar-lhe o estômago, também sem obter nenhuma reação<br />

de Constantino.<br />

Quan<strong>do</strong> ia agredir o opositor outra vez, escutou uma voz grave e pesada<br />

que vinha <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da sala:<br />

- Não acha que vai atingir seu objetivo dessa forma, não é mesmo, Licínio?<br />

Tem muito que aprender, ainda, sobre sua nova condição.<br />

O recém-desencarna<strong>do</strong> reagiu assusta<strong>do</strong>:<br />

- Quem está aí? Pode me ver?<br />

Das sombras escuras da sala emergiu, devagar, um espírito envolto em<br />

uma capa negra, que lhe cobria também a cabeça. Acompanha<strong>do</strong> de outros<br />

<strong>do</strong>is semelhantes a ele, aproximou-se e se apresentou:<br />

- Sou Núbio. Estes são meus ajudantes Plínio e Norman<strong>do</strong>. Licínio sentiu<br />

violento tremor percorrer-lhe o corpo espiritual.<br />

Ainda assusta<strong>do</strong>, gaguejou:<br />

- O... que... fazem aqui?<br />

- Estamos aqui para destruir os planos de Constantino.<br />

55


- Também são inimigos dele?<br />

- Não propriamente dele, mas isso não vem ao caso agora. Podemos ajudar<br />

você a realizar seu desejo de vingança, de maneira inteligente e eficaz.<br />

- E se eu não quiser?<br />

Olhan<strong>do</strong> fixo nos olhos de Licínio, aquele espírito ameaça<strong>do</strong>r respondeu:<br />

- Junte-se a nós e nos obedeça, e garanto que realizará seus desejos. Caso<br />

contrário, seremos obriga<strong><strong>do</strong>s</strong> a expulsá-lo daqui, pois poderia, eventualmente,<br />

atrapalhar nossos planos.<br />

Intimida<strong>do</strong>, Licínio indagou:<br />

- Quem são vocês, afinal?<br />

Sorrin<strong>do</strong>, o encapuza<strong>do</strong> respondeu apenas:<br />

- Servi<strong>do</strong>res das trevas.<br />

Fitan<strong>do</strong> Licínio e aguardan<strong>do</strong> por sua resposta, Núbio obrigou-o, através<br />

da energia de seu pensamento, a ajoelhar-se diante dele. Ainda mais assusta<strong>do</strong>,<br />

Licínio concor<strong>do</strong>u:<br />

- Está bem, está certo. Faço o que quiserem, desde que me permitam vingar-me<br />

dele.<br />

- Terá a sua vingança, saborean<strong>do</strong>-a lentamente. Agora venha conosco.<br />

Licínio deixou a sala junto com os outros. Foram direto para os aposentos<br />

de Fausta, a segunda esposa de Constantino e mãe de seus três filhos mais novos.<br />

Ela <strong>do</strong>rmia sono profun<strong>do</strong>, mas estava inquieta. Seu corpo espiritual pairava<br />

sobre seu corpo físico. Licínio observou o fato e espanta<strong>do</strong> indagou:<br />

- O que é isso? Como ela pode ser duas ao mesmo tempo? Foi Plínio quem<br />

respondeu:<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens encarna<strong><strong>do</strong>s</strong> são assim. Você também era. Agora, depois<br />

que morreu na Terra, tem somente seu corpo espiritual.<br />

Licínio se examinava ao mesmo tempo em que olhava Fausta <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />

Depois, Núbio convi<strong>do</strong>u:<br />

- Observe bem esses pontos cola<strong><strong>do</strong>s</strong> ao corpo espiritual dela. Consegue reconhecer<br />

alguma imagem?<br />

Licínio observou atentamente, e depois respondeu:<br />

- São imagens?<br />

- Muitos são imagens que refletem os pensamentos que povoam sua mente.<br />

E é aqui que reside sua tarefa, por ora. Encontre, na exteriorização <strong><strong>do</strong>s</strong> pensamentos<br />

dela, alguma imagem que possamos utilizar para destruir Constantino.<br />

Licínio continuava observan<strong>do</strong>, sem entender a que Núbio se referia. Estava<br />

curioso demais para registrar suas ordens. Núbio, então, falou irrita<strong>do</strong>:<br />

- Plínio vai lhe dizer o que são essas imagens e como tirar proveito delas.<br />

Eu tenho mais o que fazer.<br />

56


Antes que pudesse sair, Licínio o deteve, agasta<strong>do</strong>, mas conti<strong>do</strong>:<br />

- Por que não posso ir com você?<br />

- Não seja estúpi<strong>do</strong>. Você pode ser mais inteligente <strong>do</strong> que isso. Tem de<br />

aprender a lidar com sua nova situação e podemos ensiná-lo bem depressa.<br />

Agora pare de me trazer problemas. Tenho muito a fazer e você não pode me<br />

ajudar com sua atual ignorância.<br />

Fez breve pausa, depois continuou:<br />

- Se quer mesmo sua vingança, terá de agir <strong>do</strong> nosso mo<strong>do</strong>. Está bem claro?<br />

Licínio balançou a cabeça em sinal afirmativo e Núbio desapareceu no corre<strong>do</strong>r.<br />

O primeiro, então, notou que havia outras entidades que andavam para<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> castelo; alguns pareciam verdadeiros zumbis, já outros se<br />

assemelhavam mais a eles. Sem dizer nada, Licínio acompanhou Plínio, fazen<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong> o que ele dizia. Sua tarefa principal era vigiar os pensamentos e atos<br />

de Fausta, para compreender-lhe bem as fraquezas e poder atuar sobre elas de<br />

acor<strong>do</strong> com seus interesses. Dia e noite espreitavam-lhe os passos, os atos e as<br />

palavras. A presença daquelas entidades de pesa<strong>do</strong> teor vibratório foi aos poucos<br />

envolven<strong>do</strong> Fausta em uma pesada energia, que a debilitava lenta e sutilmente,<br />

tornan<strong>do</strong>-a dia a dia mais desconfiada e insatisfeita.<br />

Vários meses se passaram. Constantino se dedicava ao projeto de reconstrução<br />

de Bizâncio, e transformou-a na capital <strong>do</strong> império, ainda que contra a<br />

vontade <strong><strong>do</strong>s</strong> sena<strong>do</strong>res de Roma. Ele pouco viajava para a antiga capital, demoran<strong>do</strong>-se<br />

cada vez mais na cidade que escolhera para sua residência.<br />

Estava satisfeito. Tinha nas mãos o controle absoluto <strong>do</strong> império, como<br />

sempre desejara, e queria que assim continuasse. Estava debruça<strong>do</strong> sobre a<br />

janela a contemplar os homens que trabalhavam, restauran<strong>do</strong> e modernizan<strong>do</strong><br />

construções, quan<strong>do</strong> Marco chegou e sau<strong>do</strong>u:<br />

- Ave, César!<br />

- Meu amigo, o que o traz logo pela manhã?<br />

- Notícias de sua irmã.<br />

- O que tem ela?<br />

- Está gravemente <strong>do</strong>ente.<br />

- O que houve?<br />

- Desde a morte de Licínio ela tem esta<strong>do</strong> a<strong>do</strong>entada. Não se refez de to<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> choque da perda <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>.<br />

Constantino ficou cala<strong>do</strong> algum tempo, depois disse:<br />

- O que se pode fazer? São reflexos indeseja<strong><strong>do</strong>s</strong>, mas que eventualmente<br />

acontecem em uma empreitada, ainda mais da envergadura na nossa, não é,<br />

Marco?<br />

O outro concor<strong>do</strong>u:<br />

57


- Sem dúvida. O que devo fazer?<br />

- Continue a cercá-la de tu<strong>do</strong> de que necessita.<br />

- Ela tem comenta<strong>do</strong> com freqüência sua preocupação com as dissensões<br />

entre os cristãos.<br />

Interessa<strong>do</strong>, Constantino indagou:<br />

- Isso continua? Pensei que, após to<strong><strong>do</strong>s</strong> os nossos esforços, os cristãos estivessem<br />

viven<strong>do</strong> finalmente em paz...<br />

- Parece que isso ainda não aconteceu.<br />

Constantino sentou-se, tomou um belo cacho de uvas e ofereceu-o a Marco,<br />

que recusou, agradecen<strong>do</strong>. Depois de saborear algumas uvas, o impera<strong>do</strong>r<br />

perguntou interessa<strong>do</strong>:<br />

- Mas afinal, são sérias essas discordâncias?<br />

- Parece que sim. Elas estão crescen<strong>do</strong> e crian<strong>do</strong> certa animosidade entre<br />

diversos grupos e igrejas. Alguns bispos se atacam durante as pregações e até<br />

os segui<strong>do</strong>res mais distraí<strong><strong>do</strong>s</strong> estão começan<strong>do</strong> a perceber o que se passa.<br />

- Isso não é nada bom, Marco; ao contrário, essa notícia me preocupa muito.<br />

A última coisa de que preciso é de grupos antagônicos dentro <strong>do</strong> meu império.<br />

Sobretu<strong>do</strong> agora, que finalmente ocupo o trono absoluto.<br />

Depois de breve pausa, ele indagou:<br />

- Você acha que essas discórdias tendem a aumentar?<br />

- Se nada for feito, acredito que sim.<br />

- Mas afinal, o que está causan<strong>do</strong> esse antagonismo, essas divergências?<br />

- Não sei ao certo. Parece que são opiniões conflitantes, pontos de vista diferentes<br />

sobre determina<strong><strong>do</strong>s</strong> aspectos <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos <strong>do</strong> Cristo e até mesmo sobre<br />

o próprio Cristo.<br />

Pensan<strong>do</strong> alto, Constantino comentou:<br />

- Os cristãos uni<strong><strong>do</strong>s</strong> me interessam muito. Eles crescem mais e mais a cada<br />

dia e precisam de uma força que os lidere, os conduza...<br />

Marco escutava atentamente. Constantino prosseguiu:<br />

- Quero ouvir os líderes. Organize audiências com os principais<br />

líderes cristãos. Quero saber tu<strong>do</strong> e ver como poderei ajudá-los neste<br />

momento.<br />

- Vou convocá-los imediatamente.<br />

Tocan<strong>do</strong> no braço de Marco, o impera<strong>do</strong>r reiterou:<br />

- Faça isso depressa. Meu reina<strong>do</strong> precisa ser marca<strong>do</strong> pela união e pela<br />

concórdia. Como sempre, agradeço suas úteis informações.<br />

Marco esboçou sincero sorriso e saiu. Constantino foi até a janela novamente<br />

e ficou a pensar. Depois balbuciou:<br />

- Vou dar um jeito nisso, ah, se vou!<br />

58


DOZE<br />

CONSTANTINO SE PREPARAVA para o encontro que teria com os principais<br />

bispos cristãos. Apressa<strong>do</strong>, estava com <strong>do</strong>is servos à sua volta quan<strong>do</strong> Fausta<br />

entrou no quarto, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Bom dia, meu impera<strong>do</strong>r. Ligeiramente contraria<strong>do</strong>, respondeu:<br />

- Bom dia. O que deseja, Fausta?<br />

- Pedi permissão para vê-lo ontem, mas como não me respondeu vim ao<br />

seu encontro assim mesmo. Há dias não nos vemos. Temos muito que conversar,<br />

meu senhor.<br />

- Hoje não, Fausta. Tenho compromisso importante com seleto corpo de líderes<br />

cristãos. Amanhã, quem sabe? Façamos melhor: assim que tiver algum<br />

tempo livre, eu aviso.<br />

A mulher sentiu o sangue subir e queimar-lhe o rosto, à feição de um fogaréu<br />

que se acendesse próximo à pele; procuran<strong>do</strong> manter o controle, disse:<br />

- Já faz tempo que ten<strong>do</strong> tenta<strong>do</strong> conversar a sós com você e nunca está<br />

disponível, exceto...<br />

Constantino apenas fitou-a nos olhos, sem responder. Ela ia prosseguir<br />

quan<strong>do</strong> Marco entrou informan<strong>do</strong>:<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> já chegaram e o aguardam no grande salão.<br />

O impera<strong>do</strong>r levantou-se de pronto saiu responden<strong>do</strong>:<br />

- Ótimo. Vamos, então.<br />

Ao passar por Fausta, limitou-se a dizer:<br />

- Man<strong>do</strong> avisar assim que pudermos conversar.<br />

Quan<strong>do</strong> ele deixou a sala, Fausta esmurrou a mesa de madeira e lançou um<br />

vaso à parede; não satisfeita, arremessou também uma cadeira, quebran<strong>do</strong> uma<br />

das pernas. Em seguida, saiu como a pensar em voz alta:<br />

- Ele nunca tem tempo para mim. Estou cansada disso. Nem eu nem meus<br />

filhos temos recebi<strong>do</strong> atenção. Nenhuma! Isso não está certo... Os filhos precisam<br />

ficar com o pai...<br />

Constantino entrou no grande salão e ocupou o trono. Durante horas escutou<br />

atentamente as argumentações <strong><strong>do</strong>s</strong> bispos cristãos mais intransigentes e<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> que seguiam as orientações de Ario 4 , provenientes de diversas regiões <strong>do</strong><br />

império. Esforçava-se por entender o ponto fundamental da grande divergência<br />

que se instalara no clero de to<strong>do</strong> o império havia quase seis anos; uma questão<br />

4 Presbítero cristão de Alexandria funda<strong>do</strong>r da <strong>do</strong>utrina cristã <strong>do</strong> arianismo.<br />

59


que se agravava mais e mais, promoven<strong>do</strong> uma cisão entre os bispos e seus<br />

segui<strong>do</strong>res, começan<strong>do</strong> a despertar o interesse <strong>do</strong> povo. A questão ariana tornou-se<br />

uma disputa teológica que agitou o mun<strong>do</strong> romano da época: como<br />

conciliar a divindade de Jesus Cristo com o <strong>do</strong>gma da fé em um único Deus?<br />

Ao final, sem alcançar concordância alguma, muito menos compreender a<br />

fun<strong>do</strong> o porquê de tanta controvérsia, Constantino confidenciou à Ósio, um<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> bispos em quem mais confiava:<br />

- Caro Ósio, não consigo compreender por que tanta discordância...<br />

Ósio aproximou-se bem dele e disse:<br />

- Não se preocupe, senhor impera<strong>do</strong>r, podemos e devemos resolver isso de<br />

maneira definitiva. Os arianos 5 estão equivoca<strong><strong>do</strong>s</strong>... Deus e Jesus são uma<br />

única pessoa que escolhe seus representantes na Terra, como o fez com o santo<br />

papa, e também concede a autoridade aos governantes, para que conduzam o<br />

povo...<br />

Constantino fitou-o por um segun<strong>do</strong>. Depois, ergueu-se e pediu silêncio à<br />

grande assembléia, convocan<strong>do</strong>:<br />

- Meus irmãos, estou aqui há horas a ouvi-los com muita atenção. Compreen<strong>do</strong><br />

que tenham pontos divergentes, mas para que o Cristianismo cresça e se<br />

expanda com força precisam estar uni<strong><strong>do</strong>s</strong>. Essas sérias divergências que manifestaram<br />

hoje deixam-me profundamente preocupa<strong>do</strong>. E urgente maior união<br />

de to<strong><strong>do</strong>s</strong> - e o Cristianismo merece isso - inclusive de minha parte, como representante<br />

máximo <strong>do</strong> poder da Terra. E não me furtarei a fazer o melhor pelo<br />

bem <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos <strong>do</strong> Messias.<br />

Fez prolongada pausa, caminhan<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> a outro, depois prosseguiu:<br />

- É imperativo que nos reunamos novamente, dessa vez em Nicéia - cidade<br />

de fácil acesso a to<strong><strong>do</strong>s</strong> - para realizar uma grande reunião de conciliação, de<br />

onde sairemos com uma linha única a ser seguida por toda a Igreja. Só que,<br />

dessa vez, convocaremos to<strong><strong>do</strong>s</strong> os bispos. O que dizem, senhores?<br />

E olhan<strong>do</strong> para o representante <strong>do</strong> papa Silvestre I, indagou:<br />

- O santo padre viria a essa ampla reunião de conciliação?<br />

- Sem dúvida, meu senhor. Suas intenções são das mais nobres, por que ele<br />

se negaria? Ao contrário, estou certo de que incentivará a participação de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Satisfeito, Constantino concluiu:<br />

- Pois muito bem, em breve nos encontraremos em Nicéia. Marco se encarregará<br />

de confirmar a to<strong><strong>do</strong>s</strong> a data exata de nosso encontro.<br />

5 O arianismo foi a visão cristológica sustentada pelos segui<strong>do</strong>res de Ario nos primeiros tempos da Igreja<br />

primitiva, que negava a consubstancialidade entre Jesus e Deus, que os igualasse, e fazia <strong>do</strong> Cristo préexistente<br />

uma criatura, embora a primeira e mais excelsa de todas, que encarnara em Jesus de Nazaré.<br />

60


Levantou-se, despediu-se de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os bispos, um a um, e se retirou, deixan<strong>do</strong><br />

a assembléia em meio ao burburinho geral. Mais tarde, comentava com<br />

Marco:<br />

- Eles precisam de alguém com visão de liderança. Alguém que represente<br />

a palavra máxima e que defina o rumo a ser segui<strong>do</strong> por to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Depois de pensar um pouco, continuou:<br />

- Estou impressiona<strong>do</strong> com a organização que atingiram. Eles possuem<br />

uma estrutura hierárquica montada, um corpo eclesiástico bem forma<strong>do</strong> e funcionan<strong>do</strong>.<br />

A única coisa de que precisam é ...<br />

Marco fitou o impera<strong>do</strong>r e tentou completar a frase:<br />

- Um Deus na Terra? Constantino sorriu e corrigiu:<br />

- Um representante fidedigno de Deus, Marco.<br />

O impera<strong>do</strong>r calou-se, ficou pensativo, depois sorriu novamente ao dizer:<br />

- Eles precisam de um pouco mais de poder. Isso fortalecerá seus ideais e<br />

será um excelente motiva<strong>do</strong>r a fazê-los unirem-se diante de meus interesses...<br />

- Poder?!<br />

- Isso mesmo, Marco. Um pouco de poder os fará mais confiantes. Quero<br />

que o encontro não tarde a acontecer. Não posso perder tempo, abrin<strong>do</strong> possibilidades<br />

para que alguém use contra mim essa desunião <strong><strong>do</strong>s</strong> cristãos...<br />

Núbio estava cola<strong>do</strong> ao ouvi<strong>do</strong> de Constantino, repetin<strong>do</strong>-lhe diversas vezes<br />

o que queria que ele fizesse, e o primeiro quase lhe repetia as palavras:<br />

- Um poder que seja capaz de centralizar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os interesses da Igreja e<br />

que a torne de fato universal: a Igreja Católica Apostólica Romana.<br />

Ao ouvir a última frase, a entidade das trevas exultou:<br />

- Isso mesmo, Constantino! Essa reunião será de suma importância para os<br />

nossos interesses. Queremos to<strong><strong>do</strong>s</strong> lá... E aqueles que forem contrários às nossas<br />

determinações, destruiremos... Ninguém poderá opor-se à nossa vontade...<br />

Ninguém pode opor-se a você, Constantino, o grande impera<strong>do</strong>r de Roma...<br />

A entidade espiritual recalcitrante no mal soltou rui<strong><strong>do</strong>s</strong>a gargalhada, que<br />

ecoou por to<strong>do</strong> o prédio, provocan<strong>do</strong> nos mais sensíveis súbito temor.<br />

Nas semanas que se seguiram, Constantino teve diversos encontros com o<br />

bispo orto<strong>do</strong>xo Ósio, que tentou esclarecer-lhe melhor a natureza teológica das<br />

disputas que ameaçavam a unidade da Igreja. Depois dessas conversas, mesmo<br />

sem compreender a disputa teológica que envolvia a questão ariana, Constantino<br />

optou por defender a posição <strong><strong>do</strong>s</strong> orto<strong>do</strong>xos, aqueles que acreditavam que<br />

Jesus e Deus eram uma só pessoa. Jesus era Deus, e ele, na posição de impera<strong>do</strong>r<br />

Romano, teria a autoridade máxima na Terra, concedida por Deus, especialmente<br />

se também fosse um cristão confesso. A questão ariana representava<br />

61


um grande obstáculo à realização da sua idéia de um império universal, que<br />

deveria ser alcança<strong>do</strong> com a ajuda da uniformidade da a<strong>do</strong>ração divina...<br />

Adentran<strong>do</strong> o grande salão onde Constantino dialogava com Marco sobre<br />

suas deliberações, Ernesto e Angélica, envoltos em luminosas emanações, caminhavam<br />

em direção ao trono. De imediato, Núbio registrou a mudança sutil<br />

ocorrida nas vibrações <strong>do</strong> ambiente e comentou com Norman<strong>do</strong> e Plínio:<br />

- Devemos nos afastar. Há perigo próximo. Fitan<strong>do</strong> o chefe, Norman<strong>do</strong> indagou:<br />

- Que tipo de perigo?<br />

- Sinto uma vibração suave enchen<strong>do</strong> pouco a pouco o ambiente. Afastemo-nos<br />

agora, para não sermos afeta<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Norman<strong>do</strong> insistiu:<br />

- Como poderíamos ser afeta<strong><strong>do</strong>s</strong>?<br />

Puxan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mal pela mão, ele respondeu ríspi<strong>do</strong>:<br />

- Fique quieto, Norman<strong>do</strong>... E sigam-me. Temos de nos afastar deste ambiente.<br />

Vocês não sabem que, se uma entidade de luz nos tocar de alguma forma<br />

os sentimentos, podemos sucumbir aos seus apelos?<br />

Dessa vez foi Plínio quem comentou:<br />

- Você deve estar exageran<strong>do</strong>... Não é possível...<br />

- Cale-se, idiota. Não tem noção <strong>do</strong> que está falan<strong>do</strong>. Eu já vi isso acontecer<br />

várias vezes, até mesmo com entidades mais poderosas mentalmente <strong>do</strong><br />

que eu. Presenciei tal situação e vi aquele forte espírito prostra<strong>do</strong> de joelhos,<br />

imploran<strong>do</strong> perdão! Foi uma cena patética e não admito a menor possibilidade<br />

de que um dia isso passe por perto de mim.<br />

Os <strong>do</strong>is visitantes luminosos tu<strong>do</strong> observavam. Assim que as entidades das<br />

trevas se afastaram, Angélica comentou:<br />

- Quanto mal ainda causarão! Não podem compreender que o maior mal<br />

fazem a si próprios... Sabe quem é esse Núbio?<br />

- Eu o conheço, vem há muito tempo lutan<strong>do</strong> contra o Cristianismo. Presenciei<br />

muitos cristãos sinceros sofren<strong>do</strong> profunda <strong>do</strong>r, impingida por Núbio e<br />

seus segui<strong>do</strong>res diretos. Ele, por sua vez, apesar de muito independente, responde<br />

também a uma entidade ainda mais desenvolvida intelectualmente <strong>do</strong><br />

que ele.<br />

- Como ficaram assim?<br />

- Desenvolveram o conhecimento, mas nada colocaram em prática, e se<br />

perderam no orgulho e na vaidade. O amor, essa jóia <strong>do</strong> coração que tempera e<br />

controla nossos desvarios, anda distante de suas almas.<br />

- Ainda assim, em germe eles trazem o amor dentro de si, não é?<br />

62


- Sem dúvida alguma. Essa cena que Núbio descreveu já vi igualmente acontecer<br />

muitas vezes, e só é possível graças às sementes de sentimentos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

que to<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens trazem no íntimo.<br />

Angélica calou-se, pensativa. Ernesto acercou-se de Constantino, acompanhan<strong>do</strong><br />

sua conversa com Marco:<br />

- Estou decidi<strong>do</strong>, Marco. Abafarei a questão ariana e darei poder ao clero.<br />

Controlarei a Igreja, você verá.<br />

Marco não respondeu, ouvin<strong>do</strong> atentamente. Ernesto manteve-se cala<strong>do</strong><br />

por mais algum tempo, depois suspirou fun<strong>do</strong> e falou:<br />

- Infelizmente, Angélica, acho que não poderemos fazer mais nada. Constantino<br />

está firmemente decidi<strong>do</strong>, totalmente influencia<strong>do</strong> por Núbio. Ele não<br />

só o deixou <strong>do</strong>minar sua mente, como sente a falta da entidade, quan<strong>do</strong> ela se<br />

afasta. Estão permutan<strong>do</strong> energias o tempo to<strong>do</strong>.<br />

- E não podemos mesmo fazer nada? Ernesto meditou um pouco, depois<br />

respondeu:<br />

- Faremos uma última tentativa esta noite. Mas Constantino tem seu livre-<br />

arbítrio e está optan<strong>do</strong> por deixar que os aspectos que ele tem de combater<br />

nesta encarnação, como condição para realizar sua tarefa sobre a Terra, <strong>do</strong>minem<br />

sua personalidade, tomem seu coração e conduzam suas decisões. Está<br />

totalmente sob o <strong>do</strong>mínio de Núbio.<br />

- E o que faremos? Ele tem um papel fundamental a cumprir, auxilian<strong>do</strong> a<br />

fortalecer o Cristianismo e sua expansão, contornan<strong>do</strong> as dissensões e fortalecen<strong>do</strong><br />

seus princípios puros e simples! Os éditos de tolerância em relação aos<br />

cristãos que ele já publicou e outras ações que já implementou em favor <strong>do</strong><br />

Evangelho confirmam que caminhava na direção certa.<br />

- Sem dúvida, Angélica. Ele iniciou sua trajetória, mas os riscos que corria<br />

eram grandes.<br />

- Não estava prepara<strong>do</strong> o suficiente?<br />

- Ele tinha todas as condições para realizar sua tarefa. Mas, para isso, deveria<br />

renunciar a vícios mentais de outrora. Em especial abrir mão da vaidade, e<br />

ela fala muito alto ainda na alma de Ferdinan<strong>do</strong>...<br />

- Que poderemos fazer?<br />

- Vamos aguardar para tentar falar com ele durante o sono.<br />

- E se não conseguirmos?<br />

- Então, teremos de deixá-lo entregue às conseqüências das próprias decisões.<br />

- E quanto ao Cristianismo? Será prejudica<strong>do</strong>!<br />

- Constantino não decide sozinho. A organização eclesiástica que se desenvolveu<br />

no contato <strong><strong>do</strong>s</strong> converti<strong><strong>do</strong>s</strong> ao Cristianismo com as estruturas roma-<br />

63


nas vem, ao longo das décadas, contaminan<strong>do</strong> de forma negativa a pureza da<br />

Boa Nova. Os homens, devi<strong>do</strong> às suas escolhas equivocadas, afastam-se cada<br />

vez mais da fonte verdadeira <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos de Jesus.<br />

Como Angélica permanecia calada, ele prosseguiu:<br />

- Nada podermos fazer para impedir as intenções de Constantino. Mas tenha<br />

certeza, de que outros virão para lutar por trazer o Cristianismo de volta à<br />

pureza original. E certamente as trevas poderão retardar, mas não irão impedir<br />

que o Cristianismo seja triunfante, afinal.<br />

Ouvin<strong>do</strong> Ernesto, e anteven<strong>do</strong> a situação <strong>do</strong>lorosa que se delineava, Angélica<br />

indagou, com os olhos rasos de lágrimas e o coração comovi<strong>do</strong> pela situação<br />

humana:<br />

- Mas quanta <strong>do</strong>r a humanidade ainda terá de viver? Tocan<strong>do</strong>-lhe as mãos<br />

com amor de pai, Ernesto respondeu:<br />

- Isso eu não saberia dizer...<br />

Naquela noite Ernesto tentou despertar o corpo espiritual de Constantino,<br />

a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> sobre seu corpo físico. Mas ele não acordava. A certa altura da<br />

delicada operação, Angélica indagou:<br />

- Por que ele não acorda?<br />

- Vê os fios negros que o ligam às entidades das trevas?<br />

- Sim.<br />

- Eles o estão entorpecen<strong>do</strong> para que não desperte.<br />

- Continuam agin<strong>do</strong>, ainda que a distância...<br />

- Sim. Eles jamais desistem, uma vez que Constantino lhes elegeu a companhia<br />

conscientemente.<br />

Depois de muito tempo em prece, Ernesto finalizou suas atividades, convidan<strong>do</strong>:<br />

- Vamos, Angélica, precisamos ir. Não poderemos ajudar agora. Preparemo-nos<br />

para prosseguir com o socorro àqueles que se dispuserem a cooperar<br />

com Jesus. Ele busca tais servi<strong>do</strong>res, jamais constrangen<strong>do</strong> alguém a segui-lo.<br />

Com angústia na voz, Angélica lamentou:<br />

- E Núbio prosseguirá com suas intenções tenebrosas...<br />

- Não permita que o triste quadro que presenciamos desvie seu coração da<br />

serenidade e da confiança em Deus. O Pai tem tu<strong>do</strong> sob o seu coman<strong>do</strong>. Os<br />

dias de ação livre de Núbio estão acaban<strong>do</strong>.<br />

- Como assim?<br />

- Ele logo viverá nova experiência na Terra, encarnan<strong>do</strong> de novo. Confiemos<br />

na Providência Divina. Agora temos de voltar...<br />

E as duas entidades partiram, deixan<strong>do</strong> atrás de si um intenso rastro de luz.<br />

64


TREZE<br />

No VERÃO DE 325, em Nicéia, Constantino presidia a primeira conferência<br />

mundial <strong><strong>do</strong>s</strong> bispos da igreja cristã . Estavam presentes cerca de 250 bispos de<br />

to<strong>do</strong> o império, além de padres acompanhantes e diáconos. Foram oferecidas<br />

aos bispos as comodidades <strong>do</strong> sistema de transporte imperial - livre transporte<br />

e alojamento de e para o local da conferência - para encorajar o maior número<br />

possível de audiência. E o objetivo foi atingi<strong>do</strong>, pois to<strong>do</strong> o corpo eclesiástico<br />

da época compareceu em peso àquele que seria um <strong><strong>do</strong>s</strong> marcos da fundação da<br />

Igreja Católica 6 .<br />

O impera<strong>do</strong>r abriu a reunião.<br />

- Sejam bem-vin<strong><strong>do</strong>s</strong>. Como já devem saber, nosso único propósito é resolver<br />

disputas internas e fortalecer o Cristianismo, para que ele cresça ainda<br />

mais. To<strong><strong>do</strong>s</strong> sabem que há muito venho me esforçan<strong>do</strong> por contribuir com a<br />

expansão desta bela religião. Sou cristão e toda a minha família também o é.<br />

Desde que comecei a governar, tenho da<strong>do</strong> atenção especial às questões cristãs.<br />

Muitas vezes temos depara<strong>do</strong> com opiniões divergentes e temos de sanálas,<br />

para o bem geral. Esse é nosso objetivo aqui, e para alcançá-lo vamos ouvir<br />

a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> bispos que seguia a visão ariana de que Jesus era um envia<strong>do</strong> de<br />

Deus, mas de natureza exclusivamente humana, falou baixinho ao colega a seu<br />

la<strong>do</strong>:<br />

- Será que ele está de fato bem intenciona<strong>do</strong>? Sinto algo suspeito...<br />

O outro respondeu:<br />

- Será? Ele tem da<strong>do</strong> boas contribuições para o Cristianismo. Veja o Edito<br />

de Constantino. Com ele, o <strong>do</strong>mingo ficou defini<strong>do</strong> como o dia de a<strong>do</strong>ração a<br />

Deus. Recorda-se de como estava difícil essa definição? A ala judaica queria o<br />

sába<strong>do</strong>, e os romanos preferiam o <strong>do</strong>mingo.<br />

- Lembro bem como estava fican<strong>do</strong> confuso. Mas igualmente não esqueci<br />

outros comentários que escutei sobre a escolha <strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo.<br />

- Que tipo de comentários?<br />

- Parece que foi escolhi<strong>do</strong> também porque é o dia <strong>do</strong> sol, <strong>do</strong> culto <strong>do</strong> Sol<br />

Invictus, celebra<strong>do</strong> pelos romanos. Por isso desconfio das reais intenções de<br />

Constantino e não me sinto totalmente convenci<strong>do</strong>.<br />

O outro se calou, pensativo. Os discursos começaram. Os primeiros a argumentar<br />

foram os defensores da questão ariana. A princípio teve a palavra o<br />

6 Católico quer dizer, em sua acepção etimológica, universal.<br />

65


próprio Ário, segui<strong>do</strong> de seus discípulos mais devota<strong><strong>do</strong>s</strong>, Eusébio da Nicomédia<br />

e Eusébio de Cesaréia. Depois de eloqüente e entusiasmada exposição <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

arianos, foi a vez <strong><strong>do</strong>s</strong> orto<strong>do</strong>xos. Vários deles falaram, especialmente Atanásio,<br />

diácono novo e companheiro de Alexandre, de Alexandria, luta<strong>do</strong>r vigoroso<br />

contra os arianos; depois Eustáquio de Antióquia e Macário, de Jerusalém.<br />

Não obstante, muito antes de terminarem as discussões, Constantino tinha toma<strong>do</strong><br />

todas as decisões concernentes àquele encontro. Dali sairia a forte Igreja,<br />

comandada indiretamente por ele.<br />

Esgota<strong><strong>do</strong>s</strong> os debates, Constantino propôs uma votação. E to<strong><strong>do</strong>s</strong> foram a<br />

favor da posição orto<strong>do</strong>xa, com exceção de Ário, Eusébio e Eusébio de Cesareia.<br />

A sentença para os perde<strong>do</strong>res foi dramática: os três foram exila<strong><strong>do</strong>s</strong>, as<br />

obras de Ário condenadas à fogueira e to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que porventura as possuíssem<br />

seriam mortos. O direito à liberdade intelectual foi venci<strong>do</strong> pela exigência<br />

de conformidade espiritual da parte <strong><strong>do</strong>s</strong> membros da Igreja à extensa e<br />

crescente organização eclesiástica. O Esta<strong>do</strong> romano concedeu às deliberações<br />

daquele corpo eclesiástico o poder imperial.<br />

Por fim, afastada em definitivo a ameaça<strong>do</strong>ra questão ariana, os participantes<br />

estabeleceram a profissão de fé: os vinte cânones que deveriam nortear a<br />

Igreja a partir daquela data. Nascia, assim, a Igreja Católica Apostólica Romana.<br />

Roma tomou posse <strong>do</strong> Cristianismo e subjugou-o para usá-lo a seu favor,<br />

com a anuência <strong>do</strong> corpo eclesiástico.<br />

Ao final, o impera<strong>do</strong>r decretou:<br />

- Os que resistirem ao divino juízo deste síno<strong>do</strong> podem preparar-se para<br />

um exílio imediato.<br />

Depois de seis anos de disputa, coube às decisões <strong>do</strong> Concilio de Nicéia<br />

manter e perpetuar a unidade da fé. Os éditos posteriores de Constantino visavam<br />

infundir em seus súditos a aversão pelos arianos.<br />

A reunião foi encerrada. Um a um os presentes foram deixan<strong>do</strong> o grande<br />

salão, que ficou frio e vazio. Constantino, que permaneceu por longo tempo<br />

em seu trono, sentiu calafrios a lhe percorrerem o corpo. Obtivera o que desejava,<br />

mas por alguma razão que desconhecia não se sentia feliz. Algo o incomodava.<br />

Ao seu la<strong>do</strong>, Núbio gargalhava satisfeito. Ele, sim, sentia satisfação<br />

total pelos objetivos atingi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Naquela noite tinha consigo uma legião, e ria<br />

afirman<strong>do</strong>:<br />

- Venceremos o Nazareno! Vocês podem acreditar em mim. Vejam a nossa<br />

vitória! De hoje em diante, afundaremos o Cristianismo em <strong>do</strong>gmas e mais<br />

<strong>do</strong>gmas. Ele jamais se erguerá de novo!<br />

E continuava gargalhan<strong>do</strong> espalhafatoso, admira<strong>do</strong> pelos seus segui<strong>do</strong>res.<br />

66


QUATORZE<br />

NÃO DEMOROU PARA que a notícia chegasse aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> de Constância,<br />

que, acamada, recebeu-a com indizível sofrimento:<br />

- O que me diz, Helena? Tem certeza de que isso é verdade?<br />

- Infelizmente sim, senhora.<br />

- Não é possível! Meu irmão não está agin<strong>do</strong> corretamente... Ele deveria<br />

tentar compreender melhor o que se passa junto aos cristãos, e não simplesmente<br />

admitir que <strong>do</strong>gmas e regras estranhos aos ensinos <strong>do</strong> Mestre sejam<br />

inseri<strong><strong>do</strong>s</strong> com essa naturalidade.<br />

Calou-se momentaneamente. Observou o céu pela janela e pediu:<br />

- Abra um pouco a janela, Helena, que o ar está me faltan<strong>do</strong>. Depois de atender<br />

sua senhora, Helena voltou e sentou-se outra<br />

vez ao seu la<strong>do</strong>. Constância suspirou profundamente e disse quase num<br />

gemi<strong>do</strong>:<br />

-Ai, meu Deus...<br />

Assustada, Helena indagou solícita:<br />

- Não se sente bem? Quer que eu chame alguém?<br />

Fez menção de erguer-se, mas Constância segurou-lhe o braço:<br />

- Não, minha filha, não precisa. Estou profundamente entristecida. Sei que<br />

meu irmão está equivoca<strong>do</strong> e se entrega cada vez mais a um fun<strong>do</strong> abismo.<br />

Olhan<strong>do</strong>-a com ternura, Helena admoestou:<br />

- A senhora precisa reagir! Desde que Licínio partiu a tristeza instalou-se<br />

em seu olhar, em sua voz, em seu coração. É necessário que se reequilibre,<br />

minha senhora. Temos muito trabalho na seara de Jesus.<br />

Com os olhos rasos de lágrimas que logo lhe desciam pela face, ela esboçou<br />

ligeiro sorriso, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Querida Helena, tem toda a razão. Sei que nossas tarefas são extensas e<br />

que muitos dependem de nosso trabalho... Mas os golpes têm si<strong>do</strong> duros...<br />

Sem responder, Helena segurou firme as mãos de Constância e apertou-as<br />

carinhosamente entre as suas. A segunda prosseguiu:<br />

- E agora, mais esse golpe que tanto me entristece... Vejo com grande receio<br />

as mudanças que Constantino está impon<strong>do</strong> aos ensinos cristãos. Temo<br />

pelo futuro daqueles que terão somente esses ensinos deturpa<strong><strong>do</strong>s</strong> que começam<br />

a tomar consistência em nosso meio; e agora, ainda mais, sanciona<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo<br />

próprio impera<strong>do</strong>r... E os bispos, os presbíteros, como podem aceitar tamanha<br />

invasão <strong>do</strong> poder romano?<br />

- Acho que até estão contentes...<br />

67


- Mas por quê? Não enten<strong>do</strong>... Inspirada por Angélica, Helena respondeu:<br />

- Muitos haverão de se levantar para lembrar aos cristãos as verdadeiras<br />

lições de Jesus. Não se preocupe.<br />

Reconhecen<strong>do</strong> o tom profético das palavras da serva e amiga, Constância<br />

indagou:<br />

- O que está queren<strong>do</strong> dizer?<br />

- Que não podemos desanimar.<br />

- Mas estão calan<strong>do</strong> Ário e seus segui<strong>do</strong>res, estão calan<strong>do</strong> a verdade...<br />

- Não importa. Alguns poderão se calar, mas outros se levantarão e a verdade<br />

prevalecerá! Temos de confiar em Deus e fazer a nossa parte! A verdade<br />

nunca ficará sufocada, por mais que o tentem. Ela prevalecerá!<br />

Com o corpo enfraqueci<strong>do</strong> pelos sucessivos golpes emocionais que sofrerá,<br />

Constância acomo<strong>do</strong>u-se no travesseiro e suspirou, depois de breve pausa:<br />

- Ah, minha querida Helena, estou cansada. Sinto-me só; tenho apenas você<br />

e meu filho; dói-me a saudade de Licínio, assim como me magoam a distância<br />

e a indiferença de Constantino; mais ainda, seus desman<strong><strong>do</strong>s</strong> e suas decisões<br />

equivocadas com relação ao nosso Mestre. Ele age como se quisesse agradar<br />

aos cristãos, mas está train<strong>do</strong> Jesus, e não sei por que faz isso...<br />

Não conseguiu prosseguir. Envolvida pela <strong>do</strong>r, entregou-se a convulsivo<br />

pranto. Helena trouxe-lhe água e avisou:<br />

- Vou preparar-lhe um chá para que se acalme, senhora. Não pode continuar<br />

a se martirizar assim. Seu corpo está cada vez mais fraco e temo seriamente<br />

pela sua saúde... Agora tente descansar, eu já volto.<br />

Sen<strong>do</strong> tarde da noite e preocupada com a situação de Constância, a serva<br />

logo providenciou a bebida calmante, e sugeriu:<br />

- Tente <strong>do</strong>rmir agora. O chá deverá ajudar, procure descansar. Arruman<strong>do</strong><br />

as cobertas sobre a cama, voltou-se para a dama da<br />

alta sociedade romana e perguntou:<br />

- Quer que eu fique aqui fazen<strong>do</strong>-lhe companhia?<br />

- Não, querida, estou bem. Vá se deitar. Você tem se dedica<strong>do</strong> muito e<br />

também deve descansar. Não insista, por favor. Eu realmente preciso ficar sozinha.<br />

Perceben<strong>do</strong> que seria inútil insistir, Helena foi para seu quarto, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

de Constância, e ajoelhan<strong>do</strong>-se ante o leito suplicou a Jesus ajuda e amparo,<br />

entristecida pelos rumos que Constantino imprimia ao movimento <strong><strong>do</strong>s</strong> cristãos.<br />

Depois, sentin<strong>do</strong>-se suavemente confortada, deitou-se e a<strong>do</strong>rmeceu. Logo seu<br />

corpo espiritual despertou e viu Angélica, que a convi<strong>do</strong>u:<br />

- Temos trabalho a fazer, venha. Constância precisa de toda a nossa ajuda.<br />

68


Ambas foram até o quarto da irmã de Constantino, ainda em dificuldade<br />

para repousar, com um sono leve e angustia<strong>do</strong>. Estenderam as mãos sobre o<br />

seu corpo, e após uma transferência abundante de energia ela se acalmou e<br />

a<strong>do</strong>rmeceu pesadamente. Logo o corpo espiritual de Constância pairava, em<br />

repouso, sobre seu corpo físico. Carinhosamente Angélica a chamou:<br />

- Constância, somos nós, seus amigos, que aqui estamos e precisamos falar-lhe.<br />

Aos poucos, Constância em espírito, ganhou lucidez:<br />

- Não me sinto bem... Estou fraca. Amparan<strong>do</strong>-a, Angélica aconselhou:<br />

- Tome este copo de água e espere um pouco. Deverá auxiliar.<br />

Minutos depois de sorver toda a água, Constância parecia um pouco mais<br />

fortalecida; fitan<strong>do</strong> as amigas disse, entre lágrimas:<br />

- É bom vê-las... Estou precisan<strong>do</strong> de ajuda... Enlaçan<strong>do</strong>-a com ternura de<br />

mãe, Angélica afirmou:<br />

- Por isso estamos aqui, para ajudá-la. Venha conosco.<br />

- Para onde vamos? Vão me levar embora? Está na hora de deixar o corpo<br />

físico?<br />

- Não, querida, ainda não. Tem muito trabalho a fazer e sua presença na<br />

Terra é por ora indispensável. Os cristãos precisam que lhes infunda fé e esperança<br />

para ajudá-los a não esquecer o belo e simples Evangelho de Jesus. Vamos<br />

buscar auxílio para fortalecê-la na seqüência de sua tarefa.<br />

Seguran<strong>do</strong> Constância pela mão, em alguns minutos estavam diante de um<br />

belíssimo vale, cheio de lindas flores, pássaros voan<strong>do</strong> por toda parte e lin<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

animais corren<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> a outro em meio à vegetação. Seguiram por um<br />

caminho cerca<strong>do</strong> de árvores fron<strong><strong>do</strong>s</strong>as. Mais adiante, surgia uma cidade luminosa,<br />

e melodiosa música soava pelo ar. À medida que ouvia a música e sentia<br />

as suaves e harmoniosas vibrações <strong>do</strong> ambiente, Constância sentia-se mais<br />

forte. Angélica indagou:<br />

- Sabe onde estamos?<br />

- Não me lembro. Sei que conheço este lugar, ele me é tão familiar... Contu<strong>do</strong>,<br />

não consigo lembrar. Só sei que me sinto muito bem aqui.<br />

- Este é o seu lar, Constância.<br />

A dama romana fitou-a, buscan<strong>do</strong> na memória aquilo que Angélica lhe dizia,<br />

e por fim sorriu feliz como há muito não fazia.<br />

- E claro! Meu lar... Como poderia esquecer tão abençoada morada espiritual?<br />

Caminharam animadas. Constância, recordan<strong>do</strong>-se cada vez mais de seu<br />

lugar de origem, recobrava mais e mais as energias. Chegaram em uma casa<br />

simpática, rodeada por lin<strong><strong>do</strong>s</strong> jardins. A construção era sóbria e ampla, com<br />

69


varandas circundan<strong>do</strong>-a. Assim que se aproximaram, uma simpática senhora<br />

apareceu na porta e sau<strong>do</strong>u:<br />

- Que alegria, Constância chegou!<br />

Foram recebidas na bela residência, cujo interior também era a<strong>do</strong>rna<strong>do</strong><br />

com objetos de arte de suave beleza. Constância reconhecia cada objeto, cada<br />

quadro, cada móvel, lembran<strong>do</strong>-se com clareza de sua antiga casa.<br />

Sentaram-se, acolhidas por amigos devota<strong><strong>do</strong>s</strong>. A conversa corria animada<br />

quan<strong>do</strong> Ernesto chegou, feliz, e abraçan<strong>do</strong> a visitante falou:<br />

- Que bom que conseguiram trazê-la hoje. Há dias estamos tentan<strong>do</strong>, mas<br />

seu esta<strong>do</strong> físico não permitia; foi preciso fortalecê-la primeiro.<br />

Enquanto conversavam, música sublime ecoava pelos ares. Aquele mun<strong>do</strong><br />

eleva<strong>do</strong> e belo era o lar de origem de Constância. A palestra continuou por<br />

longo tempo, e Ernesto ia relembran<strong>do</strong> a trabalha<strong>do</strong>ra da Terra de seus compromissos<br />

e desejos antes de retomar o corpo físico que ora ocupava no planeta.<br />

Com a memória aclarada ela disse, ao final:<br />

- Estou envergonhada, Ernesto. Como pude deixar-me abater tanto?<br />

- Não se sinta envergonhada, Constância. O torpor <strong>do</strong> esquecimento que<br />

nos <strong>do</strong>mina no orbe representa grande desafio e acentua<strong>do</strong> perigo. Disso, to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

sabemos. Mesmo com seu nível de elevação e consciência, estar mergulhada<br />

no corpo denso da Terra envolve riscos. Por isso, estamos aqui para ajudar.<br />

Reavivar suas lembranças fez-se imperioso.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, ela disse:<br />

- Agora que me recor<strong>do</strong> vivamente de tu<strong>do</strong>, estou pronta para retornar.<br />

Mais <strong>do</strong> que nunca, os compromissos que me levaram ao planeta chamam por<br />

mim.<br />

Comovida, ela disse, fitan<strong>do</strong> seus mais <strong>do</strong>ces afetos:<br />

- Agradeço-lhes por não me aban<strong>do</strong>narem nunca, mesmo nos meus momentos<br />

de fraqueza. Muito obrigada. Agora, preciso retornar.<br />

Helena e Angélica acercaram-se dela, e a segunda disse:<br />

- Pois então vamos, que o dia está prestes a raiar na Terra. Abraçan<strong>do</strong> os<br />

amigos um a um, Constância se despediu e partiu<br />

com as companheiras. Assim que retornaram, ela acomo<strong>do</strong>u-se sobre seu<br />

corpo físico. Olhan<strong>do</strong> com carinho aquelas que eram suas irmãs de longas caminhadas<br />

sobre a Terra em outros tempos, comentou:<br />

- O adensamento da matéria chega a ser <strong>do</strong>loroso, porém não vou mais fraquejar.<br />

Estou aqui para trabalhar e é isso o que vou fazer.<br />

Após abraçar as duas com carinho, ajustou-se melhor ao corpo físico. As<br />

outras impuseram-lhe novamente as mãos, envolven<strong>do</strong>-a em intensa transfusão<br />

70


de energias. Logo o dia amanheceu e raios de sol entravam pelas venezianas<br />

da ampla janela.<br />

Constância despertou, sentou-se na cama e relembrou aquela experiência<br />

maravilhosa que poderia ser tomada por um sonho. Então balbuciou:<br />

- É claro que não foi um sonho.<br />

Antes que terminasse, Helena entrou no aposento e disse:<br />

- Como se sente, senhora?<br />

Constância levantou-se e abraçou Helena com ternura, sorrin<strong>do</strong> ao dizer:<br />

- Ora, minha irmã, não me chame de senhora nunca mais... Sua humildade<br />

me comove.<br />

Helena, que também mantinha total lembrança da vivência espiritual que<br />

ambas haviam partilha<strong>do</strong>, sorriu e disse, limpan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Como Jesus é bom! Sempre nos envia ajuda...<br />

A partir daí Constância entregou-se ao trabalho pelo Evangelho de maneira<br />

incansável. Esforçou-se por esquecer as próprias <strong>do</strong>res e inquietações e lançou-se<br />

ao serviço em favor <strong><strong>do</strong>s</strong> necessita<strong><strong>do</strong>s</strong>. Sua primeira atitude foi procurar<br />

alguns amigos mais próximos e propor-lhes:<br />

- Não me sinto bem na igreja de Tessalônica. Se isso já não acontecia antes,<br />

agora não consigo ficar lá dentro. Não reconheço os ensinos de Jesus nas<br />

palavras <strong>do</strong> bispo; elas me soam vazias.<br />

- Sinto da mesma forma - concor<strong>do</strong>u Helena.<br />

- Então vamos começar nossa própria Igreja. Olhan<strong>do</strong>-a com estranheza,<br />

Juliano indagou:<br />

- Será mesmo o melhor a fazer, mãe? Sem titubear, ela prosseguiu:<br />

- Sim, meu filho. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, não posso aceitar o fato de que estarmos<br />

proibi<strong><strong>do</strong>s</strong> de receber as orientações <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos irmãos espirituais. Isso é de<br />

grande importância para podermos saber que decisões tomar nos momentos<br />

mais difíceis, ou diante de um grande desafio. Mas estamos proibi<strong><strong>do</strong>s</strong>... É lamentável,<br />

e precisamos a<strong>do</strong>tar uma atitude firme.<br />

- Mãe, você sabe que, por ordem de Constantino, qualquer um que ensine<br />

de mo<strong>do</strong> diferente <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>gmas defini<strong><strong>do</strong>s</strong> em Nicéia poderá pagar até com a<br />

morte!<br />

- Vamos confiar em Deus e fazer nossa parte. Se isso tiver de ocorrer, é<br />

porque é necessário. Olhan<strong>do</strong> para Helena, perguntou:<br />

- O que acha, amiga?<br />

- Temos como fazer. Muitos de nossos irmãos aguardam essa oportunidade,<br />

pois estão igualmente insatisfeitos com os rumos que a Igreja vem toman<strong>do</strong>.<br />

- Pois então, está decidi<strong>do</strong>. Vou encontrar um bom lugar e aviso a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Não quero mais perder tempo.<br />

71


Em uma semana um pequeno grupo de <strong>do</strong>ze pessoas chegava para a primeira<br />

reunião. Recebi<strong><strong>do</strong>s</strong> por Helena, foram se acomodan<strong>do</strong>. Eliseu indagou:<br />

- Onde está Constância? Ela não vem?<br />

- Já deve estar chegan<strong>do</strong>. E nos traz uma grata surpresa.<br />

- Que surpresa será essa? - Eliseu estava curioso.<br />

- Eles logo estarão aqui.<br />

- Eles? Então se trata de uma pessoa?<br />

Antes que Helena pudesse responder, Constância apareceu à porta; sorridente,<br />

falou enquanto entrava:<br />

- Que a paz de Jesus envolva a to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Trouxe uma surpresa... Assim que<br />

ela entrou, viu-se no vão da porta a figura suave de<br />

Ário, que entrou em seguida e também cumprimentou:<br />

- Que a paz de Jesus esteja conosco, irmãos.<br />

Doces emoções envolveram os presentes. Ário cumprimentou um por um,<br />

osculan<strong>do</strong>-lhes as mãos com genuína humildade. Depois, sentou-se ao la<strong>do</strong> de<br />

Constância, na frente da sala, diante de to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ela ergueu-se e disse:<br />

- Meus irmãos, boa noite. É com muita alegria que estamos aqui nesta noite<br />

para iniciar uma nova Casa de Jesus. Neste lar nos encontraremos para orar<br />

e estudar o Evangelho, bem como compartilhar os desafios da jornada terrena.<br />

Vamos também ouvir nossos irmãos espirituais, como temos feito desde que<br />

Jesus voltou ao seu lar luminoso nas dimensões mais elevadas. E é aqui que<br />

receberemos, ainda, to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que necessitem de socorro e amparo, sejam<br />

de caráter material ou espiritual. Para dar início às nossas modestas atividades,<br />

convidamos o bispo Ário para estar conosco. E ele, gentilmente, aceitou. A ele<br />

solicitamos, então, que faça a prece de abertura, dan<strong>do</strong> por iniciada nossa reunião...<br />

O bispo Ário, coberto por suaves luzes que desciam sobre ele e depois se<br />

expandiam para to<strong>do</strong> o grupo, pronunciou fervorosa oração, rogan<strong>do</strong> as bênçãos<br />

<strong>do</strong> Mais Alto para aquela tarefa que se iniciava na seara de Jesus. A comoção<br />

tomou conta de to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Não tar<strong>do</strong>u e a <strong>do</strong>ce Angélica se materializou<br />

entre eles, diante <strong><strong>do</strong>s</strong> olhos <strong><strong>do</strong>s</strong> presentes. Dela emanava intensa luz cumprimentou<br />

a to<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Meus irmãos ama<strong><strong>do</strong>s</strong>, nós, <strong>do</strong> plano espiritual, estamos felizes pela iniciativa<br />

a que estão se dedican<strong>do</strong>. E para nós motivo de grande júbilo. Manter<br />

acesa sobre a Terra a chama <strong>do</strong> amor ao próximo, da humildade, da sinceridade<br />

de propósitos e <strong>do</strong> esforço de auto aperfeiçoamento é o caminho para preservarmos<br />

a pureza <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos <strong>do</strong> Evangelho <strong>do</strong> Mestre Jesus. Abracem este<br />

propósito com determinação, pois muitos serão os obstáculos que enfrentarão.<br />

Não desanimem, estaremos sempre com vocês.<br />

72


Várias outras entidades espirituais podiam ser vistas pelos presentes, emitin<strong>do</strong><br />

muita luz, que agora banhava toda a pequena sala onde se abrigava o<br />

grupo. Os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> espaço, vin<strong><strong>do</strong>s</strong> em nome de Jesus, impunham as<br />

mãos sobre os encarna<strong><strong>do</strong>s</strong> e lhes infundiam energias físicas e perispirituais,<br />

enchen<strong>do</strong>-os de esperança e confiança. Depois, foram desaparecen<strong>do</strong>, um a<br />

um. Por fim, Angélica se despediu:<br />

- Permaneçam liga<strong><strong>do</strong>s</strong> aos ensinamentos de Jesus, não apenas conversan<strong>do</strong><br />

sobre eles, mas, como fiéis servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mestre, seguin<strong>do</strong> seus exemplos na<br />

vida de cada dia. Fiquem em paz.<br />

Depois que Angélica desmaterializou-se, Constância e Ário continuavam a<br />

vê-la, agora no plano espiritual. Ele fez sinal para que Constância assumisse<br />

novamente, mas ela, <strong>do</strong>minada pela emoção, pediu:<br />

- Não posso... Poderia conduzir a reunião de hoje, for favor? Ário levantou-se<br />

e falou, sob forte envolvimento espiritual, das<br />

belezas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> espiritual evoluí<strong>do</strong>, e da maravilha que representava para<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens a possibilidade de estarem em constante contato com os<br />

espíritos, para serem por eles orienta<strong><strong>do</strong>s</strong> e dirigi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Lembrou, ainda, que outros<br />

tipos de espíritos rondam os homens e que estar com Jesus sempre é fundamental<br />

para a defesa contra sua influência. Concluiu a bela explanação lembran<strong>do</strong><br />

as palavras de Jesus:<br />

- "Quem não é por nós, é contra nós." Sigamos Jesus com to<strong>do</strong> o nosso coração.<br />

Estejamos dispostos a viver seus ensinos e a seguir-lhe os exemplos. Ele<br />

estará sempre conosco, conforme prometeu, "até a consumação <strong><strong>do</strong>s</strong> séculos".<br />

Depois de encerrada a reunião, permaneceram ainda longo tempo em elevada<br />

conversação, escutan<strong>do</strong> de Ário as informações sobre os últimos acontecimentos<br />

de Nicéia e a iminente realidade de seu exílio. Ele os orientou sobre<br />

diversas atividades que passariam a executar na Casa e sugeriu:<br />

- Façam desta mais uma Casa <strong>do</strong> Caminho e recebam to<strong><strong>do</strong>s</strong> os necessita<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

na luta terrena.<br />

Antes de sair, entregou vários de seus textos a Constância, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Eis aqui os pergaminhos que me solicitou. São diversos textos que grafei<br />

sobre o que tenho aprendi<strong>do</strong> e refleti<strong>do</strong> sobre o Evangelho, sobre Jesus e sobre<br />

a natureza <strong>do</strong> Mestre. Tenham cuida<strong>do</strong>, pois Constantino proibiu que sejam<br />

li<strong><strong>do</strong>s</strong>. Tenho apenas esta cópia e mais uma, que está devidamente guardada.<br />

Façam bom uso.<br />

Seguran<strong>do</strong> os textos com cuida<strong>do</strong>, Constância respondeu:<br />

- Vamos cuidar muito bem, queri<strong>do</strong> amigo. Muito obrigada pela sua presença<br />

entre nós nesta noite e pelos seus ensinamentos.<br />

Olhan<strong>do</strong>-a com ternura, ele se dirigiu a to<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

73


- Queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, não se desviem da simplicidade <strong>do</strong> Evangelho. Meus<br />

dias na Terra terminarão em breve. Fortaleçam-se no estu<strong>do</strong>, na oração e no<br />

trabalho em favor <strong>do</strong> bem comum. Amem-se uns aos outros e ensinem o Evangelho<br />

com o exemplo de suas vidas.<br />

Despediram-se com um abraço, retornan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> aos seus lares. A pequena<br />

casa brilhava com grande intensidade, e embora não pudesse ser registra<strong>do</strong><br />

pelos homens da Terra, seu brilho era visível <strong>do</strong> espaço. Da colônia espiritual<br />

em que se encontrava, Ernesto vibrou de alegria:<br />

- Mais um ponto de luz sobre a Terra! Graças a Deus! Enquanto tantas luzes<br />

se apagam rapidamente, algumas se acendem e outras lutam por brilhar<br />

apesar <strong><strong>do</strong>s</strong> desman<strong><strong>do</strong>s</strong> eclesiásticos. Que Jesus nos abençoe e ajude!<br />

QUINZE<br />

COM o PODER IMPERIAL recebi<strong>do</strong>, o corpo eclesiástico <strong><strong>do</strong>s</strong> bispos orto<strong>do</strong>xos<br />

ganhou grande força. Aqueles que não aceitavam as novas orientações e insistiam<br />

em seguir as idéias de Ário eram persegui<strong><strong>do</strong>s</strong>, humilha<strong><strong>do</strong>s</strong>, exila<strong><strong>do</strong>s</strong>. Todas<br />

as obras escritas por ele que encontraram foram queimadas, inclusive as <strong>do</strong><br />

próprio Ário. A única que restou foi a que estava em poder de Constância, que<br />

foi poupada pelo impera<strong>do</strong>r. Ele fez vistas grossas às reuniões que a irmã liderava.<br />

Quan<strong>do</strong> o bispo Ósio lhe cobrava uma atitude, argumentava:<br />

- Por que se incomodam tanto? O que faz Constância de mal? Aquela pequena<br />

casa recebe <strong>do</strong>entes e pessoas famintas e tornou-se a razão de viver de<br />

minha irmã; não quero que a impeçam. Deixem-na viver. Ela já sofreu demais;<br />

não quero que a aborreçam.<br />

Osio se irritava com a atitude <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, e não obstante usasse to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />

argumentos de que dispunha, não conseguiu mover em nada as disposições de<br />

Constantino que, ao contrário, de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> visitava a Casa <strong>do</strong> Caminho<br />

que a irmã coordenava, deixan<strong>do</strong>-a profundamente feliz.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, Fausta enchia-se cada vez mais de mágoa e ressentimento<br />

pelo mari<strong>do</strong>, e envolvida por Licínio, que não a deixava um só minuto, alimentan<strong>do</strong>-se<br />

das energias deletérias que o ódio dela gerava, sentia seu rancor aumentar<br />

a cada dia.<br />

Naquela manhã ela fazia o desjejum em companhia <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, determinada<br />

a falar-lhe da necessidade de dar maior atenção aos filhos, quan<strong>do</strong> Crispus<br />

entrou na sala, satisfeito, informan<strong>do</strong>:<br />

74


- Pai, acabamos de fechar uma fantástica negociação com os persas e compramos<br />

uma frota de navios inteiramente nova. Vão entregá-la em cerca de um<br />

ano, e poderei acompanhar pessoalmente o acabamento das naus. Era isso que<br />

você queria?<br />

Satisfeito, Constantino convi<strong>do</strong>u-o:<br />

- Sim, era isso mesmo. Agora venha, sente-se ao meu la<strong>do</strong> para um desjejum<br />

conosco.<br />

- Eu já tomei...<br />

- Então não me prive da sua companhia. Venha, sente-se ao meu la<strong>do</strong>,<br />

meu filho. Estou orgulhoso! Você me lembra a mim mesmo, na sua idade...<br />

Fausta tinha os olhos falsean<strong>do</strong> de ódio, e naquele momento decidiu, incentivada<br />

por Licínio, que tomaria uma atitude firme contra o jovem, ou ele<br />

teria toda a atenção <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e seria seu sucessor natural. Ela não poderia<br />

deixar isso acontecer. Licínio lhe soprava ao ouvi<strong>do</strong>:<br />

- Um de seus filhos deve ser o sucessor de Constantino, e não esse Crispus,<br />

arrogante como o pai.<br />

Inconformada e profundamente irritada, ela não se conteve. Erguen<strong>do</strong>-se,<br />

olhou para o impera<strong>do</strong>r e comunicou:<br />

- Preciso sair agora, meu senhor. Ele, surpreso, comentou:<br />

- Mas ainda não terminou de comer, e disse que queria falar-me.<br />

- O apetite me deixou, e igualmente o ânimo de conversar. Não me sinto<br />

bem, preciso retirar-me, com o seu consentimento, senhor.<br />

- Você o tem.<br />

E permaneceram os <strong>do</strong>is em longa conversação de teor militar. Já em seus<br />

aposentos Fausta desatou, colérica, a gritar impropérios contra o impera<strong>do</strong>r;<br />

chegou mesmo a assustar sua serviçal, acostumada a suas crises de raiva constantes.<br />

Depois de esbravejar, atirar objetos e se descabelar no acesso de raiva,<br />

sentou-se diante <strong>do</strong> espelho e observou-se exausta. Licínio, satisfeito pelos<br />

resulta<strong><strong>do</strong>s</strong> que obtinha, insistia tenaz nas provocações. Aproveitan<strong>do</strong> o momento<br />

de aparente calmaria, aproximou-se e sussurrou-lhe:<br />

- Você está fican<strong>do</strong> velha. Seus filhos estão crescen<strong>do</strong> e, se não tomar uma<br />

atitude agora, acabará por perder o mari<strong>do</strong> e seus filhos ficarão sem o trono.<br />

Olhe para você. Acha que ele não vai trocá-la em breve por uma mulher mais<br />

jovem e bela, como fez ao deixar a primeira esposa por você? Preste atenção.<br />

Você precisa fazer alguma coisa, e logo. Acabe com Crispus! Tire-o de seu<br />

caminho o quanto antes. Não perca mais tempo.<br />

Totalmente envolvida pelas sugestões de Licínio, que tomava por suas, ergueu-se<br />

resoluta.<br />

75


- É isso mesmo. Chega de gritos e choro. Vou tomar a atitude que já deveria<br />

ter toma<strong>do</strong>! Vou afastar Crispus de meu caminho, ah, se vou!<br />

Paran<strong>do</strong> por um instante, pensou em voz alta: - Mas como o farei? Outra<br />

vez Licínio sussurrou:<br />

- Não se preocupe. Tenho um plano perfeito para você destruir o pai e o filho<br />

ao mesmo tempo.<br />

Ela acatou de imediato a sugestão.<br />

- Logo terei uma idéia brilhante para acabar com os <strong>do</strong>is... Licínio, sorrin<strong>do</strong><br />

sarcasticamente, murmurou:<br />

- Como é estúpida e fraca...<br />

Dias depois, Constantino embarcava com Crispus para acompanhar de perto<br />

a construção das naus. Nutria profunda admiração e grande paixão pelo mar<br />

e por forças bélicas marítimas. Apreciava as armadas gigantescas, com seus<br />

aparatos bélicos e suas velas enormes, pesadas; tu<strong>do</strong> isso o fascinava.<br />

O impera<strong>do</strong>r caminhava anima<strong>do</strong> pelo corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> imenso palácio de Bizâncio,<br />

quan<strong>do</strong> Fausta o chamou, desejan<strong>do</strong> despedir-se <strong>do</strong> esposo.<br />

- Então está de partida, meu senhor?<br />

- Já havia manda<strong>do</strong> lhe avisar.<br />

- Eu sei. Estou aqui para despedir-me e desejar-lhe uma viagem segura.<br />

- Eu terei, obriga<strong>do</strong>.<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se mais <strong>do</strong> esposo, ela sussurrou-lhe:<br />

- Tenha cuida<strong>do</strong>, meu senhor, muitos olhos o espreitam, intentan<strong>do</strong> destruir-lhe<br />

a paz e a alegria. São seus inimigos mesmo aqueles que comem com o<br />

senhor!<br />

Assusta<strong>do</strong>, o impera<strong>do</strong>r afastou-se um pouco e indagou:<br />

- O que diz? Ela insistiu:<br />

- Peço-lhe tão-somente que tenha cuida<strong>do</strong>. Aqueles em quem confia poderão<br />

traí-lo, meu impera<strong>do</strong>r...<br />

Seguran<strong>do</strong>-a pelo braço com firmeza, ele indagou novamente, perturba<strong>do</strong>:<br />

- Explique o que está tentan<strong>do</strong> dizer. Fale de uma vez! O que está insinuan<strong>do</strong>?<br />

Sabe alguma coisa? O quê?<br />

Muito suave e simulan<strong>do</strong> preocupação, ela comentou:<br />

- Os servos dizem muitas coisas por estes corre<strong>do</strong>res, senhor. O vaivém de<br />

informações é incessante... Diz-se que Crispus alardeia aos ventos que deseja<br />

sucedê-lo no trono <strong>do</strong> império romano. Fala-se mesmo que já está prepara<strong>do</strong><br />

para tal, quan<strong>do</strong> a hora chegar.<br />

Fitan<strong>do</strong>-a incrédulo, ele comentou:<br />

- E ele será, sem dúvida, meu sucessor. Que tem isso?<br />

76


- Nada, meu senhor, se ele não dissesse também que sabe mais que o impera<strong>do</strong>r<br />

e fará melhor governo <strong>do</strong> que vossa majestade.<br />

Imediatamente o sangue sumiu <strong>do</strong> rosto de Constantino. Velhos me<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

resquício das antigas disputas vividas, acenderam-se-lhe na alma e inexprimível<br />

angústia apossou-se dele. De imediato, Licínio percebeu-lhe a reação e viu<br />

que as palavras da consorte lhe haviam atea<strong>do</strong> fogo ao coração. Então cochichou<br />

aos seus ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Ele quer tomar-lhe o trono, é isso o que deseja. Vai fazer de tu<strong>do</strong> para usurpar-lhe<br />

o poder. É seu inimigo e está prestes a traí-lo. Prepara um grande<br />

complô para tirá-lo <strong>do</strong> trono.<br />

Esforçan<strong>do</strong>-se ao máximo para controlar seus impulsos, Constantino enfim<br />

respondeu a Fausta:<br />

- Assim que regressarmos iremos to<strong><strong>do</strong>s</strong> a Roma para celebrar os vinte anos<br />

de meu reina<strong>do</strong>, de meu <strong>do</strong>mínio, de meu poder.<br />

- Sim, meu senhor, sei que se prepara em Roma uma grande festa a ser<br />

dada em sua honrosa homenagem. Deseja que eu vá até lá para acompanhar os<br />

preparativos?<br />

- Não vejo necessidade, apenas esteja pronta.<br />

- Posso ir, se desejar, meu senhor.<br />

- Pois então vá, Fausta, e esteja certa de que tu<strong>do</strong>, absolutamente tu<strong>do</strong>, esteja<br />

perfeito. Ao retornar, logo irei para Roma.<br />

- Farei o melhor ao meu alcance... Afinal, são vinte anos de glória que precisam<br />

ser celebra<strong><strong>do</strong>s</strong>!<br />

Despediram-se. Marco, que ouvira a conversa a meia-distância, aproximou-se<br />

<strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e comentou:<br />

- Acha que ela falou a verdade?<br />

- Algo me diz que é possível. Vamos ficar atentos.<br />

- Não creio que Crispus seja capaz de uma traição dessas, senhor.<br />

- Meu caro Marco, sua lealdade e sua pureza o impedem de enxergar com<br />

clareza a alma humana, não é mesmo?<br />

Marco se manteve cala<strong>do</strong> e Constantino prosseguiu, instiga<strong>do</strong> pelas palavras<br />

de Licínio, que permanecia ao seu re<strong>do</strong>r, repetin<strong>do</strong>-lhe impropérios sobre<br />

o filho.<br />

- To<strong>do</strong> homem é capaz de tu<strong>do</strong> pelo poder. Crispus já me tem chama<strong>do</strong> a<br />

atenção há muito tempo, tentan<strong>do</strong> sempre se igualar a mim.<br />

- Mas ele é seu filho; cresceu bem perto, assistin<strong>do</strong> à sua trajetória; é natural<br />

que nutra admiração pelo pai e que deseje imitá-lo.<br />

Fitan<strong>do</strong> o amigo, ele quase se deixou envolver por suas palavras, mas Licínio<br />

argumentou:<br />

77


- Marco é ingênuo demais e sua submissão o impede de enxergar com clareza;<br />

não é um bom juiz para esse assunto. Melhor nem discutir com ele, pois<br />

nada poderá auxiliar nesta questão.<br />

Constantino calou-se por longo tempo. Quan<strong>do</strong> afinal estavam perto da<br />

embarcação que utilizariam para chegar ao porto, onde eram construídas as<br />

naus romanas, disse a Marco:<br />

- Não comente nada com ninguém sobre o que conversamos no caminho.<br />

Fique de olhos e ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> bem abertos e, ao menor sinal, me avise. Farei o<br />

mesmo.<br />

- Sim, meu senhor.<br />

Entraram. Durante toda a viagem, Licínio buscou oportunidades de confundir<br />

as situações e, liga<strong>do</strong> à mente de Constantino, fazia-o enxergar distorci<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os fatos. Assim, qualquer gesto <strong>do</strong> filho ele interpretava por provocação;<br />

começou a instalar-se um sentimento de irritação recíproca entre Constantino<br />

e Crispus, sem motivo aparente. A irritação passou depressa à fúria, e<br />

antes de atracarem no porto de destino os <strong>do</strong>is tiveram exasperada discussão e<br />

Constantino decidiu retornar. Ofendi<strong>do</strong>, Crispus não podia compreender o que<br />

se passava com o pai, que de uma hora para a outra passou a tratá-lo com desconfiança<br />

e azedume, como se ele o houvesse ofendi<strong>do</strong> seriamente. Licínio<br />

vibrava. Conseguira mais um sucesso contra o inimigo.<br />

DEZESSEIS<br />

DEPOIS DA DISCUSSÃO, pai e filho não se falaram mais. Amargura<strong>do</strong>, Crispus<br />

estava decidi<strong>do</strong> a não participar das festividades em Roma. No entanto,<br />

Marco, sabe<strong>do</strong>r de sua intenção, procurou-o em segre<strong>do</strong> e argumentou:<br />

- Acho um erro você não ir. Será um momento importante e marcante para<br />

seu pai. Mesmo que agora esteja magoa<strong>do</strong> com ele, se for, encontrarão um<br />

meio de resolver o problema. Se não for, ele poderá interpretar de mo<strong>do</strong> erra<strong>do</strong><br />

e a distância entre vocês se aprofundará ainda mais.<br />

O rapaz comentou, aborreci<strong>do</strong>:<br />

- Não sei, Marco. Não posso compreender meu pai. O que aconteceu com<br />

ele?<br />

Marco queria contar ao rapaz das suspeitas que o pai acalentava no coração;<br />

todavia, como prometera ao impera<strong>do</strong>r que não o faria, limitou-se a defender<br />

Constantino.<br />

78


-Tente aceitar seu pai como é: um general que já realizou muito pelo império<br />

e que merece o respeito de to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós. Se um dia você for o impera<strong>do</strong>r, desejará<br />

o mesmo de seus servi<strong>do</strong>res e até de seus filhos.<br />

Crispus não respondeu, mas as palavras de Marco calaram-lhe fun<strong>do</strong>. Marco<br />

despediu-se e saiu.<br />

- Pense bem no que eu lhe disse. Crispus balançou a cabeça e respondeu:<br />

- Vou pensar.<br />

* * *<br />

A cidade estava enfeitada para receber o grande e único impera<strong>do</strong>r Romano.<br />

Constantino era aclama<strong>do</strong> pelo povo, e especialmente os cristãos de Roma<br />

o aguardavam com verdadeiro sentimento de gratidão. Ele representava a libertação<br />

para eles: libertação <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, da insegurança e da <strong>do</strong>r. Era a figura<br />

que restituíra a tranqüilidade aos lares que tinham o Cristianismo como religião.<br />

Devolvera a dignidade e a paz aos segui<strong>do</strong>res de Cristo e ao clero em geral.<br />

To<strong><strong>do</strong>s</strong> o aclamavam como o grande César.<br />

Os festejos transcorriam conforme espera<strong>do</strong>. Muitas homenagens e apresentações<br />

artísticas aconteciam em diversos lugares. Quanto a Constantino,<br />

embora usufruísse com entusiasmo aquelas demonstrações de respeito e até de<br />

a<strong>do</strong>ração, sentia profunda insatisfação íntima. Licínio não o aban<strong>do</strong>nara e o<br />

perturbava dia e noite, insuflan<strong>do</strong>-o contra o filho.<br />

Naquela noite o ar estava perfuma<strong>do</strong> com o aroma <strong><strong>do</strong>s</strong> pratos prepara<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

em tributo ao impera<strong>do</strong>r. Comidas exóticas de regiões distantes e as iguarias<br />

prediletas <strong>do</strong> poderoso César também foram oferecidas. Belas mulheres enfeitavam<br />

a festa, usan<strong>do</strong> suas mais lindas vestes. Constantino entrou no grande<br />

salão onde to<strong><strong>do</strong>s</strong> o aguardavam para o banquete mais importante que marcaria<br />

as comemorações. Sentou-se ao la<strong>do</strong> da esposa, que logo indagou:<br />

- Está tu<strong>do</strong> a seu contento, meu senhor?<br />

- Sim, tu<strong>do</strong> perfeito.<br />

Ela sorriu satisfeita e comentou:<br />

- Pena que Crispus insista em não o prestigiar. Todas as autoridades romanas<br />

estão aqui, e inclusive os impera<strong>do</strong>res das regiões vizinhas nos enviaram<br />

seus representantes ou vieram pessoalmente. To<strong><strong>do</strong>s</strong> reconhecem seu poderio,<br />

menos...<br />

- Cale-se, Fausta. Estou fican<strong>do</strong> cansa<strong>do</strong> de suas provocações.<br />

- Minhas provocações?!<br />

- Já basta!<br />

Ela ia responder, mas observou que Crispus acabava de entrar no grande<br />

salão e imediatamente foi nota<strong>do</strong> pelo pai e por aqueles que já sabiam <strong>do</strong> de-<br />

79


sentendimento entre os <strong>do</strong>is. O rapaz se acomo<strong>do</strong>u junto de mais alguns homens,<br />

e Fausta aproveitou para dizer:<br />

- Eu ficaria atenta, se fosse o senhor. Ele está com seus homens aqui e outros<br />

devem estar lá fora. De certo planeja alguma coisa...<br />

Dessa fez foi Marco quem pediu que ela parasse:<br />

- Agora chega, senhora, deixe que o impera<strong>do</strong>r aproveite a noite especial<br />

em sua homenagem.<br />

Interrompida sem esperar, ela se calou, evidentemente contrariada. Ver<br />

Crispus adentrar o salão a confundiu e incomo<strong>do</strong>u. Não sabia o que fazer.<br />

Era tarde quan<strong>do</strong> o impera<strong>do</strong>r despediu-se de seus convida<strong><strong>do</strong>s</strong> e se retirou.<br />

Antes, porém, pediu a Marco:<br />

- Quero falar com Crispus. Avise-o que me encontre imediatamente para<br />

uma palestra a sós.<br />

Marco argumentou:<br />

- É tarde, senhor; to<strong><strong>do</strong>s</strong> estão muito cansa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Não seria melhor promovermos<br />

esse encontro amanhã?<br />

- Não. Agora.<br />

A voz de Constantino não permitia nenhuma contra-argumentação e Marco<br />

obedeceu. Localizou Crispus e logo os <strong>do</strong>is estavam frente a frente. O rapaz<br />

disse, em tom sincero:<br />

- Vim para homenageá-lo, meu pai. Apesar de nossas diferenças, e antes de<br />

tu<strong>do</strong>, você é meu impera<strong>do</strong>r.<br />

- Não seja cínico, rapaz. Sei que me deseja ver pelas costas.<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

- De seu desejo de ocupar meu lugar.<br />

- Quero ser seu sucessor, e isso nunca escondi, mas quan<strong>do</strong> chegar a hora.<br />

- Que deseja ver abreviada o mais possível, não é mesmo?<br />

- O que está insinuan<strong>do</strong>, meu pai?<br />

- Que quer ver-me morto. Confesse!<br />

- Isso é uma calúnia das mais absurdas! Quem foi que lhe... Completamente<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por Licínio, Constantino agarrou o filho pelo pescoço e insistia:<br />

- Confesse, confesse seu desejo de matar-me! Assusta<strong>do</strong>, o rapaz pedia:<br />

- Pare, pai, por favor! O que está fazen<strong>do</strong>?<br />

E Constantino, sem medir a força que colocava nos braços, continuava:<br />

- Vamos, confesse seu desejo descontrola<strong>do</strong> de usurpar-me o poder. Eu sei<br />

de tu<strong>do</strong>, Fausta abriu-me os olhos.<br />

-Pai... Por favor...<br />

A voz de Crispus já quase não lhe saía da garganta.<br />

80


- Ninguém me tirará o que conquistei, está entenden<strong>do</strong>? Este império é<br />

meu! Eu o conquistei pedaço por pedaço e ele me pertence! Só a mim...<br />

Sem conseguir respirar, o rapaz desfalecia pouco a pouco e disse, num esforço<br />

derradeiro:<br />

- Ela... o ... envenenou... contra... mim...<br />

Licínio, às gargalhadas, observava o pai consumar o ato homicida. Crispus<br />

desfaleceu e Constantino aban<strong>do</strong>nou-o ao chão, ao mesmo tempo em que o<br />

olhava aterra<strong>do</strong> pelo que acabara de fazer. As últimas palavras <strong>do</strong> filho lhe<br />

suscitaram de imediato à lembrança a conversa que tivera com Fausta antes da<br />

viagem à Pérsia. Teria si<strong>do</strong> engana<strong>do</strong> por ela? Observou o filho sem respirar e<br />

gritou, sentin<strong>do</strong> profunda <strong>do</strong>r no peito:<br />

- O que foi que eu fiz?!<br />

Marco entrou depressa na sala, constatan<strong>do</strong> o que ocorrera.<br />

Rapidamente tirou o impera<strong>do</strong>r dali e levou-o para seus aposentos. Constantino<br />

estava altera<strong>do</strong> e Marco tentava acalmá-lo:<br />

- Não foi sua culpa, não é mesmo? Ele tentava agredi-lo, não foi assim?<br />

- Claro, foi isso. Foi assim que aconteceu.<br />

- Pois então, acalme-se. O senhor é o impera<strong>do</strong>r de Roma! Constantino<br />

sentou-se na cama, respirou fun<strong>do</strong> por três vezes, depois repetiu:<br />

- Sim, eu sou o impera<strong>do</strong>r de Roma. Eu sou o impera<strong>do</strong>r. Eu sou...<br />

Logo outros pediam notícia sobre o ocorri<strong>do</strong> e Marco limitou-se a dizer<br />

que o impera<strong>do</strong>r se defendera da agressão <strong>do</strong> filho, que queria usurpar-lhe o<br />

trono.<br />

Enquanto tentava acalmar-se, Constantino escutava com nitidez a derradeira<br />

afirmação <strong>do</strong> filho - "ela o envenenou contra mim..." -, que se repetia sem<br />

cessar. Sentia-se duplamente traí<strong>do</strong>, pela esposa e por si mesmo, sem ter forças<br />

para reagir. Buscou algum consolo na bebida, mas antes que as festividades<br />

terminassem procurou por Fausta e uma serva lhe informou, desvian<strong>do</strong> os olhos:<br />

- Está nas termas, senhor.<br />

Constantino a encontrou cercada por suas serviçais e pediu que os deixassem<br />

a sós.<br />

- Que prazer vê-lo, meu senhor.<br />

- O que você fez, Fausta?<br />

- Como assim?<br />

- Por que me colocou contra meu filho?<br />

- Ora, senhor, apenas quis proteger-lhe os interesses.<br />

- Os seus interesses, você quer dizer, não é mesmo? Assustada com a expressão<br />

<strong>do</strong> olhar de Constantino, ela começou a gritar:<br />

81


- Claro que não, meu senhor, <strong><strong>do</strong>s</strong> seus...<br />

Antes que pudesse dizer mais alguma coisa ele a afun<strong>do</strong>u na banheira, tiran<strong>do</strong>-lhe<br />

a vida.<br />

Licínio, que a tu<strong>do</strong> assistia, gargalhava satisfeito, quan<strong>do</strong> Núbio apareceu,<br />

indagan<strong>do</strong>:<br />

- Está satisfeito? Executou sua vingança?<br />

- Ainda não. Este homem não sofreu o suficiente. Tem de morrer também;<br />

vou acabar com ele...<br />

- Não. Sua missão acabou.<br />

- Como assim?<br />

- Constantino serve agora aos nossos interesses. O Cristianismo está conspurca<strong>do</strong><br />

e se afasta mais e mais de suas raízes. Constantino vai continuar nos<br />

dan<strong>do</strong> seu apoio. E útil demais para agirmos contra ele agora. Mas não se preocupe.<br />

Os dias dele na Terra findarão, mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde, e você poderá<br />

ter sua vingança completa quan<strong>do</strong> ele também estiver aqui.<br />

- Como saberei que não me enganam?<br />

- Você é nosso servo, Licínio, e fará o que estou ordenan<strong>do</strong>. Utilizan<strong>do</strong> a<br />

força mental, Núbio provocou em Licínio fortes <strong>do</strong>res no peito, no lugar onde<br />

fora ataca<strong>do</strong> por Marco. E ele, gritan<strong>do</strong>, suplicou:<br />

- Por favor, pare com isso!<br />

- Vai obedecer, ou o que terei de fazer?<br />

- Obedecerei.<br />

-Então ande na linha comigo. Virá a hora de consumar sua vingança.<br />

Quan<strong>do</strong> Constantino chegar a este la<strong>do</strong>, você estará esperan<strong>do</strong>...<br />

82


DEZESSETE<br />

REPÚBLICA DA BOÊMIA 7 , 1402.<br />

Enquanto a mãe permanecia deitada, repetin<strong>do</strong> orações decoradas, a jovem<br />

(ainda não completara dezoito anos) sentada à sua cabeceira segurava-lhe as<br />

mãos com firmeza. Ao notar as mãos frias da filha, Geórgia balbuciou em voz<br />

fraca, quase inaudível:<br />

- Vá comer alguma coisa... Você está gelada... A jovem fitou-a com ternura<br />

e redarguiu:<br />

- Não, mãe, eu estou bem. Com esforço Geórgia insistiu:<br />

- Vá, minha filha, vá comer alguma coisa... Suas mãos estão geladas.<br />

- É que está muito frio. Está nevan<strong>do</strong>... Num esboço de sorriso, a mãe balbuciou:<br />

- É quase Natal...<br />

Esforçan<strong>do</strong>-se por sorrir, a jovem concor<strong>do</strong>u:<br />

- Sim, é quase Natal.<br />

- Precisamos rezar nossas novenas em homenagem ao menino Jesus.<br />

- Nós já vamos...<br />

Geórgia começou a tossir sem parar, para angústia de Verônica, que a olhava<br />

sem saber o que fazer. Aproximou-se e a aju<strong>do</strong>u a se sentar. Depois de<br />

alguns minutos, acalmou-se a tosse e Verônica observou a mãe, entristecida.<br />

Sabia que o esta<strong>do</strong> de saúde de Geórgia era muito grave; há algumas semanas<br />

vinha se preparan<strong>do</strong> para o pior. Por isso mesmo procurava aproveitar cada<br />

segun<strong>do</strong> em companhia da mãe; afastava-se apenas pelo tempo absolutamente<br />

necessário. Quan<strong>do</strong> se assegurou de que ela estava bem acomodada, foi buscar<br />

uma sopa que fumegava no caldeirão, manti<strong>do</strong> aceso com pouca lenha. A beira<br />

da cama, pediu:<br />

- Vamos, mãe, tome um pouco de sopa.<br />

- Só se você me acompanhar, filha. Sorrin<strong>do</strong>, Verônica concor<strong>do</strong>u:<br />

- Está bem... A senhora não tem jeito, não é? A mãe esboçou um sorriso<br />

suave e comentou:<br />

- A quem será que você puxou?<br />

- Decerto foi a você, minha mãe.<br />

- Acha mesmo?<br />

7 Boêmia é uma região histórica da Europa Central, ocupan<strong>do</strong> os terços ocidental e médio da<br />

atual República Checa.<br />

85


- E como não? Com quem mais me pareço, se não com você? <strong>Além</strong> <strong>do</strong><br />

mais, estamos juntas, só nós duas, há tanto tempo que é natural que nos assemelhemos...<br />

Calou-se de súbito. Recordava os últimos incidentes em que a mãe estivera<br />

envolvida com manifestações sobrenaturais. Geórgia, adivinhan<strong>do</strong>-lhe os pensamentos,<br />

disse:<br />

- Minha criança, não se preocupe. Venha, sente-se perto de mim.<br />

- Vamos tomar a sopa.<br />

- Depois. Agora, precisamos conversar.<br />

- Mas, mãe...<br />

- Venha, filha, precisamos falar. Não desperdicemos o tempo precioso que<br />

nos resta com algo que pouco ou nada nos auxiliará.<br />

- Você deve se alimentar.<br />

- Já vou comer. Venha, sente-se bem perto de mim. Verônica aproximouse<br />

da mãe, que a abraçou enternecida, aconchegan<strong>do</strong>-a ao peito. Ficaram assim<br />

por longo tempo, a permutar profun<strong>do</strong> carinho. Depois, a mãe olhou a filha<br />

nos olhos, pedin<strong>do</strong>:<br />

- Seja forte, minha filha, e não confie a ninguém os fatos que nos acometem<br />

de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>. Ninguém nos compreenderia.<br />

- Mãe, tento entender o que se passa com você, o que acontece quan<strong>do</strong> fica<br />

daquela maneira... E não consigo.<br />

- Também não posso explicar ao certo, mas sei que é algo bom.<br />

- Você diz coisas estranhas, age de maneira esquisita... Dá receitas, fala<br />

coisas como se não fosse você.<br />

- Minha filha, se não fosse uma heresia, diria que os céus se manifestam<br />

através de mim. E assim que eu penso.<br />

- Mãe, não diga isso nunca mais! Se alguém a escutar...<br />

- Não temo por mim, que tenho os dias na Terra conta<strong><strong>do</strong>s</strong>, e sim por você.<br />

Não quero que carregue o peso da ser filha de uma bruxa. Por isso me calei,<br />

você sabe, e não por aceitar o que me dizem. Sei o que sou e o que sinto. Não<br />

sou uma bruxa.<br />

- E claro que não! Você é a pessoa mais querida...<br />

Verônica não pôde continuar, afogada pela emoção e pelo senti<strong>do</strong> pranto<br />

que lhe brotou da alma. Amava profundamente a mãe e sabia que logo não a<br />

teria mais perto de si.<br />

Geórgia abraçou-a aperta<strong>do</strong> e disse:<br />

- Rogarei a Nossa Senhora que me permita vê-la sempre. Se depender de<br />

mim, jamais ficarei longe de você.<br />

86


Verônica abraçou a mãe ainda mais forte e ambas choraram enlaçadas.<br />

Depois, Geórgia pediu:<br />

- Vamos, filha, confiemos em Deus, que sabe todas as coisas. Tu<strong>do</strong> será<br />

para o melhor.<br />

A jovem apenas aquiesceu com a cabeça, manten<strong>do</strong> silêncio. Após alguns<br />

dias o esta<strong>do</strong> de Geórgia agravou-se. Ela quase não conseguia falar, ten<strong>do</strong> sucessivas<br />

crises de tosse. Verônica atendia ao seu mínimo sinal de necessidade.<br />

Naquela noite, porém, a jovem a<strong>do</strong>rmeceu pesadamente aos pés da cama<br />

da mãe. Estava exausta pelas consecutivas noites em claro e pelo desgaste emocional<br />

de ver-lhe a vida esvair-se pouco a pouco, sem que pudesse ajudá-la.<br />

Buscava sustentar a fé em Deus, aprendida com a voluntariosa Geórgia, que a<br />

criara sozinha, afirman<strong>do</strong> ter o pai morri<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a menina era muito pequena.<br />

A luta para cuidar dela foi grande e consumiu os poucos recursos que ele<br />

lhes deixara. Verônica despertou assustada. A mãe a chamava:<br />

- Verônica, chegue mais perto.<br />

Quase de um salto acercou-se da mãe. Geórgia, com grande esforço, tirou<br />

<strong>do</strong> pescoço um antigo escapulário e depositou-o nas mãos da filha, pedin<strong>do</strong>:<br />

- Leve-o sempre consigo. Coloque, vamos. Verônica objetou:<br />

- Não, mãe, é a sua proteção...<br />

- Coloque, vamos.<br />

Sem energia para seguir argumentan<strong>do</strong>, a jovem obedeceu. Colocou a pequena<br />

peça no pescoço e amarrou atrás da cabeça a cordinha que sustentava a<br />

medalha com a imagem de Nossa Senhora desenhada.<br />

- Pronto, mãe.<br />

- Ótimo.,. Quero que você... busque ajuda da irmandade...<br />

- Não, mãe.<br />

-Prometa. Tem de prometer... que não vai ficar sozinha... à mercê <strong><strong>do</strong>s</strong> horrores<br />

da inquisição. Se cismarem com você, filha, é morte certa... E morte na<br />

fogueira.<br />

- Ainda assim, não posso trancar-me em um convento. Não é o que quero<br />

para minha vida.<br />

- Mas terá de procurar ajuda... Seu primo de segun<strong>do</strong> grau é padre, você<br />

sabe.<br />

- Boris...<br />

- Isso mesmo... Procure a ajuda dele... Você não pode ficar sozinha.<br />

- Mas, mãe...<br />

Geórgia teve outra crise de tosse e, quan<strong>do</strong> se acalmou, foi mais assertiva:<br />

- Prometa-me!<br />

- Mãe...<br />

87


- Por favor... - balbuciou quase sem forças. Comovida, a jovem anuiu:<br />

- Está bem, eu prometo.<br />

Geórgia suspirou profundamente e, devagar, soltou as mãos da filha. A jovem<br />

observou seu semblante sereno e murmurou, entre pesadas lágrimas que<br />

lhe desciam pela face:<br />

- Descanse, minha mãe. Um dia nos encontraremos... Depois apertou com<br />

força o escapulário que trazia no peito e,<br />

ajoelhan<strong>do</strong>-se diante da cama, chorou sentida e longamente.<br />

DEZOITO<br />

NA MANHÃ SEGUINTE, assim que os primeiros raios <strong>do</strong> sol entraram no diminuto<br />

aposento, Verônica se embrulhou nas cobertas de sua cama e saiu à<br />

procura <strong><strong>do</strong>s</strong> vizinhos mais próximos. Queria ajuda para as providências necessárias<br />

às últimas homenagens a serem prestadas àquela que partia para a grande<br />

viagem. To<strong><strong>do</strong>s</strong>, sem exceção, bateram-lhe a porta ao rosto com desculpas as<br />

mais descaradas.<br />

A jovem resolveu, então, procurar o padre <strong>do</strong> vilarejo em que viviam, ao<br />

norte <strong>do</strong> antigo reino da Boêmia. Ela e a mãe nutriam temores e prevenções<br />

com relação à Igreja Católica, entre outras questões pelos seus méto<strong><strong>do</strong>s</strong> de<br />

coação e controle <strong>do</strong> povo. Desde o ano de 476, quan<strong>do</strong> o império romano <strong>do</strong><br />

Ocidente caíra após ser invadi<strong>do</strong> por diversos povos bárbaros, a única instituição<br />

que não se desintegrara junto com o esfacelamento <strong>do</strong> império fora a Igreja<br />

Católica; pelo contrário, fortalecida, passara a exercer forte influência política<br />

e econômica sobre to<strong><strong>do</strong>s</strong> os povos da Europa. Já nesse perío<strong>do</strong> iniciou-se<br />

intensa perseguição àqueles que se opusessem aos seus <strong>do</strong>gmas e interesses.<br />

Iniciou-se uma sucessão de abusos de toda sorte, com a execução de qualquer<br />

um que atrapalhasse os seus propósitos. E cresciam a força e o poder que detinha.<br />

Verônica foi até o fun<strong>do</strong> da igreja e bateu à porta <strong>do</strong> alojamento <strong>do</strong> pároco.<br />

Ouviu de dentro:<br />

- Quem me procura?<br />

- Verônica, padre.<br />

- O que deseja?<br />

Lembran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> rosto inerte da mãe, os olhos dela encheram-se de lágrimas<br />

e, com a voz embargada, continuou:<br />

- Preciso <strong>do</strong> senhor...<br />

88


O padre Edmun<strong>do</strong> apareceu à porta e, demonstran<strong>do</strong> contra-riedade, falou<br />

áspero:<br />

- O que deseja?<br />

- Minha mãe está morta, padre. Preciso de sua ajuda para os serviços finais<br />

aos seus despojes.<br />

O eclesiástico a mediu de alto a baixo. Por mais que desejasse mandá-la<br />

embora, sua posição o obrigava a tomar alguma providência. Ainda buscan<strong>do</strong><br />

alternativa, perguntou:<br />

- Não tem nenhum sacer<strong>do</strong>te em sua família que possa prestar-lhe os últimos<br />

atendimentos? Estou muito ocupa<strong>do</strong> hoje.<br />

Respiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong>, a jovem implorou:<br />

- Por favor, padre, os poucos familiares que me restam vivem em terras<br />

distantes. Não posso levar o corpo de minha mãe para uma viagem tão longa...<br />

Não seria correto...<br />

Ela silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu:<br />

- <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, ainda há focos da peste em alguns lugares. Não posso arriscar<br />

atravessar as plantações com um corpo...<br />

Depois de longo silêncio que se estabeleceu entre os <strong>do</strong>is, padre Edmun<strong>do</strong><br />

disse:<br />

- Muito bem, minhas obrigações sacer<strong>do</strong>tais me impõem a realização <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

serviços. Leve-a até o rio depois <strong>do</strong> almoço e faremos o que é necessário.<br />

Com lágrimas nos olhos, Verônica - em busca de algum conforto para sua<br />

<strong>do</strong>r - ajoelhou-se diante <strong>do</strong> padre, osculan<strong>do</strong>-lhe as mãos macias. Ele as puxou<br />

logo e reforçou:<br />

- Logo no início da tarde. Não se atrase, estarei à espera.<br />

- Sim, padre, obrigada.<br />

Sem dizer mais nada ele entrou e fechou a pesada porta. Só depois de longo<br />

tempo frente à porta cerrada e fitan<strong>do</strong> o vazio foi que Verônica enxugou as<br />

lágrimas e buscou a saída, atravessan<strong>do</strong> a igreja. No corre<strong>do</strong>r viu algumas mulheres,<br />

suas vizinhas, e uma delas lhe perguntou:<br />

- Conseguiu o que queria?<br />

- O padre Edmun<strong>do</strong> vai me ajudar.<br />

- Somente um santo como ele para ter compaixão de vocês. Olhan<strong>do</strong> para a<br />

mulher que lhe falava em tom agressivo, ela indagou:<br />

- O que lhe fizemos para terem por mim e por minha mãe tamanho desprezo?<br />

A outra ignorou a pergunta e continuou:<br />

- Do que foi que ela morreu?<br />

- Não sei.<br />

- Claro que sabe. Foi da peste, não foi?<br />

89


- Não, é claro que não!<br />

- Tenho certeza que foi. É castigo de Deus àqueles que lhe desobedecem...<br />

Verônica assegurou:<br />

- Sempre procuramos obedecer aos ensinos de Jesus.<br />

- Sua mãe era uma bruxa e certamente foi castigada, e você também o será.<br />

Se a peste não a atacar, a Inquisição haverá de pegá-la. Não conseguirá livrarse,<br />

como o fez sua mãe. Aliás, livrou-se tão-só porque o outro padre, antes de<br />

<strong>do</strong>m Edmun<strong>do</strong>, era um fraco e a protegeu.<br />

Para não agredir a mulher, Verônica saiu corren<strong>do</strong> da igreja em prantos.<br />

Correu a trancar-se no seu casebre, onde se agarrou ao corpo inerte da mãe,<br />

protestan<strong>do</strong> em voz alta:<br />

- Você não podia me deixar aqui, mãe. Este é um mun<strong>do</strong> muito cruel...<br />

Grossas lágrimas corriam pela sua face, quan<strong>do</strong> o quarto foi subitamente<br />

envolvi<strong>do</strong> em intensa e safírica luz. Verônica pôde registrar, assustada, a imagem<br />

de um jovem que se aproximou e disse:<br />

- Tenha coragem e fé, minha irmã. Você não está sozinha. Sua mãe repousa<br />

e se recupera da longa jornada terrena, e você deve continuar firme sua tarefa.<br />

Estarão juntas novamente no futuro, mas agora precisa confiar em Deus e<br />

seguir na vida com coragem, como sua mãe lhe ensinou.<br />

Verônica limpou as lágrimas e indagou:<br />

- Quem é você? Um anjo ou um demônio? Por que vejo você e as outras<br />

pessoas não? Por que isso acontece comigo e acontecia com minha mãe? Por<br />

que nos castigam com essas visões, fazen<strong>do</strong>-nos alvo da implacável perseguição<br />

religiosa que avança sobre to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que são diferentes?<br />

Sorrin<strong>do</strong> com <strong>do</strong>çura, o rapaz comentou:<br />

- Quantas perguntas, Verônica!<br />

Pousan<strong>do</strong> as mãos sobre a cabeça da jovem, o rapaz fixou os olhos no céu<br />

e orou em silêncio. Uma chuva de pequenas luzes caía profusamente sobre<br />

Verônica, que se sentiu envolvida em suave e re-confortante sentimento de<br />

paz. Cessou o me<strong>do</strong> e a mente da jovem aquietou-se. O envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

espiritual falou:<br />

- Estou aqui para fortalecer-lhe o ânimo. Não sinta pena de si mesma. A<br />

capacidade que traz consigo de ver e ouvir o mun<strong>do</strong> espiritual é dádiva de<br />

Deus àqueles que necessitam aprender novas lições e aqui estão para o trabalho<br />

<strong>do</strong> bem.<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>? Que trabalho posso fazer? Muitos <strong><strong>do</strong>s</strong> que tiveram<br />

essa capacidade já morreram nas fogueiras. Não quero ser a próxima. Tenho<br />

me<strong>do</strong>, muito me<strong>do</strong>. Não quero passar pelo que já vi e ouvi outros passarem.<br />

Por favor, você pode fazer isso acabar?<br />

90


Tocan<strong>do</strong>-lhe os cabelos com amor fraterno, ele disse:<br />

- Não compreende, ainda, o que me pede. Deve utilizar sua sensibilidade<br />

para ajudar as pessoas. Esta é sua tarefa aqui na Terra: ajudar seus semelhantes,<br />

a despeito de todas as dificuldades. Foi isso que sua mãe lhe ensinou, não<br />

foi?<br />

Verônica baixou a cabeça e balbuciou sem coragem:<br />

- Sim, foi isso, mas não quero correr o risco de morrer queimada. Sério,<br />

Alexandre a fitou nos olhos e disse, enquanto sua imagem<br />

se desvanecia diante <strong><strong>do</strong>s</strong> olhos da moça:<br />

- Essa foi sua escolha, Verônica. Faça bom uso dela e sirva a Jesus.<br />

- Espere, por favor, espere. Como faço para chamar você? O que devo fazer<br />

agora? Para onde vou?<br />

O rapaz desapareceu. Verônica fitou o rosto sereno da mãe, que parecia<br />

<strong>do</strong>rmir em profunda paz, e questionou:<br />

- O que faço, minha mãe? Que triste futuro me aguarda?<br />

Ficou em silêncio por muito tempo. Depois, sem motivo aparente, tocou no<br />

escapulário que a mãe lhe dera e relembrou o seu pedi<strong>do</strong> para que se refugiasse<br />

no mosteiro, em Praga. Verônica relutava. Não queria nada com conventos,<br />

padres e freiras. Sentia repugnância pela Igreja desde pequena; a muito custo<br />

sua mãe e levava à missa aos <strong>do</strong>mingos. Para a menina, aquilo sempre representara<br />

um martírio. Não obstante, tinha genuíno carinho por tu<strong>do</strong> o que se<br />

relacionasse a Jesus; sentia atração pelo Mestre nazareno e dele sabia muitas<br />

informações, bem antes de completar sete anos.<br />

Geórgia se surpreendia e ao mesmo tempo se alegrava com a natureza da<br />

filha. Temia por ambas, naqueles tempos extremamente difíceis para as mulheres,<br />

especialmente aquelas que dependiam de si mesmas para viver. Por diversas<br />

vezes foram humilhadas pelos vizinhos; entretanto, a dignidade da mãe<br />

inspirava Verônica, que cresceu admiran<strong>do</strong> a ela e aos valores que dela adquirira.<br />

Depois de longo tempo, apertou fortemente a pequena moeda <strong>do</strong> escapulário<br />

e pediu a Jesus que lhe desse forças. Levantou-se, então, e preparou a mãe<br />

para ser levada à beira <strong>do</strong> rio Elba. Mais tarde, contemplava em silêncio as<br />

labaredas a consumir os despojes de Geórgia, que seguiam carrega<strong><strong>do</strong>s</strong> pelas<br />

águas <strong>do</strong> caudaloso rio, enquanto as lágrimas corriam pela sua face lívida. A<br />

emoção <strong>do</strong>minava-lhe o espírito, e quase desfalecia. O padre prosseguia repetin<strong>do</strong><br />

frases em latim, que ela não entendia, e fazen<strong>do</strong> várias vezes o sinal da<br />

cruz. Depois da curta cerimônia, ele virou-se para a jovem e afirmou:<br />

- Pronto, está feito. Que Deus a per<strong>do</strong>e.<br />

91


Erguen<strong>do</strong> os olhos ela o fitou sem coragem de dizer nada. Apenas agradeceu<br />

mecanicamente:<br />

- Obrigada, padre.<br />

Este a observou detidamente e perguntou:<br />

- O que vai fazer agora?<br />

Verônica respondeu, com voz embargada pela <strong>do</strong>r que sentia naquele momento:<br />

- Ainda não sei.<br />

- Pois é bom que pense depressa no que vai fazer daqui por diante; seria<br />

bom se me deixasse ajudá-la. Vou recomendá-la ao convento de nossa ordem,<br />

para que a recolham e a preparem para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo e à<br />

Santa Madre Igreja.<br />

Verônica sentiu forte opressão no peito. Lembrou de novo da recomendação<br />

da mãe sobre os perigos que poderiam estar a espreitá-la e, prudentemente,<br />

respondeu:<br />

- É uma boa idéia, padre. Preciso de poucos dias para me preparar; logo virei<br />

procurá-lo.<br />

- Vou esperar que retorne o mais breve possível.<br />

DEZENOVE<br />

VERÔNICA TRANCOU A PORTA e fechou a rota cortina que cobria a pequena<br />

janela. Antes, olhou para fora e viu que começava a nevar outra vez. Sentou-se<br />

na cama e chorou por longo tempo. Depois, movida por um sentimento de urgência<br />

que não compreendia, abriu o baú da mãe e de novo examinou um a um<br />

os objetos que ela guardava ali: um livro <strong>do</strong> padre Jan Huss 8 , amigo de Geórgia<br />

que ela não conhecia e que as ajudava através de outro amigo comum. Falou<br />

baixinho:<br />

- Como minha mãe podia gostar de um padre como esse?<br />

Abriu o livro e fixou as páginas manuscritas, porém não sabia ler o suficiente<br />

para poder compreender o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que lia. A mãe lhe estava ensinan<strong>do</strong><br />

as letras, embora ela própria também tivesse muitas limitações. Somente os<br />

nobres ou os padres, que se internavam nos conventos, recebiam educação; os<br />

simples e humildes, o povo, não tinha acesso a ela. Verônica tinha sorte de a<br />

mãe poder ler um pouco e lhe transmitir algo. Essa era outra das razões por<br />

8 Jan Huss foi pensa<strong>do</strong>r e reforma<strong>do</strong>r religioso, precursor <strong>do</strong> movimento protestante.<br />

92


que as demais mulheres da vila não aceitavam as duas. Definitivamente elas<br />

eram diferentes.<br />

Verônica folheou um pouco mais o livro e depois remexeu nos demais pertences.<br />

Corren<strong>do</strong> os olhos pela casa, separou e enrolou numa trouxa de pano o<br />

pouco de pão e frutas secas que tinha. Então voltou a olhar pela janela. A neve<br />

tinha para<strong>do</strong>. Separou todas as roupas que possuía, e também as da mãe, e embrulhou<br />

tu<strong>do</strong> em outra trouxa de pano que fez com um lençol; toman<strong>do</strong> o pequeno<br />

baú nas mãos, recolocou dentro dele tu<strong>do</strong> o que a mãe guardava ali e o<br />

fechou. Acomodan<strong>do</strong> as duas trouxas nas costas e o baú sob um <strong><strong>do</strong>s</strong> braços,<br />

disse, in<strong>do</strong> para a porta:<br />

- Preciso partir agora, imediatamente.<br />

Apertan<strong>do</strong> a jóia simples que trazia no peito, suspirou fun<strong>do</strong> e pediu:<br />

- Que Nossa Senhora me proteja e me mostre o caminho.<br />

Foi direto para o merca<strong>do</strong> central e por ali ficou, o mais discreta possível,<br />

observan<strong>do</strong> o movimento. Ouviu que uma carroça com alimentos ia partir logo<br />

para Praga. Aproximou-se <strong>do</strong> proprietário da carroça, que não conhecia, e disse:<br />

- Senhor, ouvi que se dirige para Praga...<br />

- Sim, vim trazer minha filha para ver a avó <strong>do</strong>ente e vamos retornar agora<br />

com alguns alimentos.<br />

Indecisa, ela arriscou:<br />

- Preciso muito ir para a capital.<br />

- E uma viagem e tanto, moça.<br />

- Eu sei.<br />

- Pode pagar?<br />

Baixan<strong>do</strong> os olhos, ela balbuciou:<br />

- Não, senhor, não tenho dinheiro.<br />

Calou-se por um instante, depois tentou de novo:<br />

- Tenho um primo em Praga que vai me ajudar.<br />

- Sem dinheiro, sem viagem.<br />

- Por favor, senhor, preciso muito ir. Posso ajudar nos serviços de sua casa,<br />

como pagamento...<br />

O homem pensou por alguns segun<strong><strong>do</strong>s</strong>; lembran<strong>do</strong>-se da sujeira em seu<br />

pequeno armazém, assentiu:<br />

- Pois bem, tenho uma pequena mercearia que precisa de uma boa limpeza.<br />

Se fizer o trabalho, e bem, posso levá-la.<br />

- Está combina<strong>do</strong>. Limpo tu<strong>do</strong> e pago a viagem com esse trabalho.<br />

- Então suba. Vamos partir assim que minha filha chegar, antes que recomece<br />

a nevar.<br />

93


Não demorou muito e Verônica viu surgir ao longe o rosto meigo de uma<br />

jovem que andava depressa, procuran<strong>do</strong> a carroça <strong>do</strong> pai. Ao avistar Verônica,<br />

sorriu, simpática. O pai logo esclareceu a presença da estranha, e a garota disse<br />

apenas:<br />

- Que bom! Teremos companhia para a volta.<br />

A carroça partiu, sumin<strong>do</strong> pela estrada. A viagem durou quase três dias inteiros.<br />

Nevou e parou de nevar algumas vezes durante o trajeto. Verônica cochilava<br />

e acordava, apreensiva com aquela experiência e na expectativa <strong>do</strong> que<br />

a aguardava em seu destino.<br />

Tão logo amanheceu, o padre Edmun<strong>do</strong>, em companhia de mais <strong>do</strong>is homens<br />

<strong>do</strong> vilarejo, bateu à porta da casa da jovem, chaman<strong>do</strong> várias vezes por<br />

ela:<br />

-Verônica, abra. Vamos minha filha, precisamos conversar. Abra.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens opinou:<br />

- Não adianta, ela não vai abrir. Vamos entrar e levá-la à força! O outro<br />

concor<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos, padre, não podemos permitir que ela continue fazen<strong>do</strong> sabe lá<br />

Deus o quê! Arrombe a porta.<br />

O outro homem forçou a porta, que não resistiu. Entraram. Vasculharam o<br />

pequeno cômo<strong>do</strong> e, nada encontran<strong>do</strong>, foram direto ao merca<strong>do</strong> central. O padre<br />

comentou:<br />

- Deveria tê-la leva<strong>do</strong> à força quan<strong>do</strong> tive chance<br />

- Devia mesmo, padre, não podia ter deixa<strong>do</strong> que ela escapasse! Agora, espalhará<br />

o mal por toda a parte.<br />

- Calma, vamos descobrir para onde foi.<br />

Chegan<strong>do</strong> ao merca<strong>do</strong>, logo descobriram que uma jovem viajara com um<br />

comerciante de Praga, que para lá retornava. Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens ameaçou:<br />

- Vou atrás dela e a trago de volta.<br />

O padre o deteve pelo braço, sugerin<strong>do</strong>:<br />

- Vou enviar um mensageiro ao arcebispo de Praga e alertá-lo sobre a garota.<br />

Achei que não seria necessário preocupá-lo, mas o farei imediatamente.<br />

Não precisam se preocupar. O nosso líder a achará sem demora e tomaremos<br />

as medidas cabíveis. Enviarei o mensageiro agora mesmo. Antes que ela chegue,<br />

o arcebispo terá as informações.<br />

O outro falou enérgico:<br />

- Que seja queimada na fogueira <strong><strong>do</strong>s</strong> hereges! E viran<strong>do</strong>-se para o padre,<br />

indagou:<br />

- E o casebre, o que fará? Vai queimá-lo também? O padre respondeu:<br />

- Já está confisca<strong>do</strong>, agora nos pertence.<br />

94


- Melhor assim. Aliás, nem sabemos como foi que ela obteve o imóvel.<br />

Aquela mulher era ardilosa. Quase nos envolveu a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

O outro homem, invocan<strong>do</strong> na memória a figura de Geórgia, comentou reticente:<br />

- Sim, era uma mulher perigosa...<br />

De volta à igreja, o padre Edmun<strong>do</strong> escreveu ao arcebispo de Praga, informan<strong>do</strong>-o<br />

sobre a jovem e pedin<strong>do</strong> que tomasse providências.<br />

Enquanto isso, Verônica entrava na capital <strong>do</strong> antigo reino da Boêmia. O<br />

homem mostrou-lhe o estabelecimento que deveria limpar e ela quis iniciar o<br />

trabalho de imediato. Catarina, a filha de Vicente, argumentou:<br />

- Fique conosco esta noite. Você deve estar exausta, depois de tu<strong>do</strong> pelo<br />

que passou e ainda mais essa viagem. Fique conosco hoje e faça amanhã o<br />

trabalho combina<strong>do</strong>.<br />

- Agradeço, mas não posso pagar.<br />

- Pois não terá de pagar... Não é, papai?<br />

Meio a contragosto, o pai ia responder, quan<strong>do</strong> Verônica, tomada novamente<br />

por estranho sentimento de urgência, afirmou:<br />

- Não posso mesmo ficar. Agradeço a sua hospitalidade, Catarina, mas<br />

quero pagar o combina<strong>do</strong> e seguir meu caminho.<br />

- E para onde vai? Conhece mesmo alguém na cidade?<br />

- Sim, meu primo Boris mora aqui.<br />

- Boris? E o que ele faz?<br />

No intuito de desviar a conversa para outro rumo, a jovem perguntou, ao<br />

avistar uma pequena mercearia:<br />

- É ali, senhor?<br />

- Sim, essa é minha loja.<br />

- Vou começar já.<br />

- Está certo. Se estiver tão animada assim...<br />

Ao abrir a porta da pequena loja, Verônica soltou um grito abafa<strong>do</strong>. O estabelecimento<br />

estava imun<strong>do</strong> e até viu ratos se esconderem entre sacos de alimentos,<br />

montes de teci<strong><strong>do</strong>s</strong> e outros objetos. Respirou fun<strong>do</strong> e pôs-se a limpar o<br />

salão. Era quase de manhã quan<strong>do</strong> terminou. Ao ver tu<strong>do</strong> limpo, sentou-se em<br />

um canto da sala e, não poden<strong>do</strong> controlar o sono, a<strong>do</strong>rmeceu.<br />

Ainda <strong>do</strong>rmia quan<strong>do</strong> escutou fortes pancadas na porta. De um salto, correu<br />

para trás de uns tonéis de carvalho que guardavam vinho; ficou agachada<br />

enquanto escutava a movimentação <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Olhou pela janela e viu<br />

<strong>do</strong>is padres in<strong>do</strong> para a entrada da casa, que ficava nos fun<strong><strong>do</strong>s</strong> da mercearia.<br />

Pegou as suas coisas que estavam junto da porta e, ao se certificar de que não<br />

era vista, saiu corren<strong>do</strong> e embrenhou-se na mata que ficava perto da estrada. A<br />

95


intervalos de alguns minutos, virava-se para ter certeza de que não era seguida.<br />

Conhecia a cidade e foi em direção ao convento franciscano. Apesar de ficar<br />

bem distante, ela correu para lá sem parar.<br />

Os <strong>do</strong>is padres vasculharam a mercearia e não acharam nenhum vestígio da<br />

jovem. Vicente indagou:<br />

- O que foi que ela fez?<br />

- É uma herege. Proteja sua família dessa moça.<br />

Catarina assistia, incrédula, a toda a cena. Assim que os <strong>do</strong>is padres saíram,<br />

ela falou ao pai:<br />

- Pai, sabe que Verônica não é isso de que a acusam.<br />

- Não sei de nada. Nós sequer a conhecemos!<br />

- Mas deu para notar que é boa pessoa.<br />

- Você não sabe o que está dizen<strong>do</strong>. Não quero que converse mais com ela,<br />

ouviu bem? Se a acusam, podem acusar-nos também.<br />

E erguen<strong>do</strong> a voz, ordenou:<br />

- Não quero que a ajude, está claro?<br />

Sem responder, a garota balançou a cabeça em sinal afirmativo, e entrou<br />

em casa choran<strong>do</strong>.<br />

Verônica alcançou os portões <strong>do</strong> mosteiro, que em seu anexo abrigava o<br />

convento. Bateu na pesada porta, chaman<strong>do</strong>:<br />

- Por favor, preciso de ajuda! Ajudem-me, por favor! Depois de alguns minutos,<br />

um padre apareceu e indagou:<br />

- O que deseja, filha?<br />

- Meu primo Boris é padre nesta irmandade. Ele me conhece bem.<br />

- Deixamos nossos parentes para trás quan<strong>do</strong> nos unimos a Jesus, menina.<br />

O que deseja?<br />

- Minha mãe morreu, padre, e me pediu que viesse até aqui. Ela disse que<br />

seria auxiliada, se viesse para cá.<br />

- Se não a conheço, como posso acolhê-la? Como saber se me diz a verdade?<br />

- Por favor, padre, pergunte ao meu primo. Ele poderá dar todas as informações<br />

a meu respeito.<br />

- Não posso permitir que entre uma estranha sem nenhuma recomendação...<br />

O padre começou a fechar a porta, quan<strong>do</strong> uma das trouxas escorregou e<br />

caiu <strong><strong>do</strong>s</strong> ombros de Verônica; quan<strong>do</strong> a moça se abaixou para pegá-la, o escapulário<br />

de Nossa Senhora lhe caiu para fora <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>. Ao vê-lo, o padre parou<br />

e perguntou: - De onde veio isso?<br />

96


- Era de minha mãe. Ela me deu, pouco antes de morrer. O padre olhou em<br />

volta e então disse:<br />

- Entre, vamos. Depressa.<br />

Ambos entraram e o padre conduziu a jovem pelo interior <strong>do</strong> mosteiro.<br />

VINTE<br />

O SACERDOTE ANDAVA na frente. Verônica o seguia e, a cada passo que<br />

dava no interior da portentosa construção, sentia o coração bater mais descompassa<strong>do</strong>.<br />

Suas mãos suavam frio e seu desejo era sumir dali. À medida que<br />

caminhava, olhava as paredes altas e escuras daquela edificação e violentos<br />

arrepios lhe percorriam o corpo. Suas pernas estavam trêmulas e temia não<br />

conseguir completar a caminhada. De repente, o padre parou, tirou uma chave<br />

de um <strong><strong>do</strong>s</strong> bolsos e, abrin<strong>do</strong> uma porta de madeira maciça, virou-se para ela:<br />

- Espere aqui - disse. - Vou buscar água e algo para você comer. Ela entrou,<br />

e em seguida ele trancou a pesada porta. Verônica bateu em desespero,<br />

suplican<strong>do</strong> em lágrimas:<br />

- Por favor, padre, o que vai fazer comigo? Por que está me trancan<strong>do</strong> aqui?<br />

Ela gritava e batia com força. A porta se abriu e o padre apareceu, recriminan<strong>do</strong>-a:<br />

- Fique quieta! Vou trazer-lhe comida e já volto.<br />

- Por que me tranca aqui?<br />

- E o que quer? Devo avisar meus superiores. E se você resolve sair andan<strong>do</strong><br />

por esses corre<strong>do</strong>res, antes que eu informe aos responsáveis que está aqui?...<br />

Não vou arriscar. Fique aqui, e calada. Queria ajuda, não queria? Pois<br />

bem, está a salvo, seja lá o que for que a esteja perturban<strong>do</strong>. Agora, acalme-se<br />

que vou avisar também seu primo de sua presença.<br />

Verônica o observou desconfiada, medin<strong>do</strong>-o de cima a baixo, e depois falou<br />

num suspiro, enquanto ele fechava a porta:<br />

- O que posso fazer? Tenho de esperar... Ela ouviu a voz <strong>do</strong> padre:<br />

- Isso mesmo. Aguarde em silêncio, é o melhor que tem a fazer.<br />

Ele se afastou e a jovem observou o pequeno quarto em que estava. Ali havia<br />

uma cama, uma mesa e duas cadeiras; sobre a cabeceira da cama um grande<br />

crucifixo e, acima, uma janela minúscula, por onde alguma claridade entrava.<br />

Apesar de ser dia lá fora, o cômo<strong>do</strong> permanecia na penumbra, deixan<strong>do</strong> ver<br />

parcamente os objetos que continha.<br />

97


Verônica acomo<strong>do</strong>u seus pertences em uma cadeira e se sentou na cama.<br />

Embrulhou-se nas roupas, tremen<strong>do</strong>. Começava a nevar e fazia muito frio dentro<br />

<strong>do</strong> austero aposento. Ela refletiu por alguns instantes, tentan<strong>do</strong> recuperar o<br />

controle e compreender o que se passava. Lembrou-se da expressão nos olhos<br />

<strong>do</strong> padre ao notar o escapulário que trazia ao pescoço. Tirou-o e apertou-o entre<br />

as mãos, balbucian<strong>do</strong>:<br />

- O que este escapulário tem de tão especial? Sei que foi abençoa<strong>do</strong> para<br />

proteger minha mãe, por Nossa Senhora, mas... O que o padre viu nele que o<br />

levou a me acolher sem vacilar? Não compreen<strong>do</strong>...<br />

Encafifada, ficou a relembrar que a mãe o usava constantemente; nunca o<br />

tirava. Depois de algum tempo, ouviu uma voz de mulher anunciar:<br />

- Trouxe comida.<br />

A porta se abriu e uma jovem freira entrou, colocan<strong>do</strong> pão e água sobre a<br />

mesa. Sem olhar para Verônica, a freira saiu, fechan<strong>do</strong> novamente a porta.<br />

Ela se alimentou e voltou a sentar-se na cama. Cansada, acabou por se aquecer<br />

e caiu, por fim, em sono profun<strong>do</strong>. Transcorri<strong>do</strong> algum tempo, acor<strong>do</strong>u<br />

assustada, ouvin<strong>do</strong> vozes. Sentou-se rápi<strong>do</strong> na cama, sem entender o que acontecia<br />

e mesmo sem atinar onde estava. Tentan<strong>do</strong> se localizar, viu a porta se<br />

abrir e um jovem entrar, saudan<strong>do</strong>-a:<br />

- Olá, Verônica.<br />

Logo atrás vinha a freira que antes trouxera a refeição da garota. Verônica<br />

fitou o rapaz, buscan<strong>do</strong> na memória identificar aquele rosto que lhe parecia tão<br />

familiar. Ao olhar seus olhos, forte e indefinida emoção <strong>do</strong>minou-a. Teve vontade<br />

de chorar e de atirar-se aos seus pés. Ao mesmo tempo, um me<strong>do</strong> enorme,<br />

pavor até, apossou-se dela. Afastou-se, fican<strong>do</strong> à cabeceira da cama, mas o<br />

jovem aproximou-se e estendeu-lhe a mão, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Não fique assustada. Sou eu, Boris, seu primo.<br />

Verônica, perdida em suas emoções, parecia não escutar. Encolhia-se cada<br />

vez mais na cabeceira da cama. Boris parou e falou com voz calma:<br />

- Por que está tão apavorada? Sei que não nos vemos há muitos anos, mas<br />

ainda assim deve lembrar-se de mim. Que idade tem agora?<br />

Verônica respondeu mecanicamente:<br />

- Quase dezoito.<br />

- Você deve estar cansada, criança. Veio de longe... Como conseguiu chegar<br />

até aqui?<br />

Ainda temerosa, ela não respondeu. Boris insistiu:<br />

- Não tenha receio, Verônica. Aqui estará segura. Fique calma. Agora quero<br />

que me conte tu<strong>do</strong> o que aconteceu.<br />

Dominada pelo me<strong>do</strong> e pelo cansaço, ela desabou, entre lágrimas:<br />

98


- Minha mãe morreu. Não tenho mais ninguém nesta vida. Estou sozinha,<br />

aban<strong>do</strong>nada. Estou com me<strong>do</strong> e não tenho a quem pedir ajuda. Minha mãe me<br />

disse que viesse procurá-lo, mas acho que não devia ter vin<strong>do</strong>... É que não<br />

tinha a quem recorrer...<br />

O padre, homem esguio e de porte nobre, procurou tranquilizá-la:<br />

- Você não está mais sozinha. Fez bem em nos procurar, estará amparada<br />

aqui.<br />

Verônica sentia uma vontade quase incontrolável de abraçar o primo e, por<br />

outro la<strong>do</strong>, desejava correr para bem longe. Ficou imóvel enquanto ele a observava,<br />

parecen<strong>do</strong> desconfia<strong>do</strong>. Depois, ao ouvir tocar o sino, ele ergueu-se e<br />

recomen<strong>do</strong>u:<br />

- Agora descanse. Logo mais o bispo celebrará a missa das seis horas e você<br />

deve se juntar a nós.<br />

Foi até a porta e, antes de fechá-la, disse:<br />

- A irmã Adriana virá buscá-la mais tarde.<br />

Assim que a porta se fechou, Verônica deitou-se na cama e não pôde controlar<br />

as lágrimas. Sentia-se desprotegida e aflita. Aquele breve encontro com<br />

o primo não a fizera sentir-se melhor. Sem saber ao certo por que, Boris sempre<br />

a assustara, desde que eram pequenos. Nove anos mais velho <strong>do</strong> que ela,<br />

sempre a tratara de maneira rude e agressiva. Experimentava em relação a ele<br />

emoções conflitantes: temor e carinho, me<strong>do</strong> e desejo de aproximar-se. Definitivamente,<br />

não o compreendia e o temia. Crescera distante <strong>do</strong> primo, que vira<br />

poucas vezes; no entanto, guardava em seu íntimo forte impressão <strong><strong>do</strong>s</strong> poucos<br />

encontros que haviam ti<strong>do</strong>.<br />

Perdida em suas lembranças da infância e vencida pelo cansaço <strong><strong>do</strong>s</strong> últimos<br />

dias, Verônica tornou a a<strong>do</strong>rmecer. Quan<strong>do</strong> despertou, sentia-se ligeiramente<br />

mais animada. Sentou-se na cama e observou com maior atenção os<br />

detalhes <strong>do</strong> pequenino ambiente que ocupava. A angústia assolar-lhe o coração.<br />

Qual seria o seu futuro? Ficaria para sempre presa naquele cubículo? Não<br />

era o tipo de vida a que aspirava. Sonhava ter uma família, filhos - muitos filhos<br />

- , um lar e uma vida com fartura; queria viajar, vestir belas roupas... Sim,<br />

desejava ardentemente vestir belas roupas. Sempre que encontrava uma dama<br />

da nobreza, com seus trajes lin<strong><strong>do</strong>s</strong> e vistosos, ficava a desejar o mesmo para si.<br />

A jovem suspirou, lembrou-se da mãe e sussurrou:<br />

- Eu não vou ficar aqui para sempre. Não vou mesmo!<br />

Escutou alguém chegan<strong>do</strong>. Depois de duas leves batidas, a porta se abriu e<br />

a freira que já estivera ali disse:<br />

- Boris enviou esta roupa e pediu que a vestisse.<br />

Ao tomá-la nas mãos Verônica viu como era austera e indagou:<br />

99


- Que roupa é esta?<br />

- São os trajes que toda noviça usa ao entrar para a ordem. Depois, ao se<br />

tornar freira, veste-se igual a mim.<br />

Verônica ficou sem ação. A freira informou:<br />

- Vista-se. Aguar<strong>do</strong> lá fora. Assim que estiver pronta me avise, para que eu<br />

corte os seus cabelos.<br />

Verônica sentiu o sangue sumir-lhe <strong>do</strong> rosto. A<strong>do</strong>rava seus cabelos - eram<br />

lin<strong><strong>do</strong>s</strong>, louros, e tinha verdadeira paixão por eles. Porém, antes que pudesse<br />

esboçar qualquer objeção, a freira saiu e fechou a porta. A jovem sentou-se na<br />

cama sem saber o que fazer. Levantou-se e an<strong>do</strong>u de um la<strong>do</strong> para outro. Olhou<br />

a roupa sobre a cama e colocou-a em frente ao corpo; depois, atirou-a<br />

longe, em prantos. Caminhou até onde estava a roupa, pegou-a e sentou-se<br />

com ela entre as mãos. Tocou os cabelos e ergueu-se, firme. Foi até a porta,<br />

abriu-a e chamou a freira:<br />

- Entre, por favor, preciso falar com você.<br />

- Por que ainda não está pronta? Temos de chegar antes de começarem os<br />

serviços religiosos.<br />

- Qual é o seu nome?<br />

- Irmã Adriana.<br />

- E seu nome de batismo?<br />

- Esse é o meu nome de renascimento. Você precisa se vestir.<br />

- Por que quer cortar meus cabelos?<br />

- Todas as noviças fazem isso quan<strong>do</strong> entram para a ordem. E uma maneira<br />

de renunciarmos à vaidade e ao orgulho.<br />

- Mas eu não quero ser noviça. Eu não quero ser freira.<br />

- Então, o que veio fazer aqui?<br />

Verônica caminhou de um la<strong>do</strong> ao outro no quarto. Depois, sentan<strong>do</strong>-se ao<br />

la<strong>do</strong> da freira, desabafou:<br />

- Eu vim porque necessito de proteção. Estou sozinha no mun<strong>do</strong> e preciso<br />

que alguém me ampare.<br />

- Pois então, veio ao lugar certo. Nosso Senhor Jesus Cristo há de protegêla.<br />

Em troca, entregue-lhe sua vida.<br />

- Você não está entenden<strong>do</strong>. Eu não tenho nenhuma vontade de ser freira.<br />

Quero viver a minha vida, tenho sonhos, planos para o futuro. Não quero acabar<br />

aqui dentro, apodrecen<strong>do</strong> em um cubículo como este.<br />

A freira ergueu-se e, com evidente contrariedade, disse:<br />

- Você acha que to<strong><strong>do</strong>s</strong> que estão aqui vieram porque foram chama<strong><strong>do</strong>s</strong> por<br />

Deus? Não, moça. A grande maioria está aqui por outros motivos. Mas aqui<br />

estamos e só nos resta servir à Santa Madre Igreja da melhor maneira.<br />

100


- Muitos estão aqui obriga<strong><strong>do</strong>s</strong>, então?<br />

- Não diria obriga<strong><strong>do</strong>s</strong>, e sim compeli<strong><strong>do</strong>s</strong> pelas circunstâncias, como no seu<br />

caso. Você foi trazida pela vida e o melhor que tem a fazer é conformar-se.<br />

Lutar contra o destino causará maior sofrimento ao seu coração. Não foi sua<br />

mãe que lhe pediu para vir?<br />

Verônica, sem ânimo para responder, inclinou a cabeça concordan<strong>do</strong>.<br />

- Pois então, ela sabia o que é melhor para você. Agora vamos, vista-se.<br />

Verônica, resoluta, declarou:<br />

- Não, eu não vou. Você não vai encostar um de<strong>do</strong> em meus cabelos. Eu<br />

não quero ser freira. Não vou.<br />

Irmã Adriana saiu sem dizer nada. Alguns minutos depois, a porta se abriu<br />

de novo e Boris entrou, sério.<br />

- Vista-se e deixe que a irmã Adriana corte os seus cabelos.<br />

- Não posso, não quero ser freira.<br />

- O arcebispo de Praga está lá fora à sua procura. Ele quer conversar com<br />

você e averiguar determina<strong><strong>do</strong>s</strong> eventos referentes à sua mãe... Pretende julgar<br />

se você é ou não uma herege, uma bruxa. Foi isso o que me disse.<br />

A jovem empalideceu. Ele continuou:<br />

- Eu lhe disse que você está sob a proteção da irmandade e que se tornará<br />

freira. Só assim obtive a concordância dele em deixá-la em paz. Prefere que eu<br />

o chame aqui agora, para levá-la?<br />

Quase sem poder respirar, a jovem respondeu:<br />

- Claro que não.<br />

- Pois vista a roupa que lhe enviei e assuma o seu destino. Veio em busca<br />

da minha ajuda, e eu posso ajudá-la indican<strong>do</strong>-a à irmandade para que se torne<br />

urna servi<strong>do</strong>ra da Igreja; e assim, se seu comportamento for adequa<strong>do</strong>, a Inquisição<br />

poderá deixá-la em paz.<br />

Ele silenciou por alguns instantes, depois prosseguiu:<br />

- Então, o que vai ser? Geórgia sabia o que estava fazen<strong>do</strong>. Ela quis protegê-la.<br />

Vamos, vista-se. Você não tem alternativa. Ou assume a nova vida, ou<br />

vai ficar sem nenhuma.<br />

Aturdida e sem saber o que fazer, ela pegou a roupa das mãos <strong>do</strong> primo e<br />

ainda insistiu:<br />

- Você não pode fazer alguma coisa? Eu não quero ser freira. Não pode me<br />

ajudar de outro mo<strong>do</strong>?<br />

Ele esboçou ligeiro sorriso e respondeu, antes de fechar a porta:<br />

- Até poderia, minha prima, mas sempre achei você e sua mãe muito estranhas.<br />

Acho que deve mesmo se tornar uma servi<strong>do</strong>ra da Igreja. Eu quero que<br />

seja freira, para sua própria proteção.<br />

101


Em seguida, fechou a porta atrás de si e saiu. Verônica sentia o corpo inteiro<br />

tremer. Queria sumir dali, o que era impossível. Estava claro que o primo,<br />

por alguma razão, a fizera prisioneira. Enquanto as lágrimas lhe corriam pela<br />

face, ela trocou de roupa e entreabriu a porta:<br />

- Já me vesti - informou. A freira entrou e disse:<br />

- Muito bem. Sente-se, que vou cortar seus cabelos.<br />

Com uma faca afiada ela começou a cortar as lindas mechas de Verônica.<br />

A cada novo corte, os fios caíam pelo chão e para a jovem era como se um<br />

punhal lhe fosse crava<strong>do</strong> no peito. Sentia que, junto com os cabelos, perdia<br />

parte de sua vida. Ao terminar, a freira convi<strong>do</strong>u:<br />

- Pronto. Agora sim, está preparada para tornar-se uma noviça. Venha comigo,<br />

e não fale com ninguém. Você deverá fazer voto de silêncio até se tornar<br />

freira.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, a jovem indagou: - E quanto tempo isso irá levar?<br />

- Isso Boris definirá com sua santidade o arcebispo. Amargurada e sem saída<br />

para aquela situação, Verônica seguiu<br />

a freira pelo corre<strong>do</strong>r, até alcançarem a grande capela. Um coral de freiras<br />

entoava cânticos sacros, enquanto ela era colocada ao la<strong>do</strong> de outras duas jovens,<br />

que também iniciavam o novicia<strong>do</strong> naquela noite.<br />

VINTE E UM<br />

O ATO LITÚRGICO SEGUIA sem contratempos. Verônica assistia a tu<strong>do</strong> o que<br />

ocorria à sua volta como se não estivesse acontecen<strong>do</strong> com ela. Seu desejo era<br />

desaparecer daquele lugar. Aquilo lhe parecia um pesadelo. A certa altura,<br />

fitou a imagem <strong>do</strong> Cristo crucifica<strong>do</strong> e, envolvida pela emoção, orou baixinho:<br />

- Jesus, você foi crucifica<strong>do</strong> e sofreu tu<strong>do</strong> o que não merecia. Sabe melhor<br />

<strong>do</strong> que ninguém o que é sofrer. Ajude-me, por favor... Eu quero sair desta situação<br />

e não sei como. Per<strong>do</strong>e-me se me julga ingrata, mas não desejo ser freira<br />

nem servir à Igreja. Não acredito que a Igreja, tal qual se apresenta hoje, esteja<br />

a seu serviço.<br />

Sentin<strong>do</strong> a angústia aumentar, à medida que a solenidade se encaminhava<br />

para o momento de oficializar o ingresso das jovens nos serviços eclesiásticos,<br />

ela murmurou:<br />

- Ajude-me, por favor, Jesus. Ajude-me, minha mãe, de onde você estiver...<br />

102


Enquanto as lágrimas lhe desciam pelo rosto, ela era conduzida por uma<br />

freira ao altar onde receberia a bênção <strong>do</strong> arcebispo e seria oficialmente recebida<br />

pela Igreja. Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> arcebispo estava Boris.<br />

Ela foi a última da três jovens e, ao aproximar-se, ouviu-o perguntar ao padre:<br />

- É esta?<br />

- Sim, santidade.<br />

Ele a fitou de cima a baixo e, deten<strong>do</strong>-se nos olhos, comentou:<br />

- Tem os mesmos olhos irrequietos da mãe. Ante a surpresa de Verônica,<br />

chamou:<br />

- Venha, minha filha.<br />

A jovem caminhou devagar. Ao chegar bem perto, ele disse, áspero:<br />

- Quero seu escapulário.<br />

Ela o fitou, incrédula, e o ouviu prosseguir:<br />

-Assim que terminarmos, tire-o e segure-o. Quan<strong>do</strong> nos despedirmos e vier<br />

me beijar a mão, entregue-o sem que ninguém perceba.<br />

Incapaz de acreditar no que escutava, ela balbuciou, tentan<strong>do</strong> sorrir:<br />

- Pertenceu à minha mãe e é a única lembrança que trago dela. Não, meu<br />

senhor, não posso entregá-lo.<br />

E afastou-se depressa, antes que ele pudesse reagir. Baixou a cabeça e voltou<br />

ao seu lugar próximo às outras noviças. Quan<strong>do</strong> a solenidade terminou,<br />

Boris se aproximou dela e disse:<br />

- Não será tão ruim assim, você verá, minha prima.<br />

Ela o encarou sem responder. Depois, levantou-se e seguiu as demais jovens<br />

sem dizer nada. Acompanhava as outras moças pelo longo corre<strong>do</strong>r, enquanto<br />

maquinava como faria para sair dali, para fugir da cidade. Seu coração<br />

batia descompassa<strong>do</strong> e suas mãos estavam frias. Desejava ardentemente jamais<br />

ter entra<strong>do</strong> naquele local, naquela armadilha. Finalmente entrou em seu quarto;<br />

irmã Adriana fechou a porta, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Amanhã, às cinco horas, virei despertá-la para as orações da manhã. Depois<br />

teremos o desjejum e uma longa lista de tarefas a realizar. Assim que bater,<br />

deverá levantar-se, entendeu?<br />

Sem suportar mais, explodiu:<br />

- Isto é uma verdadeira prisão! Vocês me transformaram em uma prisioneira!<br />

A freira sorriu e respondeu, irônica:<br />

- Melhor presa aqui <strong>do</strong> que no tribunal da Inquisição, que é certamente<br />

onde estaria neste momento, se não tivesse si<strong>do</strong> acolhida por nós. Agradeça a<br />

seu primo e à intervenção dele junto ao arcebispo, que está bastante disposto a<br />

103


colocá-la nas mãos <strong><strong>do</strong>s</strong> inquisi<strong>do</strong>res. Portanto, moça, aquiete-se e aprenda a<br />

servir à Igreja com devoção. Quem sabe, com isso, Deus se apiede de você e a<br />

per<strong>do</strong>e.<br />

Sem esperar resposta, a moça fechou a pesada porta atrás de si e Verônica<br />

lançou-se na cama, choran<strong>do</strong> desesperada. Não demorou muito a ouvir barulho<br />

no corre<strong>do</strong>r e logo a porta se abriu. Era Boris. Verônica ajeitou-se na cama e<br />

perguntou:<br />

- O que quer?<br />

- O arcebispo pediu que viesse buscar o escapulário.<br />

- Não! Isso eu não vou dar.<br />

- Mas por que, criatura?<br />

- E por que ele o quer tanto? O que deseja fazer com uma lembrança querida<br />

de minha mãe? Não posso me separar dele!<br />

- Olhe, Verônica, para mim essa medalha nada significa, mas o arcebispo a<br />

quer.<br />

Enfurecida, ela ergueu-se e desafiou, altiva:<br />

- Pois então que venha ele mesmo buscá-la e me diga por que deseja tanto<br />

uma coisa sem valor para ele, e que para mim vale tanto.<br />

- Deixe-me apenas ver o escapulário. O padre que a recebeu me falou dele.<br />

- Afinal, o que tem de tão especial? Boris insistiu:<br />

- Deixe-me vê-lo. Não vou tirá-lo à força.<br />

De longe, Verônica tirou-o de dentro da blusa e deixou que o primo o visse.<br />

Ele se espantou:<br />

- Não é à toa que o padre deixou-a entrar. Somente a alta cúpula da Igreja<br />

possui escapulários azuis, como esse. São extremamente raros e pertencem às<br />

mais eminentes personalidades. Onde Geórgia o conseguiu?<br />

Guardan<strong>do</strong> a peça, ela respondeu:<br />

- Não sei, não faço a menor idéia. Minha mãe nunca me disse, mas jamais<br />

tirou-o <strong>do</strong> pescoço. Sempre o usou, desde as mais remotas lembranças eu a via<br />

com ele.<br />

- Seria melhor para você não fazer o arcebispo vir até aqui.<br />

- Não se aproxime, Boris, ou vou gritar! Você já me fez muito mal.<br />

Já bem perto da prima, Boris tocou-lhe os cabelos macios e disse, balançan<strong>do</strong><br />

a cabeça:<br />

- Deveria me agradecer, priminha. Estou lhe prestan<strong>do</strong> um grande favor.<br />

Sabe que não existiria futuro para você se eu não a estivesse ajudan<strong>do</strong>.<br />

- Se deseja me ajudar mesmo, deixe-me ir embora daqui. Ajude-me a fugir!<br />

Não quero viver neste lugar...<br />

104


O jovem padre deu uma gargalhada e an<strong>do</strong>u até a porta, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Você nunca sairá deste lugar, ouviu? Sua vida, agora, pertence à Igreja e<br />

também a mim. Vou usá-la de acor<strong>do</strong> com meus interesses. Afinal, sou seu<br />

protetor aqui dentro, e enquanto assim for estará suficientemente protegida.<br />

Saiba, porém, que a um estalar de meus de<strong><strong>do</strong>s</strong> você estará em poder da Inquisição.<br />

Portanto, pense muito bem e se comporte, minha prima. Faça o que digo<br />

e continuará viva.<br />

Antes que o jovem deixasse o quarto, ela indagou, entre lágrimas:<br />

- Por que me detesta tanto?<br />

Ele a fitou, mas seu olhar parecia buscar alguma reminiscência <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />

Por fim, falou:<br />

- Só o que sei é que sempre me provocou verdadeira aversão. Desde o primeiro<br />

dia em que pus os olhos em você. Não sei, deve ser algo que faz, o que<br />

você é... Talvez seja mesmo o demônio se expressan<strong>do</strong> através de seus atos.<br />

Após tal afirmação, fechou a porta e saiu, deixan<strong>do</strong>-a desconsolada. Muito<br />

tempo se passou até que ela a<strong>do</strong>rmeceu e recebeu uma visita espiritual; era<br />

uma jovem que, sentan<strong>do</strong>-se ao seu la<strong>do</strong> na cama, disse com <strong>do</strong>çura:<br />

- Verônica, escute-me.<br />

O corpo espiritual de Verônica se desprendeu e sentou-se, ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>, ao<br />

la<strong>do</strong> da bela jovem. Ela disse:<br />

- Sinto-me confusa e estranha. Quem é você? Que sensação é esta?<br />

Ven<strong>do</strong> o próprio corpo a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> na cama, gritou assustada:<br />

- O que está acontecen<strong>do</strong>? Estou morta?<br />

- Não, seu corpo físico está <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> e precisamos conversar.<br />

- Quem é você?<br />

- Sou uma amiga. Verônica, você tem de resignar-se à situação em que se<br />

encontra. Não deve arquitetar planos de fuga.<br />

- O que me diz? Se não compreende o desespero que sinto neste lugar, você<br />

não pode ser minha amiga!<br />

- Eu compreen<strong>do</strong> bem seus sentimentos, acredite. Ainda assim, sei que você<br />

está no lugar em que deveria estar. A vida é muito mais <strong>do</strong> que as ilusões<br />

que alimentamos em torno dela. Nossa vida é eterna. Já tivemos outras existências<br />

e muitas outras teremos. Cada uma será o reflexo <strong>do</strong> bem ou <strong>do</strong> mal<br />

que plantarmos com nossos atos diários.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, a jovem encarnada afirmou:<br />

- Mas eu não faço o mal.<br />

- Tampouco faz o bem. Está na hora de usar sua sensibilidade e começar a<br />

ajudar as pessoas que necessitam. E que melhor lugar <strong>do</strong> que este, onde a oportunidade<br />

de auxiliar acontece dia e noite?<br />

105


- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

- Aqui você terá oportunidade de ajudar muitas pessoas. E ainda poderá ser<br />

colabora<strong>do</strong>ra de importante obra que está para principiar.<br />

Depois de breve pausa, ela prosseguiu:<br />

- Já ouviu falar de Jan Huss?<br />

- Vagamente.<br />

- Poderá colaborar com ele, se tiver paciência e nos escutar. Verônica segurou<br />

a cabeça entre as mãos e disse:<br />

- Não estou entenden<strong>do</strong> nada...<br />

Afagan<strong>do</strong>-lhe os cabelos, a entidade espiritual esclareceu:<br />

- Você concor<strong>do</strong>u em vir para cá e ficar perto de seu antigo inimigo, de<br />

mo<strong>do</strong> a servir-lhe e buscar cultivar sua simpatia e seu perdão.<br />

- De quem está falan<strong>do</strong>?<br />

- Que sentimentos Boris lhe desperta? Verônica pensou um pouco, depois<br />

nomeou:<br />

- Me<strong>do</strong>, tristeza, culpa...<br />

- Exatamente. Em existência pregressa, há muitos séculos, você arquitetou<br />

a morte de seu entea<strong>do</strong>. Distanciou-se <strong>do</strong> bem que poderia ter cultiva<strong>do</strong> e perdeu-se<br />

em orgulho e vaidade. Após desencarnar vagou durante séculos, e seu<br />

inimigo a perseguiu por escuras cavernas, nas regiões sombrias <strong>do</strong> planeta.<br />

Sofreu muitas <strong>do</strong>res até ser finalmente resgatada por abnega<strong><strong>do</strong>s</strong> servi<strong>do</strong>res da<br />

luz. Em várias etapas de aprendiza<strong>do</strong>, reencarnou algumas vezes. Por fim,<br />

mais preparada, aceitou regressar para resgatar os débitos contraí<strong><strong>do</strong>s</strong> com esse<br />

inimigo <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Agora tem nova oportunidade de convívio, exatamente<br />

como desejou. Seja forte. Peça ajuda a Deus, com sinceridade, e submeta-se à<br />

sua vontade amorosa. E para seu próprio bem. Quan<strong>do</strong> recobrou um pouco de<br />

lucidez, percebeu o quanto se desviara da senda que deveria trilhar e arrependeu-se.<br />

Não reincida num caminho tortuoso. Aprenda a ouvir seu coração. Nós<br />

vamos lhe falar através dele. Ouça-nos. Ouça sua consciência. Sua sensibilidade<br />

foi intensificada para ajudá-la a nos perceber melhor.<br />

Fazen<strong>do</strong> grande esforço para compreender o que dizia aquela bela jovem,<br />

ela procurou confirmação:<br />

- Quer dizer que prejudiquei Boris em outra vida?<br />

- Muito. Você colocou pai contra filho, e vice-versa. Suas intrigas e insinuações<br />

venenosas instilaram desconfiança e ódio entre os <strong>do</strong>is. E como resulta<strong>do</strong><br />

da intemperança <strong>do</strong> pai, ele acabou com a vida <strong>do</strong> filho.<br />

Verônica soltou um grito de horror e murmurou:<br />

- Não pode ser verdade... Não posso ter si<strong>do</strong> esse monstro... Sorrin<strong>do</strong> afetuosa,<br />

a entidade tomou-lhe as mãos e falou, carinhosa:<br />

106


- To<strong><strong>do</strong>s</strong> já praticamos crimes contra as leis de Deus. Não há um só ser que<br />

não tenha cometi<strong>do</strong> erros. Estamos aqui para auxiliá-la a consertar os enganos<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Para isso, precisa aprender a per<strong>do</strong>ar-se, com humildade, e conviver<br />

com Boris, buscan<strong>do</strong> ser-lhe útil, ganhan<strong>do</strong> sua simpatia e por fim seu perdão.<br />

Somente assim poderá refazer esse <strong>do</strong>loroso momento de sua história.<br />

Não conseguirá retomar o caminho da ascensão espiritual enquanto não se<br />

redimir com Boris.<br />

Verônica ficou muda por alguns instantes, depois comentou:<br />

- Não consigo me lembrar... Como era o nome dele?<br />

- Ele se chamava Crispus. Verônica arregalou os olhos e gemeu:<br />

- Crispus... Crispus... Sim, eu me lembro...<br />

VINTE E DOIS<br />

O INVERNO DE 1402 se anunciava <strong><strong>do</strong>s</strong> mais rigorosos. O dia amanheceu<br />

muito frio. A neve cobria as ruelas da esplêndida cidade de Praga e o ar gela<strong>do</strong><br />

dificultava a respiração <strong><strong>do</strong>s</strong> caminhantes. O extenso rio Vltava, congela<strong>do</strong>,<br />

transformara-se na sensação das crianças e <strong><strong>do</strong>s</strong> jovens, que a<strong>do</strong>ravam andar<br />

sobre ele durante o perío<strong>do</strong> em que assim permanecia.<br />

A reforma da bonita capela estava quase terminada. Venceslau 9 veio pessoalmente<br />

supervisionar o andamento das obras. Depois de caminhar por to<strong>do</strong><br />

o interior da capela, comentou, ao sair:<br />

- Quan<strong>do</strong> poderão entregá-la pronta?<br />

- Dentro de três ou quatro meses, majestade.<br />

- Por que tanto tempo? Já está quase tu<strong>do</strong> feito!<br />

O arquiteto responsável calou-se, enquanto o rei meditou um pouco antes<br />

de determinar:<br />

- Contratem mais homens, se isso resolver. Quero que me entreguem a capela<br />

no máximo em <strong>do</strong>is meses. Vou colocá-la logo para funcionar!<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> arquitetos adiantou-se e disse, resoluto:<br />

- Vamos providenciar mais homens para abreviar os trabalhos de renovação<br />

da capela.<br />

- Muito bem! Têm <strong>do</strong>is meses.<br />

Ao entrar na carruagem, comentou com a esposa, que o aguardava:<br />

- Mais <strong>do</strong>is meses e estará pronta.<br />

9 Venceslau IV, da casa de Luxemburgo, foi rei da Boêmia e governou entre 1363 e 1419.<br />

107


- Está fican<strong>do</strong> uma beleza, Venceslau. Já decidiu quem vai ser o próximo<br />

responsável por ela?<br />

O jovem rei pensou por instantes, visualizan<strong>do</strong> a figura <strong>do</strong> homem que havia<br />

escolhi<strong>do</strong>, e respondeu:<br />

- Sim, vou colocá-la nas mãos de Jan Huss.<br />

- Excelente! Ninguém poderia ser melhor! Creio que esse é o homem escolhi<strong>do</strong><br />

por Deus para conduzir nossa capela de Belém 10 . Já contou a ele sobre<br />

sua nova responsabilidade?<br />

- Ainda não.<br />

- Pois faça-o logo. Ele ficará feliz.<br />

- Jan tem esta<strong>do</strong> muito ocupa<strong>do</strong>. Suas atribuições como reitor da universidade<br />

estão toman<strong>do</strong> bastante seu tempo.<br />

- Não se preocupe, queri<strong>do</strong>. Sei que ele está decidi<strong>do</strong> a denunciar os abusos<br />

da Igreja, e não há melhor mo<strong>do</strong> de fazê-lo <strong>do</strong> que lhe oferecen<strong>do</strong> o púlpito da<br />

capela, onde vai falar em nossa própria língua, estenden<strong>do</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong> a possibilidade<br />

de compreensão <strong><strong>do</strong>s</strong> serviços religiosos. Ele saberá usá-lo muito bem.<br />

Afinal, tem preparo e coragem para enfrentar os clérigos.<br />

Venceslau, atento à manifestação da esposa, fitou-a sério e indagou:<br />

- Acha mesmo?<br />

- Não tenho qualquer dúvida.<br />

O rei silenciou e ela sorriu, deten<strong>do</strong>-se em minuciosa observação da capela,<br />

enquanto a carruagem se afastava. A neve começou a cair novamente sobre<br />

a cidade, e Vesceslau e a rainha foram direto para o Castelo de Praga, lar da<br />

família real da Baviera.<br />

Ao entrar, o soberano ordenou a um de seus mensageiros:<br />

- Quero que mandem chamar Jan Huss. Desejo vê-lo o quanto antes.<br />

Jan Huss, então com 33 anos de idade, havia assumi<strong>do</strong> a reitoria da Faculdade<br />

de Filosofia de Praga e comandava-a com paixão. Fortemente influencia<strong>do</strong><br />

pelas obras de John Wyclif 11 , tornou-se abertamente defensor da idéia de<br />

que a Igreja precisava passar por profunda mudança, por uma reconstrução<br />

espiritual, para retornar à sua essência; não aceitava a supremacia papal, mas a<br />

<strong>do</strong>utrina de que Cristo, e não Pedro, era o chefe da Igreja, consideran<strong>do</strong> o Evangelho<br />

como única lei que deveria ser seguida.<br />

10 A capela de Belém foi fundada no ano 1391, como o lugar onde se pregava em checo, e<br />

tinha capacidade de albergar 3 mil pessoas.<br />

11 John Wyclif foi professor da Universidade de Oxford, teólogo e reforma<strong>do</strong>r religioso inglês,<br />

considera<strong>do</strong> precursor das reformas religiosas que sacudiram a Europa nos séculos XV e XVI.<br />

Trabalhou na primeira tradução da Bíblia para o idioma inglês, que ficou conhecida como a<br />

Bíblia de Wyclif.<br />

108


Senta<strong>do</strong> a sua mesa, Jan empunhava a pena e escrevia quan<strong>do</strong> o mensageiro<br />

<strong>do</strong> rei lhe bateu à porta:<br />

- Entre.<br />

Cumprimentan<strong>do</strong>-o com sincera simpatia, o jovem mensageiro informou:<br />

- Sua alteza, o rei Venceslau, deseja vê-lo, senhor. Quer que jante com ele<br />

esta noite.<br />

Jan Huss se levantou e caminhou até a janela. Entreabriu-a e logo sentiu no<br />

rosto o vento gela<strong>do</strong>. Depois, virou-se para o rapaz e disse:<br />

- É claro que irei ter com o rei. Pode confirmar minha presença à mesa real.<br />

O mensageiro se retirou e o padre ficou fitan<strong>do</strong> pela janela a bela cidade de<br />

Praga, que se tornara seu lar; havia muito trocara sua pequena Husinec pela<br />

grande cidade. Depois voltou a sentar-se e retornou as notas com as quais preparava<br />

uma obra em que denunciava os abusos da Igreja Católica. Jan amava o<br />

Evangelho com desvelo e recitava-o praticamente de cor. Meditava nas lições<br />

deixadas por Jesus e encantava-se com a beleza e profundidade daqueles ensinos,<br />

que julgava ainda distantes da compreensão <strong><strong>do</strong>s</strong> religiosos de seu tempo.<br />

Por alguma razão de que não tinha total clareza, a grande maioria <strong>do</strong> clero não<br />

entendia o Evangelho, tampouco se comprometia em aprofundar suas experiências<br />

e meditações sobre Jesus e seus ensinamentos. Para ele, a Igreja tornara-se<br />

um amontoa<strong>do</strong> de <strong>do</strong>gmas e regras que serviam aos interesses temporais<br />

e terrenos de seus líderes, que estavam muito distantes das verdadeiras lições<br />

<strong>do</strong> Mestre de Nazaré. Jan se preocupava também com o povo e seus sofrimentos.<br />

Toca<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>r <strong>do</strong> próximo, era freqüentemente visto pelas ruas distribuin<strong>do</strong><br />

mantimentos e conversan<strong>do</strong> com as pessoas, que buscava consolar e atender<br />

sempre que podia. Tornara-se um homem respeita<strong>do</strong> pelo clero e pela<br />

nobreza, e ama<strong>do</strong> pelo povo tcheco.<br />

Logo que entardeceu, Jan se dirigiu ao castelo. Senta<strong>do</strong> à mesa em companhia<br />

de Venceslau, da rainha Sofia, <strong>do</strong> arcebispo de Praga e de alguns membros<br />

da nobreza tcheca, o rei informou sua decisão.<br />

- A capela de Belém em breve estará completamente renovada. Quero que<br />

assuma sua direção e seu púlpito, Jan.<br />

O padre sorriu.<br />

- Fico extremamente honra<strong>do</strong>, majestade. Gostaria imensamente de expressar<br />

com maior liberdade meus pensamentos a respeito das mudanças que<br />

creio serem necessárias à Igreja.<br />

- Pois, com meu consentimento, tão logo a capela esteja pronta, assumirá<br />

seu coman<strong>do</strong> e poderá dizer o que pensa sobre a situação da Igreja e apresentar<br />

suas idéias para a necessária renovação.<br />

109


Erguen<strong>do</strong> pesada taça de ouro puro, cravejada com pedras preciosas, Venceslau<br />

levantou-se e conclamou:<br />

- Um brinde à nossa capela e ao seu novo líder. Toca<strong><strong>do</strong>s</strong> os copos, o rei finalizou:<br />

- Saúde.<br />

Com discreto sorriso nos lábios, o arcebispo acompanhava a movimentação.<br />

Simpatizava com Jan, embora por vezes o achasse demasia<strong>do</strong> apaixona<strong>do</strong><br />

e emotivo. No entanto, acreditava que eram arroubos <strong>do</strong> jovem pobre de Husinec<br />

que em poucos anos se tornara influente e admira<strong>do</strong>. Acompanhava seus<br />

mínimos gestos e analisava-os com atenção.<br />

Ao final da celebrada ocasião, despediu-se de seu anfitrião:<br />

- Preciso retirar-me, alteza. O rei objetou.<br />

- Tão ce<strong>do</strong>?<br />

- Meus deveres são muitos, senhor, preciso mesmo ir.<br />

- Pois então vá, arcebispo.<br />

Antes que o clérigo terminasse de vestir a capa, com vista a proteger-se <strong>do</strong><br />

intenso frio que fazia fora <strong>do</strong> palácio, o rei indagou:<br />

- Crê que nossa capela de Belém estará em boas mãos?<br />

- Como não? Jan é um padre estudioso e capacita<strong>do</strong>, e seu poder de retórica<br />

o fará um excelente prega<strong>do</strong>r. Temos o homem apropria<strong>do</strong> para as funções.<br />

- Fico satisfeito.<br />

- Boa noite, alteza.<br />

Retiran<strong>do</strong>-se, o arcebispo foi direto para o monastério, à procura de Verônica.<br />

Assim que chegou, perguntou sobre a jovem. Adriana informou:<br />

- Ela está trancada em seu quarto, senhor.<br />

- Vou até a biblioteca. Traga-a até mim.<br />

Ocupan<strong>do</strong> uma cadeira espaçosa próxima à lareira, o arcebispo ajeitava de<br />

leve a lenha quan<strong>do</strong> Verônica, assustada, apareceu à porta. Estenden<strong>do</strong>-lhe a<br />

mão para que a beijasse, o arcebispo convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos, minha filha, entre.<br />

Como a moça parecia hesitar, ele insistiu:<br />

- Entre. Sente-se, precisamos conversar.<br />

Verônica entrou e se acomo<strong>do</strong>u em uma cadeira de onde o olhava de frente.<br />

Ele limpou a garganta e disse, pegan<strong>do</strong> de sobre a mesa uma carta manuscrita:<br />

-Tenho aqui informações sobre a senhorita. Fugiu, não é mesmo?<br />

Verônica observava o religioso em absoluto silêncio. Seus olhos azuis acompanhavam-lhe<br />

os menores gestos. Ele ergueu-se, caminhou até bem próximo<br />

dela, fitou-lhe o rosto e comentou:<br />

110


- E muito bonita, Verônica... Como sua mãe. Ouvin<strong>do</strong> falar da mãe, a jovem<br />

animou-se a perguntar:<br />

- Conhecia minha mãe?<br />

- Sim, conhecia-a muito bem. Fez breve pausa, depois prosseguiu:<br />

- Como acha que conseguiu entrar neste mosteiro?<br />

- Não sei. Acho que por causa de meu primo.<br />

- Boris?<br />

- Sim.<br />

Esboçan<strong>do</strong> cínico sorriso, o arcebispo redarguiu:<br />

- Sua entrada neste santuário nada tem a ver com seu primo, muito embora<br />

agora ele seja o responsável por você.<br />

O arcebispo se ergueu novamente, caminhou até a moça e pediu:<br />

- Deixe-me ver o escapulário.<br />

Instintivamente, como para proteger a preciosa lembrança que trazia da<br />

mãe, ela segurou-o forte sob as vestes e murmurou:<br />

- E um presente de minha mãe. Pertencia a ela e agora é meu. Erguen<strong>do</strong> ligeiramente<br />

a voz, o religioso ordenou:<br />

- Quero vê-lo já! -Não!<br />

- Minha jovem, não seja inconseqüente. Sei que não é isso que sua mãe desejaria,<br />

por isso mesmo deu a você esse precioso objeto que agora ordeno que<br />

me entregue.<br />

Verônica continuou a segurá-lo firme, e o arcebispo acrescentou:<br />

- Tenho um pedi<strong>do</strong> aqui em minhas mãos para entregá-la à Inquisição, a<br />

fim de que a investiguem.<br />

Com os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong> de terror, a jovem ajoelhou-se diante <strong>do</strong> religioso<br />

e implorou:<br />

- Por favor, não faça isso... Erguen<strong>do</strong>-a, ele sussurrou-lhe ao ouvi<strong>do</strong>:<br />

- Então colabore. Deixe que eu veja o escapulário. Temerosa, a jovem puxou<br />

a pequena peça e colocou-a sobre a roupa. O arcebispo tomou-a nas mãos,<br />

observou-a atentamente e a arrancou com força <strong>do</strong> pescoço da jovem, que caiu<br />

no chão em prantos, indagan<strong>do</strong>:<br />

- Por que faz isso? O que tem meu escapulário que não pode permanecer<br />

comigo? Diga-me vossa santidade, explique-me para que eu entenda...<br />

Com a peça presa nas mãos, ele disse:<br />

- E um escapulário muito especial, feito exclusivamente para uns poucos<br />

servi<strong>do</strong>res da Igreja; existem apenas cinco.<br />

Retirou de dentro da batina seu próprio escapulário, e Verônica percebeu<br />

que eram idênticos. Ele prosseguiu:<br />

- Não deveria estar nas mãos de hereges!<br />

111


- Ele pertencia à minha mãe e agora pertence a mim!<br />

- Não. Pertence a seu pai, que jamais o deveria ter da<strong>do</strong>. Entretanto, apesar<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> graves deslizes que ele cometeu, permanece fiel à Igreja. Vou devolver<br />

esta jóia ao legítimo <strong>do</strong>no.<br />

Verônica mal podia respirar.<br />

O arcebispo ergueu-se e caminhan<strong>do</strong> para a porta comentou, antes de sair:<br />

- O padre que a recebeu à porta na outra noite é o verdadeiro <strong>do</strong>no <strong>do</strong> escapulário.<br />

Ele saiu, deixan<strong>do</strong> Verônica trêmula pela chocante revelação. Adriana apareceu<br />

em seguida e pediu:<br />

- Vamos, precisamos nos recolher; já é muito tarde, venha.<br />

Quase incapaz de se manter sobre as próprias pernas, Verônica an<strong>do</strong>u até o<br />

quarto e, sem pronunciar sequer uma palavra, entrou e sentou-se em sua cama,<br />

ainda chocada.<br />

VINTE E TRÊS<br />

VERÔNICA FITAVA o NADA, enquanto sentia as lágrimas quentes descerem<br />

pelo rosto. Deitou-se e, fechan<strong>do</strong> os olhos, chorou amargurada. O que a vida<br />

lhe reservara? Somente <strong>do</strong>r e angústia. Depois pensou no pai, de quem a mãe<br />

pouco lhe falava; quan<strong>do</strong> o fazia era com carinho e ternura e sempre dizia que<br />

ele fora servir a Deus em outras terras. Ela não compreendia, e a mãe não esclarecia.<br />

Deitada sob o teto <strong>do</strong> monastério, a jovem refletia: então a mãe a enviara<br />

ao encontro <strong>do</strong> pai, e não <strong>do</strong> primo? Seria mesmo verdade? E por que o<br />

pai não lhe dissera nada? Afinal, como poderia ser um padre da Igreja, e com o<br />

conhecimento <strong>do</strong> arcebispo? Sentia-se confusa e triste. Depois de chorar muito,<br />

acabou por a<strong>do</strong>rmecer.<br />

Duas semanas se passaram. A rotina de Verônica era desgastan-te: levantava-se<br />

por volta de cinco horas da manhã e seguia direto para a capela, onde<br />

fazia suas preces junto com outras noviças e freiras. Então seguiam em absoluto<br />

silêncio até uma grande sala de refeições; a uma mesa enorme, todas faziam<br />

o desjejum sem qualquer barulho. Logo em seguida ela começava sua jornada<br />

de trabalho, que incluía limpar o chão <strong><strong>do</strong>s</strong> corre<strong>do</strong>res, <strong><strong>do</strong>s</strong> quartos e <strong><strong>do</strong>s</strong> demais<br />

cômo<strong><strong>do</strong>s</strong>, enfim, <strong>do</strong> grande mosteiro. Antes <strong>do</strong> almoço ela se lavava e<br />

retornava à capela, para mais orações. Depois <strong>do</strong> almoço, nova rodada de trabalho,<br />

desta vez na cozinha. E assim que começava a escurecer, jantava e ia<br />

direto para o quarto. Presa naquela rotina diária, sentia-se prestes a enlouquecer.<br />

112


Naquela noite, em especial, quan<strong>do</strong> voltou para o quarto, sentou-se na cama,<br />

desalentada. Sentia que suas forças se esvaíam e estava quase desfalecen<strong>do</strong>.<br />

Sem ânimo para se vestir para <strong>do</strong>rmir, permaneceu longo tempo sentada.<br />

Então, bateram na porta.<br />

- O que deseja, irmã Adriana? - ela disse. - Estou muito cansada e me preparan<strong>do</strong><br />

para <strong>do</strong>rmir.<br />

Uma voz de homem respondeu:<br />

- Sei que está cansada, minha filha, mas deixe-me entrar. Ela se levantou e<br />

foi até a porta:<br />

- Quem é você?<br />

O homem baixou ligeiramente a voz ao dizer:<br />

- Sou padre Thomas. Abra, por favor.<br />

- O que deseja?<br />

- Preciso falar com você. Somente um instante.<br />

- Não posso falar com ninguém, padre. Estou aqui, reclusa. Não vê minha<br />

situação? Todas as moças estão juntas num mesmo quarto, mas eu permaneço<br />

isolada.<br />

- Eu sei, filha. Mas tenho algo que lhe pertence.<br />

Curiosa, Verônica entreabriu a porta e reconheceu de imediato o semblante<br />

<strong>do</strong> padre que a recepcionara no dia de sua chegada. Seu coração disparou e<br />

parecia querer sair-lhe pela boca. Pela pequena fresta da porta aberta o fitava,<br />

quan<strong>do</strong> ele insistiu:<br />

- Deixe-me entrar, Verônica.<br />

Enfim ela abriu mais a porta e o padre logo entrou, fechan<strong>do</strong>-a. Verônica<br />

se afastou, sem desviar o olhar daquele homem, em quem via seus próprios<br />

olhos e a mesma cor <strong><strong>do</strong>s</strong> seus cabelos. Padre Thomas aproximou-se um pouco<br />

mais e pediu:<br />

- Não tenha me<strong>do</strong>, estou aqui para oferecer meu apoio.<br />

- Um pouco tarde, não acha?<br />

- Nunca é tarde, filha.<br />

- Pois para mim é. Minha vida está destruída. E tu<strong>do</strong> por quê? Porque vim<br />

para este lugar...<br />

- Sei que está sofren<strong>do</strong>, porém precisa aprender a acalmar seu coração e a<br />

confiar em Deus. Ele sabe o que é melhor para nós.<br />

- Não posso aceitar a vida que estou levan<strong>do</strong>.<br />

- Sua mãe a enviou para cá para protegê-la, e você sabe disso.<br />

- Proteger-me <strong>do</strong> quê?<br />

- De seu <strong>do</strong>m.<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

113


- De sua capacidade de ver e falar com pessoas que já morreram, de prever<br />

o futuro, de saber fatos que aconteceram em locais distantes, totalmente desconheci<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por você.<br />

- Não me lembro de nada disso...<br />

- Você é sonâmbula e faz isso enquanto <strong>do</strong>rme, Verônica.<br />

- Como sabe?<br />

- Sua mãe me contou em diversas ocasiões.<br />

- Como, se nunca vi os <strong>do</strong>is juntos?<br />

- Eu a encontrava rapidamente quan<strong>do</strong> passava pelo vilarejo, em alguma<br />

viagem. Foram poucas as vezes, mas nos vimos e ela me contou sobre o que<br />

ocorria com você. Sua mãe se preocupava bastante com seu futuro, com sua<br />

segurança, e por isso não teve escolha, a não ser enviá-la para cá. Ela sabia que<br />

assim, mais perto, eu poderia tomar conta de você.<br />

Baixan<strong>do</strong> a cabeça, Verônica guar<strong>do</strong>u silêncio. Padre Thomas deu seqüência<br />

à narrativa:<br />

- Eu e sua mãe nos conhecemos antes de eu me tornar padre e nos apaixonamos.<br />

Minha família, constituída por nobres, planejava que eu servisse à Igreja,<br />

contu<strong>do</strong>, meu coração pertencia a Geórgia, não mais a mim mesmo. A<br />

família de sua mãe era de camponeses, gente simples e honesta. Meus pais não<br />

admitiam sequer a hipótese de nos casarmos. E quan<strong>do</strong> descobriram que ela<br />

possuía capacidade semelhante à sua meu pai ameaçou entregá-la à Inquisição,<br />

caso eu insistisse em vê-la. Disse inclusive que, se decidíssemos fugir, nos caçaria<br />

até o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a entregaria à Inquisição. Geórgia via espíritos até<br />

desperta, e ficava completamente tomada pelas visões. O padre silenciou brevemente,<br />

e Verônica balbuciou:<br />

- Eu sei... Presenciei o fato algumas vezes.<br />

- Eu era jovem e não sabia ao certo o que fazer. Tentan<strong>do</strong> protegê-la, aceitei<br />

sagrar-me padre. Meu pai ficou satisfeito e acalmou-se. Antes, entretanto,<br />

decidi encontrar-me com ela uma última vez e explicar-lhe o que se passava.<br />

Foi aí que descobri que ela esperava um filho... você, Verônica.<br />

Lágrimas desciam <strong><strong>do</strong>s</strong> olhos <strong>do</strong> padre. Verônica o escutava com atenção e<br />

ele prosseguiu.<br />

- Eu não podia fazer nada... Não podia casar-me com ela, como desejava,<br />

porque se o fizesse minha família a destruiria. Nós <strong>do</strong>is concordamos, então,<br />

que ela deveria ir para longe de Praga, para algum lugar distante, onde pudesse<br />

criar você. Eu lhe dei to<strong>do</strong> o dinheiro que consegui, bem como adquiri uma<br />

pequena propriedade, onde vocês passaram a residir. No dia em que ela partiu,<br />

antes ainda de você nascer, entreguei-lhe isto.<br />

114


Padre Thomas depositou o escapulário nas mãos de Verônica e fechou-as,<br />

enquanto continuava:<br />

- Sempre que podia, passava lá para vê-la, sem jamais me aproximar muito,<br />

temeroso das conseqüências que isso poderia acarretar a ela e depois a você.<br />

Ele emudeceu por longo tempo. Depois, acarician<strong>do</strong>-lhe os cabelos <strong>do</strong>ura<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

disse:<br />

- Sinto muito, minha filha, por tu<strong>do</strong> o que você já sofreu. Sinto não lhe ter<br />

da<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que eu desejava. Não foi possível... Não tive a coragem suficiente<br />

para lutar contra to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Tive muito me<strong>do</strong> por sua mãe e por você. Eu já presenciei<br />

diversas ações da Inquisição e sei <strong>do</strong> que é capaz. Não poderia permitir<br />

que vocês se expusessem a qualquer risco. Consegui proteger sua mãe e você.<br />

Mesmo meu pai saben<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>, fiz um acor<strong>do</strong> com ele para que nada as atingisse,<br />

se me mantivesse a serviço da Igreja. E aqui estou, cumprin<strong>do</strong> minha<br />

parte. Meu pai também cumpriu a dele, enquanto estava vivo. Há <strong>do</strong>is anos<br />

morreu, e o cerco começou a se fechar sobre você e sua mãe. Só aqui você<br />

poderia estar em relativa segurança. Abraçan<strong>do</strong>-a com profun<strong>do</strong> carinho, pediu:<br />

- Não duvide <strong>do</strong> meu amor por você, filha.<br />

Verônica fitou o pai com seus grandes olhos azuis e indagou:<br />

- Essa injustiça nunca terá fim? A Igreja seguirá abusan<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder, sem<br />

pensar em nada e em ninguém? Onde está Deus que não faz nada?<br />

- Deus está sempre perto de nós, filha.<br />

- Mas como?<br />

- Ele envia seus mensageiros para orientar os homens. Existe um padre em<br />

Praga que está se levantan<strong>do</strong> para falar sobre os abusos da Igreja, os absur<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

que são feitos em nome de Deus. Ele traz alguma esperança aos corações daqueles<br />

que, como nós, se sentem oprimi<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo poder esmaga<strong>do</strong>r da Igreja.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, a moça indagou:<br />

- Quem é ele?<br />

- Jan Huss.<br />

- Acho que vi esse nome entre as coisas de minha mãe.<br />

- Dei a ela cópia de alguns manuscritos que ele escreveu. Geórgia desejava<br />

ardentemente que mudanças acontecessem. Ela não sabia ler muito bem, mas<br />

esforçava-se para tentar ler os manuscritos de Huss. Onde estão eles?<br />

Verônica abriu uma pequena caixa que pertencera à mãe e mostrou os manuscritos.<br />

Ele comentou:<br />

- Você saber ler, não é?<br />

- Um pouco.<br />

115


-Então aproveite para conhecer os escritos de Huss. Sei que lhe farão bem,<br />

filha. E lembre-se de pedir por ele em suas preces... Se prosseguir com suas<br />

declarações, precisará <strong>do</strong> apoio de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Ambos se conservaram em silêncio por alguns minutos, até que o padre<br />

anunciou:<br />

- Agora é prudente que eu vá. Não perca as esperanças. Sobretu<strong>do</strong>, não<br />

perca a fé em Deus.<br />

Apertan<strong>do</strong> o escapulário que mantinha entre as mãos, Verônica perguntou:<br />

- O arcebispo vai tirá-lo de mim outra vez?<br />

- Por ora, guarde-o em algum lugar seguro, da mesma forma que os escritos<br />

de Huss. O arcebispo o aceita, mas sei que não comunga das suas idéias.<br />

Guarde o escapulário com carinho. Ele é seu, minha filha, não importa o que<br />

qualquer um diga a respeito disso.<br />

- E o arcebispo? O que fará se souber que não tem mais a jóia?<br />

- Não se preocupe. Deixe que me enten<strong>do</strong> com ele. Verônica fitou o pai e<br />

indagou:<br />

- Não pode ajudar-me a fugir daqui?<br />

- Eu gostaria muito... Acontece que seu primo tem forte ascendência junto<br />

ao arcebispo e o convenceu plenamente de que seu lugar é aqui, para que possa<br />

redimir-se de seus peca<strong><strong>do</strong>s</strong> contra a Igreja.<br />

- Isso não é verdade...<br />

- Eu sei que é um equívoco, mas Boris é influente e não sei por que motivo<br />

cismou que você deve ser freira, para ser protegida de si mesma...<br />

- É um absur<strong>do</strong>...<br />

- São muitos os absur<strong><strong>do</strong>s</strong>, Verônica, ainda muito maiores <strong>do</strong> que este nosso<br />

drama pessoal.<br />

Dirigin<strong>do</strong>-se para a porta, ele se despediu:<br />

- Agora devo ir, filha. Boa noite.<br />

Hesitante, a jovem só respondeu depois que a pesada porta se fechou:<br />

- Boa noite... pai...<br />

Verônica pôde escutar os passos <strong>do</strong> pai que acabara de conhecer se afastarem<br />

pelo longo e úmi<strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r. Buscou, então, os escritos de Jan Huss e<br />

sentou-se na cama. Com a vela que iluminava o ambiente já bem pequena,<br />

mesmo assim ela começou a ler os textos. Quan<strong>do</strong> a luz se apagou por completo,<br />

ajeitou-se entre as cobertas e pela primeira vez em muito tempo sorriu antes<br />

de pegar no sono.<br />

116


VINTE E QUATRO<br />

O DIA AMANHECERA radiante, cheio de energia; uma vibração suave e ao<br />

mesmo tempo intensa podia ser captada pelas almas mais sensíveis. As ruas da<br />

cidade estavam repletas de flores, cujo perfume se espalhava pelo ar em todas<br />

as direções. Era primavera em Praga e naquela manhã especial as pessoas não<br />

cessavam de chegar para a missa inaugural de Jan Huss à frente da Capela de<br />

Belém. Quan<strong>do</strong>, enfim, ele se dirigiu ao púlpito, o recinto estava lota<strong>do</strong>. Muitos<br />

fiéis acorriam para vê-lo e ouvi-lo, dentre eles padre Thomas.<br />

Grande número de espíritos a serviço de Jesus também se fazia presente,<br />

envolven<strong>do</strong> o ambiente em luz fulgurante e lhe conferin<strong>do</strong> igualmente forte<br />

proteção, de maneira a impedir que entidades das trevas ali penetrassem.<br />

Antes de sair de sua sala, Jan observou o salão lota<strong>do</strong>. Sentin<strong>do</strong> o coração<br />

envolvi<strong>do</strong> pelas suaves luzes que enchiam a atmosfera, respirou fun<strong>do</strong>, como a<br />

sorver aquelas vibrações e, com os olhos rasos de lágrimas, orou:<br />

- Jesus, meu Mestre, graças te <strong>do</strong>u pela oportunidade de f alar em teu nome,<br />

pela possibilidade de te servir por meio das palavras. Sinto em meus ombros o<br />

peso da responsabilidade por aquilo que proferirei a todas essas pessoas, que<br />

aqui procuram o alimento para suas almas. Ajuda-me, senhor, a falar o que é<br />

de tua vontade. Não me permite colocar os olhos em mim mesmo; impede-me<br />

de dizer uma só palavra que esteja em desacor<strong>do</strong> com a tua vontade e os teus<br />

desejos. Ampara-me a boca e os lábios, para que sejam instrumentos de tuas<br />

misericordiosas palavras. Amém.<br />

Em seguida, resoluto, adentrou o salão e ocupou seu lugar ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei.<br />

Venceslau outorgou-lhe oficialmente, diante de to<strong>do</strong> o povo, a condução da<br />

capela e o seu púlpito, e depois se sentou. A rainha Sofia presenciava, satisfeita,<br />

a solenidade. O arcebispo também acompanhava os mínimos movimentos<br />

<strong>do</strong> clero, da nobreza, e especialmente de Jan Huss. Ele, então, tomou o púlpito<br />

e pela primeira vez celebrou toda a missa na língua tcheca, e não em latim,<br />

como era o usual em todas as igrejas católicas, de sorte que to<strong><strong>do</strong>s</strong> o podiam<br />

compreender. Falou sobre a força da fé em Deus e a necessidade <strong>do</strong> homem de<br />

nele depositar total confiança. Depois levou o povo a meditar sobre a urgência<br />

das reformas que a Igreja precisava se comprometer a realizar, se quisesse servir<br />

a Deus, auxilian<strong>do</strong> o povo a fortalecer sua fé.<br />

Eloqüentes e persuasivas, suas palavras foram recebidas com extrema simpatia<br />

pela quase totalidade <strong><strong>do</strong>s</strong> presentes. Não obstante guardasse reservas<br />

117


frente à empolgada preleção de Huss a respeito <strong><strong>do</strong>s</strong> abusos da Igreja, o clero o<br />

apoiava, na maioria, cren<strong>do</strong> que suas pregações fortaleceriam a Igreja tcheca.<br />

Vesceslau e especialmente Sofia estavam radiantes ao deixar a capela. Sentiam,<br />

confiantes, como se nova etapa se iniciasse. De fato, aquele momento<br />

marcaria a oposição declarada de Praga aos abusos eclesiásticos.<br />

A alguns quilômetros dali, em uma clareira, quatro entidades espirituais<br />

assistiam a distância a movimentação na capela. Uma delas comentou, visivelmente<br />

contrariada:<br />

- Não estou gostan<strong>do</strong> nada <strong>do</strong> que vejo.<br />

- E... Também não me agrada o rumo que as coisas estão toman<strong>do</strong> - respondeu<br />

outra. - Com esse andar a situação poderá complicar-se para nós.<br />

A terceira comentou:<br />

- Não pudemos nos aproximar... Isso não é bom...<br />

E a que se mantivera calada ergueu a voz para ordenar:<br />

- Calem-se. Não estão ven<strong>do</strong> que necessitamos de concentração? Precisamos<br />

de Núbio aqui.<br />

- Por quê? Ele é capaz de nos trucidar por não termos sequer nos aproxima<strong>do</strong>...<br />

- Fique quieto, se não tem nada inteligente a dizer...<br />

A grotesca figura ia se defender, quan<strong>do</strong> chegou uma entidade espiritual<br />

envolta em pesa<strong>do</strong> e negro manto. Os quatro se colocaram em posição de reverência<br />

e cumprimentaram Núbio, que os fitou e indagou:<br />

- O que se passa? Por que me chamaram?<br />

- Não pudemos alcançar a capela e não conseguimos saber detalhes <strong>do</strong> que<br />

está acontecen<strong>do</strong>...<br />

Ele olhou atentamente para o local e depois comentou:<br />

- Ora, não é preciso esforço algum para saber o que se passa.<br />

E toman<strong>do</strong> com violência o rosto de um deles, mostrou a movimentação:<br />

- Estúpida criatura, o que está ven<strong>do</strong>?<br />

- Não sei...<br />

- Olhe bem, preste atenção...<br />

- Estão conversan<strong>do</strong>, sorrin<strong>do</strong>... Parecem felizes...<br />

- Exatamente! Exultantes, para ser exato.<br />

- Por que não pudemos ir até lá?<br />

- Vocês são patéticos... O que acham? Os espíritos de luz nos impuseram<br />

barreira vibratória.<br />

- Mas você não poderia tê-los impedi<strong>do</strong>?<br />

- E claro que poderia, se estivesse aqui, não é mesmo? Esse era o trabalho<br />

de vocês...<br />

118


Em busca de defesa, uma das entidades objetou:<br />

- Nós tentamos... E foi por isso que o chamamos... Bufan<strong>do</strong> impaciente,<br />

Núbio ficou longo tempo a observar e viu quan<strong>do</strong> Jan Huss saiu da capela em<br />

alegre conversação, junto ao arcebispo de Praga. Depois verificou que diversos<br />

padres e bispos o cumprimentaram com sincera simpatia e, viran<strong>do</strong>-se para os<br />

companheiros, declarou:<br />

- Temos muito a fazer aqui. Esse Jan Huss parece que nos dará trabalho.<br />

Conquistou a simpatia <strong>do</strong> clero. Continua len<strong>do</strong> aquele professor inglês?<br />

- Tenho acompanha<strong>do</strong> seus estu<strong><strong>do</strong>s</strong> e escritos e sei não só o lê com freqüência,<br />

como parece inspirar-se nele para escrever os próprios textos. E evidente<br />

que o a<strong>do</strong>tou por mentor.<br />

- Como eu imaginava. Estamos diante de uma criatura que certamente nos<br />

criará problemas.<br />

Calou-se por instantes, pensativo, e concluiu:<br />

- Mas nada que não possamos controlar e vencer. Vamos, temos muito trabalho<br />

a fazer. Esse Jan Huss precisa ser destruí<strong>do</strong>.<br />

As quatro entidades, lideradas por Núbio, logo desapareceram, enquanto<br />

comentavam:<br />

- Como faremos?<br />

- Não se preocupem. Nossa falange é grande e temos auxiliares espalha<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

em to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cantos. Não será difícil manipular os homens de acor<strong>do</strong> com nossos<br />

interesses.<br />

Na porta da capela, padre Thomas cumprimentou Huss, parabenizan<strong>do</strong>-o<br />

pela importante conquista. Assim que saiu, retornou para o mosteiro e foi direto<br />

procurar a filha. Baten<strong>do</strong> na porta <strong>do</strong> quarto, chamou:<br />

- Verônica, você está aí?<br />

Abrin<strong>do</strong> pequena fresta, ela respondeu baixinho:<br />

- Sim, estou aqui.<br />

Thomas percebeu que a jovem escondia o rosto e estranhou:<br />

- O que está haven<strong>do</strong>, filha? Abra a porta.<br />

Hesitante, a jovem acabou por abrir, e o pai entrou. Ao ver seu rosto machuca<strong>do</strong><br />

e suas mãos em carne viva, assustou-se:<br />

- O que aconteceu com você?<br />

Ela baixou os olhos e, esforçan<strong>do</strong>-se para conter a tristeza, bal-buciou:<br />

- Eu caí...<br />

Ele examinou o ferimento perto <strong><strong>do</strong>s</strong> olhos e o das mãos, e insistiu:<br />

- Vamos, conte-me. O que está haven<strong>do</strong>? O que aconteceu? Não suportan<strong>do</strong><br />

mais, ela explodiu em lágrimas:<br />

119


- Eu estava limpan<strong>do</strong> a escadaria principal <strong>do</strong> mosteiro. Boris me obrigou a<br />

limpá-la quinze vezes. Cada vez que aparecia, dizia que o serviço estava mal<br />

feito, que eu precisava fazer tu<strong>do</strong> outra vez. E de novo e de novo me obrigou a<br />

limpar. Da última vez, eu já não conseguia pegar o pano, mas ele insistiu que<br />

eu deveria repetir a limpeza. Ergui-me e mostrei-lhe o esta<strong>do</strong> de minhas mãos,<br />

mas ele retrucou que aquilo não era nada, que muitas penitências a que ele<br />

próprio se obrigara já o haviam feri<strong>do</strong> muito mais. Eu não suportei: avancei<br />

contra ele, que me empurrou. Caí e ele me empurrou novamente; desequilibrei-me<br />

e rolei da escada... Foi assim que feri os olhos.<br />

- E ele, o que fez?<br />

Cheia de ódio, Verônica respondeu:<br />

- Saiu dizen<strong>do</strong> que pediria a alguém para me ajudar.<br />

- Não a acudiu?<br />

- Nem tomou conhecimento. Fiquei caída, gemen<strong>do</strong>, até que a irmã Adriana<br />

veio me ajudar, garantin<strong>do</strong> que a culpa fora minha por tentar agredir o padre<br />

Boris. Deu-me o reca<strong>do</strong> de que deveria terminar o trabalho e depois ir para<br />

a capela <strong>do</strong> mosteiro, rezar durante o resto da noite para ser per<strong>do</strong>ada por tê-lo<br />

agredi<strong>do</strong>...<br />

A jovem não conseguiu dizer mais nada. Thomas abraçou-a com profun<strong>do</strong><br />

carinho e ela chorou convulsivamente em seu ombro. Quan<strong>do</strong> conseguiu se<br />

acalmar, indagou entre suspiros e soluços:<br />

- Por que isso tem de acontecer? O que fiz ao meu primo para que ele me<br />

odeie? O que fiz, pai?<br />

-Não sei, filha. Às vezes parece-nos que a vida é injusta, mas sei que não é.<br />

- Claro que é, pai! Esse Deus a quem vocês tanto dizem obedecer é um ser<br />

que não nos ama. Do contrário, por que nos faria sofrer tanto? Não consigo<br />

aceitar...<br />

Fitan<strong>do</strong>-a longamente, Thomas custou a falar. Enfim, inspira<strong>do</strong> por Angélica,<br />

entidade espiritual que o acompanhava, indagou:<br />

- O que sua mãe costumava dizer sobre questões dessa natureza?<br />

Verônica limpou os olhos e fitou o pai em silêncio. Depois, baixou a cabeça<br />

e respondeu:<br />

- Dizia-me que Deus sabe todas as coisas, que é bom e amoroso, mas que a<br />

Igreja tomou o seu lugar na Terra e está abusan<strong>do</strong> demais <strong>do</strong> poder que o To<strong>do</strong><br />

Poderoso lhe concede.<br />

- Geórgia era uma mulher singular. Tinha uma compreensão tão clara das<br />

coisas que chegava a me assustar. Ela estava certa, filha. Entendia as verdades<br />

espirituais melhor <strong>do</strong> que a maioria <strong><strong>do</strong>s</strong> padres. Não podemos atribuir a Deus<br />

uma culpa que é nossa.<br />

120


- Nossa culpa?<br />

- Dos homens em geral.<br />

- Não posso concordar. Então, por que ele permite que coisas como essas<br />

aconteçam? Por que permite que homens inescrupulosos abusem <strong>do</strong> poder,<br />

destruin<strong>do</strong> vidas, como faz a Inquisição?<br />

- E quem diz que permite? Quem diz que o Pai não está agin<strong>do</strong> para mudar<br />

as coisas?<br />

- Não... Não posso aceitar esse Deus. Há muita injustiça na Terra. Veja o<br />

meu caso: o que fiz para ter de sofrer desta forma?<br />

Sem saber o que responder, Thomas voltou a abraçar a filha e pediu:<br />

- Tenha calma, por favor. Ainda que não possamos compreender de imediato,<br />

deve haver uma razão; nós é que a desconhecemos<br />

Temos de confiar em Deus, Verônica, e ele haverá de nos auxiliar. Não<br />

podemos desacreditar...<br />

- Eu não posso confiar em um Deus que permite tantas injustiças e tanta<br />

<strong>do</strong>r...<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a mais forte, Thomas ficou cala<strong>do</strong> por um bom tempo; então,<br />

seguran<strong>do</strong> o rosto belo e delica<strong>do</strong> da filha, limpou-lhe as lágrimas e pediu mais<br />

uma vez:<br />

- Vamos confiar em Deus. Afinal, houve algo de bom em tu<strong>do</strong> isso: nós<br />

nos encontramos e estamos juntos.<br />

Verônica esboçou leve sorriso, depois baixou a cabeça e chorou sentida.<br />

Estavam ainda juntos quan<strong>do</strong> Boris bateu à porta:<br />

- Vamos, Verônica, tenho trabalho para você. Thomas abriu e o jovem padre<br />

o fitou, empertiga<strong>do</strong>:<br />

- O que faz aqui?<br />

- Estou visitan<strong>do</strong> a jovem Verônica.<br />

- Sua filha, não é? -Sim.<br />

- Pois é bom que não interfira em meus méto<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ela é minha responsabilidade,<br />

e preten<strong>do</strong> ensinar-lhe, a meu mo<strong>do</strong>, como se serve à Igreja. Haverá de<br />

ser mais humilde e obediente, isso será mesmo!<br />

- Ela está muito machucada, Boris. Apenas dê-lhe um tempo para se recuperar.<br />

- Venha, Verônica. Vamos limpar a capela hoje.<br />

A jovem arregalou os olhos e, mostran<strong>do</strong> as mãos, questionou:<br />

- Como poderei limpar algo, com as mãos neste esta<strong>do</strong>?<br />

- Que limpe com a boca, com os pés! Vai trabalhar para a Igreja para aprender<br />

a ser-lhe útil.<br />

- Por favor, Boris, deixe-me descansar um pouco...<br />

121


- Venha, agora!<br />

Thomas fez menção de interferir, mas Boris antecipou-se e avisou:<br />

- Se você se intrometer, Thomas, vai piorar a situação dela. E farei com<br />

que seja transferi<strong>do</strong> para bem longe. Talvez para outro continente, quem sabe?<br />

Precisamos expandir a mensagem da Igreja por toda a parte...<br />

Fazen<strong>do</strong> breve pausa, virou-se para Verônica, puxou-a pelo braço e ao saírem<br />

dizia:<br />

- Venha, vamos trabalhar, que o seu mal é a preguiça...<br />

VINTE E CINCO<br />

TRÊS ANOS SE PASSARAM. Verônica buscava, em vão, meios de fugir <strong>do</strong><br />

mosteiro. Resistia às constantes fustigadas de Boris e não se <strong>do</strong>brava interiormente.<br />

Ao contrário, sentia-se cada vez mais inconformada. Naquela manhã,<br />

Thomas a observou demoradamente enquanto Boris celebrava a missa. Parecia<br />

bem mais velha <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> chegara. Seu olhar era triste, sem brilho e sem<br />

esperança. Suas mãos haviam fica<strong>do</strong> ásperas pelo trabalho incessante. Muito<br />

mais <strong>do</strong> que isso, seu coração ia endurecen<strong>do</strong> diante das reiteradas agressões<br />

que sofria <strong>do</strong> primo. A vida como prisioneira da Igreja a revoltava profundamente.<br />

Quan<strong>do</strong> a missa terminou, a jovem voltou para o quarto. Thomas foi vê-la:<br />

- Você parece ainda mais triste hoje, filha.<br />

Dobran<strong>do</strong> mecanicamente as roupas que tinha sobre a cama, ela comentou:<br />

- Hoje faz três anos que minha mãe morreu.<br />

- E verdade. Havia me esqueci<strong>do</strong>.<br />

- Pois eu não me esqueço. Faz três anos que vivo neste inferno. E, agora,<br />

sou uma freira! Eu, uma freira!<br />

Thomas aproximou-se, afagou-lhe o rosto com ternura e falou:<br />

- Verônica, eu e mais dez padres estamos organizan<strong>do</strong> um orfanato para<br />

cuidar de crianças órfãs. O rei Venceslau apóia a iniciativa e hoje à tarde inauguraremos<br />

a casa onde serão abrigadas. Você não gostaria de ajudar? De dedicar<br />

algum tempo a essas crianças?<br />

- Eu, pai? Já não acha que trabalho bastante aqui?<br />

- Se quiser trabalhar conosco, posso interceder junto ao arcebispo para que<br />

destine parte de seu tempo a cuidar <strong><strong>do</strong>s</strong> pequeninos sem lar. Certamente seria<br />

um trabalho muito mais prazeroso para você. O que acha? Poderia sair, de vez<br />

em quan<strong>do</strong>.<br />

Verônica fitou o pai e a idéia da fuga lampejou em sua mente.<br />

122


- Eu poderia sair to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias?<br />

- Não, somente nos dias em que irá contribuir com o orfanato. Umas duas<br />

ou três vezes por semana. As crianças precisam de cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> de mãe...<br />

Verônica pensou um pouco, an<strong>do</strong>u de um la<strong>do</strong> a outro, sentou-se novamente<br />

na cama e afinal, fixan<strong>do</strong> os olhos <strong>do</strong> pai com seus grandes olhos azuis, disse:<br />

- Eu quero.<br />

- Ótimo, filha. Sei que sua mãe aprovaria sua decisão. Vou conversar com<br />

o arcebispo. Você está aqui há três anos e certamente se tem comporta<strong>do</strong> condignamente.<br />

Isso será favorável ao meu pedi<strong>do</strong> por você. Nunca mais an<strong>do</strong>u à<br />

noite, não é?<br />

- Não. Desde que cheguei aqui, sinto-me tão exausta e desolada... Nunca<br />

mais acordei fora de minha cama nem tive aquelas ausências prolongadas e<br />

estranhas.<br />

- E tem senti<strong>do</strong> alguma outra coisa estranha?<br />

- O que, por exemplo?<br />

- Eu não sei. Qualquer coisa.<br />

- Não. Só sinto tristeza e... ódio.<br />

- Verônica, não fale assim. O ódio não é bom conselheiro. Ele nos prejudica<br />

e é contrário aos ensinos de Jesus.<br />

- Diz isso porque não sabe o que eu tenho passa<strong>do</strong>, o que tenho sofri<strong>do</strong>...<br />

- Minha filha, deve aprender a abrandar o seu coração. É o único mo<strong>do</strong> de<br />

sermos felizes: aceitan<strong>do</strong> a vontade de Deus...<br />

- Pois eu não aceito! Não posso aceitar... Deus só me tem feito sofrer...<br />

Thomas permaneceu em silêncio, até que se levantou para sair.<br />

- Preciso ir - disse. - Quero falar com o arcebispo e ver se consigo a autorização<br />

para você colaborar no trabalho com as crianças.<br />

Quan<strong>do</strong> ele deixou o quarto, a filha deitou-se na cama e chorou amargamente.<br />

Não demorou muito e Thomas retornou:<br />

- Verônica, tenho boas notícias.<br />

A jovem abriu a porta e o pai, sem entrar no quarto, confirmou:<br />

- Consegui a autorização. Três vezes por semana você passará o dia com<br />

as crianças. Serão três dias com os pequeninos, que certamente aliviarão o seu<br />

coração. E você ficará longe deste lugar por algum tempo. Isso certamente lhe<br />

fará bem.<br />

- E Boris, permitiu que eu vá?<br />

- Ele acabou concordan<strong>do</strong>. Neste momento, o arcebispo está mais interessa<strong>do</strong><br />

nos problemas da Igreja <strong>do</strong> que nas querelas de Boris.<br />

- Que problemas?<br />

- Jan Huss.<br />

123


- O que ele fez?<br />

- Está insuflan<strong>do</strong> o povo e o clero contra a Igreja. Verônica mostrou-se interessada:<br />

- Insuflan<strong>do</strong> como?<br />

- Bem, embora não o faça diretamente, o tempo to<strong>do</strong> aponta as falhas, as<br />

incongruências, os desman<strong><strong>do</strong>s</strong> da Igreja. Suas missas na Capela de Belém têm<br />

atraí<strong>do</strong> milhares de pessoas. O povo de Praga o apoia e bebe suas palavras. O<br />

arcebispo está contraria<strong>do</strong>. Ele era muito próximo de Huss, mas sei que atualmente<br />

pouco se falam. As relações entre os <strong>do</strong>is esfriaram.<br />

Verônica ficou pensativa, depois indagou:<br />

- Ele fala na Capela de Belém em nossa própria língua e não em latim? É<br />

isso mesmo?<br />

- Sim, e as pessoas vêm de longe para ouvi-lo. Ele tem influencia<strong>do</strong> os ouvintes<br />

e o povo de Praga o apoia contra os abusos da Igreja. Huss, de fato, deu<br />

voz às insatisfações <strong>do</strong> povo, da nobreza e até de alguns membros <strong>do</strong> clero que<br />

não pactuam com o que se tem feito dentro da Igreja.<br />

- E você, pai, o que pensa?<br />

- Apesar de apreciar Jan Huss, sinto que ele se expõe demais.<br />

- E ele não teme?<br />

- Parece tão confiante como se nada o pudesse atingir.<br />

- Homem interessante.<br />

- Sim, e corajoso.<br />

- Gostaria de ouvi-lo.<br />

- Seja paciente. Deixe seu trabalho com as crianças se firmar. Depois vejo<br />

se, com a apreciação de sua colaboração, consigo uma autorização para levá-la<br />

à capela de Belém.<br />

Ficaram mais um pouco a conversar, e então Thomas comunicou:<br />

- Tenho de ir agora. Logo mais venho para irmos juntos.<br />

- Eu irei sempre com você? Todas as vezes?<br />

- Essa é uma das condições para que possa sair: vai e volta comigo. Aliás,<br />

eles me advertiram: se não voltar, a responsabilidade será toda minha. E as<br />

conseqüências, funestas.<br />

Verônica empalideceu. Seguran<strong>do</strong> o braço <strong>do</strong> pai, ela perguntou:<br />

- Como assim, funestas?<br />

- Se algo der erra<strong>do</strong> em seu trabalho, serei responsabiliza<strong>do</strong> e puni<strong>do</strong>.<br />

- Puni<strong>do</strong> como?<br />

- Do mo<strong>do</strong> que parecer melhor a Boris. Essa foi a condição imposta pelo<br />

arcebispo, com a concordância de seu primo.<br />

124


- Ele me persegue! Parece que lê meus pensamentos... Olhan<strong>do</strong>-a com ternura,<br />

Thomas considerou:<br />

- Não é difícil adivinhar-lhe as possíveis intenções. Boris está atento a to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os seus movimentos.<br />

- Por que age assim comigo?<br />

- Eu não sei, filha. De qualquer forma, prepare-se. Será um belo passeio. É<br />

inverno e o rio está completamente congela<strong>do</strong>. Você apreciará a cidade no<br />

inverno.<br />

Verônica não disse mais nada. Sentou-se na cama e escutou o pai se afastan<strong>do</strong><br />

pelo longo corre<strong>do</strong>r. Logo após o almoço, cumpriu suas obrigações na<br />

cozinha, lavan<strong>do</strong> os pratos e limpan<strong>do</strong> o chão. Quan<strong>do</strong> saía da cozinha, Boris a<br />

procurou e, aproximan<strong>do</strong>-se, alertou:<br />

- E bom que tenha juízo em suas saídas. O arcebispo aprovou sua contribuição<br />

no orfanato, porque precisamos de mulheres lá para auxiliar as crianças.<br />

Contu<strong>do</strong>, eu continuo atento aos seus movimentos.<br />

- Eu sei bem disso, Boris.<br />

- E bom que saiba mesmo. Estou observan<strong>do</strong> você. Verônica silenciou.<br />

Seus olhos faiscavam de rancor e o primo comentou:<br />

- Não adianta nutrir toda essa raiva por mim... Você está em minhas<br />

mãos...<br />

Ela o fitou firme nos olhos, como a enfrentá-lo:<br />

- Eu nunca tive nada contra você, Boris, o que já não é o seu caso. Você,<br />

sim, me odeia. Por quê? O que fiz para que me trate dessa maneira?<br />

Como ele fizesse menção de deixar a cozinha, ela, contrarian<strong>do</strong> todas as<br />

normas <strong>do</strong> mosteiro, segurou-lhe o braço e insistiu:<br />

- Não fuja. Diga, o que lhe fiz? Por que me odeia tanto? Desvencilhan<strong>do</strong>-se<br />

das mãos da prima, ele, sem olhá-la, disse<br />

enquanto se afastava:<br />

- Não lhe devo satisfações. Faço tu<strong>do</strong> pelo seu bem, pois você precisa se<br />

<strong>do</strong>brar, precisa se <strong>do</strong>brar à Igreja...<br />

Boris se afastou e Verônica teve vontade de atacá-lo com uma faca, que estava<br />

próxima, mas foi subitamente distraída pelo chegada <strong>do</strong> pai:<br />

- Está na hora de irmos.<br />

Desvian<strong>do</strong> a atenção de Boris, ela respondeu:<br />

- Sim, claro, vou até o quarto pegar um agasalho e já volto. Logo os <strong>do</strong>is,<br />

de braços da<strong><strong>do</strong>s</strong>, cruzavam os portões <strong>do</strong> mosteiro.<br />

Ao sair da construção e alcançar a rua, Verônica respirou fun<strong>do</strong>. O vento<br />

gela<strong>do</strong> em seu rosto, o aroma da vida fora <strong>do</strong> mosteiro encheram seus olhos de<br />

125


lágrimas. Fazia três anos que não colocava os pés fora daquele prédio. Enxugou<br />

as lágrimas e o pai, notan<strong>do</strong> sua reação, perguntou:<br />

- O que foi, por que está choran<strong>do</strong>?<br />

Ela não respondeu de pronto. Tornou fôlego, e depois disse:<br />

- Faz três anos que não saio daquele mausoléu. Sorrin<strong>do</strong>, Thomas corrigiu:<br />

- Não fale assim <strong>do</strong> mosteiro.<br />

- E um lugar horrível, pai. Você realmente gosta de viver ali?<br />

- Eu gosto de servir a Deus, filha. E fico feliz por poder estar perto de você.<br />

Isso me basta.<br />

Verônica pensou por alguns instantes e confessou:<br />

- Eu gostaria de ser assim...<br />

Os <strong>do</strong>is caminharam até uma casa não muito distante e, junto com outros<br />

padres e freiras, realizaram a inauguração das atividades <strong>do</strong> orfanato. Acolhiam<br />

já desde o início 34 crianças. A tarefa transcorreu com tranqüilidade e, ao<br />

retornarem, o pai indagou:<br />

- E então, o que achou?<br />

- Interessante.<br />

- Como se sentiu ao cuidar das crianças? Dar-lhes banho, alimentá-las e<br />

ensinar-lhes sobre Jesus?<br />

- Foi melhor <strong>do</strong> que esfregar o chão <strong>do</strong> mosteiro.<br />

- Não sentiu nada além disso? Não consegue ver a necessidade daquelas<br />

crianças? Não percebe o quanto elas precisam de ajuda, de proteção e de carinho?<br />

- Também preciso de tu<strong>do</strong> isso!<br />

- Não é capaz enxergar nada além de você mesma?<br />

Chocada com aquela observação, Verônica estacou. Entre a raiva e a vergonha,<br />

não sabia o que responder ao pai. Thomas aguar<strong>do</strong>u por alguns momentos<br />

e, diante da sua mudez, tomou-a pelo braço:<br />

- Vamos, temos horário para chegar ao mosteiro. E balançan<strong>do</strong> a cabeça<br />

em desaprovação, advertiu:<br />

- Precisa olhar um pouco para as outras pessoas, Verônica. To<strong><strong>do</strong>s</strong> temos<br />

nossos problemas e nossas <strong>do</strong>res. Não é só você que sofre no mun<strong>do</strong>. E mais<br />

<strong>do</strong> que isso: se deixar a bondade envolver seu coração e pedir o amparo de<br />

Deus, você se sentirá feliz em ajudar os outros e isso a fará não somente uma<br />

pessoa melhor, mas agraciada pelas bênçãos divinas. Pare com essa raiva e<br />

aproveite a oportunidade de colaborar, de ser útil, de fazer algo pelos que necessitam.<br />

Como já se acercavam <strong><strong>do</strong>s</strong> portões <strong>do</strong> mosteiro, Verônica apertou o passo,<br />

deixan<strong>do</strong> o pai para trás; tão logo ele abriu o portão, a jovem entrou depressa,<br />

126


sem o esperar. Thomas não disse nada, apenas olhou a filha se afastan<strong>do</strong>. Suspirou<br />

profundamente e, apertan<strong>do</strong> o crucifixo que trazia no bolso, murmurou:<br />

- Vou rezar por você, filha. Você precisa mudar...<br />

VINTE E SEIS<br />

NA BIBLIOTECA DO mosteiro o arcebispo e Boris trocavam impressões, junto<br />

com outras autoridades eclesiásticas. Boris comentou:<br />

- Acho que ele está in<strong>do</strong> longe demais. Deveria fazer alguma coisa, arcebispo.<br />

- Espero o momento adequa<strong>do</strong> para agir. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, Jan tem o apoio<br />

da nobreza. A situação é delicada. Não podemos agir impulsivamente.<br />

- Nisso devo concordar. Temos de ser astutos. O rei continua a apoiá-o<br />

como antes?<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> o apóiam, Boris, e muitos dentre nós têm profunda simpatia pelo<br />

homem.<br />

Boris calou-se por longo tempo, depois indagou:<br />

- E não vamos fazer nada?<br />

O arcebispo ajeitou-se na cadeira larga e confortável e respondeu, enfada<strong>do</strong>:<br />

- Vou conversar com ele na primeira oportunidade e adverti-lo no senti<strong>do</strong><br />

de parar com as acusações para o seu próprio bem.<br />

No canto da sala, três entidades espirituais envoltas em densas energias assistiam<br />

atentos à conversa. Entre eles estava Núbio, que de imediato se acercou<br />

de Boris e envolveu-o com facilidade, transmitin<strong>do</strong>-lhe seus pensamentos.<br />

O padre, erguen<strong>do</strong>-se, disse altera<strong>do</strong>:<br />

- Tem de fazer isso logo! Ele precisa acabar com essas estúpidas acusações.<br />

Afinal, santidade, quem ele pensa que é?<br />

Fez premeditada pausa, em que os demais, toma<strong><strong>do</strong>s</strong> de surpresa pela atitude<br />

súbita, não esboçaram nenhuma reação, além da surpresa. Então, aduziu:<br />

- Acho que ele quer o seu lugar, arcebispo. Não, quer ser o próprio papa,<br />

deve ser isso! Que patético! Esse homem precisa ser deti<strong>do</strong>, não pode continuar<br />

a influenciar o povo dessa maneira.<br />

O arcebispo tocou nas mãos <strong>do</strong> jovem padre e procurou tranqüilizá-lo:<br />

- Vamos tomar as providências... Acalme-se, vamos. Temos to<strong>do</strong> o controle<br />

em nossas mãos. Ele não pode fazer nada a não ser falar. Vamos cuidar<br />

dele no momento certo. Precisamos esperar que a nobreza abra algum espaço<br />

para nós. Não tenho a intenção de me opor frontalmente ao rei Venceslau.<br />

127


Ainda fortemente influencia<strong>do</strong> por Núbio, Boris comentou:<br />

- Esse rei é um fraco... Precisamos de alguém que nos apoie <strong>do</strong> jeito que<br />

merecemos. Tome cuida<strong>do</strong>, arcebispo, pois Venceslau ainda pode nos causar<br />

problemas. Fique de olhos atentos sobre ele. Não podemos deixar que se sinta<br />

desobriga<strong>do</strong> conosco.<br />

O arcebispo o encarou e disse, erguen<strong>do</strong>-se:<br />

- Você tem razão. Temos de refrear o poder de Venceslau e, assim, enfraquecer<br />

Jan Huss sem nos prejudicarmos. Não se preocupe. Encontraremos uma<br />

forma de afastá-lo <strong>do</strong> nosso caminho. Sei que, com calma e astúcia, obteremos<br />

o controle total.<br />

Satisfeito, Núbio retornou para junto das duas outras entidades, seus cúmplices<br />

no mal, deixan<strong>do</strong> em Boris a marca de suas pesadas emanações espirituais.<br />

E comentou com os comparsas:<br />

- Assim que se apresentar a ocasião, esmagaremos aqueles que se atrevem<br />

a nos fazer oposição.<br />

Os meses corriam céleres. Para Verônica, entretanto, os dias se arrastavam.<br />

Ela se sentia presa a infindáveis tarefas sem senti<strong>do</strong> e sem valor. Passou a acompanhar<br />

o pai ao orfanato. Muito raramente se deixava atingir pela ternura<br />

das crianças que a rodeavam em busca de carinho. Naquela tarde, uma delas<br />

disse, pegan<strong>do</strong> alguns fios <strong><strong>do</strong>s</strong> seus cabelos louros entre as pequeninas mãos:<br />

- Irmã Verônica, como são lin<strong><strong>do</strong>s</strong> os seus cabelos! Têm a cor <strong>do</strong> sol.<br />

A jovem esboçou ligeiro sorriso e disse:<br />

- Os seus cabelos também são lin<strong><strong>do</strong>s</strong>, Priscila. Sentan<strong>do</strong>-se no colo de Verônica,<br />

a pequena pediu:<br />

- Conte uma história... A<strong>do</strong>ro quan<strong>do</strong> você faz isso. Sua voz é tão suave...<br />

Envolvida pelo carinho das crianças, Verônica sentou-se entre elas e contou-lhes<br />

algumas histórias. Esqueceu-se da hora e foi a voz <strong>do</strong> pai que a trouxe<br />

de volta:<br />

- Acho que já chega de histórias por hoje...<br />

As crianças protestaram, mas Verônica logo ergueu-se, prometen<strong>do</strong> que da<br />

próxima vez contaria novas histórias, e despediu-se. Ao alcançarem a porta,<br />

Thomas comentou:<br />

- Preciso passar rapidamente na mercearia <strong>do</strong> senhor Vicente. Você me acompanha?<br />

- Claro.<br />

Verônica e o pai logo alcançaram a venda <strong>do</strong> comerciante que a trouxera<br />

para Praga. A jovem reconheceu o local e, ao entrar, viu Catarina no balcão.<br />

Estava mais bonita ainda e, enquanto atendia, segurava nos braços um lin<strong>do</strong><br />

bebê. Verônica aproximou-se e cumprimentou:<br />

128


- Boa tarde.<br />

E olhan<strong>do</strong> para a criança, indagou:<br />

- É seu? Catarina respondeu:<br />

- Sim, é meu filho.<br />

- E como se chama?<br />

- Seu nome é Felipe.<br />

- É um bonito nome, Catarina.<br />

A jovem fitou a freira, perceben<strong>do</strong> que já a conhecia. Enquanto Thomas e<br />

Vicente conversavam sobre algumas encomendas para o orfanato, Catarina<br />

falou, fitan<strong>do</strong> a recém-chegada nos olhos:<br />

- Verônica? E você mesmo? Sorrin<strong>do</strong>, a freira respondeu:<br />

- Você ainda se lembra de mim?<br />

- Mas é claro! Como poderia esquecê-la? Fiquei preocupada com você to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

esses anos. Por onde an<strong>do</strong>u? O que aconteceu?<br />

- É uma longa história. E você? Casou-se, então?<br />

- Sim. Quan<strong>do</strong> nos conhecemos, já estava noiva e logo depois me casei.<br />

Este é meu segun<strong>do</strong> filho. Tenho também uma menina, que agora está com a<br />

avó.<br />

- E você está feliz?<br />

- Sim, muito. Já você parece triste...<br />

Baixan<strong>do</strong> os olhos rasos de lágrimas, Verônica respondeu apenas:<br />

- A vida não me deu escolha. Estou presa no mosteiro e não encontro mo<strong>do</strong><br />

de me libertar.<br />

Catarina se mostrou penalizada:<br />

- Posso ajudar de algum mo<strong>do</strong>?<br />

De repente, Verônica pensou de novo em fuga. Rapidamente, a idéia cresceu<br />

na sua mente, sob a forte influência de duas entidades espirituais de baixo<br />

teor vibratório, que, perto dela, buscavam perturbá-la.<br />

- Talvez possa, Catarina.<br />

Thomas, despedin<strong>do</strong>-se de Vicente, chamou:<br />

- Vamos, Verônica.<br />

A jovem fitou Catarina e perguntou baixinho:<br />

- Pode ir me visitar no mosteiro amanhã ce<strong>do</strong>? Depois da missa, estarei<br />

limpan<strong>do</strong> o pátio principal. Não posso receber visitas, mas se você for lá tãosomente<br />

para fazer preces, ou seja lá o que for, poderemos nos falar brevemente.<br />

Se de fato desejar, pode me ajudar.<br />

- Estarei lá.<br />

Despedin<strong>do</strong>-se, a freira disse disfarçadamente:<br />

- Obrigada.<br />

129


Enquanto caminhavam, de regresso ao mosteiro, Verônica estava com o<br />

pensamento distante, quase sem escutar o que Thomas falava. Ele comentou:<br />

- Fiquei feliz ao vê-la hoje com as crianças. Elas gostam muito de você, filha.<br />

- São muito meigas.<br />

- E gostam de você. -É.<br />

Thomas se calou por longo tempo e Verônica indagou:<br />

- Você parece preocupa<strong>do</strong>, pai. O que foi?<br />

- Realmente estou. E tão perceptível?<br />

- Dá para notar facilmente, basta conhecê-lo um pouco.<br />

- E que a situação aqui em Praga está fican<strong>do</strong> muito tensa. Você não percebe?<br />

- Tensa como?<br />

- O clero, de mo<strong>do</strong> geral, está muito irrita<strong>do</strong> com o que Jan Huss anda pregan<strong>do</strong><br />

e ensinan<strong>do</strong> na universidade. Ele tem muitos inimigos.<br />

- Mas o rei não gosta dele?<br />

- Sim... Ainda assim, estou aflito. Tenho acha<strong>do</strong> Venceslau cansa<strong>do</strong>. Não<br />

sei, Verônica, creio que o rei não está muito bem. Parece enfraqueci<strong>do</strong>.<br />

- Está <strong>do</strong>ente?<br />

- Não sei exatamente o que é; sinto-o fraco, como se estivesse exausto por<br />

lutar contra algo que o consome.<br />

Thomas silenciou por um instante, depois continuou:<br />

- Não sei por quanto tempo Huss conseguirá manter a atual posição. A<br />

pressão é muito grande. Querem que se cale, que pare de fazer ane<strong>do</strong>tas contra<br />

o clero, mas ele insiste. Ridiculariza, para quem quiser escutar, o clero e os<br />

<strong>do</strong>is papas, Gregório XII e Alexandre II. Parece não ter me<strong>do</strong>...<br />

- Acha que podem fazer alguma coisa contra ele, pai?<br />

- Sim, eu penso que sim. Se Huss não for cauteloso, poderá sofrer sérias<br />

represálias. Os padres e grande parte de seus colegas na universidade também<br />

estão contra ele.<br />

- E quanto ao rei?<br />

- Temo que Venceslau não consiga sustentá-lo por muito tempo. O cerco<br />

está se fechan<strong>do</strong> para nosso queri<strong>do</strong> amigo Jan Huss.<br />

- E ele sabe disso?<br />

- Acredito que sim. Tivemos algumas poucas conversas nas quais ventilei<br />

o assunto, mas ele está convicto de que deve continuar a falar das mudanças<br />

que considera fundamentais para a Igreja.<br />

Fitan<strong>do</strong>-o profundamente nos olhos, Verônica indagou:<br />

130


- E você, padre Thomas, o que pensa sobre o assunto? Sem hesitar, ele respondeu:<br />

- Que ele está certo. A Igreja realmente tem de mudar. E preciso que o clero<br />

respeite de fato os ensinos de Jesus, acima <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>gmas da Igreja.<br />

Os <strong>do</strong>is entraram no mosteiro e, ao se despedirem, Thomas tomou as mãos<br />

da filha, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Espero que você esteja permitin<strong>do</strong> que a sua experiência com as crianças<br />

abrande seu coração, filha. Ajudar os outros é a melhor forma de lutarmos contra<br />

o egoísmo que insiste em controlar-nos.<br />

- Mas eu não sou egoísta. Só o que desejo é ser feliz.<br />

- Não podemos ser verdadeiramente felizes sem ajudar a construir a felicidade<br />

de nossos irmãos.<br />

Verônica estava séria ao despedir-se:<br />

- Boa noite, meu pai. Sorrin<strong>do</strong>, Thomas respondeu:<br />

- Boa noite, minha filha.<br />

Ao se recolher naquela noite, Thomas ficou pensan<strong>do</strong> por longo tempo em<br />

Jan Huss e em sua situação. Sentia como se a cada dia ele corresse mais perigo.<br />

Jan fora considera<strong>do</strong> pelo povo tcheco um herói. A oposição sistemática<br />

que fazia à Igreja, apontan<strong>do</strong> seus abusos e denuncian<strong>do</strong> seus desman<strong><strong>do</strong>s</strong>, em<br />

favor <strong><strong>do</strong>s</strong> necessita<strong><strong>do</strong>s</strong> de todas as classes sociais, fizeram-no conquistar cada<br />

vez mais a simpatia <strong>do</strong> povo e <strong><strong>do</strong>s</strong> nobres. Já o clero pensava diferente. Thomas<br />

a<strong>do</strong>rmeceu oran<strong>do</strong> pelo fiel servi<strong>do</strong>r de Jesus que tanto admirava.<br />

O rei Venceslau vinha ten<strong>do</strong> pesadelos havia algum tempo. Suas noites eram<br />

freqüentemente perturbadas pelas entidades espirituais subordinadas a<br />

Núbio e às inteligências a que ele servia: mentes perversas que desejavam, a<br />

to<strong>do</strong> o custo, impedir o desenvolvimento espiritual <strong><strong>do</strong>s</strong> homens.<br />

Exploran<strong>do</strong> as fraquezas mais profundas da alma de Venceslau, relacionadas<br />

a questões sexuais com as quais ele lutava amiúde, perturbavam-no com<br />

toda a sorte de sugestões que o levavam a conflitos incessantes entre o que<br />

sabia ser o correto e seus mais secretos desejos. Venceslau lutava; todavia,<br />

suas forças físicas estavam sen<strong>do</strong> drenadas pelos conflitos constantes e pelas<br />

sucessivas noites mal <strong>do</strong>rmidas. As vulnerabilidades físicas se tornavam mais<br />

evidentes. Núbio, atento acompanhava o processo, advertia seus comparsas:<br />

- Prossigam, o resulta<strong>do</strong> será alcança<strong>do</strong> em breve. O rei não suportará nossos<br />

ataques por muito tempo. Logo sucumbirá.<br />

- Ele luta muito, e aquela sua esposa também nos atrapalha... Ignoran<strong>do</strong> a<br />

alusão à esposa, Núbio insistiu:<br />

- Mas é fraco de caráter. Não conseguirá suportar. A estratégia está dan<strong>do</strong><br />

resulta<strong><strong>do</strong>s</strong>; portanto, apertem o cerco. Ataquem-no ainda mais intensamente,<br />

131


dia e noite, e ele não suportará. Seu corpo físico vem dan<strong>do</strong> claros sinais de<br />

desgaste e está enfraquecen<strong>do</strong> rapidamente. Vamos fazê-lo tombar em breve.<br />

- E depois, o que pretende fazer, Núbio? Quem o substituirá?<br />

- Não se preocupem. O irmão dele, Sigismun<strong>do</strong> 12 , está ansioso por tomarlhe<br />

o lugar o quanto antes. E não titubeará em obedecer às minhas sugestões.<br />

Seus interesses pessoais não se coadunam com as questões da fé verdadeira,<br />

nem mesmo com as questões importantes de fato para o povo. Ele quer poder e<br />

o terá!<br />

Depois de pausa calculada, ele concluiu:<br />

- Agora vão e façam bem seu trabalho. Cada noite mal <strong>do</strong>rmida é um dia a<br />

menos desse rei ridículo no poder.<br />

As duas entidades seguiram de imediato para o castelo de Praga, dirigin<strong><strong>do</strong>s</strong>e<br />

aos aposentos <strong>do</strong> rei. Sofia <strong>do</strong>rmia no cômo<strong>do</strong> pega<strong>do</strong> e a rainha mãe ocupava<br />

um quarto <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r. Vesceslau ajeitou o travesseiro e se<br />

deitou, fatiga<strong>do</strong>. Virou-se várias vezes, procuran<strong>do</strong> acomodar-se na cama, que<br />

lhe parecia de pedra. Fechou os olhos e tentou relaxar, quan<strong>do</strong> cenas sensuais<br />

começaram a surgir-lhe na mente. Empenhava-se em afastá-las, mas elas novamente<br />

se insinuavam, buscan<strong>do</strong> a conexão de que precisavam para <strong>do</strong>minarlhe<br />

os pensamentos. Ele lutou por alguns minutos, até que, cansa<strong>do</strong> como estava,<br />

entregou-se e a<strong>do</strong>rmeceu envolvi<strong>do</strong> por aquelas energias deletérias.<br />

Não muito distante dali, Jan Huss também se preparava para o repouso noturno.<br />

Depois de trocar de roupa sentou-se na cama, fechou os olhos e meditou<br />

por algum tempo sobre seu dia, suas atividades, indagan<strong>do</strong>-se se havia de fato<br />

servi<strong>do</strong> a Deus naquele perío<strong>do</strong>. Visualizou as tarefas realizadas, as conversas<br />

que tivera, os conselhos que dera, tu<strong>do</strong> o que fizera, em detalhes, procuran<strong>do</strong><br />

lembrar se aproveitara todas as oportunidades de ser útil aos seus irmãos. Em<br />

meio à reflexão, fixou alguns pontos nos quais concluiu que poderia ter feito<br />

melhor. Rogou, então:<br />

- Deus, ajuda-me a ser melhor cristão amanhã <strong>do</strong> que fui hoje. Per<strong>do</strong>a-me<br />

as imperfeições que ainda trago em mim, e ajuda-me e servir-te melhor. Orienta-me<br />

as ações e os pensamentos para que em nada, meu Deus, eu falte com<br />

meu dever de amor aos meus semelhantes. Guia-me em to<strong><strong>do</strong>s</strong> os meus deveres,<br />

para que seja acima de tu<strong>do</strong> fiel a ti, senhor de minha alma.<br />

Fez o sinal da cruz e, sentin<strong>do</strong>-se alenta<strong>do</strong> pelas vibrações de amor que <strong>do</strong><br />

infinito se derramavam sobre ele, deitou-se e a<strong>do</strong>rmeceu logo. Assim que caiu<br />

em sono profun<strong>do</strong>, seu perispírito desprendeu-se <strong>do</strong> corpo físico. Logo encontrou<br />

Constância, Angélica e Henrique, que o aguardavam, e se cumprimentaram<br />

com fraternal abraço. Jan comentou, feliz:<br />

12 Sigismun<strong>do</strong> de Luxemburgo foi rei da Hungria, rei da Boêmia e rei da Germânia.<br />

132


- Meus queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, que bom vê-los! Sempre é um alento para minha<br />

alma a presença de vocês.<br />

Henrique, corresponden<strong>do</strong> ao carinhoso abraço, disse:<br />

- Estamos sempre com você, a to<strong>do</strong> momento. Se não podemos<br />

estar pessoalmente, temos fiéis servi<strong>do</strong>res de Jesus que o circundam,<br />

conduzin<strong>do</strong> e fortalecen<strong>do</strong> seus propósitos.<br />

- Eu sei, sinto-me ampara<strong>do</strong>. Não fosse isso, não conseguiria fazer aquilo<br />

a que me propus.<br />

- Trazer a luz sobre as trevas da ignorância nas quais a humanidade se afunda<br />

cada vez mais.<br />

- Exatamente. Ser um instrumento de Jesus, para avivar na mente e no coração<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> homens a verdadeira essência <strong>do</strong> Evangelho, que se perdeu completamente<br />

ao longo <strong><strong>do</strong>s</strong> anos.<br />

Depois de permutarem impressões e energias, Henrique tocou o ombro <strong>do</strong><br />

amigo e falou, mais sério:<br />

- Estamos aqui hoje, Jan, para alertá-lo e prepará-lo. A situação poderá tornar-se<br />

mais difícil. Há intensa movimentação das trevas opon<strong>do</strong>-se ao trabalho<br />

<strong>do</strong> Mestre, que se realiza através de você.<br />

- Eles sempre se opõem, não é verdade?<br />

- Sim, até quan<strong>do</strong> as leis divinas o permitirem. Nós viemos preparar você<br />

e fortalecê-lo, dan<strong>do</strong>-lhe toda a segurança de nossa presença e <strong>do</strong> nosso auxílio<br />

a to<strong>do</strong> instante. Lembre-se, você jamais estará sozinho. Não importa quão difícil<br />

possa parecer a jornada, não se desvie de seus propósitos, que são abençoa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por Jesus. Não se deixe perturbar por qualquer tipo de ação contrária ao<br />

bem. Permaneça firme e constante em seus objetivos.<br />

Após breve pausa, Henrique convi<strong>do</strong>u:<br />

- Oremos.<br />

Unin<strong>do</strong> os pensamentos o grupo orou, conduzi<strong>do</strong> por Henrique. Enquanto<br />

oravam, poderosas emanações de energia desciam sobre eles. Em meio à intensa<br />

luz que tomou conta <strong>do</strong> ambiente, a imagem de Jesus se projetou entre<br />

eles, que, banha<strong><strong>do</strong>s</strong> em lágrimas de sublime emoção, o ouviram com atenção.<br />

O Mestre divino enviava mensagem direta de força e amparo à missão gloriosa<br />

de Jan Huss: a de despertar as almas a<strong>do</strong>rmecidas para as verdades luminosas<br />

<strong>do</strong> Evangelho. E enquanto sua imagem terna e amorosa desaparecia <strong>do</strong> ambiente,<br />

ele dizia:<br />

- Que Deus, nosso Pai, nos abençoe.<br />

A felicidade que o grupo experimentava ante a projeção <strong>do</strong> Mestre era intraduzível.<br />

Aquela manifestação sublime deixou o ambiente profusamente perfuma<strong>do</strong><br />

e ilumina<strong>do</strong>.<br />

133


Chegara o momento da despedida. Jan retomou o corpo físico, sentin<strong>do</strong>-se<br />

completamente refeito e revigora<strong>do</strong>. Dormiu por mais algum tempo, despertan<strong>do</strong><br />

antes das quatro horas da manhã. Levantou-se, com a viva lembrança <strong>do</strong><br />

encontro emocionante, e, limpan<strong>do</strong> os olhos das lágrimas de alegria que brotavam<br />

espontâneas, preparou-se para iniciar um novo dia de trabalho.<br />

Jan Huss dedicava um dia por semana a atender pessoalmente os necessita<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

que o procuravam ininterruptamente. No dia anterior deixara suas atividades<br />

na reitoria da faculdade bem adiantadas e avisara de sua ausência. Aproveitan<strong>do</strong>-se<br />

daquela oportunidade, o arcebispo, que há muito buscava o momento<br />

oportuno para agir, realizou uma reunião na faculdade com os mais influentes<br />

padres e professores, para discutir a insustentável posição de Jan<br />

Huss, declaradamente contra a Igreja. A portas fechadas, eles discutiam e o<br />

arcebispo os liderava:<br />

- Não se pode ignorar a influência que ele exerce sobre o povo e até mesmo<br />

sobre muitos padres. Se assim continuar, muitos serão iludi<strong><strong>do</strong>s</strong> por sua<br />

inegável capacidade de retórica e se deixarão <strong>do</strong>minar por suas idéias. Boris<br />

interveio:<br />

- As quais, diga-se de passagem, não são propriamente dele. Ele segue as<br />

idéias de Wyclif, com certeza.<br />

Outros concordavam:<br />

- Disso nós não temos dúvida. E Boris prosseguiu:<br />

- Pois onde é que isso vai parar? Temos de tomar medidas enérgicas. Ele<br />

não pode continuar livremente, precisa ser deti<strong>do</strong>. Não só Huss, também o rei<br />

e a rainha, bem como a nobreza, to<strong><strong>do</strong>s</strong> têm de saber que a Igreja detém a última<br />

palavra. Se não for assim, meus caros, nos enfraqueceremos. Não! Definitivamente,<br />

não! Isso não pode acontecer!<br />

Conclama<strong><strong>do</strong>s</strong> e insufla<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo arcebispo e por Boris, que por sua vez eram<br />

envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong> por Núbio e seus servi<strong>do</strong>res, declararam Jan Huss condena<strong>do</strong><br />

por atos contra a Igreja e proibi<strong>do</strong> de exercer suas funções eclesiásticas, redigin<strong>do</strong><br />

um <strong>do</strong>cumento a ser encaminha<strong>do</strong> a ele. Pronto o <strong>do</strong>cumento, to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />

presentes o assinaram e, ten<strong>do</strong>-o em mãos, o arcebispo informou ao grupo:<br />

- Ainda hoje o entregarei pessoalmente ao senhor Huss. Vejamos como se<br />

conduzirá, então.<br />

Boris sugeriu:<br />

- Entreguemos outro ao rei Vesceslau. Temos de agir pelos <strong>do</strong>is la<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Com a aquiescência <strong>do</strong> arcebispo, fizeram uma cópia exata <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento,<br />

a ser leva<strong>do</strong> ao rei.<br />

Ao entardecer, Jan Huss retornou ao lar, não sem antes passar brevemente<br />

pela faculdade. Assim que chegou, um auxiliar de sua confiança informou-o da<br />

134


eunião que ocorrera pela manhã. Prepara<strong>do</strong>, seguiu para casa. Ao entrar encontrou<br />

o arcebispo à sua espera. Beijan<strong>do</strong>-lhe a mão, cumprimentou-o:<br />

- Boa noite, senhor. O que o traz aqui?<br />

- Precisamos conversar.<br />

Acomodaram-se ambos e Jan, colocan<strong>do</strong>-se à vontade, disse:<br />

- Estou à sua disposição.<br />

O arcebispo não teve rodeios:<br />

- Huss, já chega de agredir a Igreja.<br />

- Eu não estou agredin<strong>do</strong> a Igreja, senhor arcebispo; estou chaman<strong>do</strong> a atenção<br />

de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens de coração puro para a necessidade de renovação<br />

em nosso meio.<br />

- Mas já chega! Você está passan<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> limites. Não pode falar abertamente<br />

contra a Igreja, e até contra o papa!<br />

- E por que não? Ele não é infalível!<br />

Visivelmente irrita<strong>do</strong>, o arcebispo ergueu ligeiramente a voz ao responder:<br />

- Isso é uma heresia. O papa é o representante de Deus na Terra. É a voz <strong>do</strong><br />

próprio Deus!<br />

- A voz de Deus está nas escrituras, arcebispo. O papa é um servo <strong>do</strong> Altíssimo,<br />

como somos to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós.<br />

- Huss, você tem de parar. Se não o fizer por bem, o fará...<br />

- Prossiga, por favor, senhor arcebispo.<br />

O arcebispo calou-se por alguns instantes. A seguir, levantou-se e estendeu<br />

o comunica<strong>do</strong> a Huss:<br />

- Pois muito bem. Você acha que pode brincar de ser poderoso, não é mesmo?<br />

Vai ver que não é tão fácil, senhor Jan Huss. Vai parar de ofender a santíssima<br />

Igreja.<br />

Entregue o <strong>do</strong>cumento, saiu furioso. Jan Huss leu o texto, refletiu um pouco<br />

e saiu, levan<strong>do</strong>-o consigo.<br />

VINTE E SETE<br />

VERÔNICA REVIRAVA-SE de um la<strong>do</strong> para o outro, na vã tentativa de conciliar<br />

o sono. Seu coração batia descompassa<strong>do</strong>, suas mãos estavam frias e ela<br />

não conseguia fechar os olhos. Pensava e repensava em tu<strong>do</strong> o que faria dentro<br />

em breve para desaparecer de vez daquela prisão em que fora confinada. Estava<br />

tu<strong>do</strong> acerta<strong>do</strong> com Catarina. Logo estaria livre. Sentia calafrios de ansiedade<br />

percorrerem-lhe a espinha. Já tinha quase desisti<strong>do</strong> daquela idéia, mas agora,<br />

com a ajuda da boa Catarina, seu sonho poderia tornar-se realidade. Ela<br />

135


planejava detalhadamente como deixar tu<strong>do</strong> para trás e fugir para uma nova<br />

vida.<br />

Naquele mesmo início de noite, Jan Huss entrava no Castelo de Praga, à<br />

procura <strong>do</strong> rei. Um servo que o atendera não demorou a voltar e informou:<br />

- Aguarde no salão, senhor. Sua majestade quer vê-lo imediatamente.<br />

Apenas alguns minutos se passaram e Venceslau entrou, a passos firmes, e<br />

o sau<strong>do</strong>u:<br />

- Foi bom ter vin<strong>do</strong>, Jan. Já ia mandar chamá-lo. Recebeu a ordem <strong>do</strong> arcebispo?<br />

Mostran<strong>do</strong> o manuscrito com a condenação <strong>do</strong> clero e de vários colegas da<br />

universidade, ele respondeu:<br />

- Sim, acabei de receber.<br />

- Das mãos <strong>do</strong> próprio arcebispo?<br />

- Exato. Aqui estou para saber de vossa majestade qual é o seu desejo, porque<br />

o meu é prosseguir com a tarefa a que me propus. Não tenho me<strong>do</strong> de ameaças<br />

e continuarei a denunciar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os atos abusivos e absur<strong><strong>do</strong>s</strong> da Igreja.<br />

O rei fitou-o e sorriu, depois disse:<br />

- Conversei também com a rainha Sofia e ela concorda comigo. Jan estava<br />

atento ao rei, que acrescentou:<br />

- Precisávamos escutar a sua decisão, pois jamais o forçaríamos a continuar<br />

com qualquer ação que pudesse colocar em risco sua vida...<br />

Calan<strong>do</strong>-se por instantes, o rei logo prosseguiu.<br />

- Sabe que enfrentar a Igreja da forma como está fazen<strong>do</strong> é um ato de<br />

grande coragem, não sabe, meu amigo?<br />

- Não poderia fazer diferente, majestade. Estou consciente <strong><strong>do</strong>s</strong> riscos, mas<br />

creio muito que os cristãos precisam libertar-se das pesadas amarras que lhes<br />

foram postas pela Igreja, cercean<strong>do</strong> seu pensamento e seus sentimentos, e,<br />

especialmente, bloquean<strong>do</strong> a verdadeira compreensão da missão de Cristo na<br />

Terra, assim como <strong>do</strong> papel de cada cristão verdadeiro.<br />

O rei sorriu novamente e pegou de sobre a mesa os papéis que recebera <strong>do</strong><br />

arcebispo com as decisões <strong>do</strong> grupo. Caminhan<strong>do</strong> até grande lareira, jogou o<br />

texto sobre as labaredas e declarou:<br />

- Neste caso, meu amigo, tem minha total aprovação. Prossiga com sua tarefa<br />

e, enquanto estiver ao meu alcance, eu lhe darei minha proteção.<br />

Jan, imitan<strong>do</strong> a atitude <strong>do</strong> rei, também lançou nas chamas da lareira o <strong>do</strong>cumento<br />

que lhe fora destina<strong>do</strong>. E juntos, em silêncio, observaram os papéis<br />

serem destruí<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo fogo. Logo depois, agradecen<strong>do</strong> o permanente apoio <strong>do</strong><br />

rei, Jan se retirou satisfeito.<br />

136


Venceslau, ten<strong>do</strong> compartilha<strong>do</strong> com a esposa o encaminhamento da situação,<br />

foi para o quarto e preparou-se para <strong>do</strong>rmir. Acomodan<strong>do</strong>-se na cama, não<br />

conseguia parar de pensar na determinação e na fé que moviam os atos de Jan<br />

Huss. O soberano o admirava.<br />

Na manhã seguinte, nem bem o dia havia clarea<strong>do</strong> e padre Thomas e Verônica<br />

se aprontavam para sair. Estavam cruzan<strong>do</strong> o portão principal <strong>do</strong> mosteiro<br />

quan<strong>do</strong> um mensageiro se aproximou e informou que surgira um problema<br />

com a carga destinada ao orfanato; o padre devia ir imediatamente à mercearia.<br />

Thomas tomou Verônica pelo braço:<br />

- Vamos filha, apressemo-nos. Precisamos ir primeiro à mercearia e só então<br />

ao orfanato...<br />

Foi interrompi<strong>do</strong> pelo forte choro de um menino aparentan<strong>do</strong> seus <strong>do</strong>ze<br />

anos que parecia desespera<strong>do</strong> e se dizia feri<strong>do</strong>. Thomas ajoelhou-se, perguntan<strong>do</strong><br />

o que se passava, e ele respondeu:<br />

- Apanhei de alguns moleques que me fazem de escravo; preciso de ajuda.<br />

Está <strong>do</strong>en<strong>do</strong> muito.<br />

Exibiu manchas arroxeadas na barriga e também nas pernas e nas costas.<br />

Sem saber o que fazer, desejan<strong>do</strong> socorrer o garoto e ao mesmo tempo resolver<br />

a questão importante na mercearia, Thomas pediu:<br />

- Façamos o seguinte: Verônica, leve o menino até o orfanato e peça para o<br />

médico ir vê-lo rápi<strong>do</strong>; eu vou até a mercearia e resolvo logo o problema.<br />

Solícita, Verônica assentiu:<br />

- Pode deixar, pai, que eu vou socorrê-lo. Passan<strong>do</strong> a mão pelo cabelo <strong>do</strong><br />

garoto, indagou:<br />

- Como é seu nome, rapazinho?<br />

- Pedro.<br />

- Muito bem, Pedro, vamos.<br />

Tomou o menino pela mão e ia se afastar; de repente parou, virou-se para o<br />

pai e, andan<strong>do</strong> depressa até ele, beijou-o com ternura e disse:<br />

- Até breve, pai. Thomas sorriu e respondeu:<br />

- Não demoro... Vou apenas liberar essa carga e logo estarei por lá.<br />

Assim que o pai se afastou o suficiente, Verônica entregou ao menino algumas<br />

moedas de ouro e advertiu:<br />

- Jamais conte nada a ninguém, entendeu bem? Agora ande, vá embora.<br />

O menino sumiu e a jovem correu na direção oposta àquela que levava ao<br />

orfanato. Próximo à ponte de Judith, encontrou uma carroça com algumas provisões<br />

e Catarina aguardan<strong>do</strong>-a. Verônica correu ao seu encontro e, ofegante,<br />

agradeceu:<br />

137


- Jamais terei como agradecer-lhe, Catarina. Mal me conhece e está sen<strong>do</strong><br />

tão generosa, me ajudan<strong>do</strong> tanto... Serei eternamente grata a você.<br />

Séria, Catarina disse:<br />

- Espero que você encontre o que procura, Verônica. Às vezes pensamos<br />

que nossa felicidade está em algum lugar muito longe de nós, mas sei que ela<br />

está dentro de nossos corações.<br />

- Obrigada mais uma vez, Catarina. Encontrarei uma maneira de pagá-la<br />

pelas coisas que está me ceden<strong>do</strong>. Trata-se de um empréstimo. Prometo pagar<br />

por tu<strong>do</strong>.<br />

- Não se preocupe. Esta carroça, como já lhe expliquei, é bem velha e meu<br />

pai pouco a utiliza; e o animal também está velho, praticamente não nos servia<br />

mais. Eram somente para uma emergência.<br />

Já sentada na carroça, Verônica tomou as rédeas e enfatizou:<br />

- Esta é, sem dúvida, uma emergência. Seguran<strong>do</strong> o braço da amiga, Catarina<br />

insistiu:<br />

- Tem certeza <strong>do</strong> que está fazen<strong>do</strong>?<br />

Verônica titubeou internamente apenas por fração de segun<strong>do</strong>, e falou firme:<br />

- Preciso ir logo. Não sei quanto tempo levará para meu pai perceber que<br />

foi engana<strong>do</strong>. Adeus, Catarina.<br />

Saiu apressada, atravessan<strong>do</strong> a ponte. Catarina a observou até desaparecer,<br />

depois retornou para a mercearia <strong>do</strong> pai.<br />

Cerca de meia hora mais tarde, Thomas entrou no orfanato andan<strong>do</strong> com<br />

rapidez, mal cumprimentou as crianças e perguntou pela filha:<br />

- Onde está Verônica?<br />

A freira que diuturnamente tomava conta das crianças informou:<br />

- Ela ainda não chegou, padre. Desencontraram-se? Thomas tinha mais <strong>do</strong><br />

que suspeitas de que a filha tentara fugir.<br />

Insistiu:<br />

- Talvez tenha chega<strong>do</strong> sem ser vista. Vou procurá-la eu mesmo. Depois de<br />

vasculhar o prédio, ele retornou à entrada e irmã<br />

Beatriz indagou:<br />

- E então, encontrou?<br />

- Não, ela sumiu. Escutaram uma voz, à porta:<br />

- Ela fugiu, você quer dizer.<br />

Era Boris, que, movi<strong>do</strong> por estranha intuição, fora até o orfanato, o qual visitara<br />

apenas por ocasião de sua inauguração. Assusta<strong>do</strong>, e sem ter tempo para<br />

refletir, Thomas redarguiu:<br />

138


- Não, deve estar no mosteiro. Apareceu um garoto machuca<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> saíamos<br />

e ela deve tê-lo leva<strong>do</strong> ao mosteiro, ao invés de trazê-lo para cá...<br />

É só isso.<br />

Boris afirmou, resoluto:<br />

- Não seja estúpi<strong>do</strong>, Thomas. Ou vocês estão juntos nessa armação, ou sua<br />

filha o enganou e agora tenta acobertá-la. De toda forma, você sofrerá as conseqüências.<br />

Foi alerta<strong>do</strong> para tomar conta de Verônica; a responsabilidade é<br />

sua. Vou mandar gente atrás dela; aquela estúpida não irá muito longe.<br />

Boris saiu, deixan<strong>do</strong> Thomas sem forças para responder. Ele sentou-se, e<br />

colocan<strong>do</strong> a cabeça entre as mãos, falou baixinho:<br />

- Verônica, minha filha, o que foi que você fez.<br />

Naquela mesma noite, Thomas foi convoca<strong>do</strong> para uma reunião presidida<br />

pelo arcebispo e com mais alguns clérigos. Boris ardia de raiva, e a custo o<br />

arcebispo lhe controlava os ímpetos de agressão contra Thomas. Ele o acusava<br />

com veemência:<br />

- Você é culpa<strong>do</strong> pelo que está acontecen<strong>do</strong>. Sempre soube que sua filha é<br />

envolvida pelo demônio: desde pequena ouvin<strong>do</strong> vozes, falan<strong>do</strong> com almas<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> mortos, exatamente como a mãe. Ela precisa ficar confinada neste mosteiro,<br />

para ser protegida de si mesma. Avisamos para ser cauteloso, mas você não<br />

nos acredita, não é, Thomas? Acho até que lhe facilitou a fuga!<br />

Resigna<strong>do</strong> frente às acusações, Thomas limitou-se a dizer:<br />

- Isso não é verdade... Fui pego de surpresa como to<strong><strong>do</strong>s</strong> vocês... Não sei<br />

nem como foi que ela conseguiu escapar...<br />

- A moça da mercearia, como é o nome dela?<br />

- De quem está falan<strong>do</strong>?<br />

- Da filha mais nova <strong>do</strong> proprietário da mercearia; ela está envolvida, não<br />

está?<br />

Manten<strong>do</strong> a cabeça baixa, Thomas indagou:<br />

- Por que acha isso, Boris?<br />

- Não foi ela quem deu desculpas rotas para levá-lo à mercearia? Hesitante,<br />

o interpela<strong>do</strong> respondeu:<br />

- Foi, mas... não sei...<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> bon<strong><strong>do</strong>s</strong>o padre, Boris o mediu de cima a baixo e disse,<br />

provocativo:<br />

- Você nunca sabe de nada, não é? No entanto, vive maculan<strong>do</strong> a santa Igreja<br />

com os seus atos. Ainda não está suficientemente convenci<strong>do</strong> de suas<br />

responsabilidades?<br />

Calan<strong>do</strong>-se por alguns instantes, caminhou até a mesa que o arcebispo ocupava<br />

e sugeriu, enfático:<br />

139


- Pois eu o considero culpa<strong>do</strong> pela fuga de Verônica. Para proteger ambos,<br />

pois ela retornará ao nosso santuário, creio que deva ser envia<strong>do</strong> ao oriente<br />

para pregar aos hereges e infiéis. Vá pregar em meio aos muçulmanos!<br />

Profundamente afeiçoa<strong>do</strong> à sua pátria e em especial às crianças <strong>do</strong> orfanato,<br />

Thomas sentiu forte aperto no peito, mas nada respondeu. Boris aguardava<br />

a determinação <strong>do</strong> arcebispo. Pediram que Thomas se retirasse e logo em seguida<br />

o chamaram de volta. O arcebispo sentenciou:<br />

- Padre Thomas, vai ser transferi<strong>do</strong> para o oriente, a fim de servir à Igreja<br />

entre os mouros. Partirá amanhã pela manhã.<br />

Thomas balbuciou:<br />

- Tão depressa?<br />

Boris fez menção de responder, porém o arcebispo o atalhou:<br />

- Não queremos que você e Verônica se encontrem tão ce<strong>do</strong>. Assim que<br />

regressar, ela deverá ser punida por fugir desse mo<strong>do</strong>.<br />

Thomas ergueu a cabeça, disposto a argumentar em favor da filha, mas o<br />

arcebispo o impediu:<br />

- Não adianta, Thomas; nada que disser fará que mudemos nossa decisão.<br />

Após breve pausa, olhou para os demais participantes e sentenciou:<br />

- A reunião está encerrada. Boris emen<strong>do</strong>u:<br />

- E muito bem aproveitada...<br />

VINTE E OITO<br />

UMA SEMANA DEPOIS, Boris saía da missa matinal quan<strong>do</strong> um noviço o alcançou<br />

no corre<strong>do</strong>r e, ofegante, informou:<br />

- Encontraram Verônica, estão com ela na carroça. Boris abriu largo sorriso,<br />

e satisfeito orientou:<br />

- Leve-a até o refeitório e chame os outros - freiras, padres, serviçais. Quero<br />

humilhá-la diante de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

O noviço o fitou, confuso diante <strong>do</strong> comentário, e Boris, ao notar-lhe o estranhamento,<br />

replicou:<br />

- Ela é orgulhosa demais, foi por isso que fugiu. Precisa ter seu orgulho<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>. E para o próprio bem dela, rapaz. Vá logo, obedeça.<br />

O jovem aprendiz saiu e cumpriu as determinações. Verônica chorava muito<br />

quan<strong>do</strong> foi levada, de mãos atadas, ao refeitório. Percebeu que o ambiente<br />

estava lota<strong>do</strong> e não ousava erguer a cabeça. O primo, <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da sala,<br />

falou:<br />

140


- Meus cari<strong><strong>do</strong>s</strong>os irmãos, esta mulher está completamente perturbada. De<br />

fato é possuída, to<strong><strong>do</strong>s</strong> sabem por quem... Por isso não se submete à ajuda que<br />

lhe oferecemos. Precisamos <strong>do</strong>minar quem a <strong>do</strong>mina, por isso ela deverá permanecer<br />

por <strong>do</strong>is meses em completa clausura, alimentan<strong>do</strong>-se apenas com o<br />

necessário para manter-se viva. Assim, enfraqueceremos o corpo e seremos<br />

mais capazes de controlar-lhe os instintos destrutivos. Observem bem, meus<br />

irmãos, como fica um ser humano quan<strong>do</strong> se deixa tomar pelo mal. Agora,<br />

rezem muito e se afastem desta mulher, para o bem de vocês.<br />

A jovem, acuada, chorava. Boris silenciou por instantes, depois finalizou a<br />

prazerosa opressão sobre a prima:<br />

- Podem levá-la.<br />

Verônica indagou, sem erguer a cabeça:<br />

- Onde está meu pai? Boris orientou:<br />

- Deixem, eu mesmo vou levá-la ao seu isolamento. Quan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> deixaram<br />

o refeitório, ele aproximou-se da prima e informou, com visível satisfação:<br />

- Thomas está no oriente, entre os muçulmanos. E lá ficará até que eu tenha<br />

certeza de que você aprendeu sua lição. E, outra coisa, aquela jovem que a<br />

aju<strong>do</strong>u... Como é mesmo o nome dela? Catarina?<br />

Verônica, quase sem conseguir respirar, escutava com o coração descompassa<strong>do</strong>,<br />

<strong>do</strong>minada pelo ódio.<br />

- Terá a parte dela também. To<strong><strong>do</strong>s</strong> têm de compreender que não podem agir<br />

contra a Igreja.<br />

Desesperada, Verônica agarrou o primo pela batina, na altura <strong>do</strong> pescoço,<br />

com força descomunal, e insistiu:<br />

- Ela não tem nada a ver com isso, foi tu<strong>do</strong> culpa minha, só minha. Por favor,<br />

não faça nada a Catarina. Ela é uma ótima pessoa.<br />

Afastan<strong>do</strong> a moça com rispidez, ele disse:<br />

- Sei que a aju<strong>do</strong>u. Ela própria confessou...<br />

- O que foi que fez com ela, seu monstro? Monstro!... Seguran<strong>do</strong> a moça<br />

com as duas mãos, ele abriu a porta da sala escura e sem janelas, de chão bati<strong>do</strong>,<br />

completamente vazia, e a jogou para dentro, trancan<strong>do</strong>-a em seguida. Olhou<br />

pela minúscula janela e disse:<br />

- Vai ficar aí até apodrecer, ou aprender a me obedecer. Ouvin<strong>do</strong> Boris se<br />

afastar, Verônica permaneceu deitada no chão, onde fora jogada pelo primo, e<br />

chorou convulsivamente. Seu desespero não tinha limite, e seu ódio igualmente<br />

crescia. Vencida pela exaustão, a<strong>do</strong>rmeceu. Dois espíritos amigos, que ali<br />

estavam para ajudá-la, auxiliaram seu corpo espiritual a desprender-se. A jo-<br />

141


vem continuava choran<strong>do</strong>. Confusa, não percebia a presença <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos que<br />

a circundavam. Um deles pediu:<br />

- Acalme-se, Verônica, ou não conseguiremos ajudá-la.<br />

Ela continuava choran<strong>do</strong>, sem registrar-lhes a presença. Fizeram mais algumas<br />

tentativas, e enfim uma das entidades disse:<br />

- Não adianta, ela é incapaz de nos escutar. É melhor a recolocarmos no<br />

corpo físico.<br />

Antes que iniciassem as providências, Geórgia apareceu na sala e pediu:<br />

- Boa noite, meus amigos, deixem-me tentar.<br />

Tocan<strong>do</strong> a filha com ternura, envolveu-a em carinhoso abraço. Verônica<br />

sentiu ligeiro conforto em contato com a conhecida energia amorosa da mãe, e<br />

acalmou-se um pouco. Logo o pequeno grupo conseguiu fazer-se visível a ela.<br />

Ao ver a mãe, ela atirou-se em seus braços em pranto <strong>do</strong>loroso:<br />

- Mãe, que saudade! É você, mesmo? Acho que estou sonhan<strong>do</strong>, mas não<br />

importa... Que sonho maravilhoso este, de poder ver você!<br />

- Acalme-se, minha filha, por favor. Precisamos conversar. Acomodan<strong><strong>do</strong>s</strong>e<br />

no chão, Geórgia sentou-se ao la<strong>do</strong> da filha;<br />

tomou-a no colo, como uma criança, e pediu:<br />

- Acalme-se. Você precisa confiar em Deus, filha.<br />

- Como pode pedir que eu acredite em Deus, se ele só me faz sofrer?<br />

- Você é que está trazen<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o sofrimento para sua vida.<br />

- Como, eu? Você não sabe o que Boris tem feito comigo?<br />

- E você já não sabe o que fez com ele no passa<strong>do</strong>?<br />

Verônica empalideceu. De súbito, lembrou-se de Crispus e de sua existência<br />

como Fausta, ao la<strong>do</strong> de Constantino. A mãe prosseguiu:<br />

- Foi você quem pediu para viver próximo a ele, na esperança de conquistar<br />

o seu perdão, através da simpatia. Ao invés disso, está atrain<strong>do</strong> sofrimento<br />

intenso para sua vida, e agravan<strong>do</strong> a animosidade existente entre vocês. Thomas<br />

tentou de todas as formas ajudá-la; levou-a ao trabalho com as crianças<br />

para que aprendesse a pensar nos outros antes de se concentrar somente em si.<br />

Esse era um <strong><strong>do</strong>s</strong> recursos mais eficazes para fortalecer-lhe a vontade no bem.<br />

Rebelde, você desperdiçou a chance que teve. Sua encarnação está toman<strong>do</strong><br />

um rumo perigoso, minha filha. Precisa repensar suas atitudes, aprender a per<strong>do</strong>ar.<br />

Compreenda que Boris tem aversão à você porque inconscientemente<br />

sabe de to<strong>do</strong> o mal que a ele foi causa<strong>do</strong> no passa<strong>do</strong>. Pare de nutrir ódio por<br />

ele e comece a praticar aquilo que Jesus nos ensinou: o perdão. Precisa per<strong>do</strong>álo,<br />

tiran<strong>do</strong> toda essa mágoa <strong>do</strong> coração. Unicamente colocan<strong>do</strong> dentro de seu<br />

coração os ensinos de Jesus, aprenden<strong>do</strong> suas lições, é que você obterá resulta<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

positivos em sua presente existência. Por isso pediu para vir e ficar presa<br />

142


neste mosteiro, para ouvir as lições de Jesus repetidamente, para conviver com<br />

Boris na esperança de refazer o relacionamento de vocês e, assim, renovar seu<br />

coração no bem.<br />

Verônica chorava baixinho. Geórgia acariciou-lhe os cabelos com indizível<br />

ternura, e olhan<strong>do</strong>-a nos olhos, convi<strong>do</strong>u:<br />

- Faça seu melhor, filha. Estarei sempre com você, nunca ficará sozinha.<br />

Mas deve fazer sua parte, precisa abrandar seu coração.<br />

Sem dizer nada, Verônica agarrou-se à mãe e chorou muito, acaban<strong>do</strong> por<br />

a<strong>do</strong>rmecer em seus braços. Toman<strong>do</strong>-a no colo, a mãe amorosa reuniu o corpo<br />

espiritual daquela que fora sua filha a seu corpo físico e aplicou-lhe passes<br />

para fortalecer suas energias e também com o intuito de que ela pudesse recordar,<br />

ainda que vagamente, a conversa que acabavam de ter. Depois, partiu,<br />

deixan<strong>do</strong> Verônica aos cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is amigos espirituais.<br />

Passa<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is meses, a jovem saiu pela primeira vez <strong>do</strong> cubículo que ocupava.<br />

Tinha emagreci<strong>do</strong> muito e suas roupas estavam em farrapos. Fraca, mal<br />

conseguia sustentar-se nas pernas. Foi levada para o refeitório e recebeu refeição<br />

reforçada. Logo depois, Boris apareceu:<br />

- Seu espírito já está <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>? Pensou bem em seus atos? Vai <strong>do</strong>brar-se, afinal?<br />

Verônica ergueu a cabeça de sobre o prato em que devorava a refeição e,<br />

limpan<strong>do</strong> a boca, disse:<br />

- Vou me esforçar muito para ser outra pessoa.<br />

- Muito bem! Estou ven<strong>do</strong> que está começan<strong>do</strong> a criar algum juízo, o que é<br />

muito bom. Vai voltar às suas responsabilidades na limpeza <strong>do</strong> mosteiro, vai<br />

participar de todas as missas e vai fazer tu<strong>do</strong> o que eu disser.<br />

Balançan<strong>do</strong> a cabeça, a jovem procurou conter-se e concor<strong>do</strong>u novamente:<br />

- Sim, vou me esforçar muito para melhorar. Com sorriso cínico, o padre<br />

comentou:<br />

- E vai rezar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias, durante duas horas, na capela. Precisa rezar<br />

muito para ser per<strong>do</strong>ada de seus peca<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Ela não respondeu e ele se afastou. Os dias que se seguiram foram de árduo<br />

trabalho e reclusão total. Ninguém se aproximava de Verônica e ela cumpria<br />

suas obrigações em silêncio. Seguin<strong>do</strong> uma vaga intuição que lhe afluía<br />

<strong>do</strong> inconsciente, depois <strong>do</strong> contato com Geórgia, esforçava-se para abrandar<br />

suas emoções e sua raiva. Aos poucos se revigorava e conseguia exercer algum<br />

controle sobre si, chegan<strong>do</strong> a prestar atenção às poucas lições de Jesus que, de<br />

quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>, eram levadas aos noviços, padres e freiras. Ela parecia, de<br />

fato, estar melhor.<br />

143


Algumas semanas se passaram. Certa manhã, enquanto limpava o pátio<br />

principal <strong>do</strong> mosteiro, agachada, ouviu um homem rezan<strong>do</strong> e choran<strong>do</strong>. Ao<br />

erguer a cabeça, notou que era Vicente. Ergueu-se um pouco mais e perguntou:<br />

- Senhor Vicente, o que o aflige tanto?<br />

Vicente olhou para a freira sem reconhecê-la. Contou em pranto:<br />

- Minha família está despedaçada. A pobre da minha menina perdeu o filho<br />

mais novo, o Felipe.<br />

- O quê?<br />

- Eu considero que o perdeu. Os padres o tiraram dela.<br />

- Por quê?<br />

- Foi em represália por ela ter ajuda<strong>do</strong> uma freira daqui <strong>do</strong> mosteiro. Parece<br />

que já a pegaram... Sabe de alguma coisa? Se a pegaram, quero esganá-la<br />

com minhas próprias mãos. Aquela freira só fez mal à minha filha. Catarina<br />

está <strong>do</strong>ente pela culpa e pelo remorso. Não suporta a falta <strong>do</strong> filho.<br />

- E para onde o levaram? Baixan<strong>do</strong> a cabeça, ele comentou:<br />

- Ninguém sabe. Vai ser cria<strong>do</strong> para ser padre em algum convento, mas<br />

não sabemos onde está.<br />

Verônica sentia as forças sumirem-lhe <strong>do</strong> corpo. Depois de breve pausa,<br />

Vicente ergueu-se, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Preciso ir. Reze por mim e por minha família, irmã, por favor. Incapaz de<br />

articular palavras, ela balançou a cabeça em sinal afirmativo.<br />

Durante mais de um ano, Verônica buscou paz de espírito no trabalho. Dias<br />

de intenso labor ocuparam sua mente, mas seu coração continuava oprimi<strong>do</strong><br />

e entristeci<strong>do</strong>. Boris a observava continuamente, e ao constatar sinais de submissão<br />

deu-lhe algum descanso de suas investidas. A freira acompanhou a<br />

distância a situação de Catarina, que caíra em profunda depressão ao ser separada<br />

<strong>do</strong> filho e nunca mais se recuperou completamente.<br />

Em segre<strong>do</strong>, Verônica escrevia para o pai, pedin<strong>do</strong> perdão pelo sofrimento<br />

que lhe impingira, e convenceu um noviço a enviar as cartas. Numa manhã<br />

ensolarada de início de primavera, sentada sob fron<strong><strong>do</strong>s</strong>a árvore no pátio principal,<br />

rezava com o terço entre as mãos. Pedia pelo pai. O noviço que levava<br />

suas cartas aproximou-se e disse:<br />

- Irmã Verônica, tenho uma notícia triste para lhe dar. Ela se levantou de<br />

imediato, com um pressentimento:<br />

- Fale, o que foi?<br />

- Seu pai.<br />

- Está aqui? Ele chegou? Sério, o rapaz respondeu:<br />

- Não, irmã. E outra coisa.<br />

144


Notan<strong>do</strong> o semblante sério e preocupa<strong>do</strong> <strong>do</strong> rapaz, ela indagou:<br />

- O que foi? Ele está <strong>do</strong>ente? Baixan<strong>do</strong> os olhos, o noviço respondeu:<br />

- Não, irmã, ele estava <strong>do</strong>ente...<br />

Verônica fixou o olhar no rapaz, à espera, e ele prosseguiu:<br />

- Estava muito <strong>do</strong>ente, e não resistiu... Sentan<strong>do</strong>-se, sem forças, ela gritou,<br />

em desespero:<br />

- O quê? O que está dizen<strong>do</strong>? O que aconteceu com ele?<br />

- Ele morreu, irmã.<br />

- Não! - ela gritou, um gemi<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r e desespero.<br />

E ajoelhan<strong>do</strong>-se no chão, entregou-se a convulsivo pranto. Não conseguia<br />

acalmar-se. O rapaz, sem saber o que fazer, ficou ao seu la<strong>do</strong> sem dizer nada.<br />

Quan<strong>do</strong> ela conseguiu erguer-se ele falou, hesitante:<br />

- Boris não deixou que suas cartas seguissem para o seu pai. Tomou-as todas,<br />

uma a uma.<br />

- Fazia muito tempo que ele estava <strong>do</strong>ente?<br />

- Acho que algum tempo.<br />

- Como sabe?<br />

Ele tirou de dentro da batina algumas cartas e estendeu-as à jovem, esclarecen<strong>do</strong>:<br />

- Boris me ordenou que passasse a ele todas as cartas de seu pai que chegassem.<br />

Obedeci, mas guardei algumas, nem sei bem por quê. Fiquei com pena<br />

de você, por querer tanto ter notícias de seu pai. E também porque padre<br />

Thomas era um homem muito bom. Pegue, são suas.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas, Verônica sentou-se em um banco e começou as ler<br />

as cartas. Nelas, Thomas informava que estava <strong>do</strong>ente e recomendava à filha<br />

que não se preocupasse, pois em pouco tempo deveria estar em Praga. Ele pedira<br />

ao arcebispo e a Boris que o autorizassem a retornar para se tratar. Sentia<br />

que sua saúde requeria cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> que só ali poderia receber. Ao terminar de ler<br />

as quatro cartas <strong>do</strong> pai, Verônica agarro u-as em uma das mãos, juran<strong>do</strong>:<br />

- Boris, você me paga! Não vai escapar da minha vingança! Viverei para<br />

destruir você!<br />

145


VINTE E NOVE<br />

PREOCUPADO, VENCESLAU andava de um la<strong>do</strong> a outro <strong>do</strong> grande salão. A<br />

to<strong>do</strong> momento inquiria:<br />

- Ele já chegou?<br />

- Ainda não, majestade - respondia o guarda que permanecia à sua porta.<br />

- Quero que me avise tão logo chegue.<br />

- Sim, majestade.<br />

Então, continuava a caminhar. De súbito o serviçal apareceu, e o rei logo<br />

perguntou:<br />

- Jan Huss chegou?<br />

- Não, senhor. Sua mãe deseja vê-lo, majestade.<br />

- Ela piorou? O médico ainda está lá?<br />

- Sim, ele ainda está, mas não disse nada sobre o esta<strong>do</strong> da nossa querida<br />

rainha mãe.<br />

Venceslau foi de imediato atender ao chama<strong>do</strong> da mãe. Ao entrar no quarto,<br />

na penumbra, viu o rosto queri<strong>do</strong> da mãe, marca<strong>do</strong> pelo sofrimento que<br />

enfrentava nos últimos meses. Ela o chamou:<br />

- Meu filho, venha até aqui.<br />

Ajoelhan<strong>do</strong>-se aos pés da cama, beijou-lhe as mãos:<br />

- Como está, mãe? Melhor? Consciente e conformada, ela retorquiu:<br />

- Sabe que não vou melhorar, não é, filho?<br />

- Vai, mãe...<br />

A rainha colocou uma das mãos sobre os lábios <strong>do</strong> filho, impedin<strong>do</strong>-o de<br />

falar, e disse:<br />

- Você precisa estar prepara<strong>do</strong> para minha partida. A hora está chegan<strong>do</strong>.<br />

Em breve, deixarei este mun<strong>do</strong> e me unirei àqueles que nos precederam na<br />

grande jornada. Não se entristeça, estou bem. Tenho o coração em paz... Apenas<br />

uma coisa me inquieta.<br />

Fez curta pausa para tomar fôlego, e Vesceslau afirmou:<br />

- Serei sempre leal aos valores de nossa família e ao nosso país.<br />

- Estou preocupada com você. Sinto que está cansa<strong>do</strong>, abati<strong>do</strong> e, ultimamente,<br />

muito apreensivo. A situação com os <strong>do</strong>is papas está se tornan<strong>do</strong> insustentável,<br />

não é mesmo?<br />

- Não se preocupe com isso. Saberei resolver essa questão. Apertan<strong>do</strong>-lhe a<br />

mão, ela insistiu:<br />

- Seja forte, seja firme! Não deixe que o papa<strong>do</strong> e a Igreja, com seus ostensivos<br />

abusos, novamente o <strong>do</strong>minem. Apoie Jan Huss, haja o que houver...<br />

146


Sem conseguir responder, o jovem rei balançou a cabeça em sinal afirmativo.<br />

Permaneceu com a mãe por mais algum tempo, até que o médico avisou:<br />

- Agora ela precisa descansar.<br />

Logo to<strong><strong>do</strong>s</strong> saíram, deixan<strong>do</strong>-a em companhia apenas de uma serva e <strong>do</strong><br />

próprio médico. O rei voltava para seu gabinete quan<strong>do</strong> o serviçal o encontrou<br />

e comunicou:<br />

- O senhor Jan Huss está à sua espera, majestade.<br />

- Ótimo.<br />

Entrou na sala <strong>do</strong> trono e Jan Huss manteve-se curva<strong>do</strong> diante dele. Vesceslau<br />

aproximou-se <strong>do</strong> clérigo, dizen<strong>do</strong>:<br />

- O assunto é grave... Gravíssimo, de fato.<br />

- Como está a sua mãe, majestade?<br />

- Não muito bem, espero que melhore.<br />

- Continuo pedin<strong>do</strong> a Deus que lhe dê força e paz. Sorrin<strong>do</strong>, lembrou-se da<br />

serenidade observada nos olhos da mãe<br />

e respondeu:<br />

- Então continue a orar, porque o To<strong>do</strong>-Poderoso o está atenden<strong>do</strong>, Jan.<br />

Minha mãe está muito tranqüila.<br />

- Isso é ótimo.<br />

- Sabe que a situação com a Igreja aqui em Praga agravou-se muito, não é?<br />

- Sim, já fui informa<strong>do</strong> de que o arcebispo acusou-me de heresia Wyclifista.<br />

Evidentemente repele minha simpatia para com a <strong>do</strong>utrina de Wyclif, esse<br />

magnífico servo de Deus que ousa, com seus escritos, falar abertamente sobre<br />

os erros que se vêm acumulan<strong>do</strong> na Igreja. Eu apelei ao arcebispo, mas...<br />

- Sei que ele apreendeu os livros de Wyclif, to<strong><strong>do</strong>s</strong> eles. Jan Huss prosseguiu:<br />

- Tentei convencê-lo de que estava equivoca<strong>do</strong>; entretanto, ainda mais irrita<strong>do</strong>,<br />

ele man<strong>do</strong>u queimar as obras. Já sabe de tu<strong>do</strong> isso?<br />

- Sim, estou acompanhan<strong>do</strong> os acontecimentos. Não obstante, quero que<br />

saiba que muitos membros <strong>do</strong> clero, que o admiram pela sua coragem e integridade,<br />

a universidade, em sua grande maioria, o povo e eu estamos com você<br />

e vamos, portanto, ignorar sua excomunhão e as proibições que recebeu de<br />

pregar em público, assim como de exercer suas demais funções sacer<strong>do</strong>tais;<br />

tampouco levaremos a sério o interdito <strong>do</strong> papa Alexandre contra Praga. Você<br />

deve continuar seu trabalho.<br />

Um mensageiro aproximou-se e o rei ordenou:<br />

- Pode falar.<br />

- Majestade, o povo ficou saben<strong>do</strong> da excomunhão <strong>do</strong> senhor Jan Huss e<br />

aglomera-se nos portões <strong>do</strong> castelo.<br />

147


Ambos foram até uma grande sacada acima da entrada <strong>do</strong> prédio e constataram<br />

o grande tumulto que se formara. Jan Huss estava sen<strong>do</strong> aclama<strong>do</strong> pelo<br />

povo como herói nacional. Enquanto assistiam à eloqüente manifestação popular,<br />

a rainha mãe aproximou-se, amparada pelo médico e pela serviçal. Venceslau<br />

correu ao seu encontro e repreendeu:<br />

- O que faz fora da cama, minha mãe? Não pode fazer esforço... Com intenso<br />

brilho nos olhos, ela respondeu, ofegante:<br />

- E acha que vou perder esse momento maravilhoso? Nosso Jan Huss reconheci<strong>do</strong><br />

como herói? Jamais!<br />

Agora ela se apoiava em Jan Huss e em Venceslau. Os três ficaram por algum<br />

tempo diante <strong>do</strong> povo, e então o homenagea<strong>do</strong> se pronunciou:<br />

- Queri<strong>do</strong> povo de Praga, agradeço sua confiança e seu carinho, que aquecem<br />

sobremaneira meu coração. É por vocês o meu trabalho, e peço a Deus<br />

que me guie nessa difícil tarefa de abrir os olhos daqueles que os mantêm fecha<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

para os erros da Igreja. Os nossos <strong>do</strong>is papas, Gregório XII 13 e Alexandre<br />

V 14 , estão preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> demais tentan<strong>do</strong> chefiar o mun<strong>do</strong> cristão, e não<br />

conseguem compreender sua missão de restaurar os verdadeiros princípios<br />

cristãos dentro da Igreja. Distanciamo-nos da verdade, meus irmãos, distanciamo-nos<br />

demais. A Igreja Católica desfigurou os ensinos de Jesus, a quem<br />

sirvo com to<strong>do</strong> o meu coração. E a ele que sirvo, e não à Igreja e a seus templos<br />

suntuosos, suas caras indulgências e seus cultos vazios.<br />

O povo ouvia atento e de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> erguia a voz - quase em uníssono<br />

- em resposta às enfáticas afirmativas e advertências de Jan Huss. Este<br />

prosseguiu:<br />

- Não nos percamos nos <strong>do</strong>gmas e nas regras absurdas que <strong>do</strong> Evangelho<br />

não têm nem vestígio. Voltemo-nos para os ensinos de Jesus - estes, sim, puros<br />

e verdadeiros - e os sigamos, colocan<strong>do</strong>-os na prática de nossas vidas. Tal deveria<br />

ser o papel da Igreja: ensinar as verdades que Jesus trouxe à Terra, sem<br />

interesses mesquinhos de poder. Não nos enganemos. O poder da Igreja precisa<br />

ser conti<strong>do</strong>; não pode continuar a ser ilimita<strong>do</strong>, ferin<strong>do</strong> e matan<strong>do</strong> em nome<br />

de Jesus. Mais uma vez, meus irmãos, agradeço a confiança que em mim depositam,<br />

e prosseguirei meu trabalho, sem descanso, até que tenhamos o verdadeiro<br />

Evangelho dentro de nossos templos. Que Deus nos abençoe.<br />

E fazen<strong>do</strong> o sinal da cruz sobre o povo, o fiel servo de Deus os abençoou<br />

em nome de Jesus.<br />

13<br />

O Papa Gregório XII, nome de batismo Ângelo Correr, nasceu em Veneza. Patriarca latino<br />

de Constantinopla, foi eleito papa em 1406.<br />

14<br />

Alexandre V, ou Pietro Filargi da Candia, foi um antipapa que governou a Igreja Católica no<br />

biênio 1409-1410.<br />

148


Enquanto Jan Huss falava ao povo, outro mensageiro chegou ao mosteiro,<br />

encontran<strong>do</strong> reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> o arcebispo, o bispo e outras autoridades eclesiásticas. O<br />

arcebispo indagou:<br />

- Então, tem notícias para nós?<br />

- Sim. Formou-se um grande tumulto diante <strong>do</strong> palácio.<br />

- Por certo alguns se opõem a que o rei nos entregue Jan Huss. Baixan<strong>do</strong> a<br />

cabeça, o mensageiro quase gaguejou:<br />

- Eles... Eles o aclamaram herói nacional...<br />

Erguen<strong>do</strong>-se e esmurran<strong>do</strong> a mesa com violência, o arcebispo gritou:<br />

- O que está dizen<strong>do</strong>?<br />

- É isso mesmo.<br />

- E Venceslau?<br />

- O rei o apóia e também ao povo. Eles ignoraram a excomunhão e o interdito<br />

contra Praga. Jan Huss continuará a pregar na Capela de Belém, como se<br />

nada tivesse aconteci<strong>do</strong>.<br />

Dessa vez foi Boris quem se ergueu, páli<strong>do</strong> de raiva, comentan<strong>do</strong> ira<strong>do</strong>:<br />

- Vesceslau tem de parar de apoiar Jan Huss. Precisamos forçá-lo a isso...<br />

O silêncio tomou conta da sala por longos minutos. O arcebispo sentou-se<br />

de novo, pensou muito e disse:<br />

- Vamos ter calma.<br />

- Calma? Já não esperamos o bastante? - gritou Boris.<br />

- Sossegue, Boris. Seu furor não levará a lugar algum. Vamos acabar com<br />

esse homem, custe o que custar. Por ora, no entanto, teremos de suportá-lo.<br />

Não podemos nos opor frontalmente a Vesceslau, que está cada vez mais fraco<br />

e abati<strong>do</strong>.<br />

Fez-se outra longa pausa. Sob a inspiração de Núbio, que com seus servi<strong>do</strong>res<br />

participava ativamente da reunião, influencian<strong>do</strong> os pensamentos e sentimentos<br />

<strong>do</strong> grupo, o arcebispo declarou:<br />

- Vou escrever uma carta a Sigismun<strong>do</strong>, notifican<strong>do</strong>-o sobre a difícil situação<br />

em Praga.<br />

- Acha que ele continua interessa<strong>do</strong> no reino da Boêmia?<br />

- Ora, e por que não estaria? Afastou-se quan<strong>do</strong> a mãe colocou Vesceslau<br />

no coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino, mas sei que seu desejo é ter o trono para si.<br />

Boris caminhou até o arcebispo, tocou-lhe o ombro e aprovou, sorrin<strong>do</strong> satisfeito:<br />

- Brilhante idéia, arcebispo. Poderemos ter um alia<strong>do</strong> agin<strong>do</strong> em nosso favor.<br />

149


TRINTA<br />

FINDA A REUNIÃO, o grupo de eclesiásticos se dispersou aos poucos, fican<strong>do</strong><br />

Núbio e seus servi<strong>do</strong>res a conversar. Um deles perguntou:<br />

- Sigismun<strong>do</strong> é <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos? Núbio fitou-o e respondeu, seco:<br />

- E completamente dócil a nós; faz parte <strong>do</strong> nosso grupo.<br />

- Então, tu<strong>do</strong> segue conforme o seu planejamento, não é?<br />

- Sim. Logo calaremos Jan Huss e to<strong><strong>do</strong>s</strong> os outros que ousarem erguer-se<br />

contra nós.<br />

Enquanto falavam, outro espírito a serviço das forças das trevas adentrou a<br />

sala. Após breve cumprimento, dirigiu-se a Núbio:<br />

- Um de seus escravos está agita<strong>do</strong>. Creio que forças da luz lhe influenciam<br />

o pensamento, causan<strong>do</strong> verdadeiro tumulto. Precisa vir depressa. Se não<br />

fizermos algo, ele poderá ser arrebata<strong>do</strong> contra nós. E só ele conseguir despertar<br />

um pouco os seus senti<strong><strong>do</strong>s</strong>, que poderá ser leva<strong>do</strong>.<br />

Sem se alterar, Núbio orientou seus servi<strong>do</strong>res:<br />

- Permaneçam aqui, atentos à situação. Vou até nossa cidade ver de perto o<br />

que se passa com Constantino e logo retorno.<br />

O grande impera<strong>do</strong>r romano, que ao deixar o corpo físico fora de imediato<br />

subjuga<strong>do</strong> por aqueles a quem entregara seu pensamento e seus sentimentos<br />

enquanto encarna<strong>do</strong>, jazia em esta<strong>do</strong> penoso. Quan<strong>do</strong> se percebeu presa das<br />

entidades perversas, compreendeu que desperdiçara preciosa oportunidade na<br />

Terra. Entretanto, o arrependimento durou pouco. Logo Núbio o <strong>do</strong>minou<br />

mentalmente, e desde então Constantino permaneceu como um zumbi; com a<br />

vontade controlada, era leva<strong>do</strong> para onde o ban<strong>do</strong> bem quisesse e obedecia a<br />

ordens <strong>do</strong> poderoso alia<strong>do</strong> de outros tempos. A consciência, ainda que amordaçada,<br />

não estava a<strong>do</strong>rmecida e sua vida interior transformou-se em verdadeiro<br />

tormento de remorso, <strong>do</strong>r, lamento, conflitos constantes, o que não lhe permitia<br />

entregar-se de to<strong>do</strong> ao serviço de Núbio. Este, sondan<strong>do</strong>-lhe as emoções<br />

e os pensamentos mais profun<strong><strong>do</strong>s</strong>, sabia das suas fraquezas e não lhe dava<br />

grandes responsabilidades; tampouco o deixava sozinho, para que não fosse,<br />

de súbito, arrebata<strong>do</strong> pelos envia<strong><strong>do</strong>s</strong> de Deus. Queria <strong>do</strong>minar-lhe por completo<br />

o coração, para que pudesse fazê-lo reencarnar sob seu controle absoluto.<br />

Ao aproximar-se, sentiu o envolvimento das energias benéficas que eram<br />

direcionadas ao escravo e, ven<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, indagou ao que dele cuidava:<br />

- Fê-lo <strong>do</strong>rmir?<br />

- Sim, tão logo pressentimos as energias a envolvê-lo, teve ímpetos de sair.<br />

Foi a custo que o entorpecemos. No entanto, ainda não o pudemos fazer <strong>do</strong>r-<br />

150


mir profundamente. Ele continua com sono leve, e de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> desperta,<br />

para, sob nosso influxo, voltar a a<strong>do</strong>rmecer.<br />

Com a força de seu pensamento, Núbio emitiu pesada energia sobre Constantino,<br />

que aos poucos, como se vencesse uma resistência interior, acalmou-se<br />

lentamente e a<strong>do</strong>rmeceu de mo<strong>do</strong> tão profun<strong>do</strong> que parecia estar morren<strong>do</strong><br />

outra vez.<br />

Depois da demorada e trabalhosa operação, o servo de Núbio indagou:<br />

- Agora vai custar a acordar?<br />

- Espero que sim. Se algo ocorrer, mande me chamar depressa. Não quero<br />

perder esse homem de vista. Ele pode nos ser muito útil.<br />

- Mas não temos consegui<strong>do</strong> controlá-lo por completo. Já faz tanto tempo<br />

que está conosco, e ainda reluta...<br />

Fitan<strong>do</strong> Constantino, Núbio explicou:<br />

- Não somos apenas nós que o queremos. Outros também não desistem dele.<br />

Por isso nossa luta é grande. Mas somos pacientes e vamos insistir. Ele ainda<br />

haverá de nos servir muito.<br />

Enquanto isso, em Praga, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo desejo de tirar Jan Huss <strong>do</strong> caminho,<br />

Boris empreendia verdadeiros sacrifícios. Ausentava-se com freqüência<br />

<strong>do</strong> mosteiro, viajan<strong>do</strong> e buscan<strong>do</strong> recursos através de contatos com vários representantes<br />

<strong>do</strong> poder político e religioso, para que pudessem eliminar a influência,<br />

no seu entender perniciosa, que Jan exercia sobre o povo.<br />

Embora o visse pouco e não tivesse oportunidade de ficar perto dele, Verônica<br />

seguia cultivan<strong>do</strong> planos de vingança. Depois da notícia da morte <strong>do</strong><br />

pai, fechou seu coração para to<strong><strong>do</strong>s</strong> os sentimentos de amor e compreensão,<br />

permitin<strong>do</strong> que o ódio e a revolta tomassem posse de seu ser. Foi sem sucesso<br />

que Geórgia acercou-se da filha por diversas vezes, tentan<strong>do</strong> relembrá-la <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> e de seus propósitos de reconstrução. Nos momentos em que era advertida,<br />

durante o sono físico, chorava muito e não dizia nada; já quan<strong>do</strong> despertava,<br />

mesmo que trouxesse leve impressão <strong><strong>do</strong>s</strong> encontros com a mãe, deixava-se<br />

<strong>do</strong>minar pelo ódio e ligava-se mais e mais às entidades espirituais que<br />

desejavam destruí-la.<br />

Dois anos se passaram, e os planos de Núbio eram teci<strong><strong>do</strong>s</strong> pacientemente.<br />

Em colônia espiritual próxima ao orbe terrestre, Constância conversava com<br />

Angélica:<br />

- Ela deve chegar a qualquer momento.<br />

- E aguardada com ansiedade.<br />

- Como sempre, sua presença entre nós é motivo de alegria, aprendiza<strong>do</strong> e<br />

muito crescimento.<br />

- Ela vem para ajudar Ernesto e os demais?<br />

151


- Sim. Por mais que nos esforcemos para ajudar nosso queri<strong>do</strong> Jan Huss,<br />

sabemos que a condição energética se adensa e que Ernesto - agora viven<strong>do</strong><br />

como Jerônimo de Praga 15 - precisará apoiar com maior empenho o importante<br />

trabalho de despertar a consciência humana e abrir caminho para a renovação<br />

tão necessária.<br />

As duas conversavam quan<strong>do</strong> sentiram agradável bálsamo que se espalhou<br />

por toda parte. Constância ergueu-se e disse:<br />

- Ela chegou.<br />

Ambas saíram e logo encontraram Elvira e outros espíritos de eleva<strong>do</strong> patamar<br />

espiritual, que acabavam de chegar de Capela. Abraçaram-se com o amor<br />

fraterno que os unia de longa data. Angélica exclamou:<br />

- Como é bom vê-la, Elvira! Há pouco comentava com Constância como<br />

nos faz bem sua presença.<br />

Sorrin<strong>do</strong> com serenidade, o esclareci<strong>do</strong> espírito comentou: - Vocês são<br />

muito generosas. Sou eu quem fica feliz em poder contribuir de alguma forma.<br />

Agora, preciso que me ponham totalmente a par da situação; acompanho to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os fatos, mas gostaria de saber mais detalhes. Percebo o ambiente asfixiante<br />

que se estende por to<strong>do</strong> o planeta.<br />

Constância balbuciou com tristeza na voz:<br />

- A luz <strong>do</strong> verdadeiro Evangelho está apagada.<br />

- Minhas queridas irmãs, confiemos em Deus. O Pai jamais nos aban<strong>do</strong>na<br />

por um único segun<strong>do</strong> sequer. Não obstante tenhamos de sofrer as conseqüências<br />

de nossos atos, ele nos açode e nos ajuda, tão logo desejemos receber amparo<br />

e orientação.<br />

Depois de longa e prazerosa conversa, o grupo combinou partir ao anoitecer.<br />

Antes de se separarem, Elvira fitou Constância e comentou:<br />

- Você me parece preocupada. Com sorriso discreto, ela respondeu:<br />

- Estou um pouco, mas não quero pensar em minhas preocupações. Temos<br />

muito trabalho a fazer.<br />

- Fale, por favor, o que a preocupa? - a outra insistiu.<br />

- Gostaria muito de ajudar Constantino.<br />

- Ele ainda está em poder das trevas?<br />

- Sim. Mesmo que nos esforcemos, não conseguimos encontrá-lo, muito<br />

menos fazê-lo abrir-se para receber ajuda.<br />

- E Licínio, está na terra?<br />

15 Jerônimo de Praga foi o principal discípulo e o mais devota<strong>do</strong> amigo de Jan Huss. Em maio<br />

de 1416 foi julga<strong>do</strong> e condena<strong>do</strong> por heresia e queima<strong>do</strong> na fogueira em 30 de maio <strong>do</strong> mesmo<br />

ano.<br />

152


- Sim, e muito em breve substituirá o papa Alexandre. Entretanto, seu coração<br />

está completamente endureci<strong>do</strong>. Não conseguimos tocar-lhe, nem de<br />

leve, as emoções.<br />

Com a voz embargada, ela calou-se. Ven<strong>do</strong> as lágrimas que desciam pela<br />

face de Constância, Elvira a abraçou, para fortalecer-lhe o coração. Depois,<br />

assegurou:<br />

- Vamos empreender novos esforços para encontrar Constantino. Quem<br />

sabe a hora de resgatá-lo não está próxima? Anime-se, Constância.<br />

No mosteiro, enquanto limpava a enorme janela que dava para o pátio principal,<br />

Verônica observava Boris, em discreta conversa com o arcebispo. Pareciam<br />

confabular algo importante, pois ela notava o ar grave no rosto <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is.<br />

Ao mesmo tempo, devia ser alguma coisa que desejavam esconder, pois de<br />

quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> olhavam em volta para ver se estavam de fato a sós. Ela<br />

pensava: "Decerto estão traman<strong>do</strong> algo de ruim. Nada de bom pode vir desse<br />

homem indigno e mau".<br />

Continuan<strong>do</strong> a limpeza e a observação, ela recebia forte influência de entidades<br />

espirituais que a circundavam: "Ele não merece viver. É muito mau.<br />

Tem de pagar pelo que fez os outros sofrerem".<br />

Verônica repetiu, sem perceber, em voz audível:<br />

- Ele tem de pagar...<br />

Uma noviça que a ajudava indagou:<br />

- O que disse, irmã?<br />

Como quem desperta repentinamente, Verônica olhou para a jovem e perguntou:<br />

- O que foi?<br />

- O que a irmã disse? Quem tem de pagar?<br />

- Meu tio. Ele fez uma dívida de jogo e tem de pagar, antes que acabe se<br />

prejudican<strong>do</strong>.<br />

Calou-se um instante e procurou disfarçar melhor:<br />

- Fico muito preocupada com ele, sabe? Minha tia sempre reclama de sua<br />

ausência, de seus excessos...<br />

- Eles vivem aqui em Praga, irmã Verônica?<br />

- Não, moram muito longe. Vez por outra minha tia me escreve e fico saben<strong>do</strong><br />

de seus problemas.<br />

- Enten<strong>do</strong>... E tem parentes aqui em Praga?<br />

O rosto de Verônica fez-se sombrio e triste quan<strong>do</strong> respondeu:<br />

- Não tenho parentes. To<strong><strong>do</strong>s</strong> os que eu amei me foram tira<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Que pena...<br />

153


A noviça continuou limpan<strong>do</strong> e depois, viran<strong>do</strong>-se para Verônica, comentou:<br />

- Ainda bem que tem sua tia, não é? Pelo menos tem alguém para se dedicar<br />

e se preocupar. Isso ajuda nos momentos difíceis. Quan<strong>do</strong> estamos muito<br />

tristes, voltar a atenção para aqueles que mais <strong>do</strong> que nós precisam de ajuda<br />

nos faz esquecer um pouco nossos problemas; e sen<strong>do</strong> úteis, conseguimos ficar<br />

um pouco mais felizes. Sinto isso toda vez que estou no orfanato. Aliás, na<br />

próxima semana teremos uma missa especial em homenagem ao padre Thomas,<br />

pelo aniversário de sua morte. Ele foi um <strong><strong>do</strong>s</strong> funda<strong>do</strong>res da instituição e<br />

as crianças não o esquecem. A senhora não poderia ir? Algumas das crianças<br />

lembram da senhora com muito carinho. Sua presença as alegraria.<br />

Enquanto escutava a noviça, Verônica recordava as tardes alegres que passara<br />

em companhia <strong>do</strong> pai e das crianças. Agora lhe parecia que aqueles haviam<br />

si<strong>do</strong> os melhores momentos de sua vida. Quan<strong>do</strong> os vivera, não percebera<br />

como era feliz, aprisionada pela idéia fixa de fugir, de sair daquela situação.<br />

Seus olhos ficaram turvos pelas lágrimas, que lhe corriam pela face.<br />

Estava ainda envolvida pelas suaves lembranças quan<strong>do</strong> Boris a interrompeu:<br />

- Irmã Verônica, perdida outra vez em sonhos juvenis? Não quero vê-la<br />

sonhan<strong>do</strong> acordada por aqui.<br />

E olhan<strong>do</strong> para a noviça, concluiu:<br />

- E um péssimo exemplo para as aprendizes. Os veteranos têm de dar o<br />

bom exemplo. Acorde!<br />

Verônica deteve o ímpeto de voar-lhe ao pescoço ali, diante de to<strong><strong>do</strong>s</strong>, e<br />

baixan<strong>do</strong> a cabeça respondeu:<br />

- Sim, santidade, tem toda a razão. Vou me recolher ao término <strong>do</strong> trabalho,<br />

e me penitenciar por este erro.<br />

- Isso, minha filha, reze e se penitencie, para que Deus tenha piedade de<br />

sua alma e a per<strong>do</strong>e.<br />

Verônica respirou fun<strong>do</strong> e disse:<br />

- Que Deus tenha piedade de minha alma, padre.<br />

Ele já se afastava quan<strong>do</strong> Verônica foi ao seu encontro e indagou:<br />

- Senhor, preciso muito lhe falar. Quan<strong>do</strong> poderíamos conversar, com calma?<br />

Boris, desconfia<strong>do</strong>, respondeu:<br />

- Estou viajan<strong>do</strong> hoje para Pisa. O papa João XXIII 16 acaba de assumir o<br />

lugar de Alexandre V e vou, com pequena comitiva, participar da cerimônia de<br />

16 João XXIII foi um antipapa entre 1410 e 1415. Baldassare Cossa, seu nome temporal, nasceu<br />

em Nápoles, Itália, perto de 1370, e morreu em Florença, em 22 de dezembro de 1419.<br />

154


posse <strong>do</strong> novo pontífice. Estarei ausente pelas próxima semanas. Quan<strong>do</strong> regressar,<br />

verei se terei algum tempo disponível.<br />

- Obrigada, padre Boris.<br />

Verônica viu o primo se afastar e desaparecer no corre<strong>do</strong>r. Boris, envolvi<strong>do</strong><br />

com o objetivo de afastar Jan Huss de suas atividades, demorou cerca de<br />

<strong>do</strong>is meses para retornar.<br />

TRINTA E UM<br />

A TENSÃO CRESCIA em to<strong>do</strong> o reino da Boêmia, e mais intensamente em<br />

Praga. O povo continuava a acatar as idéias de Jan Huss, tanto pelas suas pregações<br />

quanto pelos exemplos de abnegação e serviços ao próximo de que era<br />

exemplo. Não apenas pregava reformas eclesiásticas: ele as praticava. À medida<br />

que buscava auxiliar a to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que necessitavam, irritava ainda mais as<br />

altas hierarquias <strong>do</strong> clero.<br />

O rei Venceslau prosseguia apoian<strong>do</strong> aquele que seria o precursor da reforma<br />

protestante, porém suas apreensões cresciam. Cada vez mais enfraqueci<strong>do</strong>,<br />

faltavam-lhe energias para agir com firmeza diante <strong><strong>do</strong>s</strong> ataques e ameaças<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> representantes de Igreja, especialmente personaliza<strong><strong>do</strong>s</strong> no arcebispo de<br />

Praga, Zbynek Zajíc 17 .<br />

Alguns meses depois de assumir a posição de papa, João XXIII declarou<br />

guerra ao rei Ladislau. O novo pontífice era um nobre de família tradicional<br />

que assumira a carreira religiosa sobretu<strong>do</strong> em função <strong>do</strong> poder político que<br />

desejava obter. Certo dia, confabulava com alguns de seus auxiliares mais próximos:<br />

- Quero invadir Nápoles e tomar o poder desse rei Ladislau. Um de seus<br />

assessores objetou, titubeante:<br />

- Os cofres da Igreja estão vazios, senhor. Guerras, sejam pequenas ou<br />

grandes, têm preço eleva<strong>do</strong>.<br />

Procuran<strong>do</strong> avaliar a real situação das finanças, questionou:<br />

- Os cofres estão vazios? O que fez Alexandre V que não aumentou os recursos<br />

da Igreja?<br />

Outro assessor, mais experiente, interveio:<br />

OBS- houve mais de um papa João XXIII, não confundir com João XXIII <strong>do</strong> século XX.<br />

17 Zbynek Zajíc foi o 5° Arcebispo de Praga, entre 1403 e 1411.<br />

155


- Nossas coletas estão se reduzin<strong>do</strong>, senhor, especialmente as que vêm de<br />

Praga. Os nobres da Boêmia não têm si<strong>do</strong> mais tão generosos com a Igreja<br />

como costumavam ser em outros tempos.<br />

O papa caminhou pelo salão, pensativo. Ao se reacomodar em sua cadeira,<br />

arrumou os paramentos luxuosos e, fitan<strong>do</strong> o interlocutor, disse:<br />

- Iniciaremos campanha para arrecadação de dinheiro. Quero recursos generosos<br />

entran<strong>do</strong> em nossos cofres. E preten<strong>do</strong> arregimentar homens para a<br />

guerra. Iniciaremos uma cruzada contra Ladislau, esse rei herege.<br />

- Como faremos para arrecadar mais recursos, meu senhor? Toman<strong>do</strong> papel<br />

e pena, o papa pôs-se a escrever um decreto.<br />

Depois, chancelou-o com o anel papal e entregou-o ao assessor, esclarecen<strong>do</strong>:<br />

- Ofereceremos absoluta remissão de peca<strong><strong>do</strong>s</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que participarem<br />

da guerra e iniciaremos venda de indulgências sem precedentes nos últimos<br />

tempos para aqueles que nos apoiarem financeiramente. Quem quiser garantir<br />

seu lugar no céu, deverá pagar.<br />

Virou-se para um <strong><strong>do</strong>s</strong> assessores, que se mantivera cala<strong>do</strong>, e in-;ou:<br />

- Temos ainda muitos prisioneiros acusa<strong><strong>do</strong>s</strong> de heresia?<br />

- Sim, temos muitos.<br />

- Pois comecem com esses.<br />

- Mas já lhes tomamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> os bens.<br />

- E daí? A família fará qualquer coisa para libertá-los. Venderão seus filhos,<br />

se preciso for. Comecem por esses, que estão mais desespera<strong><strong>do</strong>s</strong>, com<br />

me<strong>do</strong> da morte na fogueira. Se pagarem o preço estipula<strong>do</strong>, serão liberta<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Mesmo os casos mais graves, senhor, em que são acusa<strong><strong>do</strong>s</strong> de bruxaria?<br />

Pensan<strong>do</strong> um pouco, o papa respondeu:<br />

- Que esses paguem o <strong>do</strong>bro e serão liberta<strong><strong>do</strong>s</strong>. Depois, se persistirem em<br />

suas práticas profanas, nós os prenderemos outra vez.<br />

O grupo permaneceu alguns instantes em silêncio. Por fim, o papa levantou-se<br />

e falou, irrita<strong>do</strong>:<br />

- O que estão esperan<strong>do</strong>? Vamos, iniciemos imediatamente a divulgação<br />

dessa campanha. Não quero perder tempo.<br />

Enquanto o grupo se dispersava, Constância e Angélica, em companhia de<br />

outros amigos espirituais, observavam a situação. Angélica tocou suavemente<br />

os braços da amiga e pediu:<br />

- Não fique triste assim.<br />

- Como não, Angélica? Por mais que me esforce, não consigo falar ao coração<br />

de Licínio. Agora, então, que assumiu a posição de papa, acabará inteiramente<br />

comprometi<strong>do</strong>. Sei que são suas escolhas, que serve aos nossos ir-<br />

156


mãos que deliberadamente vivem distante <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r; já pedi, inclusive, aos<br />

nossos irmãos que o retirem da Terra, interrompen<strong>do</strong>-lhe a encarnação para<br />

poupá-lo de afundar mais.<br />

Fez-se breve silêncio antes de Constância prosseguir:<br />

- Ele não deverá demorar-se muito na Terra, mas sei que ao deixá-la continuará<br />

sob o <strong>do</strong>mínio das trevas. Por isso estão prorrogan<strong>do</strong> um pouco seu<br />

tempo, de mo<strong>do</strong> a tentarmos o quanto pudermos tocar seu coração. Lamentavelmente,<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os esforços se têm mostra<strong>do</strong> inúteis.<br />

- Ele teve contato com a valorosa obra de Wyclif, nosso queri<strong>do</strong> irmão<br />

Ario, reencarna<strong>do</strong> na Inglaterra?<br />

- Teve, e não foi capaz de se deixar tocar por nada. Man<strong>do</strong>u que a destruíssem,<br />

junto com qualquer outra obra <strong>do</strong> nosso irmão. Ele não quer ter a consciência<br />

desperta.<br />

- Continua escolhen<strong>do</strong> conscientemente o mal.<br />

- Sim, infelizmente.<br />

- Não há muito que possamos fazer por ele. Apenas orar e aguardar que as<br />

sucessivas experiências na Terra toquem sua alma.<br />

Baixan<strong>do</strong> a cabeça, Constância comentou:<br />

- Unicamente pela <strong>do</strong>r, Angélica... Percebo que só em profun<strong>do</strong> sofrimento<br />

meu ama<strong>do</strong> Licínio terá alguma chance de despertar para a gloriosa iluminação<br />

que espera a to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós, no caminho da união com Deus. Obtivemos autorização<br />

para acompanhar o momento de sua partida da Terra, que será abrupta e<br />

inesperada, para que os nossos irmãos que o <strong>do</strong>minam sejam pegos de surpresa;<br />

assim, poderemos levá-lo e recolocá-lo em nova encarnação, numa situação<br />

em que fique escondi<strong>do</strong> temporariamente de seus <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res, para que tenha<br />

alguma condição de despertar, de evoluir.<br />

Angélica abraçou Constância, que, limpan<strong>do</strong> as lágrimas, disse:<br />

- Amo Licínio profundamente. Sei que irá sofrer muito, mas é o único jeito<br />

de poupá-lo de sofrimentos ainda maiores...<br />

As duas permaneceram longo tempo observan<strong>do</strong> a movimentação <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos<br />

que influenciavam o papa João XXIII e seus assessores. Depois, retornaram<br />

à colônia espiritual, para retomar suas tarefas junto a Elvira e a outros<br />

orienta<strong>do</strong>res espirituais.<br />

Não demorou e a campanha de João XXIII oferecen<strong>do</strong> indulgência (perdão<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> peca<strong><strong>do</strong>s</strong>) em troca de polpu<strong><strong>do</strong>s</strong> recursos a serem <strong>do</strong>a<strong><strong>do</strong>s</strong> à Igreja alcançou<br />

ampla divulgação, chegan<strong>do</strong> aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> de Jan Huss. Este, indigna<strong>do</strong> com<br />

mais esse abuso, intensificou suas pregações inflamadas na Capela de Belém:<br />

- João XXIII não está a serviço de Deus, e sim contra o To<strong>do</strong>-Poderoso.<br />

Está usan<strong>do</strong> medidas espirituais para atender seus interesses pessoais e políti-<br />

157


cos; para satisfazer seus desejos orgulhosos e egoístas de poder. Esse papa<br />

indigno, que contraria to<strong><strong>do</strong>s</strong> os preceitos bíblicos, não deve ser obedeci<strong>do</strong>. Eu<br />

insisto, meus irmãos, que o perdão <strong><strong>do</strong>s</strong> peca<strong><strong>do</strong>s</strong> só pode ser obti<strong>do</strong> por contrição<br />

e penitência sincera, nunca por dinheiro; e digo mais: nem o papa, nem<br />

qualquer outro sacer<strong>do</strong>te, pode levantar a espada em nome da Igreja e muito<br />

menos em nome de Deus. O papa não é infalível, meus irmãos; ele é um ser<br />

humano como to<strong><strong>do</strong>s</strong> os outros, passível de errar!<br />

O povo, alvoroça<strong>do</strong>, apoiava Jan Huss. Quan<strong>do</strong> a notícia de suas acusações<br />

diretas chegou ao ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> papa, este não hesitou. Excomungou novamente<br />

Jan Huss e, dessa vez, expediu ordem de que se este não fosse afasta<strong>do</strong> de suas<br />

atividades, toda a Boêmia seria excomungada e verdadeira caça aos hereges<br />

seria empreendida.<br />

Ao tomar conhecimento da determinação <strong>do</strong> papa pisano, Venceslau ficou<br />

apreensivo. Apesar de to<strong>do</strong> o respeito que dedicava a Jan Huss, precisava manter<br />

boas relações com João XXIII, entre outras razões porque ainda não fora<br />

completamente decidida a questão de ser ele ou seu irmão Sigismun<strong>do</strong> o impera<strong>do</strong>r<br />

legítimo. Se a autoridade de João XXIII viesse a se impor sobre a <strong>do</strong><br />

papa Gregório - que o apoiava -, possivelmente seria o primeiro que decidiria<br />

o impasse, especialmente agora que Sigismun<strong>do</strong>, saben<strong>do</strong> que Venceslau estava<br />

a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>, demonstrara renova<strong>do</strong> e inconfundível interesse pelo reino da<br />

Boêmia e seu trono. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, sabia que ele viria com toda a sua fúria<br />

sobre o povo inocente da Boêmia, e temia pelos seus súditos. Depois de noites<br />

em claro e de muito pensar, Venceslau man<strong>do</strong>u chamar Jan Huss e comunicou<br />

sua decisão:<br />

- Meu amigo, a situação se agravou sobremaneira.<br />

- Sim, eu sei, majestade.<br />

- Temo pela sua segurança, meu amigo, bem como pela de nosso povo. A<br />

partir de agora, o papa não poupará esforços para calar sua voz. Você o irritou<br />

além <strong>do</strong> limite.<br />

Jan escutava em silêncio. O rei prosseguiu:<br />

- Acho mais prudente, por enquanto, você se afastar de Praga. Será temporário,<br />

até os ânimos esfriarem. O papa precisa sentir que não o enfrentamos,<br />

caso contrário virá sobre nós com toda a sua fúria. E muitos inocentes pagarão.<br />

Fitan<strong>do</strong> Jan, que permanecia cala<strong>do</strong>, o rei jocou seu ombro e disse:<br />

- Eu sinto muito, mas será melhor que deixe Praga por algum tempo.<br />

Toman<strong>do</strong> fôlego, Jan Huss respondeu, sereno: - Compreen<strong>do</strong> sua situação<br />

e suas preocupações, majestade. Amanhã vou preparar minha transferência<br />

para Husinic. Ficarei em minha cidade natal aguardan<strong>do</strong> sua orientação para o<br />

meu regresso. Visivelmente fraco e entristeci<strong>do</strong>, o rei concor<strong>do</strong>u:<br />

158


- É o melhor a fazer por ora.<br />

Fitan<strong>do</strong>-o com preocupação, o padre comentou:<br />

- Vossa alteza precisa descansar.<br />

- Sim, Jan, sinto-me cansa<strong>do</strong>.<br />

Conversaram um pouco mais e logo se despediram.<br />

TRINTA E DOIS<br />

Aos PRIMEIROS SONS <strong>do</strong> alvorecer, Jan despertou e deparou com esplen<strong>do</strong>rosa<br />

figura luminosa em seu quarto. Atônito com a beleza e a leveza daquele<br />

ser espiritual que pairava no ar, como se flutuasse diante dele, fechou os olhos<br />

e abriu-os de novo, pensan<strong>do</strong> estar ainda sob o efeito de um sonho. Com voz<br />

<strong>do</strong>ce, Elvira comentou:<br />

- Não, meu queri<strong>do</strong> irmão Jan Huss, você não está sonhan<strong>do</strong>. Com o coração<br />

repleto de grande emoção pela sublimidade <strong>do</strong> espírito que o visitava, ele<br />

balbuciou:<br />

- É um anjo de Deus? Sorrin<strong>do</strong>, Elvira respondeu:<br />

- Não sou um anjo, mas sou enviada de Deus para fortalecê-lo em sua tarefa.<br />

Sentan<strong>do</strong>-se na cama, Jan prosseguiu:<br />

- O que devo fazer? Vem me orientar a não me afastar de Praga? Devo permanecer<br />

e continuar lutan<strong>do</strong>?<br />

- Sabemos de sua coragem e determinação na tarefa que abraçou; neste<br />

momento, porém, cremos ser mais prudente acatar o pedi<strong>do</strong> de Venceslau. A<br />

situação é muito conturbada; densas energias pairam sobre o rei e sobre toda a<br />

Igreja.<br />

- Desejo ardentemente ver a Igreja livre das teias em que se prendeu... Ela<br />

não serve a Jesus, mas aos interesses de seus líderes.<br />

- Sim, Jan, decerto. Foi por isso mesmo que você desceu à Terra com a nobre<br />

missão de lutar contra a cegueira que se instalou dentro da própria Igreja.<br />

A ignorância e a dureza de coração têm manti<strong>do</strong> os homens cativos de mentes<br />

espirituais que desejam a to<strong>do</strong> custo retardar o progresso da humanidade.<br />

Sorrin<strong>do</strong>, o servo de Deus respondeu:<br />

- Quão poucos compreendem isso... É verdadeiramente uma enviada de<br />

Deus.<br />

- Estaremos sempre ao seu la<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong>-lhe força e amparo, bem como de<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> quantos buscam a Deus de to<strong>do</strong> o coração. Sua missão prossegue, Jan<br />

159


Huss. Mantenha a confiança. Não pense jamais que pela dificuldade que se<br />

apresenta mais intensa, pelos obstáculos que se erguem como gigantescas paredes<br />

à sua frente, algo há de equívoco em suas escolhas, ou mesmo que Deus<br />

está distante de você. Não deixe nenhuma dúvida ou incerteza sequer espreitar<br />

seus pensamentos. Siga confiante, pois está a serviço <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

que conduzem o progresso da Terra, os quais, por sua vez, estão a serviço direto<br />

de Jesus, a quem tanto ama. Enquanto estiver no exílio, aproveite o tempo e<br />

escreva. Prossiga com seus trabalhos escritos, pois eles continuarão, mesmo<br />

depois que não estiver mais aqui, sen<strong>do</strong> úteis à humanidade.<br />

Após breve pausa, Elvira indagou:<br />

- Deseja fazer alguma pergunta ou dizer alguma coisa? Estou aqui para falar<br />

e também para escutar, fazen<strong>do</strong> o que me for possível para fortalecer sua<br />

alma nas tarefas que haverão de se seguir.<br />

- Por vezes, sinto-me muito sozinho. Olho ao re<strong>do</strong>r e me sinto incompreendi<strong>do</strong><br />

e só, como se falasse em um deserto, palavras espalhadas ao vento, sem<br />

utilidade real.<br />

- E natural que se sinta dessa forma, dadas as condições de evolução e<br />

compreensão <strong><strong>do</strong>s</strong> homens deste tempo. No entanto, não só. Isso de fato não<br />

acontece. Tem segui<strong>do</strong>res, Jan, a quem influencia muito. E também, é claro,<br />

exerce forte impacto sobre o povo da Boêmia, mais especialmente aqui na bela<br />

cidade de Praga.<br />

- O povo é muito carente...<br />

- Sim, e sua dedicação alimenta a alma de muitos. <strong>Além</strong> disso, alguns compreendem<br />

profundamente os valores que defende. Veja Jerônimo, por exemplo.<br />

Jan sorriu ao se lembrar <strong>do</strong> discípulo que lhe trouxera os textos de Wyclif<br />

pela primeira vez. Elvira prosseguiu:<br />

- Ele o admira e o compreende muito bem. De fato, está pronto para auxiliá-lo<br />

no que for necessário.<br />

- Ele é um bom homem, fiel e verdadeiro, um servo de Deus.<br />

- Sim, Jerônimo é alguém por quem nutro imenso carinho. De fato, estarei<br />

aqui para apoiá-los aos <strong>do</strong>is nesta tarefa árdua de acender a luz nas trevas da<br />

ignorância <strong><strong>do</strong>s</strong> homens.<br />

- Gostaria de entender melhor por que se fez tamanha escuridão no seio da<br />

Igreja. Ela, que deveria manter a chama <strong>do</strong> amor e da verdade na Terra, a serviço<br />

de Jesus, mantém os homens na mais profunda escuridão...<br />

Elvira o observou por um tempo, depois respondeu:<br />

- Os homens preferem silenciar a consciência, abafan<strong>do</strong>-a e obscurecen<strong>do</strong><br />

a mente, a entregar-se ao trabalho de iluminação própria, seguin<strong>do</strong> de fato o<br />

160


modelo de Jesus. Entregam-se assim, aos milhares, à pesada hipnose que mantém<br />

suas mentes atadas a outras mentes presas ao mal, que campeiam por toda<br />

parte.<br />

- Compreen<strong>do</strong>. Seguirei fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que estiver ao meu alcance para<br />

auxiliar os homens a despertar.<br />

- Essa luz irradiará seu brilho pelo mun<strong>do</strong>.<br />

Envolven<strong>do</strong> Jan Huss em luzes suaves, Elvira se despediu e partiu, deixan<strong>do</strong>-o<br />

tranqüilo e confiante. Jan dedicou o dia a preparar-se, e logo na manhã<br />

seguinte, em obediência ao rei Vesceslau, e sobretu<strong>do</strong> aos espíritos que o orientavam,<br />

deixou a cidade de Praga.<br />

No mosteiro, alheia à situação ao seu re<strong>do</strong>r, Verônica conservava na mente<br />

e no coração o desejo de vingar-se de Boris. Atribuía a ele to<strong>do</strong> o seu sofrimento,<br />

fechan<strong>do</strong>-se mais e mais à voz da consciência e até às advertências que<br />

vinham de sua mãe, que vez por outra a visitava durante o sono físico. Fixan<strong>do</strong>-se<br />

em sentimentos menos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong> e deixan<strong>do</strong>-os <strong>do</strong>minar-lhe o ser, Verônica<br />

se entregou ao controle de entidades espirituais que, agora, praticamente<br />

lhe dirigiam os pensamentos, manten<strong>do</strong>-a sob forte hipnose.<br />

Em uma noite muito fria, viu pela janela quan<strong>do</strong> Boris chegou. Rapidamente<br />

apossou-se de uma faca afiada na cozinha e foi para o quarto <strong>do</strong> primo,<br />

levan<strong>do</strong> a chave <strong>do</strong> quarto dele, que obtivera com outra noviça. Escondeu-se<br />

no quarto esperan<strong>do</strong> pela entrada <strong>do</strong> padre.<br />

Ele abriu a porta, mas a manteve entreaberta, conversan<strong>do</strong> com um clérigo<br />

que o acompanhava. Enquanto falavam, movi<strong>do</strong> por inesperada intuição, sentiu<br />

uma presença diferente no quarto e de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> olhava para o<br />

interior <strong>do</strong> aposento, incomoda<strong>do</strong> e desconfia<strong>do</strong>. Notou uma silhueta escondida<br />

atrás da cortina e, despedin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> outro, fechou a porta. Verônica não<br />

demorou a saltar sobre ele, pronta a cravar a faca em seu peito. De sobreaviso,<br />

Boris foi capaz de defender-se e os ataques feriram-lhe o antebraço e também<br />

o rosto. Depois de rápida luta, ele conseguiu deter o braço de Verônica e, agarran<strong>do</strong>-a,<br />

imobilizou-a e carregou-a corre<strong>do</strong>r afora, em busca de ajuda, pois<br />

sentia que os ferimentos eram profun<strong><strong>do</strong>s</strong>. Entrou com ela no refeitório, para o<br />

desespero de freiras e padres. Logo, alguns deles seguraram Verônica firmemente.<br />

Ela, absolutamente descontrolada, gritava to<strong>do</strong> tipo de impropérios e<br />

acusava Boris de ter assassina<strong>do</strong> seu pai.<br />

O primo foi socorri<strong>do</strong> e leva<strong>do</strong> depressa ao seu quarto. Logo um médico<br />

entrava no mosteiro, chama<strong>do</strong> às pressas para socorrer o rapaz. Verônica, por<br />

sua vez, foi levada diretamente para uma cela de clausura e trancafiada. O arcebispo<br />

Zbynek Zajíc chegou e, depois de certificar-se da boa condição de<br />

Boris, foi vê-la e a advertiu:<br />

161


- Será julgada pelo santo oficio. Atentou contra a vida de um padre e isso<br />

só pode ser coisa <strong>do</strong> demônio. Você, aliás, sempre esteve sob o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong><br />

mal, não me admiro de ter agi<strong>do</strong> dessa forma. Mas seus dias de loucura terão<br />

fim. Em breve, será condenada e pagará pelo mal que intentou contra o padre<br />

Boris. Seus dias estão chegan<strong>do</strong> ao fim.<br />

Ao invés de sentir-se intimidada, Verônica continuava a gritar, desvairada.<br />

Já não temia pela própria vida. Estava completamente desnorteada e enfraquecida.<br />

Hipnotizada por espíritos que a <strong>do</strong>minavam, não tinha mais condições de<br />

raciocinar com clareza.<br />

Depois de algumas semanas, Boris, recupera<strong>do</strong>, participava de pequena reunião<br />

com o arcebispo, a portas fechadas, para decidir o futuro de Verônica.<br />

Zbynek argumentava:<br />

- Não enten<strong>do</strong> por que não resolvemos logo a situação dessa moça, levan<strong>do</strong>-a<br />

à fogueira. Queria que assim tivesse si<strong>do</strong> desde o princípio, quan<strong>do</strong> ela<br />

chegou aqui. Você me impediu de fazer o que achava melhor, e agora veja: ela<br />

colocou sua vida em risco e pode fazê-lo novamente, se não tomar cuida<strong>do</strong>.<br />

- Ela não vai conseguir fazer mais nada contra mim. E eu quero, como<br />

sempre quis, vê-la sofren<strong>do</strong> um pouco mais antes de acabar com ela.<br />

- Mas por quê?<br />

- Ora, não sei! Ela me causa repugnância!<br />

- Mas qual a causa desse sentimento? Ela se insinuou de alguma forma, ou<br />

tem outros motivos?<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, Boris caminhava de um la<strong>do</strong> a outro na sala, aflito. Depois,<br />

com o olhar distante, refletiu em voz alta:<br />

- Não sei exatamente a causa de minha aversão por Verônica, mas quero<br />

que ela sofra, que apodreça naquela cela fétida e nojenta, sem ver a luz <strong>do</strong> sol,<br />

sem falar com ninguém. Isso, para ela, será pior <strong>do</strong> que a morte. Depois, quan<strong>do</strong><br />

não tiver mais nada para sofrer, terei misericórdia e desferirei o golpe final<br />

na fogueira.<br />

Fez-se pesa<strong>do</strong> silêncio na sala, até que o arcebispo, erguen<strong>do</strong>-se, disse:<br />

- Pois bem, que seja. Ela é sua prima, seu problema e sua responsabilidade.<br />

Faça como quiser, mas tome cuida<strong>do</strong> com essa moça. Ela é perigosa<br />

Sem dizer nada, Boris despediu-se <strong>do</strong> arcebispo, beijan<strong>do</strong>-lhe a mão. Depois<br />

dessa decisão acordada por ambos, Verônica permaneceu presa.<br />

Passaram-se quase <strong>do</strong>is anos. Exila<strong>do</strong> em Husinic, Jan Huss dedicou-se aos<br />

textos, escreven<strong>do</strong> uma de suas mais importantes obras: "A Eclésia".<br />

Enquanto isso, a situação já conturbada em Praga agravou-se com a <strong>do</strong>ença<br />

<strong>do</strong> rei. Venceslau foi finalmente venci<strong>do</strong> por ela e afastou-se para tentar tratamento.<br />

Imediatamente, Sigismun<strong>do</strong> assumiu o trono da Boêmia, apoia<strong>do</strong> por<br />

162


João XXIII e pelo alto nível hierárquico da Igreja. Diversos grupos que apoiavam<br />

as idéias de Jan Huss prosseguiam pregan<strong>do</strong> contra as ações da Igreja; entre<br />

eles estava um fiel discípulo de Huss, conheci<strong>do</strong> como Jerônimo de Praga.<br />

Logo depois de assenhorear-se das circunstâncias e incentiva<strong>do</strong> por João<br />

XXIII, e muito especialmente por entidades espirituais que ardilosamente o<br />

<strong>do</strong>minavam, Sigismun<strong>do</strong> preparava uma sutil armadilha para Jan Huss.<br />

TRINTA E TRÊS<br />

NA COLÔNIA ESPIRITUAL próxima à crosta, senta<strong><strong>do</strong>s</strong> em semicírculo em<br />

ampla e iluminada sala, reuniam-se em oração Elvira, Constância, Angélica,<br />

Helena, Henrique e mais quatro espíritos. Silenciosos, pediam pela libertação<br />

de Constantino, ainda escraviza<strong>do</strong> por Núbio e outras entidades que o serviam.<br />

Naquela noite realizavam vibrações especiais destinadas àquele irmão que<br />

também viera de Capela e que permanecia na escuridão <strong>do</strong> orgulho e <strong>do</strong> egoísmo,<br />

por não conseguir deixar a luz de Jesus brilhar em sua alma.<br />

O grupo intercedia em favor daquele irmão, que espontaneamente se entregara<br />

às forças <strong>do</strong> mal e agora era por elas subjuga<strong>do</strong>. Para ele rogavam a misericórdia<br />

e o socorro <strong>do</strong> Mestre. Constância, enquanto orava, emocionada, deixava<br />

que grossas lágrimas lhe rolassem pela face. Ao final das vibrações receberam<br />

a manifestação de uma entidade de grande desenvolvimento moral, responsável<br />

por equipes de resgate daqueles que se perdiam nas trevas. O eleva<strong>do</strong><br />

espírito lhes falou com amor.<br />

- Venho, em resposta às suas preces, avisar-lhes que uma equipe de socorristas<br />

de nosso grupo descerá ao orbe da Terra para o resgate de diversos espíritos<br />

aprisiona<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos nossos irmãos infelizes. Constantino está entre eles.<br />

Com a graça de Deus, logo será assisti<strong>do</strong> em um pronto-socorro nas regiões<br />

densas <strong>do</strong> plano espiritual <strong>do</strong> planeta.<br />

Com muita emoção, Constância ajoelhou-se em mu<strong>do</strong> agradecimento. O<br />

eleva<strong>do</strong> instrutor avisou:<br />

- Esteja preparada, minha irmã, ele logo será resgata<strong>do</strong>. Deverá, então, ir<br />

ao seu encontro, no hospital, onde poderá colaborar com sua recuperação.<br />

Sem hesitar, a amorosa Constância respondeu:<br />

- Estarei pronta, senhor.<br />

Depois de outros esclarecimentos, o visitante espiritual desapareceu, deixan<strong>do</strong><br />

no ambiente suave perfume e intensa energia de amor. Elvira encerrou a<br />

tarefa com sentida prece de gratidão. Muito feliz, logo depois comentou, em<br />

conversa descontraída, abraçan<strong>do</strong> Constância:<br />

163


- Que alegria, não é, minha querida irmã?<br />

- Sim, alegria indizível. Estou feliz demais pela possibilidade de ajudar<br />

Constantino. Desde Capela nos conhecemos e temos vivi<strong>do</strong> diversas encarnações<br />

como parentes próximos, estabelecen<strong>do</strong> vigoroso elo de amizade e ternura.<br />

No entanto, não foi sempre assim. Quan<strong>do</strong> deixamos Capela, meu ódio por<br />

ele era imenso. Ferdinan<strong>do</strong> havia arquiteta<strong>do</strong> o aborto de meus filhos gêmeos,<br />

e quan<strong>do</strong> realizou seu intento eu não suportei e desencarnei junto com meus<br />

bebês. Eles logo foram socorri<strong><strong>do</strong>s</strong> e leva<strong><strong>do</strong>s</strong> a uma colônia espiritual. Por outro<br />

la<strong>do</strong>, meu ódio era tão grande que atormentei Ferdinan<strong>do</strong> sem descanso. Assim<br />

que chegamos ao plano espiritual da Terra, procurei por ele e o encontrei. A<br />

situação espiritual dele me facilitava atingi-lo com meu ódio. Por muito tempo<br />

nos perturbamos mutuamente, ora nos alternan<strong>do</strong> no plano espiritual, ora ambos<br />

encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>, e foram experiências muito <strong>do</strong>lorosas. Finalmente, o amor de<br />

Deus me alcançou e, ainda como hebreia, comecei a me preparar para receber<br />

Jesus e servi-lo, obedecen<strong>do</strong> a seus ensinos liberta<strong>do</strong>res. Por ele fui enfim liberta<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> pesa<strong><strong>do</strong>s</strong> aguilhões <strong>do</strong> ódio e <strong>do</strong> orgulho. Mas com Ferdinan<strong>do</strong> foi<br />

mais difícil. Quan<strong>do</strong> encarnou como Constantino ele sentia que estava pronto<br />

para servir a Jesus. Sua grande evolução intelectual e seus conhecimentos o<br />

capacitavam para fazer frente à pesada tarefa que se propôs realizar em favor<br />

da humanidade: apoiar o Cristianismo primitivo, ajudan<strong>do</strong> os cristãos a se fortalecerem<br />

e se estruturarem, preparan<strong>do</strong>-os para crescer e tirar os homens da<br />

escuridão. Entretanto, como to<strong><strong>do</strong>s</strong> sabem, ele sucumbiu. O fato de estar prepara<strong>do</strong><br />

não foi suficiente. Ele não conseguiu <strong>do</strong>minar-se a si mesmo, e fracassou.<br />

A bela mulher fez longa pausa antes de concluir, limpan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Estou muito feliz por saber que, em breve, ele será resgata<strong>do</strong>. Que Jesus o<br />

ampare e abençoe.<br />

Alegremente apoiada pelo amoroso grupo, seguiram em animada conversa<br />

em torno das tarefas de auxilio a que se dedicavam. Naquele mesmo instante,<br />

Núbio, que estava ao la<strong>do</strong> de Sigismun<strong>do</strong> e sentiu as emanações amorosas de<br />

Constância e <strong>do</strong> grupo que a apoiava, resmungou, irrita<strong>do</strong>:<br />

- Estão a me cercar com essas vibrações irritantes. Mas não me impedirão<br />

de destruir Huss, bem como de rechaçar qualquer tentativa de reduzir meu<br />

poder sobre os homens...<br />

Com seus planos em andamento e a ponto de se concretizarem, Núbio, interessa<strong>do</strong><br />

em acompanhar cada detalhe pessoalmente, afastara-se de Constantino.<br />

Algumas noites mais tarde, um grupo de espíritos entrava nas dependências<br />

onde estava preso aquele que fora impera<strong>do</strong>r romano. Eram os socorristas,<br />

que, adensan<strong>do</strong> sua forma espiritual a fim de se assemelharem aos algozes,<br />

logo o localizaram; em rápida operação o libertaram e o levaram para o pron-<br />

164


to-socorro, junto com outros espíritos recolhi<strong><strong>do</strong>s</strong> na mesma expedição, sen<strong>do</strong><br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> acomoda<strong><strong>do</strong>s</strong> em ampla enfermaria e receben<strong>do</strong> medicamentos e tratamento<br />

adequa<strong>do</strong> a cada situação. Constância, que ali os aguardava, comoveuse<br />

ao ver o esta<strong>do</strong> em que se encontrava Constantino e se uniu àqueles que o<br />

haviam resgata<strong>do</strong>, para ajudá-los com ele e também com os demais. Depois de<br />

árduo trabalho, encontrou Angélica, que indagou:<br />

- Como ele está?<br />

- Agora seda<strong>do</strong>, em profun<strong>do</strong> sono; vai precisar de bastante tempo para<br />

recobrar a consciência. Deverá reencarnar logo.<br />

- Tão depressa?<br />

- Sim, será a melhor maneira de escondê-lo de Núbio e de auxiliá-lo a recuperar<br />

a consciência. Será envia<strong>do</strong> para a Terra, em condição de demência, e<br />

esperamos que a família consiga suportá-lo. O casal está prepara<strong>do</strong> para gerar<br />

a criança e creio que Constantino será leva<strong>do</strong> amanhã mesmo.<br />

- Não seria melhor deixá-lo aqui por mais algum tempo?<br />

- No seu esta<strong>do</strong> atual, ainda sob forte influência de Núbio, este seria capaz<br />

de fazê-lo fugir daqui e ir ao seu encontro, na primeira oportunidade. O melhor<br />

para ele, agora, será regressar à Terra o quanto antes. Ficará imóvel, sobre uma<br />

cama, sem poder falar ou se movimentar. Assim, aprisiona<strong>do</strong> pelas condições<br />

materiais, será mais difícil de ser encontra<strong>do</strong>. Poderemos ajudá-lo, durante o<br />

sono, e prepará-lo para regressar ao nosso plano em melhores condições.<br />

- E por quanto tempo ficará na Terra?<br />

- Creio que não mais <strong>do</strong> que dezoito anos. E uma abençoada oportunidade<br />

que ele terá, graças a Deus.<br />

Angélica abraçou a amiga e disse:<br />

- Que Jesus dê a ele muita força!<br />

- Que assim seja.<br />

* * *<br />

Na manhã seguinte, em Husinic, Jan Huss recebeu uma intimação de Sigismun<strong>do</strong>,<br />

que exigia sua presença no Concílio de Constança. O rei esclarecia<br />

que seu objetivo com esse concilio era a pacificação religiosa da Boêmia e<br />

que, pela influência que Jan exercia sobre o clero e sobre o povo, sua presença<br />

seria fundamental.<br />

Com a permissão da espiritualidade que o assistia, Jan Huss retornou a<br />

Praga e encontrou-se com o rei. Depois de longa conversa, durante a qual procurou,<br />

diplomaticamente, persuadir Jan a comparecer ao concilio, Sigismun<strong>do</strong><br />

ofereceu seu último argumento:<br />

- Eu lhe garantirei proteção para entrar e sair de Constança em segurança.<br />

165


Erguen<strong>do</strong>-se, caminhou até a mesa; tomou a pena, escreveu uma ordem e,<br />

depois de selá-la com o anel real, entregou-a a Jan:<br />

- Este é um salvo-conduto que lhe permitirá caminhar seguro por Constança.<br />

Tem minha palavra de que não será molesta<strong>do</strong> e sua vida não correrá nenhum<br />

risco.<br />

Jan pegou a ordem, pensou por alguns instantes e respondeu:<br />

- Está bem, comparecerei ao concilio, dan<strong>do</strong> minha contribuição para que<br />

possamos esclarecer as questões de conflito e buscar alternativas para que a<br />

situação religiosa da Boêmia seja resolvida. Meu maior interesse é auxiliar a<br />

Igreja a retomar seu lugar na defesa <strong><strong>do</strong>s</strong> reais interesses <strong>do</strong> Evangelho de Jesus.<br />

O rei, que fitava o padre e o ouvia atento, afirmou ao despedir-se:<br />

- Sua presença será importante. Em breve nos veremos. Antes de retornar a<br />

Husinic, Huss esteve com Jerônimo, seu discípulo e segui<strong>do</strong>r. Este comentou:<br />

- Não gosto da idéia de você participar desse concilia. Parece-me uma armadilha<br />

ardilosa. Não confio em Sigismun<strong>do</strong>.<br />

Jan refletiu um pouco e então concor<strong>do</strong>u:<br />

- Também não confio nele. Sei que suas intenções são duvi<strong><strong>do</strong>s</strong>as. No entanto,<br />

sinto que preciso comparecer e defender os ideais que abraçamos. Se um<br />

pequeno grupo que seja, <strong><strong>do</strong>s</strong> que ali estiverem, for toca<strong>do</strong> pela maneira como<br />

pensamos, teremos congrega<strong>do</strong> novos defensores da reforma na Igreja. Preciso<br />

aproveitar essa oportunidade para falar aos seus altos níveis hierárquicos, sen<strong>do</strong><br />

tão-somente um porta-voz <strong>do</strong> alerta de Deus para que mudem o rumo <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

fatos.<br />

Tocan<strong>do</strong> o ombro de seu mestre, Jerônimo opinou, preocupa<strong>do</strong>:<br />

- Estará pon<strong>do</strong> a própria vida em risco...<br />

- Eu sei, meu amigo... Mas que valor tem a vida se não a colocamos a serviço<br />

daquele que nos criou? Devo aproveitar a oportunidade de falar aos quatro<br />

cantos, em alta voz, os princípios esqueci<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos nossos irmãos, que,<br />

como se <strong>do</strong>rmissem, estão <strong>do</strong>mina<strong><strong>do</strong>s</strong> por uma força estranha que os aprisiona<br />

a alma e o coração, impedin<strong>do</strong>-os de enxergar, de compreender? Ou é preferível<br />

esconder-me e esperar até que me prendam e façam o que quiserem? E não<br />

tenha dúvida de que farão isso, caso decidam. Não! Minha vida terá mais valor<br />

se for empregada em algo de um significa<strong>do</strong> maior e mais útil.<br />

Depois de breve pausa, prosseguiu, inspira<strong>do</strong> por Angélica e Henrique, que<br />

o assistiam:<br />

-<strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, não estarei sozinho. Temos sempre o amparo <strong>do</strong> Senhor e<br />

de seus anjos. Deus estará comigo. Lembra-se da passagem das escrituras sa-<br />

166


gradas em que Eliseu pede a Deus que abra os olhos de seu servo para que veja<br />

o exército espiritual que os acompanha? 18<br />

Jerônimo, relembran<strong>do</strong> o texto, o citou:<br />

- E Eliseu orou, e disse: Ó senhor, peço-te que lhe abras os olhos, para<br />

que veja. E o Senhor abriu os olhos <strong>do</strong> moço, e ele viu; e eis que o monte estava<br />

cheio de cavalos e canos de fogo em re<strong>do</strong>r de Eliseu. E uma belíssima e<br />

reconfortante passagem <strong>do</strong> Antigo Testamento.<br />

- Pois é isso. Estarei em companhia de Deus e de seus envia<strong><strong>do</strong>s</strong>. Eles haverão<br />

de me orientar e me guiar. Posso senti-los agora mesmo, aqui, junto de<br />

nós.<br />

Abraçan<strong>do</strong>-o fraternalmente, Jerônimo pediu:<br />

- Deixe-me ir com você. Serei seu defensor em tu<strong>do</strong> o que me for possível.<br />

Alegre pela sugestão, Huss apenas ressalvou:<br />

- Deve ter plena certeza <strong>do</strong> que está fazen<strong>do</strong>, pois ao me acompanhar poderá<br />

igualmente se arriscar.<br />

- Não posso deixar de partilhar sua fé e seus ideais, que igualmente são<br />

meus. Como acabou de dizer, que melhor maneira de defendê-los <strong>do</strong> que colocan<strong>do</strong><br />

a própria vida a serviço deles?<br />

- Assim sen<strong>do</strong>, aceito sua prestimosa companhia, que me fará grande bem.<br />

- Espere apenas alguns instantes que já retorno com o necessário para a viagem.<br />

Logo depois, ambos estavam a caminho de Constança.<br />

TRINTA E QUATRO<br />

NAQUELE DIA A SALA fervia pelo burburinho <strong><strong>do</strong>s</strong> presentes: cardeais, bispos,<br />

prela<strong><strong>do</strong>s</strong>, mestres e <strong>do</strong>utores, os mais influentes da Europa, discutiam em<br />

tom acirra<strong>do</strong>. Presidiam as sessões o papa João XXIII e o rei Sigismun<strong>do</strong>.<br />

Ambos, perfeitamente sintoniza<strong><strong>do</strong>s</strong> com Núbio e seus servi<strong>do</strong>res, assimilavam-lhes<br />

as emanações mentais, toman<strong>do</strong>-as como seus próprios pensamentos.<br />

A reunião já ia avançada quan<strong>do</strong> um mensageiro entrou e, falan<strong>do</strong> ao ouvi<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> papa, deu-lhe importante notícia. O papa passou a informação ao rei,<br />

que de imediato interrompeu a sessão, informan<strong>do</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Acaba de chegar seu mais destaca<strong>do</strong> representante: Jan Huss. E ordenou<br />

ao mensageiro:<br />

- Que entre.<br />

18 Texto bíblico encontra<strong>do</strong> em II Reis, cap. 6, vs. 15, 16 e 17<br />

167


Sob olhares de reprovação e grande tumulto, Jan apareceu à porta, segui<strong>do</strong><br />

de Jerônimo. O rei o convi<strong>do</strong>u:<br />

- Venha, Jan Huss, há lugar bem aqui, à frente.<br />

Jan caminhou entre os inquisi<strong>do</strong>res até o lugar indica<strong>do</strong> e sentou-se. Enquanto<br />

passava, podia ouvir os sussurros:<br />

- E muita coragem, aparecer aqui...<br />

- Ele não sabe o que o aguarda...<br />

- Ele é corajoso mesmo...<br />

- Terá o que merece...<br />

Acomo<strong>do</strong>u-se na cadeira orou mentalmente, suplican<strong>do</strong> amparo e força. A<br />

reunião daquele dia transcorreu sem surpresas. Entretanto, na manhã seguinte,<br />

tão logo Jan Huss colocou os pés no recinto onde seria conduzi<strong>do</strong> mais um dia<br />

de debates e discussões, o papa ordenou:<br />

- Jan Huss, diante da mínima possibilidade de o senhor resolver se retirar<br />

de nosso concilio, será deti<strong>do</strong> no Convento <strong><strong>do</strong>s</strong> Dominicanos, até que o chamemos<br />

para defender suas idéias.<br />

Sem dizer palavra Jan fitou o rei, que lhe evitava o olhar. Sob os protestos<br />

de Jerônimo, Jan foi leva<strong>do</strong> para o convento e coloca<strong>do</strong> em uma cela infecta.<br />

Logo que ele deixou o salão, instauraram contra ele um processo inquisi<strong>do</strong>r<br />

para que esclarecesse perante aquele concilio suas idéias. De fato, tanto João<br />

XXIII como a grande maioria da audiência daquele grupo de clérigos odiavam<br />

Jan Huss pela oposição declarada que fazia à situação estabelecida pela Igreja.<br />

Jan representava-lhes ameaça à consciência, que não suportava a verdade.<br />

Iniciou-se assim, naquele dia, um longo e cansativo julgamento, que durou<br />

mais de um ano. Jan Huss ficou sob a guarda <strong>do</strong> bispo de Constança e o transferiram,<br />

como medida de maior segurança, para o torreão <strong>do</strong> Castelo de Gottlienben,<br />

onde foi preso a correntes. E assim permaneceu, dia e noite. Mais tarde<br />

foi transferi<strong>do</strong> novamente para o Convento <strong><strong>do</strong>s</strong> Franciscanos.<br />

O concilio condenou as teorias de Wyclif e, por fim, depois de longos e<br />

cansativos dias, apresentaram a Huss o seu trata<strong>do</strong> a Eclésia, acusan<strong>do</strong>-o de<br />

pregar em seu conteú<strong>do</strong> a heresia e a insurreição. Depois de to<strong>do</strong> aquele tempo,<br />

Jan já estava consciente <strong>do</strong> que o aguardava. Escreveu cartas aos amigos,<br />

agradecen<strong>do</strong> a amizade que lhe dedicavam e animan<strong>do</strong>-os por se terem conserva<strong>do</strong><br />

fiéis à verdade.<br />

Quan<strong>do</strong> confronta<strong>do</strong>, para que se retratasse frente ao concilio, Jan Huss<br />

sustentou seus ideais:<br />

- Não posso <strong>do</strong>brar-me diante de meus irmãos, os quais julgo equivoca<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

O Cristo é o chefe da Igreja, e não Pedro, e a minha regra básica de fé é a Bíblia;<br />

não são os <strong>do</strong>gmas contamina<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos interesses materiais que se imis-<br />

168


cuíram em nosso meio, como ervas daninhas, destruin<strong>do</strong> os ideais puros de<br />

amor e humildade prega<strong><strong>do</strong>s</strong> e exemplifica<strong><strong>do</strong>s</strong> por Jesus. Ele é meu Mestre e<br />

somente a ele me curvo...<br />

Sob ordem de João XXIII, prenderam-no de imediato e o levaram novamente<br />

ao cativeiro. O papa ordenou recesso até a manhã seguinte, quan<strong>do</strong> se<br />

encontrariam no refeitório <strong>do</strong> convento.<br />

Sob a gritaria que se instalara no recinto, o papa encarou Sigismun<strong>do</strong> e<br />

concluiu:<br />

- Quero encerrar esse julgamento amanhã.<br />

Na manhã de 5 de julho, os membros <strong>do</strong> concilio se reuniram para julgar o<br />

acusa<strong>do</strong>. A reunião estava agitada. O julgamento começou sem a presença <strong>do</strong><br />

réu, que chegou apenas e tão-somente para ouvir a sentença, previamente definida<br />

pelos responsáveis pelo concilio. Foi João XXIII quem a leu:<br />

- O réu é culpa<strong>do</strong> de heresia. Sua sentença é a morte pela fogueira.<br />

No dia seguinte Jan Huss foi conduzi<strong>do</strong> a um terreno vazio. Enquanto caminhava<br />

para a execução, encontrou-se com Jerônimo, que lhe acompanhara<br />

os mínimos passos. O amigo gritou:<br />

- Estamos com você, Jan Huss! Nenhum de seus ideais irá perecer!<br />

Jan respondeu, firme:<br />

- Estou pronto para morrer na verdade <strong>do</strong> Evangelho, que ensinei e escrevi.<br />

Morro a serviço de Jesus e de seus ensinamentos.<br />

Ao alcançarem o local prepara<strong>do</strong> para a execução, despiram-no, amarraram-no<br />

a um poste, ajuntaram lenha à sua volta e lhe puseram fogo. Tão logo o<br />

amarraram, Jan Huss, viu-se circunda<strong>do</strong> pelas entidades espirituais que o amparavam.<br />

Seu olhar se deteve em Elvira, que emitia intensa luz. O grupo de<br />

espíritos envolvia o corpo físico de Jan Huss em intensa energia, anestesian<strong>do</strong>lhe<br />

os centros nervosos e atenuan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> fogo em sua pele. Assim, convicto<br />

de que tomara a melhor decisão e de que se entregava por amor ao Evangelho,<br />

Jan não sentia me<strong>do</strong>. Ao contrário, a bela visão que tinha era o prenuncio<br />

das alegrias que o aguardavam ao transpor aquele momento, e ele elevou, em<br />

meio às chamas, melancólico canto ao Pai celestial.<br />

Em intenso trabalho, a equipe de espíritos o desligou <strong>do</strong> corpo físico, que<br />

ardia em chamas. Seu corpo espiritual foi auxilia<strong>do</strong> e recebi<strong>do</strong> por eles. Elvira<br />

o amparava e logo partiram, rumo à colônia espiritual. Assim deixava a Terra<br />

Jan Huss, o precursor da reforma protestante.<br />

Naquela mesma tarde, no mosteiro em Praga, Verônica agonizava em sua<br />

cela. Enfraquecida, definhara dia a dia. O ódio por Boris a consumia. Em vão a<br />

mãe tentava lhe falar em sonho; ela já não a via nem a escutava. Mesmo assim,<br />

169


Geórgia continuava empreenden<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> os esforços para auxiliar a filha. Comentava<br />

com os outros que ali estavam para ajudá-la:<br />

- Não vamos desistir. Enquanto ela estiver viva, temos uma centelha de esperança.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros comentou:<br />

- O esta<strong>do</strong> dela é muito grave. Não nos escuta e sua vibração é refratária ao<br />

nosso auxílio, impedin<strong>do</strong>-a de recebê-lo. Nossos recursos se esgotaram.<br />

Com os olhos rasos de lágrimas, Geórgia argumentou:<br />

- Eu sei. Mas acima de todas as circunstâncias está Deus, nosso Pai.<br />

Ela fez breve pausa, depois prosseguiu:<br />

- Foi um longo preparo para que esta encarnação pudesse acontecer. Tantos<br />

envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong>, to<strong><strong>do</strong>s</strong> os esforços que empreendemos para que ela tivesse essa<br />

oportunidade... Tanto tempo estudan<strong>do</strong> e se preparan<strong>do</strong> e, agora, a encarnação<br />

termina, muito antes <strong>do</strong> tempo previsto, pela sua desistência da vida.<br />

O grupo permaneceu em silêncio. Depois, notan<strong>do</strong> que a situação da moça<br />

se agravava rapidamente, um deles disse:<br />

- Ela deve ser desligada. Sua energia vital chegou ao fim. Verônica suspirou<br />

fun<strong>do</strong> e com um longo gemi<strong>do</strong> foi desligada em definitivo <strong>do</strong> corpo físico.<br />

Ator<strong>do</strong>ada e confusa, observou seu corpo e gritou de pavor. Logo viu as entidades<br />

espirituais densas que lhe <strong>do</strong>minavam o pensamento e os sentimentos e,<br />

embora tentasse fugir, horrorizada, elas a seguiam, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Agora, você é definitivamente nossa. Não há como escapar. Acabou tu<strong>do</strong>.<br />

Você nos pertence.<br />

Ela corria desesperada pelos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mosteiro, deparan<strong>do</strong> com criaturas<br />

horrendas a cada canto em que virava; apavorada, corria ainda mais. Em<br />

vão Geórgia buscava fazer-se visível à filha. Ela não conseguia registrar a presença<br />

amorosa da mãe. Geórgia orientou os amigos:<br />

- Devem regressar agora; outros deveres os aguardam. Agradeço pelo<br />

muito que se dedicaram à minha querida Verônica. Vou acompanhá-la e cuidar<br />

dela. Em algum momento, Deus haverá de me permitir socorrê-la. Preciso ficar<br />

e ajudá-la.<br />

Os amigos se despediram num abraço, retornan<strong>do</strong> à colônia espiritual.<br />

Passa<strong>do</strong> muito tempo, Verônica, com os cabelos desalinha<strong><strong>do</strong>s</strong>, os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

de pavor e a respiração ofegante, estava sentada junto ao protetor<br />

lateral da ponte de César. Olhava para o rio que corria abaixo, sem conseguir<br />

compreender o que acontecia. Ao re<strong>do</strong>r, via pessoas que caminhavam e de<br />

repente sumiam, para novamente aparecer e continuar a andar. Ouvia gritos e<br />

urros de <strong>do</strong>r dilacerante, sem saber de onde vinham. Às vezes presenciava verdadeiras<br />

procissões de religiosos que, em ban<strong>do</strong>, seguiam imagens ou cruzes.<br />

170


Todas as pessoas pareciam indiferentes, alheias ou assustadas. Ela estranhava<br />

o que via, porém estava perturbada demais para entender sua nova situação.<br />

Observava, então, o rio. A água, que fluía abundante, de súbito tornara-se gelo.<br />

As árvores, secas, perdiam todas as folhas, para logo após receberem novas<br />

ramagens. Da mesma maneira, o rio logo se transformava em forte correnteza.<br />

Completamente ator<strong>do</strong>ada, Verônica chorava. Quan<strong>do</strong> percebia a aproximação<br />

das entidades que a perseguiam, corria esbaforida sem destino, para se ver outra<br />

vez na ponte sobre o rio. Depois de infinitas repetições de tais cenas, ela<br />

pensou:<br />

- Devo estar louca.<br />

E subin<strong>do</strong> no peitoril <strong>do</strong> protetor da ponte, resolveu tirar a própria vida.<br />

Olhou em torno: o belo Castelo de Praga erguia-se majestoso e imponente; os<br />

telha<strong><strong>do</strong>s</strong> das casas eram tão belos que pareciam brinque<strong>do</strong> de criança. Contemplou<br />

o céu e disse em voz alta:<br />

- Não suporto mais. Só me resta morrer!<br />

Atirou-se no rio, sen<strong>do</strong> envolvida pela água fria; não demorou muito, o rio<br />

congelou de novo e ela se sentiu aprisionada nas águas. Debateu-se até ficar<br />

totalmente exaurida. Sem forças para lutar, perdeu os senti<strong><strong>do</strong>s</strong>. Depois <strong>do</strong> que<br />

lhe pareceu uma eternidade, percebeu que alguém lhe afagava os cabelos. Abriu<br />

os olhos e viu um rosto delica<strong>do</strong> a observá-la. A mulher com voz suave<br />

buscava acalmá-la:<br />

- Fique calma, minha filha, tu<strong>do</strong> ficará bem.<br />

Sem reconhecer a mãe, ela indagou, encolhen<strong>do</strong>-se:<br />

- Quem é você? O que quer comigo? O que aconteceu? Estava no rio e agora<br />

estou aqui?<br />

Geórgia estendeu a mão, mas Verônica retraiu-se assustada, insistin<strong>do</strong>:<br />

- O que houve? Como saí <strong>do</strong> rio? Por que não morri? Paciente, a mãe disse:<br />

- As águas congelaram e você ficou presa nelas. Passei pela ponte e a vi.<br />

Você perdeu os senti<strong><strong>do</strong>s</strong>, mas consegui tirá-la de lá.<br />

- Onde estou? Que lugar é este? Como vim parar aqui?<br />

- Aqui é um hospital. Eu a trouxe para receber ajuda. To<strong><strong>do</strong>s</strong> são amigos,<br />

não tenha me<strong>do</strong>.<br />

- Ninguém é meu amigo. To<strong><strong>do</strong>s</strong> me odeiam, me detestam. Thomas se aproximou<br />

devagar, com o coração <strong>do</strong>í<strong>do</strong>; a filha<br />

estava completamente transtornada e fora de si. Levan<strong>do</strong> um com água onde<br />

haviam deposita<strong>do</strong> medicamentos para que ela <strong>do</strong>rmisse sono profun<strong>do</strong> e<br />

repara<strong>do</strong>r, entregou o copo a Geórgia, que o ofereceu à jovem:<br />

- Tome, você precisa de água fresca. Logo se sentirá melhor. Desconfiada,<br />

Verônica recusou:<br />

171


- Não quero. E se colocaram veneno na água? E se foi Boris quem man<strong>do</strong>u<br />

vocês aqui para me matar?<br />

- Veja, vou tomar um pouco para você ter certeza de que é apenas água.<br />

Ela tomou metade <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> e o ofereceu novamente à filha:<br />

- Agora é a sua vez, vamos. E apenas água...<br />

Verônica, que estava sedenta, finalmente cedeu e tomou a água com sofreguidáo.<br />

Assim que terminou, forte torpor a envolveu e tentou gritar:<br />

- O que fizeram comigo? Vocês me mataram... Geórgia afagou-lhe os cabelos<br />

e disse:<br />

- Durma, filha, descanse. Estará melhor quan<strong>do</strong> acordar. Agora entregue-se<br />

ao sono que a tranqüilizará.<br />

Verônica, embora assustada, não pôde conter a sonolência que a <strong>do</strong>minou e<br />

<strong>do</strong>rmiu profundamente.<br />

TRINTA E CINCO<br />

DEPOIS DA MORTE de Jan Huss, foi a vez de Jerônimo de Praga, seu discípulo,<br />

enfrentar destino idêntico. Seguiu defenden<strong>do</strong> os princípios de Huss, e cerca<br />

de um ano mais tarde foi igualmente queima<strong>do</strong> na fogueira, condena<strong>do</strong> como<br />

herético. Estava finca<strong>do</strong> na história um <strong><strong>do</strong>s</strong> importantes marcos no combate<br />

ao poder abusivo da Igreja Romana, que a partir daquele momento e durante<br />

quase um século enfrentaria focos de "reforma<strong>do</strong>res" em diversas regiões, os<br />

quais eram emudeci<strong><strong>do</strong>s</strong> pela violência da inquisição. As fogueiras crepitavam<br />

por toda parte, tiran<strong>do</strong> a vida daqueles que ousavam reagir à maneira como a<br />

Igreja conduzia as questões espirituais. Mesmo assim, crescia gradativamente<br />

o número <strong><strong>do</strong>s</strong> oponentes.<br />

As lutas prosseguiam, e pouco a pouco aqueles que eram chama<strong><strong>do</strong>s</strong> de reforma<strong>do</strong>res<br />

ganhavam força. Finalmente, em outubro de 1517, o monge agostiniano<br />

alemão Martinho Lutero publicou as suas '95 teses contra as indulgências"'e<br />

o movimento da reforma protestante espalhou-se por toda a Europa<br />

como um rastilho de pólvora. Daí em diante, quanto mais a Igreja Católica<br />

tentava conter e coibir as manifestações favoráveis à reforma e ao movimento<br />

protestante que surgia, mais ele se fortalecia. Em pouco tempo instaurou-se<br />

uma guerra sem precedentes no movimento cristão, entre católicos e protestantes,<br />

em praticamente to<strong>do</strong> o continente europeu. Muitos grupos protestantes<br />

nasceram em vários países, dan<strong>do</strong> origem a novas seitas e denominações. Esses<br />

cristãos - que se fragmentaram em muitas formas diferentes de crer e com-<br />

172


preender - tinham como base de fé a Bíblia e negavam, em sua grande maioria,<br />

os <strong>do</strong>gmas católicos.<br />

Mesmo sem admitir, a Igreja Católica Romana perdia o poder absoluto, e<br />

isso deixava descontrola<strong><strong>do</strong>s</strong> os seus altos níveis hierárquicos, especialmente o<br />

papa e seus principais assessores. Não aceitavam o movimento nascente e desejavam<br />

calar seus adeptos a qualquer custo.<br />

Os interesses continuavam a determinar as decisões de reis e monarcas.<br />

Muitos que detestavam o poder da Igreja logo passaram a a<strong>do</strong>tar o protestantismo<br />

como religião oficial, fazen<strong>do</strong> nele interferências que melhor o adequassem<br />

às suas necessidades pessoais.<br />

Na verdadeira guerra que se deflagrou entre os cristãos católicos e protestantes,<br />

(mais tarde denominada contra reforma), os últimos passaram a ser incansavelmente<br />

persegui<strong><strong>do</strong>s</strong>. Sob a pressão e os ataques que sofriam, muitos<br />

perdiam a vida, levan<strong>do</strong> grandes grupos a deixarem a terra natal em busca de<br />

paz. Assim, muitas caravanas de quakers, sheikers, puritanos, dentre outros,<br />

deixavam a Europa e partiam para o continente recém-descoberto.<br />

Começava a colonização material e espiritual da nação que se tornaria os<br />

Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> da América <strong>do</strong> Norte.<br />

Nos basti<strong>do</strong>res daquela guerra entre os cristãos estavam falanges de espíritos<br />

renitentes <strong>do</strong> mal, que insistiam em opor-se a Deus e a Jesus, comprometi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

em impedir o progresso da Terra. Autênticos inimigos <strong>do</strong> bem, agiam de<br />

forma muito organizada, buscan<strong>do</strong> sufocar todas as manifestações da verdade.<br />

Tinham os homens sob controle por meio <strong><strong>do</strong>s</strong> líderes da Igreja Católica Romana,<br />

que, muitas vezes sem consciência, os serviam. Quan<strong>do</strong> a reforma eclodiu,<br />

abalan<strong>do</strong> temporariamente seu <strong>do</strong>mínio, estimularam a perseguição e destruição<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> reforma<strong>do</strong>res, como forma de impedir-lhes o avanço.<br />

Esses espíritos, traman<strong>do</strong> contra o avanço <strong>do</strong> bem e da luz, reuniram-se em<br />

conselho para avaliar o caminho a trilhar. Extremamente organiza<strong><strong>do</strong>s</strong> e agin<strong>do</strong><br />

de mo<strong>do</strong> estratégico e inteligente, discutiam sobre como recuperar o terreno<br />

perdi<strong>do</strong>. Entre eles estavam Núbio e seus assessores. O primeiro participava<br />

das decisões. Depois de ponderarem a situação e os riscos que ela envolvia<br />

para seus interesses de controle sobre a humanidade, um deles comentou:<br />

- Algumas das idéias aqui cogitadas são válidas, mas creio que terão resulta<strong>do</strong><br />

passageiro. Acirrar a perseguição poderá trazer reação ainda maior <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

protestantes. Precisamos encontrar outro jeito.<br />

Várias foram as sugestões.<br />

- Estudemos de perto os protestantes e suas fraquezas, que, por certo, to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

têm - propôs Núbio.<br />

173


-O orgulho <strong><strong>do</strong>s</strong> homens prossegue sen<strong>do</strong> nosso maior trunfo - outro sentenciou.<br />

-Podemos atá-los aos nossos interesses, desde que os façamos moverse<br />

por ele. Núbio argumentou:<br />

- Vamos usá-lo, então, a nosso favor.<br />

- E como faremos isso? - questionou alguém.<br />

Depois de curto silêncio, Núbio abriu largo sorriso e falou, irônico:<br />

- Esses protestantes, no anseio de mudar o que vêem de erra<strong>do</strong> na Igreja,<br />

apegam-se à Bíblia, não é mesmo?<br />

A concordância foi geral.<br />

- Pois vamos aprisioná-los à letra, afastan<strong>do</strong>-os da essência à qual muitos<br />

se ligam com genuína devoção. Transformemo-los em escravos da letra morta<br />

da Bíblia, instauran<strong>do</strong> confusão em suas maneiras de compreendê-la. À medida<br />

que se agarrem ao limita<strong>do</strong> entendimento da Bíblia, em seu zelo pela verdade,<br />

poderemos criar entre eles a incompreensão, a desunião e seu conseqüente<br />

enfraquecimento. Irão se perder. O orgulho fará o resto, e logo se tornarão<br />

nossos servos outra vez.<br />

Houve grande confusão no salão, pois muitos rejeitavam a proposta de<br />

Núbio. Queriam oposição declarada, mais violência. Ao se acalmarem, um <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

líderes falou:<br />

- A sugestão de Núbio merece atenção e estu<strong>do</strong>. Acho que podemos estabelecer<br />

uma estratégia de enfraquecimento de seus valores e crenças, afastan<strong>do</strong>-os,<br />

assim, <strong>do</strong> pernicioso Cristianismo. Isso é o que mais nos interessa. Vamos<br />

usar suas fraquezas contra eles, e <strong>do</strong>miná-los. Pensarão, to<strong><strong>do</strong>s</strong> eles, que<br />

estão com a verdade, e viverão pela parte da verdade que enxergam, por ela<br />

lutarão, matarão... Por ela nos servirão.<br />

Erguen<strong>do</strong>-se, a entidade <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra caminhou até Núbio e disse, fitan<strong>do</strong>-o:<br />

- Muito bem, Núbio. Estudaremos sua idéia, e tiraremos dela o melhor proveito.<br />

Queremos ter os homens sob nosso controle. Prossiga e concretize os<br />

seus projetos em sua área de atuação. Assim que obtiver bons resulta<strong><strong>do</strong>s</strong>, replicaremos<br />

entre os demais.<br />

- Quero acompanhar aqueles que estão se deslocan<strong>do</strong> para as Américas.<br />

- Por quê? Sua região é aqui, entre os países anglo-saxões.<br />

- Eu sei. No entanto, o novo continente oferece condições propícias à implantação<br />

de mais ampla forma de <strong>do</strong>mínio. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, sei que muitos de<br />

nossos servi<strong>do</strong>res reencarnaram em famílias que emigraram para lá. Grande<br />

número de nossos amigos romanos estão reencarnan<strong>do</strong> naquela região. As facilidades<br />

econômicas que oferecem nos podem ser de grande utilidade para<br />

manipularmos suas fraquezas, acenan<strong>do</strong> com o enriquecimento que to<strong><strong>do</strong>s</strong> de-<br />

174


sejam. E depois, quem sabe o que se poderá des<strong>do</strong>brar desse processo? O outro<br />

resmungou, em resposta:<br />

- A descoberta das Américas foi postergada o quanto pudemos. Nada que<br />

leva o homem a se transformar nos interessa. Mas não pudemos evitar.<br />

- Então usemos essa transformação em nosso favor. Dê-me a autorização e<br />

transferirei meus <strong>do</strong>mínios para aquela região. Muitos protestantes estão in<strong>do</strong><br />

para lá, instalan<strong>do</strong>-se e construin<strong>do</strong> uma estrutura de sociedade que precisa ser<br />

detida. Focam a educação no estu<strong>do</strong> da Bíblia e vêem o trabalho como forma<br />

de servir a Deus. O progresso será conseqüência certa dessa estrutura.<br />

- E o que pensa fazer?<br />

- Interferir para que esse progresso siga os rumos que nos convém, impedin<strong>do</strong><br />

que alcance os aspectos espirituais e morais. No restante, quanto mais<br />

progredirem na direção que nos interessa, melhor.<br />

- Comece a implantar seu plano aqui mesmo. Se obtiver resulta<strong>do</strong>, poderá<br />

ir para as Américas, estender seu <strong>do</strong>mínio sobre eles.<br />

Mais algumas discussões e a grande assembléia se desfez.<br />

Núbio iniciou imediatamente vigoroso ataque contra os protestantes, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>-lhes<br />

a mente o quanto podia, deturpan<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> orgulho, sua<br />

dedicação sincera ao Evangelho, fazen<strong>do</strong>-os apegar-se cegamente às palavras<br />

da Bíblia, afastan<strong>do</strong> da verdade to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que conseguia, pela limitação de seus<br />

corações.<br />

***<br />

Alheia ao que sucedia na crosta da Terra, após muitos anos em penosa condição<br />

- acordan<strong>do</strong> e a<strong>do</strong>rmecen<strong>do</strong> novamente, para outra vez despertar em angústia<br />

e sofrimento -, Verônica começou a passar mais tempo acordada. Geórgia,<br />

Thomas e ela residiam em pequena e bela residência, que em tu<strong>do</strong> lembrava<br />

as casas aconchegantes de Praga, conquanto sem os exageros de luxo e sofisticação.<br />

Verônica ocupava um <strong><strong>do</strong>s</strong> quartos, que mais parecia uma enfermaria.<br />

Chega<strong>do</strong> o momento em que estava pronta para se levantar, Geórgia aju<strong>do</strong>u-a<br />

a sentar-se na cama e ela indagou:<br />

- Quem é você, afinal? Por que cuida de mim com tanto carinho...?<br />

Deixan<strong>do</strong>-se envolver pela ternura da mãe, Verônica caiu em pranto convulsivo.<br />

Geórgia sentou-se ao seu la<strong>do</strong> e pediu:<br />

- Procure controlar-se, filha. É importante para o seu restabelecimento.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas que lhe desciam pela face, ela, por fim, conseguiu<br />

falar.<br />

- Mãe! Como pude não reconhecer você? Per<strong>do</strong>e-me por não ter consegui<strong>do</strong><br />

escutar seus conselhos, nem fazer o que me ensinou...<br />

Abraçan<strong>do</strong> a jovem com ternura e aconchegan<strong>do</strong>-a em seu colo, ela disse:<br />

175


- Minha filha, temos muito a aprender ainda. Você precisa ficar forte, para<br />

poder entender melhor tu<strong>do</strong> o que se passou.<br />

Mais calma, a jovem olhou em volta e perguntou:<br />

- Afinal, que lugar é este?<br />

Aproveitan<strong>do</strong> a boa disposição da filha, Geórgia convi<strong>do</strong>u:<br />

- Quer dar um passeio? Acho que já está forte o suficiente para sair dessa<br />

cama.<br />

- Eu gostaria muito, mas e se Boris me encontrar? Vai prender-me de novo.<br />

Sorrin<strong>do</strong>, Geórgia a tranqüilizou:<br />

- Não se preocupe, ele não pode encontrá-la por ora.<br />

- Você me escondeu...<br />

Ela parou e, fitan<strong>do</strong> a mãe, falou séria:<br />

-O que está acontecen<strong>do</strong>? Você não pode estar aqui falan<strong>do</strong> comigo... Você<br />

morreu...<br />

Oferecen<strong>do</strong> o braço para que ela se erguesse, a mãe respondeu:<br />

- Venha, apóie-se em mim. Vamos caminhar pelos lin<strong><strong>do</strong>s</strong> jardins deste parque.<br />

O ar puro lhe fará bem, e eu explicarei tu<strong>do</strong>.<br />

Verônica obedeceu e, amparada pela mãe, colocou-se em pé pela primeira<br />

vez em muito tempo. Saíram e encontraram Thomas, que, atento ao que se<br />

passava, as aguardava na sala. A princípio a jovem não reconheceu o pai, para<br />

logo em seguida abrir largo sorriso e atirar-se em seus braços, soluçan<strong>do</strong>:<br />

- Pai! Como senti sua falta. Per<strong>do</strong>e-me, por favor, pelo que fiz a você...<br />

Afagan<strong>do</strong> seus cabelos, o pai lamentou:<br />

- Você só prejudicou a si mesma. Todavia, graças à misericórdia de Deus,<br />

terá possibilidade de prosseguir sua jornada, quan<strong>do</strong> estiver mais fortalecida.<br />

Ladeada pelos pais, a jovem saiu apoiada nos braços <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is até alcançarem<br />

lin<strong>do</strong> jardim. Verônica examinou o lugar, curiosa:<br />

- Onde estamos? A não ser por algumas casas que se assemelham às de<br />

Praga, em nada reconheço a nossa cidade.<br />

Olhan<strong>do</strong> a filha com carinho, Geórgia indagou:<br />

- Você ainda não compreendeu?<br />

- Não compreen<strong>do</strong> nada. Acho, sim, é que estou sonhan<strong>do</strong>... Um lin<strong>do</strong> sonho,<br />

<strong>do</strong> qual logo vou despertar no mosteiro, na cela infecta em que me encontro,<br />

e continuar aquele sofrimento desespera<strong>do</strong>r.<br />

A mãe procurou esclarecer:<br />

- Foi naquela cela infecta, filha, que você acabou por perder sua existência<br />

na Terra.<br />

Fitan<strong>do</strong> os grandes olhos da mãe, ela perguntou:<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

176


- Você deixou o corpo físico, Verônica, sua encarnação terminou. Habita<br />

esta colônia espiritual há mais de cem anos.<br />

Diante da expressão perplexa da filha, prosseguiu:<br />

- Já no mun<strong>do</strong> espiritual, permaneceu longo tempo inconsciente. Demoramos<br />

a conseguir recolhê-la.<br />

Assustada, a jovem gritou:<br />

- Não é verdade! Quem são vocês?<br />

- Não percebe que sou sua mãe? Não sente o amor que nos une? Em extrema<br />

agitação, Verônica teve de sentar-se em um banco<br />

para respirar. Depois de alguns minutos, dirigiu-se aos <strong>do</strong>is:<br />

- Não acredito. Isso só pode ser um pesadelo. Resoluta, Geórgia convi<strong>do</strong>u:<br />

- Pois bem, voltemos à nossa casa. Vamos levá-la por uma viagem no tempo.<br />

- Acha que é o momento? - Thomas questionou.<br />

- Ela não pode mais fugir. É tempo de enfrentar a realidade, para não perder<br />

novas oportunidades.<br />

Voltaram para a acolhe<strong>do</strong>ra residência. Acomodaram Verônica na cama e<br />

posicionaram à sua frente uma tela onde imagens sucessivas se faziam visíveis.<br />

Cenas de sua última existência passavam diante dela, que logo se reconheceu<br />

e começou a relembrar. Ao ver Boris, pediu:<br />

- Por favor, parem! Eu me lembro, agora me lembro. Parem... Já não suporto!<br />

Abraçan<strong>do</strong> a jovem, Geórgia disse:<br />

- Chega de fugir, Verônica, você precisa acordar. Está perden<strong>do</strong> tempo<br />

precioso. Deve voltar em breve à Terra. Mas para que isso lhe seja útil, precisa<br />

aproveitar o tempo de que ainda dispõe em nosso plano para se preparar.<br />

Verônica tremia e ameaçou desmaiar. Geórgia e Thomas a sustentaram energeticamente.<br />

Thomas saiu para buscar auxílio. Um pequeno grupo de amigos<br />

veio dar sustentação à importante conversa <strong><strong>do</strong>s</strong> três. Verônica continuava<br />

tremen<strong>do</strong> e confessou, entre lágrimas:<br />

- Tenho me<strong>do</strong>.<br />

- Sei que tem. Inconscientemente sabe de tu<strong>do</strong> o que houve e teme que a<br />

história se repita.<br />

Depois daquele dia, longas conversas foram trazen<strong>do</strong> à memória de Verônica<br />

sua última experiência na Terra e ela, <strong>do</strong>lorosamente, teve de enfrentar<br />

seu fracasso. Lentamente, a mãe a conscientizava de sua situação e aconselhava<br />

nova encarnação, para que pudesse começar a refazer seus caminhos. Aos<br />

poucos, toda a verdade foi sen<strong>do</strong> assimilada, inclusive sua existência e seus<br />

atos como Fausta. Foi então que ela, entristecida, recor<strong>do</strong>u Constantino.<br />

- Onde ele está agora?<br />

177


- Está na Terra, encarna<strong>do</strong>.<br />

- E como está?<br />

- Depois de permanecer por muito tempo desencarna<strong>do</strong>, sob o <strong>do</strong>mínio das<br />

entidades espirituais inimigas <strong>do</strong> bem, às quais se entregou durante a valiosa<br />

experiência como impera<strong>do</strong>r romano, sua situação espiritual se deteriorou.<br />

Atravessou séculos nessas condições, sen<strong>do</strong> por fim resgata<strong>do</strong>, e, devi<strong>do</strong> ao<br />

esta<strong>do</strong> de demência em que se encontrava, foi necessário reencarnar, assumin<strong>do</strong><br />

um corpo totalmente comprometi<strong>do</strong>. Sua primeira possibilidade de reencarne<br />

foi fracassada. Devi<strong>do</strong> à grave situação espiritual em que se detinha, o corpo<br />

físico - carga genética cedida pelos pais - não suportou e a mãe sofreu um<br />

aborto. Assim foram diversas tentativas, até que a gestação chegou até o final e<br />

ele permaneceu encarna<strong>do</strong> por alguns anos. Outras encarnações em situação<br />

semelhante se sucederam e atualmente ele se encontra na Terra. Ainda é prisioneiro<br />

de um corpo malforma<strong>do</strong>, com comprometimento da inteligência. A<br />

deturpação de sua força mental, e a utilização desta para o mal de que foi instrumento,<br />

agora se reflete em um corpo com cérebro <strong>do</strong>ente.<br />

Com um abafa<strong>do</strong> grito de horror, Verônica colocou a cabeça entre as mãos<br />

e chorou amargurada. Quan<strong>do</strong> conseguiu se acalmar, ergueu o rosto e, entre<br />

lágrimas, disse à mãe:<br />

- Gostaria de vê-lo...<br />

- Filha, tu<strong>do</strong> a seu tempo. Acredite em mim, você não está preparada para<br />

encontrá-lo no esta<strong>do</strong> atual; vê-lo assim poderia perturbá-la a tal ponto que<br />

dificultaria seu próprio restabelecimento. É preciso que você também se fortaleça<br />

e se prepare para uma futura reencarnação.<br />

O olhar distante e entristeci<strong>do</strong> de Verônica levou Geórgia a manter longo<br />

silêncio. Depois, toman<strong>do</strong> as mãos de filha, disse:<br />

- Tenha paciência.<br />

- Muito <strong>do</strong> que você me diz é mistério para mim. Como posso retornar ao<br />

corpo outras vezes? Por mais que tente compreender, tu<strong>do</strong> me parece complica<strong>do</strong>.<br />

E por que esquecer o que vivemos? Por que não conseguimos lembrar<br />

para poder acertar?<br />

- Nosso passa<strong>do</strong> é por demais delituoso. As lembranças mais nos atrapalhariam<br />

<strong>do</strong> que ajudariam. Não obstante, trazemos de forma inconsciente aquilo<br />

que devemos realmente recordar.<br />

Geórgia fez rápida pausa e prosseguiu:<br />

- Temos um anjo da guarda ao nosso la<strong>do</strong>, para cuidar de nós e nos lembrar<br />

de tu<strong>do</strong> o que é essencial. Mas precisamos deixar que ele o faça. Precisamos<br />

confiar em Deus e ser submissos aos seus desígnios.<br />

Verônica deu um profun<strong>do</strong> e triste suspiro e falou:<br />

178


- É... Eu não consegui, não escutei ninguém.<br />

- Escutou aqueles que desejavam prejudicá-la, impedin<strong>do</strong> sua marcha evolutiva.<br />

Deixou seus defeitos a <strong>do</strong>minarem e não o inverso, como deveria ter<br />

feito.<br />

- E agora? O que será de mim?<br />

- Aproveite o tempo aqui na colônia... Dedique-se a aprender e a servir<br />

seus semelhantes, trabalhan<strong>do</strong>, assim, seus defeitos. Fortaleça sua fé e volte à<br />

Terra com a firme disposição de sair vitoriosa da próxima experiência.<br />

- E se não for capaz? Se não escutar outra vez o que to<strong><strong>do</strong>s</strong> já tentaram me<br />

dizer?<br />

- Vamos providenciar uma encarnação na qual você será porta<strong>do</strong>ra de ostensiva<br />

mediunidade. Será impossível deixar de escutar a voz <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos, aos<br />

quais terá a oportunidade inclusive de auxiliar, como forma de resgatar parte<br />

de seus pesa<strong><strong>do</strong>s</strong> débitos com a lei divina. E será auxiliada de perto por Thomas,<br />

que voltará à Terra com você.<br />

Fixan<strong>do</strong> olhar triste na mãe, ela indagou:<br />

- E você?<br />

- Ficarei neste plano, amparan<strong>do</strong>-os, enquanto estiver ao meu alcance.<br />

Verônica abraçou a mãe demoradamente, e então perguntou:<br />

- Quanto tempo ainda tenho aqui?<br />

- Dispõe de tempo suficiente. Aproveite e se prepare o melhor que puder.<br />

Será importante que você e Thomas recebam Constantino como filho. Afinal,<br />

Também entre eles existe antiga ligação.<br />

- Sim, Thomas foi o mais fiel amigo que Constantino teve. Lembro-me<br />

bem de seu rosto... Seu nome era... Marco?<br />

- Isso. Agora, você precisa adquirir condições para acolher como filho aquele<br />

a quem é tão ligada, para amá-lo e ampará-lo, com renúncia e abnegação,<br />

aprimoran<strong>do</strong> os seus próprios valores morais,. Não será tarefa fácil, mas<br />

poderá contribuir muito para seu desenvolvimento espiritual.<br />

- E ele, estará melhor <strong>do</strong> que hoje?<br />

- Possivelmente um pouco melhor.<br />

- Será que terei a capacidade de me dedicar a ele?<br />

- Terá de vencer seu egoísmo, seu orgulho e aprender a amar. Thomas estará<br />

ao seu la<strong>do</strong>, colaboran<strong>do</strong> para seu êxito.<br />

Após longo tempo em silêncio, deixan<strong>do</strong>-se envolver pela beleza e suavidade<br />

da natureza à sua volta, ela por fim disse:<br />

- Vou tentar, mãe.<br />

Incentivan<strong>do</strong> a jovem, Geórgia afirmou:<br />

- Você pode conseguir! Acredite!<br />

179


Alguns anos mais tarde, Verônica recebia novo corpo denso e retornava à<br />

Terra para outra tentativa de reparar erros e refazer seu caminho, harmonizan<strong>do</strong>-se<br />

com a lei divina, para poder avançar rumo ao objetivo de evolução para<br />

o Cria<strong>do</strong>r.<br />

TRINTA E SEIS<br />

PENSILVÂNIA, OUTONO de 1841. O vento agitava os galhos das árvores<br />

fron<strong><strong>do</strong>s</strong>as, assobian<strong>do</strong> por entre as folhas. Grossos pingos de chuva começaram<br />

a cair e Lóris chamou da porta da ampla cabana, construída com pedra e<br />

madeira:<br />

- Venha, Stephanie! A tempestade se aproxima, corra! A jovem gritou <strong>do</strong><br />

poço de onde tirava água:<br />

- Já estou acaban<strong>do</strong>. Precisaremos da água, se a chuva demorar a passar...<br />

- Está bem, termine e venha logo!<br />

Stephanie encheu <strong>do</strong>is baldes, que veio trazen<strong>do</strong> presos a uma ripa de madeira,<br />

cada um em uma das extremidades. O vento soprou ainda mais forte e a<br />

mãe insistiu, assustada:<br />

- Vamos, Stephanie, corra! O vendaval vai pegar você! Derruban<strong>do</strong> quase<br />

metade da água que trazia, a jovem apertou<br />

o passo e conseguiu alcançar a porta. Entrou, ajudada pela mãe, que dizia:<br />

- Meu Deus, precisa tomar mais cuida<strong>do</strong>. Esses vendavais são perigosos...<br />

Vá trocar de roupa, está ensopada.<br />

Tiran<strong>do</strong> a única peça que lhe protegia a cabeça, o pequeno chapéu comumente<br />

utiliza<strong>do</strong> pelas mulheres das comunidades quakers 19 , ela pediu:<br />

- Pode esquentar-me só um pouco de água? Estou congelan<strong>do</strong>...<br />

- De que adiantou buscar, então? Vai gastar no banho...<br />

- Mãe, por favor, somente uma caneca de água, para esquentar um pouco.<br />

- Está tão frio e o inverno ainda custa a chegar...<br />

- Estamos no início <strong>do</strong> outono, eu sei; mesmo assim, está frio lá fora.<br />

Abrin<strong>do</strong> a cortina que protegia a janela, a mãe olhou pelo vidro e comentou:<br />

- Este país é estranho... Aqui o tempo parece bravo.<br />

- Onde você nasceu era diferente?<br />

19 Nome da<strong>do</strong> aos membros de um grupo religioso de tradição protestante, a Sociedade Religiosa<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> Amigos, criada em 1652 pelo inglês George Fox.<br />

180


Como se investigasse na memória fatos distantes, a mãe confirmou:<br />

- Cheguei neste país ainda criança, mas lembro bem que o vilarejo onde<br />

morávamos na Inglaterra era um lugar mágico, maravilhoso, especial...<br />

Enxugan<strong>do</strong> os cabelos com um pano, Stephanie comentou:<br />

- Fala sempre com tanto carinho de sua terra natal que sinto vontade de conhecê-la.<br />

Lóris suspirou fun<strong>do</strong>, ajudan<strong>do</strong> e filha a secar os longos cabelos.<br />

- Isso é um sonho impossível. Jamais poderemos voltar. Agora nosso lar é<br />

aqui e estamos melhor <strong>do</strong> que lá, pode acreditar em mim. Vi muitos perderem<br />

os familiares pela perseguição <strong><strong>do</strong>s</strong> padres e bispos. Nesta terra estamos seguros<br />

e temos liberdade para praticar nossa religião em paz, graças a Deus. Ainda<br />

mais com você assim...<br />

Stephanie, que sorria, ficou séria e fitou a mãe já com os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

dizen<strong>do</strong>:<br />

- Faz tempo que não acontece, mas você não me deixa esquecer... -Temos<br />

ti<strong>do</strong> muito trabalho para cuidar de você, filha, e precisa compreender que, se<br />

estivéssemos em nosso país, já poderia ter si<strong>do</strong> morta.<br />

- Eles ainda fazem isso, mãe? Queimam as pessoas?<br />

- Fale baixo que suas irmãs estão brincan<strong>do</strong> ali e podem escutar. São jovens<br />

demais para ter de ouvir sobre esses fatos absur<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Baixan<strong>do</strong> a voz, ela indagou novamente:<br />

- Queimam ainda?<br />

- Parece que não, que isso já acabou...<br />

- Graças a Deus!<br />

- Sim, é horripilante... Bárbaro. E espero que nunca mais aconteça...<br />

Lóris ficou pensativa. Stephanie, que observava a mãe, após algum tempo<br />

rompeu o silêncio:<br />

- Precisamos falar de um assunto importante.<br />

- Depois <strong>do</strong> jantar... Agora venha ajudar-me.<br />

Mais tarde, quan<strong>do</strong> as filhas mais novas e o pai já <strong>do</strong>rmiam, Lóris costurava<br />

algumas peças de roupas à luz <strong>do</strong> lampião e da grande lareira acesa. Sentan<strong>do</strong>-se<br />

perto da mãe, Stephanie repetiu:<br />

- Precisamos conversar.<br />

- Outra vez sobre aquele assunto?<br />

- Sim, você tem de me entender. Eu quero me casar... A mãe interrompeu,<br />

ríspida:<br />

- Você ainda é muito jovem.<br />

- Tenho a mesma idade que você quan<strong>do</strong> se casou com papai. Eric e eu nos<br />

amamos e desejamos nos unir.<br />

181


Depois de longo silêncio, que para a jovem parecia interminável, a mãe indagou:<br />

- E a família dele, o que diz?<br />

- Eles não se opõem.<br />

Erguen<strong>do</strong>-se e arruman<strong>do</strong> cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>amente a costura dentro de uma cesta,<br />

ela disse:<br />

- Vou <strong>do</strong>rmir, estou muito cansada.<br />

- Mãe, não fuja. Quero me casar com Eric e ter minha própria família, para<br />

ser realmente feliz.<br />

- Pois muito bem. Embora não acredite que esteja preparada para tal responsabilidade,<br />

especialmente pelos seus problemas, não posso proibi-la. No<br />

entanto, insisto em que pense com cuida<strong>do</strong>. A vida conjugal vai desviar sua<br />

atenção da consagração a Deus, que deveria cultivar acima de tu<strong>do</strong>. Você sabe<br />

que tem muitos problemas e deveria se dedicar única e exclusivamente a Deus,<br />

para procurar redimir-se e obter a graça divina. Temo por sua sanidade, Stephanie.<br />

- Você não quer que eu seja feliz, é isso? - a jovem explodiu. Viran<strong>do</strong> um<br />

tapa no rosto da moça, Lóris disse em voz abafada: - Baixe esse tom comigo.<br />

Sou sua mãe e exijo respeito. Vá deitar-se agora. Está perden<strong>do</strong> o controle<br />

outra vez. Depois conversaremos sobre essa questão.<br />

Stephanie sentiu o sangue subir como se fosse transbordar de sua face. Ficou<br />

rubra de raiva. A mãe parecia não nutrir por ela afeto algum. Correu para<br />

sua cama e chorou baixinho. Sentia-se injustiçada. Era a filha mais velha e os<br />

pais não lhe davam a devida atenção. Não era tão nova quanto a mãe dizia. Já<br />

estava para completar dezesseis anos e tinha grande desejo de sair daquela<br />

casa. Quase não suportava os pais, que pareciam não a amar de verdade. Não<br />

compreendia bem o que ocorria à sua volta. Seus pais eram muito religiosos;<br />

levavam os filhos à Igreja to<strong><strong>do</strong>s</strong> os <strong>do</strong>mingos, liam o livro sagra<strong>do</strong> e faziam<br />

orações constantemente. Viviam em numerosa comunidade protestante de<br />

quakers, seguin<strong>do</strong> seus ensinamentos. Mas dentro de casa não conseguia ver os<br />

pais fazerem aquilo que pregavam. Seu pai, David, era presbítero respeita<strong>do</strong> na<br />

comunidade, preparan<strong>do</strong>-se para ser pastor de sua Igreja. A mãe dizia sempre<br />

que o que o impedia de ser efetiva<strong>do</strong> era o problema dela. Os membros não<br />

aceitariam um pastor com problemas familiares sérios. "Será por isso que não<br />

me amam?", pensava ela, insistente.<br />

Tais pensamentos não a deixavam conciliar o sono e já era madrugada alta<br />

quan<strong>do</strong>, ainda derraman<strong>do</strong> lágrimas, escutou uma voz sussurrada:<br />

- Não confie neles. Querem acabar com você.<br />

182


Ergueu-se, certa de que uma de suas irmãs havia acorda<strong>do</strong>, porém a voz<br />

não era de nenhuma delas. Olhou e viu claramente um menino senta<strong>do</strong> no canto<br />

<strong>do</strong> quarto. Não tinha mais <strong>do</strong> que dez anos. Ela indagou, amedrontada:<br />

- Quem é você? O que deseja em minha casa?<br />

- Não é só sua, é minha também.<br />

- Quem é você? - ela insistiu.<br />

- Não me reconhece?<br />

- Não, claro que não.<br />

- Sou seu irmão, Peter.<br />

Ela empalideceu e soltou um grito de pavor. As irmãs acordaram e logo a<br />

mãe entrava no quarto, seguida pelo pai, perguntan<strong>do</strong>:<br />

- O que foi, filha? O que houve?<br />

Stephanie apontou para o garoto, que agora ria dela, e disse:<br />

- É ele, mãe. O Peter está aqui.<br />

- Pare com isso, vamos. Acalme-se. Está ten<strong>do</strong> outra alucinação.<br />

- Não estou. Ele está ali - a moça sustentava Apontou para o canto onde via<br />

o menino e continuou:<br />

- Está com uma calça branca, curta, e uma camisa linda, de mangas longas<br />

com detalhes borda<strong><strong>do</strong>s</strong> nas pontas. E está seguran<strong>do</strong> um carrinho de madeira.<br />

Dessa vez foi a mãe que gritou horrorizada e disse, olhan<strong>do</strong> para o pai:<br />

- Não posso mais. Não suporto que ela o descreva assim. Não suporto...<br />

E em pranto deixou o quarto das filhas. O pai aproximou-se da jovem e repreendeu,<br />

severo:<br />

- Você está ven<strong>do</strong> o demônio em pessoa. Essa criatura que afirma ver não é<br />

seu irmão. Os mortos não voltam, não podem comunicar-se conosco. Assim<br />

nos diz a Bíblia. O que você vê é o próprio demônio tentan<strong>do</strong> enganá-la. Você<br />

é rebelde e geniosa. Precisa curvar-se diante de Deus e seguir seus ensinamentos.<br />

Só assim poderá ser per<strong>do</strong>ada e ficar livre de seu persegui<strong>do</strong>r.<br />

-Pai, me ajude, por favor, estou com muito me<strong>do</strong>. Não me deixe aqui sozinha<br />

com ele. Peter... Esse ser é mau...<br />

- Vamos orar.<br />

O pastor foi até seu quarto buscar a Bíblia. Peter caminhou até a jovem e<br />

disse:<br />

- Viu o que fez? Agora ele vai voltar com aquelas orações intermináveis,<br />

que eu detestava quan<strong>do</strong> estava vivo e muito menos gosto agora, que vim para<br />

este outro la<strong>do</strong>. Afinal, por que tem tanto me<strong>do</strong> de mim? Sou seu irmão.<br />

A jovem tremia a cada palavra ouvida e dizia baixinho para si mesma: não<br />

escute, não dê atenção a ele, é o demônio, não Peter...<br />

183


O pai retornou e, como o menino havia dito, leu vários trechos e fez compridas<br />

orações. Ao final, exausto, olhou para a janela. Estava amanhecen<strong>do</strong>.<br />

Stephanie agarrou-se ao pai e pediu:<br />

- Não me deixe sozinha, ele continua aqui. David gritou:<br />

- Não é possível! Agora estou convenci<strong>do</strong> de que você está ven<strong>do</strong> coisas.<br />

Está enlouquecen<strong>do</strong> e nos levan<strong>do</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong> junto nessa loucura. Não pode ser!<br />

Minha filha mais velha está enlouquecen<strong>do</strong>.<br />

- Não, pai, não é isso...<br />

Ele se levantou e, toman<strong>do</strong> a jovem pelo braço, disse:<br />

- Venha comigo.<br />

- Para onde vamos?<br />

- Vou levá-la para um lugar onde deverá permanecer até que eu decida o<br />

que fazer com você.<br />

- Para onde está me levan<strong>do</strong>?<br />

- Para o sótão.<br />

- Não, pai, por favor... Lá não.<br />

- Está tu<strong>do</strong> limpo e arruma<strong>do</strong>. Você vai ficar bem. Vou deixar o livro sagra<strong>do</strong>,<br />

que você já sabe ler. Leia-o dia e noite e ore pedin<strong>do</strong> que Deus a ajude.<br />

- Pai, não pode me deixar ali, como uma prisioneira.<br />

Ao abrir a porta <strong>do</strong> quarto, o pai a jogou para dentro, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Você não pode trazer mais vergonha a esta casa. Sua mãe não consegue<br />

encontrar as outras irmãs da nossa igreja sem ter de fugir às perguntas embaraçosas<br />

a seu respeito. Já chega o que sofreu ao perder seu irmão tão ce<strong>do</strong> e de<br />

mo<strong>do</strong> tão estúpi<strong>do</strong>. Ela não suporta mais. Tem as outras meninas para cuidar.<br />

E suspiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong>, lamentou:<br />

- Nosso varão, nosso único varão! Balançou a cabeça e fechou a porta, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Há coisas que não compreen<strong>do</strong>...<br />

Stephanie sentou-se no chão. Abraçan<strong>do</strong> os joelhos, chorava baixinho,<br />

quan<strong>do</strong> viu Peter no quarto.<br />

- Não vou deixar você sozinha.<br />

- Vá embora daqui! O que deseja comigo, satanás?<br />

- Sou eu, Peter, seu irmão.<br />

- Não é, não. Não pode ser. Ele chegou mais perto:<br />

- Não percebe que sou eu, Stephanie? A moça reagiu enraivecida:<br />

- O que quer comigo? Enlouquecer-me?<br />

- Quero companhia...<br />

- É mesmo o demônio.<br />

- Sou seu irmão.<br />

184


- Então por que não está no céu, que é para onde todas as crianças devem ir?<br />

- Não sei. É como se estivesse preso aqui.<br />

- Mas por quê?<br />

O menino sentou-se e ficou cala<strong>do</strong> por instantes. Então olhou para a irmã e<br />

disse:<br />

- Estou cansa<strong>do</strong>.<br />

- Quantos anos tinha quan<strong>do</strong> morreu?<br />

- Tinha a idade que você tem hoje.<br />

- Quinze anos? Mas aparenta menos...<br />

- Eu sempre fui <strong>do</strong>ente.<br />

- Você, <strong>do</strong>ente?<br />

- Sim, sempre tive o corpo menor <strong>do</strong> que a minha idade real, e não saía da<br />

cama.<br />

- Mamãe nunca me disse isso.<br />

O menino olhou triste para o cômo<strong>do</strong> escuro:<br />

- Eles me escondiam aqui, neste sótão.<br />

Stephanie estremeceu. Ergueu a cabeça que mantinha baixa e o encarou:<br />

- Ficou aqui muito tempo?<br />

- Até morrer.<br />

- É mentira! Por que eles fariam isso com você, o único homem da casa?<br />

- Você não se lembra? -Não.<br />

- Eles tinham vergonha de mim, da mesma forma que sentem de você.<br />

- Por quê?<br />

- Porque não é perfeita como gostariam que fosse. Não percebe? Eles perseguem<br />

uma perfeição impossível. Não enxergam a realidade, e sim aquilo que<br />

gostariam que fosse real; que se encaixe na maneira como eles acreditam.<br />

- Está me deixan<strong>do</strong> confusa. Afinal, quem é você?<br />

- Já disse. Sou seu irmão e os odeio <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que você. Não vou<br />

embora porque quero me vingar pelo que me fizeram. E você vai me ajudar.<br />

- Está maluco?<br />

- Vai me ajudar ou não a deixarei em paz um único minuto sequer. Agora<br />

que está me ven<strong>do</strong> mesmo, vai ter de me ajudar.<br />

Ninguém mais me escuta claramente. De vez em quan<strong>do</strong> percebo que captam<br />

o que digo, mas com você é diferente: posso me comunicar de mo<strong>do</strong> direto.<br />

Isso é esplêndi<strong>do</strong>! Poderá ajudar-me e sairemos os <strong>do</strong>is lucran<strong>do</strong> com isso.<br />

185


TRINTA E SETE<br />

A IGREJA ESTAVA LOTADA, como era de costume nas manhãs de <strong>do</strong>mingo.<br />

Apesar <strong>do</strong> frio que fazia, prenuncian<strong>do</strong> um inverno rigoroso, to<strong><strong>do</strong>s</strong> estavam<br />

presentes. Eric procurava por Stephanie com ansiedade. Já fazia quase um mês<br />

que não a via e estava preocupa<strong>do</strong>. Era um rapaz alto e forte, com olhar decidi<strong>do</strong><br />

e firme, ao mesmo tempo em que demonstrava ternura e carinho no trato<br />

com as pessoas. Tal como ela, era o filho mais velho da família e já contava<br />

quase 28 anos. O pai tentou casá-lo três vezes com jovens da comunidade, mas<br />

Eric insistia em que se casaria com outra jovem que esperava crescer. Mantinha<br />

em segre<strong>do</strong> a sua identidade, pois Stephanie era uma garota discriminada<br />

pela comunidade, devi<strong>do</strong> ao seu comportamento diferente e especialmente por<br />

sua sensibilidade, que ninguém compreendia. Entretanto, a mãe <strong>do</strong> rapaz já<br />

havia percebi<strong>do</strong> seus sentimentos e os respeitava, apesar de o ter aconselha<strong>do</strong> a<br />

buscar outra jovem.<br />

Naquela manhã a pregação foi feita pelo presbítero David, que falou mais<br />

uma vez sobre a necessidade de a comunidade se manter unida e atenta, para<br />

não se misturar e assim ficar imune aos apelos mundanos, que eram apelos<br />

satânicos, com a intenção de destruí-los.<br />

Deveriam manter-se sempre distantes de outras comunidades, para não se<br />

contaminar e permanecer puros. Ao final <strong>do</strong> culto, ficou à porta cumprimentan<strong>do</strong><br />

os fiéis. Eric aguar<strong>do</strong>u que o templo esvaziasse e acercou-se <strong>do</strong> pastor.<br />

- Bom dia, senhor.<br />

- Bom dia, meu filho.<br />

- Stephanie está bem?<br />

Sério, o pastor o fitou nos olhos antes de responder:<br />

- Está, sim.<br />

- Não a tenho visto...<br />

- Ela esteve <strong>do</strong>ente, mas está quase boa...<br />

- Doente? Não soube de nada.<br />

- Somos discretos com nossos problemas, filho. E somente Deus quem<br />

precisa saber deles.<br />

- Sim, senhor, eu enten<strong>do</strong>, mas senti a falta dela aqui na igreja. Já faz tempo<br />

que não a vejo.<br />

David cumprimentou outros que se aproximavam e respondeu, desvian<strong>do</strong> a<br />

atenção:<br />

- Ela está melhor, logo vai poder vir à casa <strong>do</strong> Senhor.<br />

E deixan<strong>do</strong> o jovem planta<strong>do</strong> à porta, saiu em companhia de outros fiéis. O<br />

rapaz apenas balbuciou:<br />

186


- Claro.<br />

Depois saiu e foi ao encontro <strong><strong>do</strong>s</strong> pais.<br />

Ao chegar em casa David sentou-se à mesa, contraria<strong>do</strong> e inquieto. Lóris<br />

percebeu, porém nada comentou. Ele, sem conseguir comer, bateu na mesa<br />

com força e extravasou a irritação:<br />

- Como ela está?<br />

- Triste, mas está bem.<br />

As outras três filhas remexiam a comida <strong>do</strong> prato, de cabeça baixa, sem coragem<br />

de encarar os pais. Ele disse:<br />

- Não podemos continuar a escondê-la desse mo<strong>do</strong>. Estamos chaman<strong>do</strong> a<br />

atenção. Estão notan<strong>do</strong> a falta dela. Precisamos dar um jeito nessa situação...<br />

Ou nos livramos dela, ou...<br />

A esposa interveio, aflita:<br />

- David, o que é isso? Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

- Ora essa, você sabe. Não suporto conviver com ela! Traz vergonha sobre<br />

nossa casa!<br />

- Ela está melhor.<br />

- Continua falan<strong>do</strong> dele...<br />

- Não, não tocou mais no assunto.<br />

Fez-se breve silêncio, depois Lóris perguntou:<br />

- Quem perguntou dela?<br />

- O filho <strong><strong>do</strong>s</strong> Stenton.<br />

- Eric?<br />

- Esse mesmo.<br />

- Só podia ser...<br />

- Por quê?<br />

- Está interessa<strong>do</strong> em nossa filha.<br />

- O quê?! Eles são uma família decente. Como o filho poderia se interessar<br />

por uma louca como nossa filha?<br />

- David, não fale assim. Ela garantiu que se gostam de verdade. Ele pegou<br />

a mulher pelo braço, que apertou enquanto perguntava:<br />

- E o que mais disse? Estão em peca<strong>do</strong>? Desvencilhan<strong>do</strong>-se com esforço da<br />

pesada mão <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ela<br />

respondeu:<br />

- Acredito que não. Stephanie me disse que querem se casar.<br />

- Ela é muito jovem.<br />

- Também acho. Foi o que lhe disse.<br />

David voltou a acomodar-se na cadeira e, pensativo, colocou algumas garfadas<br />

de carne na boca. Passa<strong>do</strong> algum tempo declarou:<br />

187


- Quer saber? Acho que devem se casar mesmo. Mas vamos exigir que o<br />

rapaz venha morar aqui conosco, e nos ajude na propriedade. Será a nossa<br />

condição.<br />

Lóris ficou em silêncio; depois, ven<strong>do</strong> que as filhas haviam termina<strong>do</strong> o<br />

jantar, man<strong>do</strong>u:<br />

- Vão para o quarto. Quero conversar com seu pai. Vamos, depressa.<br />

Elas sumiram, in<strong>do</strong> direto para o quarto, e Lóris virou-se para o mari<strong>do</strong>,<br />

questionan<strong>do</strong>:<br />

- Por que não deixa logo que ela se vá? Você a odeia, não é?<br />

- Não, não é isso... É claro que não a odeio... E que ela é tão problemática,<br />

ven<strong>do</strong> e ouvin<strong>do</strong> coisas o tempo to<strong>do</strong>... Não consigo olhá-la nos olhos... Ela<br />

me incomoda.<br />

- Então, David, deixe que se case e vá morar longe daqui. Será melhor para<br />

ela e para to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós. Se o rapaz quer assumir esse far<strong>do</strong>, pois que seja!<br />

Enquanto conversavam, uma entidade espiritual, que protegia a família,<br />

envolveu o pastor David (que fora Boris em encarnação pregressa) em suaves<br />

energias e lhe disse aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> da alma:<br />

- Deixe que ela se case, que assuma as responsabilidades que precisa ter.<br />

Continuarão perto um <strong>do</strong> outro, mas ela precisa seguir sua jornada. Não a impeça<br />

de crescer.<br />

As palavras da amorosa entidade espiritual ganharam força no coração <strong>do</strong><br />

pastor e ele falou, depois de muito pensar:<br />

- Pois bem, vá buscá-la. Quero ter uma conversa com ela agora mesmo.<br />

Não demorou muito e Stephanie apareceu na sala, visivelmente mais magra.<br />

Ficou de pé, diante <strong>do</strong> pai, tentan<strong>do</strong> ocultar a raiva terrível que sentia dele.<br />

De cabeça baixa, evitava fitá-lo nos olhos. Ele disse, assim que a viu:<br />

- Quero saber sobre as intenções desse rapaz, o Eric.<br />

- Por que, pai?<br />

- Ele perguntou por você hoje à saída <strong>do</strong> culto, e sua mãe me disse que vocês<br />

têm intenção de se casar. É verdade?<br />

- Sim. Nós nos amamos e queremos nos casar.<br />

- E a família dele? Concorda?<br />

- Eric me contou que a mãe já sabe e aceita.<br />

- Emma sempre me pareceu um pouco desajuizada. E Michel?<br />

- Não sei, mas se vocês concordarem Eric vai falar com os pais que deseja<br />

casar-se logo.<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se da filha, David segurou-a pelos ombros com as duas<br />

mãos e, chacoalhan<strong>do</strong>-a, indagou:<br />

- Por que têm pressa? Estão em peca<strong>do</strong>? Responda!<br />

188


- Não, claro que não! Eric me ama, já disse, e queremos construir nossa<br />

família. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, ele já tem 28 anos.<br />

- Vinte e oito? Deveria ter algum juízo...<br />

David soltou a jovem e caminhou pela sala, depois se virou para ela e disse:<br />

- Pois bem, diga a ele que venha falar comigo imediatamente. Caso suas<br />

intenções sejam sérias, e com a concordância da família, terão meu consentimento.<br />

- Quer dizer que não preciso voltar para o sótão?<br />

- Por enquanto, não.<br />

O espírito de Peter acompanhava toda a conversa e disse à jovem:<br />

- Estão traman<strong>do</strong> alguma coisa. Fique atenta!<br />

Ela o ouviu, mas não demonstrou. Não falava mais com ninguém sobre a<br />

presença constante <strong>do</strong> irmão, que não a deixava sozinha. Desejan<strong>do</strong> sair daquela<br />

casa, onde se sentia sufocar, indagou:<br />

- Posso procurar por Eric agora mesmo?<br />

- Não. Vocês se verão no próximo <strong>do</strong>mingo, no culto <strong>do</strong>minical, e então<br />

conversarão.<br />

- Mas, pai...<br />

- Não quero filha minha corren<strong>do</strong> atrás de ninguém. Fique dentro de casa e<br />

ajude sua mãe. No <strong>do</strong>mingo peça a ele que venha me ver.<br />

Stephanie permaneceu calada a semana toda. Tinha me<strong>do</strong> de falar algo que<br />

prejudicasse suas expectativas de casar-se com o jovem que amava, e de ver-se<br />

livre de vez daquela família que a desprezava. Aproveitou-se de uma saída <strong>do</strong><br />

pai, que fora chama<strong>do</strong> a atender um senhor <strong>do</strong>ente, para procurar Eric. Sabia<br />

exatamente de seus hábitos e foi ao seu encontro. O rapaz cortava lenha, quan<strong>do</strong><br />

a viu e correu para abraçá-la.<br />

- Stephanie, quanta saudade!<br />

Ao saber da decisão de David, ele ficou satisfeito e tranquilizou-a:<br />

- Não se preocupe, vou falar hoje mesmo com meu pai.<br />

- Estou com me<strong>do</strong>. Toman<strong>do</strong>-lhe as mãos, ele indagou:<br />

- Me<strong>do</strong> por quê?<br />

- E se seu pai não permitir? Afinal, eu sou meio...<br />

- Não diga isso.<br />

- Sou mesmo louca, Eric.<br />

- Por favor - ele pediu -, não fale assim... Isso não é verdade.<br />

- Será que não, Eric?<br />

- Claro que não.<br />

- Então por que tenho visto constantemente meu irmão, Peter, que já morreu?<br />

Sou amaldiçoada...<br />

189


Abraçan<strong>do</strong>-a com carinho, ele garantiu:<br />

- Tenho certeza de que não se trata disso.<br />

- E o que mais pode ser? Como vejo e ouço pessoas mortas?<br />

- Eu não sei, Stephanie; só sei que louca você não é.<br />

- Será que é possível ver os espíritos <strong><strong>do</strong>s</strong> mortos? Como, se eles não podem<br />

comunicar-se conosco? Sabemos, pela Bíblia, que não se pode falar com os<br />

mortos...<br />

- Será que não?<br />

- Você acha que é possível?<br />

- Tenho um primo que vive em uma comunidade shaker em Lebanon, vilarejo<br />

ao norte de Nova York. Ele esteve conosco há duas semanas e nos disse<br />

que espíritos de índios da região estão se manifestan<strong>do</strong> há algum tempo naquela<br />

comunidade.<br />

- Serão mesmo espíritos?<br />

- Ele disse que sim, que são espíritos, e que seu pai tem a capacidade de<br />

vê-los e ouvi-los. Garantiu-me que não são demônios, são apenas índios em<br />

espírito.<br />

Stephanie fitou o rapaz com lágrimas nos olhos:<br />

- Será que é possível? Será isso o que acontece também comigo?<br />

- Não sei, mas nós vamos descobrir. Assim que nos casarmos, vamos até lá<br />

para ver o que acontece e tentar compreender o que se passa com você. De<br />

uma coisa eu estou certo: você não é louca.<br />

Ela abriu largo sorriso, abraçan<strong>do</strong> o noivo com força:<br />

- Eu o amo demais!<br />

TRINTA E OITO<br />

QUANDO STEPHANIE ENTROU silenciosamente em casa, a mãe dava banho<br />

na filha menor, então com cinco anos. Apesar <strong><strong>do</strong>s</strong> cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> da jovem, a mãe,<br />

de ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> atentos, gritou <strong>do</strong> quarto das filhas:<br />

- É você, Stephanie?<br />

- Sim, mãe.<br />

- Venha já aqui.<br />

A jovem foi até o quarto e, parada na porta, observou a mãe; agachada,<br />

com os vesti<strong><strong>do</strong>s</strong> amarra<strong><strong>do</strong>s</strong> nas pernas e o cabelo em desalinho, lavava a menina.<br />

Ven<strong>do</strong> a filha mais velha, Lóris investigou:<br />

- Onde esteve? Procurei-a para pedir ajuda com suas irmãs e não a encontrei.<br />

190


- Fui colher maçãs.<br />

- Ainda tínhamos algumas na cesta.<br />

- Eu sei, mas queria comê-las com o sabor de recém-colhidas. Mostran<strong>do</strong> a<br />

cesta repleta de maçãs que colhera às pressas, com<br />

a ajuda de Eric, ofereceu:<br />

- Quer uma? -<br />

- Deixe-as na cozinha e venha me ajudar. Seu pai está para chegar e preciso<br />

terminar logo o jantar. Sabe que ele gosta que tu<strong>do</strong> esteja pronto quan<strong>do</strong><br />

chega.<br />

Fitan<strong>do</strong> a jovem, a mãe prosseguiu:<br />

- Uma boa esposa e mãe deve des<strong>do</strong>brar-se para cuidar <strong>do</strong> lar, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> filhos. Você acha que está preparada para assumir tantas responsabilidades,<br />

Stephanie?<br />

Sem prestar atenção ao aviso da mãe, ela afirmou:<br />

- Estou mais <strong>do</strong> que preparada. Amo Eric e ele me ama, que mais posso<br />

desejar?<br />

Envolvida por Geórgia, que em espírito, acompanhava a filha de outras encarnações,<br />

Lóris falou:<br />

- Precisa parar de sonhar, Stephanie, e pensar seriamente nas responsabilidades<br />

de uma vida de mulher casada. Terá de assumir to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> lar,<br />

enquanto seu mari<strong>do</strong> prove o sustento da família. E muito trabalho, não pode<br />

assumir esse matrimônio sem pensar bem quanto trabalho e quanta dedicação<br />

exigirá de você.<br />

Pegan<strong>do</strong> uma das mais bonitas maçãs <strong>do</strong> cesto, Stephanie limpou-a no vesti<strong>do</strong>.<br />

Mordeu sofregamente vários pedaços antes de retrucar:<br />

- Sei que serei feliz com meu ama<strong>do</strong> Eric. A mãe pediu outra vez:<br />

- Vá buscar Alicia, que está brincan<strong>do</strong> lá fora, e dê banho nela enquanto<br />

termino de preparar o jantar.<br />

Stephanie an<strong>do</strong>u devagar até a cozinha e colocou a cesta sobre a mesa. Saiu<br />

e chamou a menina que brincava na horta. Ao vê-la, a irmã se surpreendeu:<br />

- Como você está suja! Venha, vou lhe dar um banho.<br />

- Não quero você, quero a mamãe.<br />

- Ela tem muitas coisas para fazer e rne pediu que ajudasse.<br />

- Não quero.<br />

Dan<strong>do</strong> um leve beliscão na menina, a jovem disse entre dentes:<br />

- Fique quieta. Vou dar banho em você e não me apronte confusão.<br />

Durante o jantar, Lóris e David pouco conversaram. Quan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> saíram<br />

da mesa, ele quis saber:<br />

- Ela se comportou direito hoje?<br />

191


- Sim, sem novidades.<br />

- Nenhum comportamento estranho?<br />

- Não. Já decidiu o que vai fazer caso o rapaz realmente a peça em casamento?<br />

- Vou conversar com os pais dele para ver como a família pensa. Se estiverem<br />

de acor<strong>do</strong>, colocarei como condição que ele nos ajude no cuida<strong>do</strong> da terra<br />

por alguns anos, e só depois vou liberá-los para viverem suas vidas livremente.<br />

Quero ficar de olho nela.<br />

- E acha que Eric vai aceitar?<br />

- Ou aceita, ou não vai desposar nossa filha.<br />

- Está certo.<br />

Os dias se arrastavam para Stephanie. Naquele <strong>do</strong>mingo, ao contrário <strong>do</strong><br />

que era seu hábito, pulou da cama logo que o sol nasceu. Estava ansiosa demais<br />

para permanecer deitada. Sabia que Eric falaria com seu pai naquela manhã.<br />

Foi até a cozinha e sentou-se perto da janela, contemplan<strong>do</strong> o nascer <strong>do</strong><br />

sol. Estava absorta em seus pensamentos, quan<strong>do</strong> escutou uma voz familiar:<br />

- Então acha que vai conseguir viver em paz, longe desta casa?<br />

Stephanie virou-se, espantada, e viu Peter bem perto. Deu um grito e falou:<br />

- Afinal, o que você quer de mim?<br />

- Quero vingança!<br />

- Mas <strong>do</strong> que está falan<strong>do</strong>?<br />

- Eu odeio to<strong><strong>do</strong>s</strong> vocês pelo que me fizeram.<br />

- Eu não lhe fiz nada...<br />

- Claro que fez! Você nasceu e estragou tu<strong>do</strong>. Antes era somente eu, tu<strong>do</strong><br />

era para mim. Depois você chegou e tirou minha<br />

mãe!<br />

Choran<strong>do</strong>, nervosa, ela disse:<br />

- Eu não tenho culpa, não lhe fiz nada. Nem me lembrava de você... Vá embora,<br />

por favor! Vá embora. Não pode continuar me assustan<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong>.<br />

- Pois saiba que a atormentarei até o fim de seus dias. E também a esse<br />

homem que chama de pai. Vocês vão sofrer nas minhas mãos.<br />

- Por favor, pare...<br />

- O que está haven<strong>do</strong> aqui? Com quem estava falan<strong>do</strong>?<br />

Ao ouvir a voz <strong>do</strong> pai, Stephanie sentiu o sangue sumir-lhe <strong>do</strong> rosto alvo.<br />

Aquele era um dia muito importante, e não queria que nada atrapalhasse seus<br />

sonhos. Respirou fun<strong>do</strong> e falou pausadamente, enquanto limpava as lágrimas:<br />

- Estava oran<strong>do</strong> e me emocionei.<br />

Sem esboçar reação, David fitou-a e determinou:<br />

192


- Pois ore em silêncio. Não precisamos de estardalhaços para manifestar<br />

nossas necessidades a Deus. Ele sabe tu<strong>do</strong> de que precisamos. Mantenha a<br />

discrição, Stephanie.<br />

Depois de uma pausa, considerou:<br />

- Não sei se está pronta para nos acompanhar à igreja hoje. Talvez seja melhor<br />

ficar aqui mais alguns dias, antes de se expor. Tenho dúvida de que esteja<br />

bem de fato.<br />

Enquanto Peter ameaçava avançar sobre ela, Stephanie, em pânico, embora<br />

arregalasse os olhos, mantinha-se em absoluto silêncio. David observou a filha<br />

por alguns momentos e ela falou:<br />

- Estou muito bem, pai. Já não tenho nenhuma daquelas visões e sinto-me<br />

disposta e tranqüila. Deus está me auxilian<strong>do</strong> a ficar boa.<br />

Sem responder, o pai foi até o quarto e voltou to<strong>do</strong> arruma<strong>do</strong>. Depois que<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> fizeram o desjejum, saíram juntos para o templo. Ao término <strong>do</strong> culto,<br />

Eric, novamente esperan<strong>do</strong> que to<strong><strong>do</strong>s</strong> saíssem, aproximou-se <strong>do</strong> pastor junto<br />

com os pais e sau<strong>do</strong>u:<br />

- Bom dia, senhor.<br />

- Bom dia, Eric.<br />

- Preciso conversar com o senhor, sobre assunto importante.<br />

- Diga.<br />

- Gostaria de casar-me com sua filha.<br />

David olhou para os pais <strong>do</strong> rapaz e perguntou:<br />

- Os senhores estão de acor<strong>do</strong>? Michel respondeu:<br />

- Sabemos <strong>do</strong> grande carinho que Eric nutre por Stephanie. Não há nada<br />

que os impeça de se casarem.<br />

- Podem ir até minha casa hoje à tarde, para conversarmos melhor?<br />

- Sim, é claro. Estaremos lá.<br />

Emma, cumprimentan<strong>do</strong> o pastor, disse:<br />

- Levarei aquela torta de maçã que o senhor tanto aprecia.<br />

No meio da tarde, estavam to<strong><strong>do</strong>s</strong> reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> na sala de estar de David. Stephanie,<br />

ao la<strong>do</strong> de Eric, sentia o coração descompassa<strong>do</strong>. Desejava que nada<br />

interferisse naquele momento, mas tinha me<strong>do</strong>. Olhava de vez em quan<strong>do</strong> para<br />

os la<strong><strong>do</strong>s</strong> para ver se Peter aparecia, mas não havia nem sinal <strong>do</strong> menino. Ao<br />

final da conversa, David apresentou sua condição:<br />

- A única restrição que tenho se relaciona à ajuda que Stephanie nos dá,<br />

pois temos muito trabalho em casa, e também na igreja. Por isso será necessário<br />

que Eric participe <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos serviços <strong>do</strong> campo por <strong>do</strong>is ou três anos, até<br />

que uma das outras meninas cresça um pouco mais e possa auxiliar Lóris. En-<br />

193


quanto isso, vamos precisar também da colaboração de Stephanie, de vez em<br />

quan<strong>do</strong>.<br />

Os pais <strong>do</strong> rapaz, surpresos, não sabiam o que dizer. Eric apertou as mãos<br />

de Stephanie entre as suas e sentiu-as úmidas de suor. Disse então:<br />

- Eu concor<strong>do</strong>. Faremos uma pequena cabana depois <strong>do</strong> rio, que fica bem<br />

perto, e assim eu e Stephanie poderemos ajudar.<br />

- Então está tu<strong>do</strong> certo.<br />

* - Podemos marcar a data? - perguntou Eric, levantan<strong>do</strong>-se.<br />

- Está com pressa, rapaz?<br />

Olhan<strong>do</strong> a amada com ternura, ele respondeu:<br />

- De fato, estou.<br />

- E para quan<strong>do</strong> deseja marcar?<br />

- Preciso de um mês para erguer a pequena cabana. Pode ser daqui a <strong>do</strong>is<br />

meses.<br />

Lóris se espantou:<br />

- E muito rápi<strong>do</strong>. Não teremos tempo de fazer to<strong><strong>do</strong>s</strong> os preparativos...<br />

Mais <strong>do</strong> que depressa, Stephanie ergueu-se, tomou o braço <strong>do</strong> noivo e disse:<br />

- Teremos sim, mãe. Dois meses é o suficiente para as providências básicas.<br />

Tocan<strong>do</strong> os cabelos da filha, Lóris controlava as lágrimas ao dizer:<br />

- Você é tão jovem, filha...<br />

Sem responder, Stephanie apertou o braço de Eric, que, voltan<strong>do</strong>-se para a<br />

futura sogra, tranquilizou-a:<br />

- Não se preocupe, vou tomar conta de sua menina. Embora tão jovem, sei<br />

que me ama muito. Terei paciência com ela, fique sossegada.<br />

Enquanto se despediam, Eric assegurou novamente a Lóris:<br />

- Não se preocupe, vou cuidar bem dela.<br />

Tocan<strong>do</strong> de leve o braço <strong>do</strong> rapaz, ela disse com leve sorriso:<br />

- Assim espero, Eric. Stephanie é uma garota delicada. Olhan<strong>do</strong> nos olhos<br />

da sogra, Eric afirmou:<br />

- Sei disso, não se preocupe.<br />

Stephanie observou a família visitante subir na carroça e desaparecer na estrada.<br />

Sorrin<strong>do</strong>, não conseguia conter a alegria. Muito lhe custava não gritar e<br />

dançar de contentamento. Até que enfim estaria livre daqueles que não a amavam...<br />

Os <strong>do</strong>is meses passaram rápi<strong>do</strong>. Stephanie não tinha tempo para nada, dividin<strong>do</strong><br />

a atenção entre a ajuda nas tarefas cotidianas da família e os preparativos<br />

para o dia tão espera<strong>do</strong>. Sua alegria era tão grande que nem mesmo a presença<br />

constante de Peter a perturbava. Certo dia, ele a observava cuidan<strong>do</strong> das<br />

194


oupas das irmãs mais novas. Olhou-a longamente, sem dizer nada, depois<br />

falou:<br />

- Você não será feliz!<br />

A garota o encarou e disse, sem se alterar:<br />

- Diga o que quiser. Serei muito feliz fora daqui.<br />

- Mas você não vai sair daqui.<br />

- Vou, sim. Terei minha pequena e linda casa, que transformarei num paraíso,<br />

meu e de Eric.<br />

- Está enganada. Continuará <strong>do</strong>minada por eles... Stephanie sorriu e disse:<br />

- Pode falar o que quiser, Peter, não vou escutá-lo. Agora me deixe, tenho<br />

muito a fazer.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, foi até o quintal buscar mais roupas secas para <strong>do</strong>brar.<br />

TRINTA E NOVE<br />

AINDA QUE ESTIVESSE ansiosa, o grande dia chegou quase sem que Stephanie<br />

se desse conta. Naquela manhã ensolarada, a pequena igreja estava enfeitada<br />

com lin<strong><strong>do</strong>s</strong> arranjos de flores <strong>do</strong> campo e lotada pela comunidade religiosa.<br />

Ao apontar na porta da igreja, a noiva parecia reluzir de tanta felicidade. Sentia<br />

como se realizasse um sonho antigo, muito mais antigo <strong>do</strong> que ela própria. Ali,<br />

de pé, diante da porta fechada, com seu lin<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> branco e a enorme grinalda<br />

que fizera questão de colocar, sentia-se plena e realizada. Não pensava<br />

em mais nada. Seu coração transbordava de satisfação. Quan<strong>do</strong> as portas se<br />

abriram, caminhou como se seus pés não tocassem o chão, como se flutuasse<br />

no ar. Eric sorria para ela, igualmente feliz.<br />

A cerimônia foi simples e curta. Enquanto David a celebrava, Peter se escondia<br />

atrás das cortinas que cobriam o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> templo, como se brincasse de<br />

esconde-esconde. Stephanie se concentrava, mas não podia deixar de seguir<br />

com os olhos os movimentos rápi<strong><strong>do</strong>s</strong> e os pulos <strong>do</strong> garoto. David percebeu que<br />

algo a distraía e com o olhar chamou sua atenção; imediatamente a jovem baixou<br />

os olhos, buscan<strong>do</strong> não deixar mais que o irmão, fora <strong>do</strong> corpo físico, a<br />

distraísse.<br />

Ao final da singela celebração, Eric beijou-lhe a testa com <strong>do</strong>çura e falou<br />

baixinho:<br />

- Amo você e quero fazê-la feliz.<br />

Stephanie mais uma vez sorriu satisfeita e pensou que nada, daquele dia<br />

em diante, poderia atrapalhar a concretização <strong><strong>do</strong>s</strong> seus sonhos. Depois, to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

foram para uma grande área da comunidade, onde se realizavam as comemo-<br />

195


ações. Uma enorme mesa havia si<strong>do</strong> montada, com comida, frutas e <strong>do</strong>ces. A<br />

festa se estendeu até o final da tarde, quan<strong>do</strong>, finalmente, os noivos se despediram<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> convida<strong><strong>do</strong>s</strong> e se prepararam para partir. Entre um convida<strong>do</strong> e outro,<br />

Eric sussurrou no ouvi<strong>do</strong> da esposa:<br />

- Tenho uma surpresa para você.<br />

- O que é?<br />

- Logo saberá.<br />

Ao cumprimentar o sogro, Eric disse:<br />

- Pastor David, eu e Stephanie faremos uma breve viagem antes de nos instalarmos<br />

em nossa cabana.<br />

- Você não havia dito nada... Quan<strong>do</strong> pretendem partir?<br />

- Vamos agora mesmo, assim que sairmos daqui. Fitan<strong>do</strong> a filha, irrita<strong>do</strong>,<br />

David indagou:<br />

- Você já sabia?<br />

Eric se antecipou, olhan<strong>do</strong> a esposa com ternura:<br />

- Não, estou fazen<strong>do</strong> uma surpresa. Ela acaba de saber. Vamos voltar em<br />

duas ou, no máximo, três semanas.<br />

Contraria<strong>do</strong>, David perguntou:<br />

- E para onde vão?<br />

- Tenho um primo que mora em Lebanon, ao norte de Nova York. Ele não<br />

pôde comparecer ao nosso matrimônio devi<strong>do</strong> aos compromissos que tem por<br />

lá, mas nos convi<strong>do</strong>u para passarmos alguns dias com ele. Foi extremamente<br />

gentil, e eu gostaria de atender ao seu convite. Logo as novas responsabilidades<br />

nos ocuparão por completo e não quero ausentar-me por muito tempo, conforme<br />

o senhor e eu combinamos.<br />

Sem saber o que argumentar diante <strong>do</strong> inespera<strong>do</strong>, ele disse apenas:<br />

- Espero que não falte com sua palavra, rapaz, e cumpra tu<strong>do</strong> o que combinamos.<br />

- Não vou decepcioná-lo, pastor David. Abraçan<strong>do</strong> a esposa, ele enfatizou:<br />

- Nenhum de nós irá decepcioná-lo.<br />

David virou-se para cumprimentar outros convida<strong><strong>do</strong>s</strong> que se retiravam, e<br />

Eric e Stephanie saíram. De mãos dadas, correram para a carroça e acomodaram<br />

pequena bagagem. Ele tomou as rédeas <strong><strong>do</strong>s</strong> animais e partiram.<br />

Sorridente ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, a jovem exclamou, ao alcançarem a estrada:<br />

- Nem acredito que estamos fazen<strong>do</strong> esta viagem! Que surpresa maravilhosa!<br />

Sorrin<strong>do</strong> também, Eric pousou nos dela seus olhos grandes e brilhantes e<br />

perguntou:<br />

- Está feliz?<br />

196


- Demais! Este é um dia maravilhoso. Jamais esquecerei a felicidade que<br />

sinto neste momento. É o dia mais feliz da minha vida! Não me lembro de ter<br />

senti<strong>do</strong> tamanha alegria antes!<br />

- Quero que seja feliz, Stephanie. Por isso, combinei com meu primo esta<br />

viagem. Quero que comecemos nossa vida esclarecen<strong>do</strong> a questão de suas perturbações.<br />

Imediatamente a jovem ficou pensativa. Eric inquiriu:<br />

- O que foi? Falei algo que não lhe agra<strong>do</strong>u?<br />

- Não, não é isso. É que eu queria esquecer esses problemas, sabe? Gostaria<br />

de deixar tu<strong>do</strong> isso para trás, não ter de pensar nem falar mais nesses assuntos<br />

que me entristecem. Quero ser igual às outras garotas. Quero apenas ser<br />

feliz.<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a forte, o rapaz explicou:<br />

- Também quero que você deixe para trás tu<strong>do</strong> o que a perturba, mas antes<br />

precisamos compreender a fun<strong>do</strong> o que se passa.<br />

Estamos começan<strong>do</strong> uma vida nova, e para isso precisamos encarar nossas<br />

dificuldades. Não vai adiantar fugir delas. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, percebi que durante a<br />

cerimônia você observava alguém invisível para os demais. Quem era?<br />

- Ninguém.<br />

- Não precisa ficar assim, Stephanie. Você pode confiar em mim, contar<br />

tu<strong>do</strong> o que se passa. Estarei sempre ao seu la<strong>do</strong> para apoiá-la. Pode dizer,<br />

quem você estava ven<strong>do</strong>?<br />

Ela hesitou, mas enfim contou:<br />

- Peter não parava de fazer traquinagens e de chamar minha atenção. Pendurava-se<br />

nas cortinas e corria entre elas. Fiquei um pouco aflita.<br />

- Então, querida, é disso que estou falan<strong>do</strong>. Estou certo de que meu primo<br />

Elder conseguirá nos ajudar. É um homem bom, você vai gostar dele; e, acima<br />

de tu<strong>do</strong>, vamos compreender melhor a sua situação.<br />

Já era noite alta quan<strong>do</strong> chegaram à cidade mais próxima, onde ficariam<br />

até o dia seguinte; dali tomariam outra carruagem, que fazia o transporte de<br />

passageiros até New Hampshire.<br />

De manhã, na hora da partida, acomodaram a bagagem e se sentaram la<strong>do</strong><br />

a la<strong>do</strong>. Eric aconchegou a esposa nos braços.<br />

- Ainda que a viagem seja longa, a vista é linda. Poderemos admirar as belíssimas<br />

paisagens pelo caminho.<br />

- Já esteve lá antes?<br />

- Sim, quan<strong>do</strong> era bem jovem. Depois o trabalho começou a exigir mais e<br />

acabamos nos distancian<strong>do</strong> um pouco. O trabalho tem si<strong>do</strong> árduo e difícil.<br />

- Mas a plantação de vocês é tão bela e abundante...<br />

197


- Trabalhamos com afinco, porém quan<strong>do</strong> vamos vender a colheita os preços<br />

são sempre baixos. Querem que meu pai processe o trigo que produzimos,<br />

dizem que assim o preço será maior. E o aconselharam a adquirir escravos<br />

para ajudar na lavoura.<br />

- Que horror, Eric!<br />

- Também tenho horror a essa prática.<br />

- Estão mesmo trazen<strong>do</strong> negros para nosso país, como escravos?<br />

- Muitos, principalmente nos esta<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> sul.<br />

- Isso é erra<strong>do</strong>, não é?<br />

- Totalmente. Pessoas não deveriam ser transformadas em escravos. Meu<br />

pai também não concorda, e por isso trabalhamos muito. Dizem que os escravos<br />

são um bom investimento, pois paga-se uma única vez e eles trazem lucros<br />

por muito tempo.<br />

- Não gosto desse assunto, Eric.<br />

- Pois falemos de outras coisas. A jovem sorriu e perguntou:<br />

- Pode começar me contan<strong>do</strong> o que gosta de comer. Vou preparar pratos<br />

deliciosos. Aprendi alguns que minha mãe ensinou.<br />

- Que tal falarmos sobre filhos?<br />

A jovem ficou séria e muda. Não pensara em filhos, nem por um único momento.<br />

Desejara casar-se e ter a própria família, estar com Eric, com quem se<br />

sentia realmente amada. Quanto a filhos, não pensara nisso. O rapaz insistiu:<br />

- Quero ter filhos logo, e você?<br />

Sem esperar resposta, fitou-a e disse feliz:<br />

- Vamos ter vários. Quero pelo menos seis filhos.<br />

- Seis? Por que tantos?<br />

- Ora, meus pais têm cinco e seus pais quatro. Muitos de nossos irmãos na<br />

comunidade têm seis e até oito filhos. Não acho tanto assim. Quero ter muitos<br />

filhos. Esse é meu sonho, uma família grande e feliz.<br />

Abraçou a jovem, que continuava em silêncio.<br />

- E você, quantos filhos gostaria de ter?<br />

Stephanie hesitou. Não sabia o que responder, e disse por fim:<br />

- Não precisamos ter tantos filhos. Quero <strong>do</strong>is ou três...<br />

- Está brincan<strong>do</strong> comigo. Do que tem me<strong>do</strong>?<br />

- Não sei, acho que filhos dão muito trabalho...<br />

- E muita alegria também. Vamos, três é muito pouco. Pelo menos quatro!<br />

Sem saber o que dizer e não desejan<strong>do</strong> criar nenhum desconforto naquele<br />

momento mágico que vivia, respondeu:<br />

- Deus nos dará os filhos que quiser. Ele nos abençoará e teremos uma linda<br />

família.<br />

198


- Isso mesmo! Assim é que se fala! Essa é minha esposa!<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a com força, seguiu conversan<strong>do</strong> sobre os mais diversos assuntos.<br />

No entanto, Stephanie ficou apreensiva. Não imaginara que Eric quisesse<br />

filhos tão depressa. Ela queria fruir a vida em companhia <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ter liberdade<br />

para passear, namorar e ser feliz. Filhos seriam intrusos naquele momento...<br />

***<br />

A vários quilômetros dali, em Nova York, Sean negociava um grande carregamento<br />

de escravos. Dentro de um beco escuro, com uma arma bem visível<br />

presa na cinta, ele argumentava com o compra<strong>do</strong>r:<br />

-Terá de confiar em mim. Este é um carregamento de primeira. São apenas<br />

23, to<strong><strong>do</strong>s</strong> de excelente qualidade. Seu investimento terá retorno em pouco tempo.<br />

O compra<strong>do</strong>r, representante de um grande fazendeiro <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> da Virgínia,<br />

resmungou contraria<strong>do</strong>:<br />

- Está muito caro, e além disso não poderei vê-los antes de pagar. Assim<br />

está fican<strong>do</strong> difícil... E são somente 23! Você disse que traria pelo menos cinqüenta.<br />

Toda vez é a mesma coisa. Montamos uma operação arriscadíssima e<br />

complexa, e para quê? Para vinte negros?<br />

Agarran<strong>do</strong> o outro pelo colarinho, Sean disse:<br />

- Olhe aqui, o contraban<strong>do</strong> de escravos está fican<strong>do</strong> cada vez mais difícil e<br />

perigoso. Arrisco a própria vida para trazê-los. Portanto, o preço está é muito<br />

barato! Se não estiver interessa<strong>do</strong>, tenho uma fila esperan<strong>do</strong> meu aviso. To<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

querem os escravos e poucos continuam com o contraban<strong>do</strong>. Sabe quantos já<br />

foram pegos pelo governo?<br />

O outro, ainda que indigna<strong>do</strong>, ouvia em silêncio. Sean prosseguiu:<br />

- Decida logo. O que vai ser? Vai ficar ou não com eles?<br />

- Preciso falar com o meu patrão.<br />

- Se sair deste beco sem pagar, perde o negócio. Entendeu bem? Soltan<strong>do</strong> o<br />

homem, ele arrumou as roupas e virou-se em retirada.<br />

- O que estou fazen<strong>do</strong>? Não preciso negociar com você. E ia sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> lugar,<br />

quan<strong>do</strong> o outro correu atrás dele:<br />

- Espere.<br />

Sean virou-se e aguar<strong>do</strong>u. Paul hesitou um pouco, depois concor<strong>do</strong>u:<br />

- Está feito.<br />

- Sábia decisão. Já estava prestes a aumentar o preço <strong><strong>do</strong>s</strong> escravos. O compra<strong>do</strong>r<br />

colocou uma sacola de couro nas mãos de Sean:<br />

- Aqui está o valor que pediu. Podemos transferir os escravos agora, como<br />

sempre fazemos?<br />

199


- E claro. Eles estão no porto, prontos para serem transferi<strong><strong>do</strong>s</strong> de embarcação.<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> homens?<br />

- Vinte homens e três mulheres.<br />

- Você disse que eram to<strong><strong>do</strong>s</strong> homens! É deles que precisamos para o trabalho<br />

na lavoura.<br />

- E você esquece que pode diluir o preço deles, ao se reproduzirem?<br />

Paul ficou em silêncio. Tomaram caminhos separa<strong><strong>do</strong>s</strong> até o cais, onde se<br />

encontraram outra vez. Sean declarou:<br />

- Caso deseje negociar comigo outra vez, venha sozinho. Se souber que há<br />

mais alguém por perto, nossos negócios acabarão... E não gosto de tomar prejuízo,<br />

está entenden<strong>do</strong>? Diga isso ao seu patrão.<br />

Sean entregou uma chave ao outro e apontou com a cabeça:<br />

- É aquele navio preto e vermelho. Estão tranca<strong><strong>do</strong>s</strong> no porão, to<strong><strong>do</strong>s</strong> amordaça<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Não faça barulho. Três de meus homens esperam para ajudar.<br />

Paul tomou a chave e Sean, ajeitan<strong>do</strong> as duas sacolas de couro nos ombros,<br />

an<strong>do</strong>u em senti<strong>do</strong> contrário ao porto e sumiu na noite escura.<br />

QUARENTA<br />

DEPOIS DE LONGA VIAGEM, a carruagem finalmente alcançou seu destino e<br />

entrou na cidade de New Hampshire. Stephanie, ansiosa e atenta, não deixava<br />

escapar nenhum detalhe. Não se sentia cansada, e sim cheia de entusiasmo.<br />

Nunca antes havia saí<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> restritos limites da comunidade quaker em que<br />

vivia, e aquela viagem representava liberdade.<br />

Assim que o veículo parou, Eric pulou e aju<strong>do</strong>u-a a descer. Logo avistaram<br />

Elder 20 , primo de Eric, que os aguardava.<br />

- É um grande prazer recebê-los aqui, em nossa casa. Desejo felicidade a<br />

vocês <strong>do</strong>is.<br />

Afetuoso, abraçou Eric e depois, com um discreto gesto de cabeça, cumprimentou<br />

Stephanie:<br />

- Muito prazer, senhora. Seja bem-vinda à nossa família.<br />

Ela sorriu e agradeceu. Acomodaram-se na carroça e seguiram para o vilarejo<br />

de Lebanon. A jovem examinava Elder com atenção: homem de cerca de<br />

20 Elder Evans, membro da Comunidade <strong><strong>do</strong>s</strong> Shakers de Lebanon.<br />

200


35 anos, estatura mediana, cabelos negros e semblante sereno c confiante; falava<br />

pausadamente, sem ansiedade. Logo estavam na acolhe<strong>do</strong>ra residência <strong>do</strong><br />

primo, que vivia com a família em uma das comunidades shakers que se haviam<br />

instala<strong>do</strong> nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>. Era uma casa agradável, longe da vila, situada<br />

bem no meio de árvores e junto a uma nascente que se transformava em<br />

riacho de águas cristalinas.<br />

Ao descer da carroça, Stephanie sentiu a brisa fresca e o perfume das árvores<br />

e das flores e sorriu, observan<strong>do</strong> ao longe o rio e pequenos esquilos que<br />

corriam de uma árvore a outra, através <strong><strong>do</strong>s</strong> galhos que se tocavam.<br />

- Que lugar lin<strong>do</strong>!<br />

- E realmente muito belo. Apreciamos viver perto da natureza. Ela nos dá<br />

to<strong>do</strong> o sustento de que necessitamos e aqui nos sentimos mais perto de Deus.<br />

Imagino o Pai como um ser de grande beleza, para ter cria<strong>do</strong> lugares tão especiais.<br />

A família os recebeu com cordialidade. Depois <strong>do</strong> almoço, Elder abor<strong>do</strong>u o<br />

tema:<br />

- E então, Stephanie? Eric comentou sobre suas experiências. Desconcertada,<br />

ela respondeu:<br />

- E, parece que sou meio estranha. Vejo coisas que não existem e pessoas<br />

que já morreram.<br />

Elder demonstrou vivaz interesse:<br />

- E há quanto tempo isso acontece?<br />

- Desde que era pequena... Com quatro anos, segun<strong>do</strong> minha mãe. Contu<strong>do</strong>,<br />

tenho lembrança dessas experiências desde que adquiri noção de mim<br />

mesma. No início pensava que eram pessoas vivas, tamanha a realidade delas<br />

para mim. À medida que cresci, as visões se espaçaram, mas não acabaram.<br />

Continuo sen<strong>do</strong> atormentada por elas.<br />

- E o que faz quan<strong>do</strong> isso ocorre?<br />

- Depende. Quase sempre peço para irem embora, pois meu pai insiste que<br />

são a manifestação de satanás; que me atormentam porque sou uma pessoa<br />

cheia de peca<strong><strong>do</strong>s</strong> e meu coração é mau.<br />

Stephanie fez uma pausa e, com os olhos rasos de lágrimas, disse:<br />

- Acho que é por causa disso que meus pais não gostam de mim...<br />

Elder falou com brandura:<br />

- Não fique triste, Stephanie. Você tem um <strong>do</strong>m e não deve se envergonhar<br />

dele.<br />

- Que <strong>do</strong>m?<br />

- Há muitos como você em nossa comunidade, com essa mesma possibilidade.<br />

Na verdade, eu também os vejo.<br />

201


- O senhor? -Sim.<br />

- E por que isso acontece?<br />

Elder sorriu, tomou um pouco de refresco que a esposa colocara sobre a<br />

mesinha da varanda, para onde foram após a refeição, e prosseguiu:<br />

- Essa é uma resposta que também estou procuran<strong>do</strong>, e ainda não posso dála<br />

com precisão. O que sei é que essas visões são de fato espíritos de pessoas<br />

que já morreram e que alguns podem ver, nem to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Há espíritos que se manifestam<br />

constantemente em nossa comunidade.<br />

- Como sabe que não são demônios?<br />

- Entre outras coisas, pelo amor que sentimos por eles.<br />

- Amor? São pessoas que conheciam quan<strong>do</strong> vivas? -Não.<br />

- Estou confusa.<br />

- É natural, você está presa aos ensinamentos que recebeu de seus pais e<br />

de sua comunidade. A despeito de isso ser bom e necessário, precisamos aceitar<br />

que não sabemos tu<strong>do</strong>, que há muito a ser descoberto, e se mantivermos o<br />

coração sinceramente uni<strong>do</strong> a Deus poderemos receber novas e importantes<br />

revelações.<br />

Stephanie, embora atenta, ficava cada vez mais confusa. Elder, alma sensível<br />

e amorosa, perceben<strong>do</strong> as emoções contraditórias da jovem, sugeriu:<br />

- Melhor <strong>do</strong> que falarmos sobre os fatos será você os presenciar. Hoje à<br />

noite temos um culto de evangelização que fazemos para esses irmãos. Vocês<br />

podem participar e verificar de perto o que acontece. Tenho certeza de que<br />

será de enorme benefício para você, Stephanie. Depois, conversaremos e tentarei<br />

esclarecer suas dúvidas.<br />

O anfitrião fez longa pausa, observou o horizonte e propôs:<br />

- Devem estar cansa<strong><strong>do</strong>s</strong> da viagem. Não gostariam de descansar durante a<br />

tarde? Linda preparou uma cama quente onde poderão se refazer. <strong>Além</strong> <strong>do</strong><br />

mais, o frio está fican<strong>do</strong> mais intenso.<br />

Levantaram-se prontamente e seguiram Elder para o interior da casa. O casal<br />

se recolheu, tiran<strong>do</strong> toda a tarde para descansar. No início da noite, sentaram-se<br />

à mesa para o jantar. A refeição era bem leve, apenas com frutas e milho<br />

cozi<strong>do</strong>. Elder explicou:<br />

- Nossa refeição noturna, especialmente antes <strong>do</strong> culto, é sempre muito leve.<br />

Isso nos facilita o contato com os espíritos.<br />

Depois <strong>do</strong> jantar seguiram direto para a reunião na igreja <strong><strong>do</strong>s</strong> shakers 21 de<br />

Lebanon. Ao entrarem, Stephanie sentiu-se muito bem naquele ambiente. Embora<br />

estivesse apreensiva, um pouco desconfiada, comparan<strong>do</strong> cada detalhe<br />

21 Grupo protestante funda<strong>do</strong> sobre os ensinos de Ann Lee. Ficou historicamente conheci<strong>do</strong><br />

por tratar homens e mulheres de maneira igualitária.<br />

202


com aquilo a que estava habituada em sua própria comunidade, sentiu-se inesperadamente<br />

confortável naquele lugar. Em quase tu<strong>do</strong> era semelhante à sua<br />

igreja: a disposição <strong><strong>do</strong>s</strong> móveis, o tamanho <strong>do</strong> salão, os bancos, que inclusive<br />

eram mais perfeitamente elabora<strong><strong>do</strong>s</strong>. Tu<strong>do</strong> lhe parecia familiar e ela, aos poucos,<br />

foi se fican<strong>do</strong> mais à vontade, deixan<strong>do</strong>-se envolver pela energia tranqüila<br />

<strong>do</strong> recinto.<br />

No plano espiritual, Geórgia, satisfeita, acompanhava a filha. Endereçavalhe<br />

suaves vibrações de amor e harmonia, e dizia aos seus ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> espirituais:<br />

- Está segura neste ambiente. Poderá ter contato com o atributo da mediunidade,<br />

de que é porta<strong>do</strong>ra, tal como diversos membros desta comunidade.<br />

Ten<strong>do</strong> sua sensibilidade ampliada, começará a compreender muitas questões;<br />

não apenas aprenderá a lidar com o fenômeno da manifestação espiritual, como<br />

entrará igualmente em contato consigo mesma. Que Jesus a abençoe e ampare,<br />

minha filha, descerran<strong>do</strong>-lhe o entendimento de que tanto necessita.<br />

Serena, Stephanie sorria a to<strong><strong>do</strong>s</strong> com cordialidade, liberta por inteiro de<br />

suas apreensões. O culto começou como de costume, muito semelhante aos<br />

que ocorriam na igreja em Pensilvânia. O pastor fez uma oração, foram entoa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

alguns cânticos, leu-se um trecho da Bíblia, segui<strong>do</strong> de breve pregação <strong>do</strong><br />

reveren<strong>do</strong> sobre o tema, que se encontrava em I Coríntios 13: "ainda que eu<br />

falasse a língua <strong><strong>do</strong>s</strong> homens e <strong><strong>do</strong>s</strong> anjos, se não tivesse amor, seria como o<br />

metal que soa ou como o címbalo que refine... Agora, pois, permanecem a fé,<br />

a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor".<br />

Sem saber por que, naquela noite o capítulo que já ouvira tantas e tantas<br />

vezes seu próprio pai pregan<strong>do</strong> tocou mais fun<strong>do</strong> seu coração. Pensou que o<br />

amor era verdadeiramente importante. Avaliou a si mesma e admitiu, com sinceridade,<br />

que aquela definição de amor estava distante <strong>do</strong> que sentia. Ela não<br />

sabia amar como era ali descrito. Estava mergulhada em sua meditação, quan<strong>do</strong><br />

notou que a iluminação <strong>do</strong> salão diminuiu. Olhou ao re<strong>do</strong>r, e ouviu a explicação<br />

de Elder:<br />

- Não se assustem. Durante o contato com os espíritos nos sentimos mais<br />

confortáveis manten<strong>do</strong> as luzes <strong>do</strong> salão um pouco mais suaves.<br />

O coração de Stephanie disparou. Um me<strong>do</strong> enorme apossou-se da jovem,<br />

que segurou firme a mão <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. O silêncio no salão se fez absoluto à medida<br />

que crescia a expectativa dentro dele. Subitamente, uma mulher ao fun<strong>do</strong><br />

falou com voz grossa e estranha:<br />

- Pedimos permissão para entrar. O pastor respondeu:<br />

- Em nome de Jesus, têm autorização para se juntar a nós. Stephanie, incapaz<br />

de controlar a emoção, viu o salão repleto de peles-vermelhas, to<strong><strong>do</strong>s</strong> com<br />

vestimenta indígena e alguns com belos cocares. Eram muitos, que entravam e<br />

203


formaram um grande círculo ao re<strong>do</strong>r das pessoas que ali estavam. A jovem<br />

virou-se para o mari<strong>do</strong> e indagou:<br />

- De onde eles vieram?<br />

- Quem? - Eric sussurrou.<br />

- Esses índios que acabaram de entrar, são daqui? Pergunte ao Elder, por<br />

favor.<br />

O prestimoso senhor a escutara e respondeu:<br />

- São espíritos de uma tribo de peles-vermelhas que nos visitam há vários<br />

anos.<br />

Stephanie, muda e paralisada na cadeira, mal conseguia piscar. Então, tomada<br />

de forte sensação que não controlava, ergueu-se e iniciou uma dança<br />

tipicamente indígena. Na mesma hora, outras pessoas, homens e mulheres,<br />

ergueram-se e também se puseram a dançar. Cantavam uma música e falavam<br />

em idioma indígena. Eric fez menção de levantar-se, mas Linda o deteve:<br />

- Não se preocupe, ela está bem. To<strong><strong>do</strong>s</strong> estão bem.<br />

Ele voltou a sentar-se e observou que Elder era um <strong><strong>do</strong>s</strong> que dançavam. Não<br />

demorou e to<strong><strong>do</strong>s</strong> pararam, falan<strong>do</strong> muito. O pastor tomou a palavra.<br />

- Irmãos peles-vermelhas, é com alegria que os recebemos entre nós esta<br />

noite. Ouviram a mensagem sobre o amor?<br />

Alguns daqueles que estavam de pé responderam na língua indígena, afirmativamente.<br />

O pastor prosseguiu:<br />

- Desde que chegaram até nós, têm manifesta<strong>do</strong> o ressentimento que sentem<br />

por terem si<strong>do</strong> praticamente expulsos de suas terras pelos homens brancos.<br />

Somos to<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos e, muito embora alguns de nós tenham agi<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong><br />

totalmente contrário ao amor a que nos referimos esta noite, estamos aqui para<br />

tentar ajudá-los. Deus, em seu amor infinito, quer sempre o melhor para to<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

E continuou falan<strong>do</strong> um pouco mais sobre o amor, diretamente para aquele<br />

grupo de espíritos. Eles permaneceram em silêncio. Ao final, dançaram novamente<br />

e um deles falou através de Elder:<br />

- Agradecemos por nos receberem. Muitos outros virão depois de nós, para<br />

falar aos homens que ainda estão na Terra.<br />

Depois se despediram e partiram. Aos poucos, um a um, to<strong><strong>do</strong>s</strong> voltaram<br />

aos seus bancos. Entoaram novo cântico e encerraram o culto. Stephanie, que<br />

retornou ao seu lugar auxiliada por Elder, sentou-se e, fitan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong>, indagou:<br />

- O que aconteceu?<br />

- Não se lembra?<br />

- Foi estranho, como se visse tu<strong>do</strong> de longe.<br />

204


Já a caminho de casa, estan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> na carroça, Stephanie, muda, segurava<br />

com força o braço de Eric.<br />

- Sente-se bem, minha filha? - perguntou Elder.<br />

- Um pouco confusa. Minha cabeça está pesada.<br />

- E natural. Trata-se de uma experiência muito intensa. Ela ficou calada<br />

por alguns instantes, depois indagou:<br />

- O que se passou ali dentro?<br />

- Recebemos alguns irmãos nossos, espíritos de índios peles-vermelhas,<br />

que, não sabemos como, se manifestam através de alguns de nós. Você, Stephanie,<br />

tem a capacidade de ver e ouvir os espíritos de homens que já morreram.<br />

Eles não são seres <strong>do</strong> mal, são apenas espíritos.<br />

- E o que querem?<br />

- A princípio não sabíamos; ficamos perplexos, exatamente como você está<br />

agora. Depois, com a convivência, entendemos que eles vieram a nós para<br />

aprender e lhes estamos ensinan<strong>do</strong> sobre Deus e sobre Jesus. Parece que se<br />

sentem muito bem quan<strong>do</strong> lhes falamos. Você viu hoje, não foi?<br />

- Sim...<br />

- Eles querem ouvir sobre Jesus, às vezes nos fazem perguntas típicas daqueles<br />

que estão aprenden<strong>do</strong>. São almas carentes <strong>do</strong> Evangelho, e o recebem<br />

com alegria.<br />

Stephanie se mostrava confusa e angustiada:<br />

- Como pode ser isso? Aprendi que não podemos nos comunicar com os<br />

mortos...<br />

Linda, tocan<strong>do</strong> o braço da jovem, respondeu:<br />

- Sei que é difícil; também recebemos ensinamentos nesse senti<strong>do</strong>. Todavia,<br />

não podemos ignorar aquilo que se passa todas as semanas em nossas reuniões.<br />

Não contamos às outras pessoas sobre o que acontece em nosso meio, pois<br />

não aceitariam. A grande maioria hão acredita e não compreende. Seu pai, por<br />

exemplo: não adianta contar a ele; mesmo que visse, não acreditaria. Mas não<br />

podemos ignorar aquilo que vimos e ouvimos, e sobretu<strong>do</strong> o que sentimos.<br />

Esses espíritos são irmãos nossos, que nos procuram queren<strong>do</strong> aprender sobre<br />

Deus. O que fazer? Ignorá-los? Preferimos repetir o apóstolo Paulo: "não podemos<br />

deixar de falar <strong>do</strong> que temos visto e ouvi<strong>do</strong>".<br />

Durante to<strong>do</strong> o percurso e nos dias que se seguiram, Stephanie conversou<br />

por longas horas com Elder, buscan<strong>do</strong> esclarecer suas dúvidas. Na semana<br />

seguinte, participaram da reunião, viven<strong>do</strong> aquela experiência com grande<br />

intensidade. Geórgia auxiliava a filha, fazen<strong>do</strong> baixar sua ansiedade e vibran<strong>do</strong><br />

sobre ela confiança e serenidade.<br />

205


Ao final daquele perío<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se preparavam para partir, de regresso à<br />

Pensilvânia, Stephanie abraçou Elder e agradeceu:<br />

- Muito obrigada por tu<strong>do</strong> o que me proporcionou. Volto para casa com<br />

mais esclarecimento sobre minhas experiências e, principalmente, saben<strong>do</strong> que<br />

não sou uma pessoa amaldiçoada.<br />

Elder retribuiu o cumprimento carinhoso, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Lembre-se de que Deus tem seus propósitos em tu<strong>do</strong> o que nos acontece,<br />

sempre. Confie nele. "Entrega teu caminho ao Senhor, confia nele e o mais ele<br />

fará."<br />

Stephanie acomo<strong>do</strong>u-se na carruagem e acenou pela janela, despedin<strong>do</strong>-se<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> amigos. Quan<strong>do</strong> o carro partiu, ela abraçou o mari<strong>do</strong>, que comentou:<br />

- Eu não disse que seria bom virmos?<br />

- Você já sabia de tu<strong>do</strong> o que ocorria aqui?<br />

- Quan<strong>do</strong> esteve em minha casa, Elder contou que estavam receben<strong>do</strong> visitas<br />

de espíritos, sem descrever to<strong><strong>do</strong>s</strong> os pormenores. Acho que ele tinha receio<br />

da reação de meus pais. Foi a mim que falou mais detalhadamente, e ainda<br />

assim é preciso presenciar para compreender.<br />

- E como tinha tanta certeza de que seria bom para mim?<br />

- Não sei, algo me dizia que deveríamos vir. Stephanie sorriu, encostan<strong>do</strong> a<br />

cabeça no ombro de Eric:<br />

- Devem ter si<strong>do</strong> os espíritos que lhe falaram ao coração -sugeriu.<br />

Viran<strong>do</strong>-se para ela, ele disse:<br />

- Será? Não tinha pensa<strong>do</strong> nisso.<br />

Depois de longa jornada, os <strong>do</strong>is finalmente chegaram à pequena cabana de<br />

madeira, que fora toda reconstruída pelos mãos <strong>do</strong> próprio Eric, com a ajuda <strong>do</strong><br />

pai. Não ficava muito longe da casa onde Stephanie morara com a família.<br />

Quan<strong>do</strong> ela pisou no singelo alpendre, sentiu forte vertigem e quase desmaiou,<br />

sen<strong>do</strong> apoiada pelos braços fortes <strong>do</strong> esposo. Ele a acomo<strong>do</strong>u em uma cadeira<br />

de balanço que colocara bem na frente da casa, voltada para a linda paisagem.<br />

Depois de alguns instantes, a moça respirou fun<strong>do</strong> e disse ao mari<strong>do</strong>:<br />

- Já me sinto melhor. Deve ser cansaço da viagem.<br />

Virou a cabeça e avistou a casa <strong><strong>do</strong>s</strong> pais. Ao notar uma das irmãs corren<strong>do</strong><br />

para dentro da casa e a mãe à porta, a chamá-la, sentiu forte aperto no peito e<br />

teve vontade de chorar. Uma angústia indefinível a <strong>do</strong>minou e, sentin<strong>do</strong> me<strong>do</strong>,<br />

pediu:<br />

- Por favor, queri<strong>do</strong>, me abrace.<br />

Eric aconchegou-a ternamente, acarician<strong>do</strong> seus belos e macios cabelos.<br />

Preocupa<strong>do</strong>, perguntou:<br />

- O que foi, querida, não se sente bem?<br />

206


- Não sei o que sinto... Apenas me abrace forte. Deixan<strong>do</strong>-se envolver pelo<br />

amoroso abraço, Stephanie conseguiu afastar os temores da mente, e o casal<br />

entrou, enfim, no novo lar.<br />

QUARENTA E UM<br />

ALGUNS QUILÔMETROS ao sul <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>, sentada na varanda, a<br />

nobre e elegante senhora via os netos brincarem. Ora ajudava um, ora outro;<br />

separava os <strong>do</strong>is quan<strong>do</strong> se punham a brigar. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>, observava<br />

no horizonte o sol se pôr, derraman<strong>do</strong> seu brilho intenso pela enorme plantação,<br />

que se fazia <strong>do</strong>urada. A propriedade espalhava-se por vasta área e ia<br />

muito além de onde os olhos alcançavam da varanda da espaçosa residência.<br />

Deborah captava cada som <strong>do</strong> entardecer, e deteve-se sorrin<strong>do</strong> ao escutar o<br />

canto lamentoso <strong><strong>do</strong>s</strong> negros. Matthew se aproximou, resmungan<strong>do</strong>.<br />

- Os negros me incomodam com esses cânticos.<br />

- E um canto tão triste quanto belo, quase um lamento... Não se enternece<br />

ao escutá-los? Não sei o que dizem, mas sinto como se expressassem profundas<br />

emoções... De saudade, acima de tu<strong>do</strong>.<br />

A nobre senhora, que aparentava perto de sessenta anos, parou por instantes<br />

a refletir no que acabara de dizer e então prosseguiu:<br />

- Por certo devem sentir falta de seu lar, na África, e <strong><strong>do</strong>s</strong> parentes e amigos<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> quais foram violentamente arranca<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Matthew encarou a esposa - a quem amava e, por isso, era incapaz de contrariar<br />

- e ponderou:<br />

- Não se engane, minha querida, eles não se sentem da mesma forma que<br />

nós. Não pode compará-los conosco.<br />

Fitan<strong>do</strong> o esposo com seus olhos azuis de intenso brilho, a mulher replicou:<br />

- E por que não? São pessoas idênticas a nós.<br />

- Não são idênticas a nós! São negros!<br />

Erguen<strong>do</strong>-se devagar, ela tomou o chapéu que depositara sobre uma pequena<br />

mesa, repleta de vasos de flores, e sustentan<strong>do</strong> com tristeza o olhar <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong>, falou:<br />

- Quem não deve enganar-se é você, Matthew. Eles são pessoas idênticas a<br />

nós e haveremos de dar contas ao Cria<strong>do</strong>r pelo mal que lhes causamos. Você<br />

sabe bem que por mim jamais teríamos um escravo sequer. E olhe que nosso<br />

governo dá sinais claros de que também não aprova a escravidão. Proibiu a<br />

importação de escravos, e peço a Deus que muito em breve ele acabe de vez<br />

com essa situação, abolin<strong>do</strong> a escravidão e libertan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> os escravos!<br />

207


- Não sabe o que está dizen<strong>do</strong>. Toda a prosperidade de nossa cidade, de<br />

nosso esta<strong>do</strong> e até de nosso país depende em grande parte <strong>do</strong> trabalho desses<br />

homens, que foram cria<strong><strong>do</strong>s</strong> por Deus para nos servir!<br />

- Você está iludi<strong>do</strong>, meu esposo. Nosso país prospera nos esta<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> norte,<br />

quase sem escravos.<br />

- Eles ainda têm muitas fazendas com escravos.<br />

- Sabe que o norte praticamente acabou com eles. São livres e contrata<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Porque interessa às empresas ter gente livre e assalariada para comprar os<br />

produtos que produzem em larga escala. De fato, a indústria não para de crescer<br />

por lá.<br />

Tocan<strong>do</strong> com ternura e suavidade o braço <strong>do</strong> esposo, ela sugeriu:<br />

- Embora eu ame nossa terra natal, a terra de nossos pais, fico pensan<strong>do</strong> se<br />

não seria melhor irmos embora daqui. Vender tu<strong>do</strong> e ir para o norte, onde você<br />

poderia investir nossos recursos na indústria e fazê-los crescer ainda mais, sem<br />

a necessidade de nenhum escravo.<br />

O mari<strong>do</strong> fitou-a incrédulo.<br />

- Já não é feliz aqui? Ela o abraçou.<br />

- Sou feliz ao seu la<strong>do</strong> e de nossos filhos e netos... Não obstante, você sabe<br />

o quanto sofro ao ver esses homens e mulheres, que julgo serem exatamente<br />

como nós, aprisiona<strong><strong>do</strong>s</strong> e trata<strong><strong>do</strong>s</strong> de forma tão cruel, tão desumana...<br />

- Em consideração a você, são muito bem trata<strong><strong>do</strong>s</strong>. Nunca machuco nenhum<br />

deles, são alimenta<strong><strong>do</strong>s</strong> com dignidade e moram em casas bem confortáveis,<br />

ao invés de viverem amontoa<strong><strong>do</strong>s</strong> como em outras fazendas.<br />

Deborah baixou os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong> e balbuciou:<br />

- Não é suficiente para mim. Desejo que to<strong><strong>do</strong>s</strong> sejam livres, ten<strong>do</strong> seus direitos<br />

respeita<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Direitos?! Que direitos? São escravos... Você está exageran<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong><br />

de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os limites...<br />

- É exatamente a isso que me refiro: são escravos, seres humanos escraviza<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

pela ganância daqueles que querem enriquecer a qualquer custo, e ainda<br />

justificam os seus atos esconden<strong>do</strong>-se atrás da Bíblia e <strong>do</strong> próprio Deus!<br />

- Não é verdade! Somos abençoa<strong><strong>do</strong>s</strong> por Deus, que nos dá tu<strong>do</strong> o que temos.<br />

Se temos muito, é porque fomos muito abençoa<strong><strong>do</strong>s</strong>, apenas isso. Buscamos<br />

fazer a vontade divina em tu<strong>do</strong>, e o To<strong>do</strong>-Poderoso nos abençoa, fazen<strong>do</strong>nos<br />

prosperar.<br />

- Somos to<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, Matthew, to<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, filhos <strong>do</strong> mesmo Pai, e temos<br />

de nos amar e respeitar mutuamente...<br />

O mari<strong>do</strong> interrompeu-a, visivelmente irrita<strong>do</strong>.<br />

208


- Chega, estou cansa<strong>do</strong>. Não sei de onde você tira essas idéias... Continua<br />

len<strong>do</strong> jornais que chegam lá <strong>do</strong> norte, só pode ser isso. Vêm de lá esses conceitos<br />

libertários, abolicionistas... Não imagino que ouça tais opiniões <strong>do</strong> pastor<br />

de nossa igreja, nem nas reuniões de mulheres que freqüenta...<br />

Deborah ficou pensativa. Matthew ia prosseguir, quan<strong>do</strong> uma jovem empregada<br />

aproximou-se e informou:<br />

- Senhora, o jantar está pronto. Podemos servi-lo? Deborah olhou para o<br />

mari<strong>do</strong>, que, ignoran<strong>do</strong> a jovem, respondeu:<br />

- Sim, já vamos entrar. Depois, fitou a esposa.<br />

- Não concor<strong>do</strong> que tenha da<strong>do</strong> a liberdade a ela. Isso é um péssimo exemplo<br />

e um precedente perigoso.<br />

- Ela é como a filha que não tive, jamais poderia deixá-la continuar escrava.<br />

<strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, prometi à sua mãe, quan<strong>do</strong> morreu em meus braços, que<br />

tomaria conta da menina. Sarah é uma excelente moça, você não pode queixarse<br />

dela.<br />

- Não é dela que me queixo, minha esposa, e sim da senhora, que não se<br />

<strong>do</strong>bra à minha vontade. Agora vamos jantar, que essa conversa já me cansou.<br />

Após sentarem-se à mesa, longo silêncio se seguiu. Foi Deborah quem, por<br />

fim, o rompeu:<br />

- Quan<strong>do</strong> Sean chegará de Nova York?<br />

- Não sei. Seu filho está cada vez mais ausente da fazenda. Faz essas viagens<br />

com freqüência, e quan<strong>do</strong> retorna fica pouco e já parte novamente. A<br />

única vantagem é que tem negocia<strong>do</strong> bons escravos para nós.<br />

- Como consegue?<br />

- São fazendeiros <strong>do</strong> norte que, ao contrário <strong>do</strong> que a senhora me disse há<br />

pouco, não libertam seus escravos e sim os vendem para o sul. Acontece to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os dias.<br />

- Não é verdade...<br />

- E verdade, sim. Eles os vendem para o sul saben<strong>do</strong> que continuarão sen<strong>do</strong><br />

escravos. Aqueles ianques não querem perder nada...<br />

- Isso deve ocorrer muito ocasionalmente...<br />

- Sean me disse que está ganhan<strong>do</strong> um bom dinheiro com a venda de escravos<br />

para as fazendas <strong>do</strong> sul. A quantidade não deve ser assim tão pequena.<br />

Indignada, Deborah protestou:<br />

- Ele não deveria estar aqui, ao seu la<strong>do</strong>, ajudan<strong>do</strong>-o com os nossos negócios,<br />

ao invés de se meter a comercializar homens e mulheres?<br />

- Você conhece Sean melhor <strong>do</strong> que eu e sabe que ele tem um temperamento<br />

inquieto e insatisfeito. Nunca está contente: quer sempre mais. Já tivemos<br />

diversas discussões a respeito, mas nossa fortuna é pequena demais para<br />

209


ele. Eu mesmo não o compreen<strong>do</strong>. O que temos é suficiente para garantir o<br />

futuro de nossos filhos e <strong><strong>do</strong>s</strong> filhos deles... Mas não para Sean. Ele quer mais,<br />

muito mais. Inclusive me disse que será candidato nas próximas eleições. Quer<br />

enveredar pela política.<br />

- Sabe que não concor<strong>do</strong>, não é?<br />

- Tampouco eu, porém Sean é um homem de mais de trinta anos e não posso<br />

ditar-lhe o que fazer...<br />

- Deveria ter se casa<strong>do</strong> com Vivian e forma<strong>do</strong> uma família. Teria si<strong>do</strong> melhor<br />

para ele.<br />

Juntan<strong>do</strong>-se aos pais na conversa, Andrew disse:<br />

- Hum... Ele não quer nem ouvir falar nisso. Outro dia afirmou que só se<br />

casará se encontrar uma jovem com quem possa juntar fortuna, ou mesmo alguém<br />

de família de políticos que possa contribuir para seus planos.<br />

Abraçan<strong>do</strong> o filho que acabara de chegar, Deborah comentou:<br />

- Não acredito que seu irmão se mostre assim tão calculista! Sinceramente<br />

não o reconheço! Jamais lhes dei tal educação e não me conformo que ele esteja<br />

se tornan<strong>do</strong> essa pessoa cada vez mais mesquinha...<br />

- É, mãe, vai ter de se contentar comigo... Abrin<strong>do</strong> um largo e <strong>do</strong>ce sorriso,<br />

a mãe respondeu:<br />

- Não brinque com coisa tão séria. Amo você e seu irmão e desejo a felicidade<br />

para os <strong>do</strong>is, ainda que não creia no caminho que Sean escolheu para<br />

alcançá-la.<br />

O pai, que se mantivera cala<strong>do</strong>, convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos comer, o jantar já vai esfriar e detesto comida requentada...<br />

Andrew sentou-se ao la<strong>do</strong> da esposa e <strong><strong>do</strong>s</strong> filhos. Jane estava grávida de<br />

oito meses e logo daria à luz mais <strong>do</strong>is bebês.<br />

Distante dali, em um bar em Nova York próximo ao porto, Sean negociava<br />

mais uma remessa de escravos.<br />

- Quero que me tragam mais escravos. Tenho compra<strong>do</strong>res para tantos<br />

quantos conseguirem.<br />

- Vamos trazer o que for possível. Temos si<strong>do</strong> fiscaliza<strong><strong>do</strong>s</strong> antes de entrar<br />

no país e já tivemos de lançar muitos deles ao mar, para evitar que fôssemos<br />

pegos.<br />

- Malditos ianques.<br />

- Olhe como fala!<br />

- Desculpe, é força <strong>do</strong> hábito. É que esses nortistas estão prejudican<strong>do</strong><br />

meus negócios e de minha família. Não queremos a libertação <strong><strong>do</strong>s</strong> escravos, e<br />

sim liberdade para comercializá-los à vontade.<br />

210


- Aproveite enquanto pode, Sean, pois a abolição virá. To<strong><strong>do</strong>s</strong> com quem<br />

temos conversa<strong>do</strong> aqui no norte estão fazen<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> para torná-la realidade.<br />

Se for preciso, pegarão em armas contra os sulistas, pode ter certeza. Até o<br />

próprio presidente é um abolicionista.<br />

- Eu sei disso.<br />

- Pois então, não vejo escravos no futuro de nosso país. Buscan<strong>do</strong> desviar o<br />

rumo da conversa para algo mais produtivo,<br />

Sean informou.<br />

- Vou iniciar minha carreira política. Já está mais <strong>do</strong> que na hora.<br />

- E seu pai, vai apoiá-lo?<br />

- Não preciso <strong>do</strong> apoio de meu pai. O contraban<strong>do</strong> me deu dinheiro suficiente<br />

para fazer o que bem entender da minha vida e asseguro: não descansarei<br />

enquanto não acabar com essa história de abolição.<br />

- Não seja estúpi<strong>do</strong>, Sean, essa é uma causa perdida. O progresso virá de<br />

um jeito ou de outro, e os negros serão liberta<strong><strong>do</strong>s</strong>. Na maioria <strong><strong>do</strong>s</strong> esta<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong><br />

norte já não há escravos nas fazendas...<br />

- E você aceita isso? Esção espalha<strong><strong>do</strong>s</strong> por aí, andan<strong>do</strong> perdi<strong><strong>do</strong>s</strong> pelas cidades,<br />

muitos a mendigar o pão. Estavam melhor como escravos. Vocês, aqui<br />

no norte, não têm noção <strong>do</strong> problema em que estão se meten<strong>do</strong>. E só porque<br />

têm o apoio daquele idiota <strong>do</strong> presidente, acham que podem mandar no país.<br />

Isso não é verdade. Estão plantan<strong>do</strong> muita desgraça. Pois saibam que, no sul,<br />

ninguém cederá; lutaremos pelos nossos direitos!<br />

A conversa se estendeu noite afora, e já era madrugada alta quan<strong>do</strong> Sean,<br />

cambalean<strong>do</strong> e completamente alcooliza<strong>do</strong>, saiu <strong>do</strong> salão e foi para o hotel que<br />

ocupava sempre que ia a Nova York a negócios.<br />

QUARENTA E DOIS<br />

QUASE DOIS MESES se passaram. Logo que os recém-casa<strong><strong>do</strong>s</strong> voltaram para<br />

casa, Eric assumiu suas tarefas, auxilian<strong>do</strong> o sogro no trabalho com a terra,<br />

conforme se comprometera, enquanto Stephanie buscava realizar com esmero<br />

e dedicação to<strong>do</strong> o trabalho <strong>do</strong>méstico. Pegou com a mãe as melhores receitas<br />

que conhecia e também com a sogra as que Eric mais apreciava. Esmerava-se<br />

em aprender todas e preparava jantares especiais para o mari<strong>do</strong>, que amava<br />

muito; desejava ardentemente construir uma vida de felicidade em seu lar. Apesar<br />

disso, o pai continuava a tratá-la com indiferença e a mãe não lhe dava a<br />

devida atenção, ocupada com as próprias tarefas e com as outras filhas. Stephanie<br />

sentia-se cada vez mais distante daquela família, e muitas vezes per-<br />

211


guntava-se, em silêncio, por que Deus a fizera nascer naquela casa, onde não<br />

era querida... Mesmo len<strong>do</strong> a Bíblia diariamente, em companhia <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>,<br />

trazia no coração muitas dúvidas que a leitura das escrituras não conseguia<br />

esclarecer.<br />

Ela e Eric sonhavam com um lar pleno de alegria. Em tu<strong>do</strong> procuravam<br />

obedecer às orientações que haviam aprendi<strong>do</strong> desde pequeninos, e faziam<br />

suas orações pela manhã e à noite. Stephanie não entendia boa parte <strong>do</strong> que lia<br />

e, secretamente, discordava de outras tantas questões; mas jamais, em hipótese<br />

alguma, verbalizava seus mais secretos pensamentos. Não compreendia Deus e<br />

não conseguia aproximar-se dele, que lhe parecia extremamente distante e severo.<br />

Em conformidade com tu<strong>do</strong> o que aprendera, ela o temia profundamente.<br />

Tinha me<strong>do</strong> <strong>do</strong> inferno e da condenação eterna, e, por outro la<strong>do</strong>, não sentia<br />

alegria em servir ao Cria<strong>do</strong>r; não confiava nele. Eric, ao contrário, parecia entregar-se<br />

de coração a tu<strong>do</strong> o que aprendia, ten<strong>do</strong> sempre disposição para socorrer<br />

qualquer um que dele precisasse. Stephanie o admirava por isso, porém<br />

não desejava ser como ele.<br />

Em uma manhã de sába<strong>do</strong>, estavam no vilarejo próximo fazen<strong>do</strong> algumas<br />

compras. Toda a família havia i<strong>do</strong>: David, Lóris, as irmãs menores, Stephanie<br />

e Eric. A jovem esposa estava no armazém compran<strong>do</strong> os suprimentos para o<br />

mês, quan<strong>do</strong> viu um lin<strong>do</strong> e caro corte de seda joga<strong>do</strong> sobre um <strong><strong>do</strong>s</strong> balcões.<br />

Foi até lá e o tocou. Sentin<strong>do</strong> a suavidade, levou-o ao rosto e apreciou a beleza<br />

<strong>do</strong> teci<strong>do</strong>. Olhou para o próprio vesti<strong>do</strong>, bem ao gosto <strong><strong>do</strong>s</strong> quakers da época:<br />

simples, austero e sem nenhum tipo de adereço. E desejou ver-se linda dentro<br />

de um vesti<strong>do</strong> feito com aquela fazenda. Virou-se para o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> armazém:<br />

- Quanto custa este teci<strong>do</strong>, senhor?<br />

O homem ia responder, mas David, que havia entra<strong>do</strong> segun<strong><strong>do</strong>s</strong> antes sem<br />

ser percebi<strong>do</strong> pela jovem, interveio rispidamente.<br />

- Por que pergunta, Stephanie? Não está cansada de saber que uma jovem<br />

temente a Deus deve se vestir castamente, e não como uma mulher <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>?<br />

Sua cobiça me preocupa...<br />

Stephanie sentiu o sangue sumir-lhe <strong>do</strong> rosto e, tomada de vergonha, deixou<br />

a loja em lágrimas. Eric, que <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora a esperava, viu-a choran<strong>do</strong> e<br />

a abraçou.<br />

- O que foi, querida? O que houve? Não se sente bem outra vez? Estou fican<strong>do</strong><br />

preocupa<strong>do</strong>... Você passa mal a toda hora...<br />

David, que vinha logo atrás, passou por eles dizen<strong>do</strong>:<br />

- Tome conta de sua esposa, Eric, pois ela deseja o que não deve possuir...<br />

Mantenha-a sob seus olhos, ou ela lhe fugirá ao controle e a ira <strong>do</strong> To<strong>do</strong>-<br />

Poderoso atingirá vocês <strong>do</strong>is.<br />

212


Stephanie ia responder ao pai, quan<strong>do</strong> Eric percebeu sua irritação e a deteve,<br />

toman<strong>do</strong> a dianteira:<br />

- Não se preocupe, reveren<strong>do</strong>, vou conversar com minha esposa. Ela não<br />

tem se senti<strong>do</strong> muito bem.<br />

Com desdém incomum, o pai respondeu:<br />

- Isso é normal nela. Cada hora é um problema diferente. E não venha reclamar<br />

comigo. Eu o avisei: ela é uma jovem problemática.<br />

Eric não esperou que o reveren<strong>do</strong> terminasse. Tomou Stephanie pelo braço<br />

e a conduziu até a carroça. Ela dizia, rangen<strong>do</strong> os dentes, entre lágrimas:<br />

- Eu não fiz nada... Só apreciei um teci<strong>do</strong> de seda. Isso é peca<strong>do</strong>? Firme,<br />

Eric a advertiu:<br />

- Por favor, controle-se, Stephanie. Não vamos nos indispor com sua família,<br />

isso dificultaria tu<strong>do</strong> para nós. Tenha paciência.<br />

- E o que tenho ti<strong>do</strong> toda a minha vida, mas ele me odeia...<br />

- Não é verdade.<br />

- Você não percebe? Ele tem ódio de mim...<br />

- O reveren<strong>do</strong> é um homem de Deus, extremamente zeloso de suas responsabilidades<br />

como ministro... Só isso.<br />

Ela insistia, entre lágrimas:<br />

- Ele não me ama...<br />

Eric a acomo<strong>do</strong>u na carroça e seguiram para casa. A jovem não disse uma<br />

só palavra no caminho de volta. Quan<strong>do</strong> se aproximavam <strong>do</strong> destino, Lóris<br />

perguntou:<br />

- Não se sente bem, Stephanie? Não falou nada durante o caminho.<br />

Sem deixar que a filha respondesse, David contou o aconteci<strong>do</strong>, e a mãe<br />

igualmente a aconselhou:<br />

- Não deve aborrecer-se com seu pai, ele sempre quer seu bem. As mulheres<br />

devem ser castas e puras, simples e honestas, sem atrair qualquer atenção<br />

sobre si mesmas, servin<strong>do</strong> a Deus e aos seus mari<strong><strong>do</strong>s</strong> com devoção.<br />

Temen<strong>do</strong> que a esposa se irritasse novamente, Eric respondeu:<br />

- Stephanie não se aborreceu com o pai, tenho certeza. O que acontece é<br />

que ela não tem esta<strong>do</strong> bem ultimamente. An<strong>do</strong> preocupa<strong>do</strong> com ela.<br />

Viran<strong>do</strong>-se para trás para olhar a filha, Lóris indagou:<br />

- E o que está sentin<strong>do</strong>?<br />

Outra vez foi Eric quem respondeu:<br />

- Stephanie sente tonturas e náuseas constantes. Ás vezes, precisa deitar-se,<br />

pois sente que vai desmaiar.<br />

Lóris abriu largo sorriso e observou:<br />

- Tenho nota<strong>do</strong> você diferente... Deus seja louva<strong>do</strong>!<br />

213


David olhou para a esposa com ar interrogativo, da mesma forma que os<br />

outros. Ela exultou:<br />

- Não estão perceben<strong>do</strong>? Stephanie vai ter um bebê! Ajeitan<strong>do</strong>-se melhor<br />

no assento, a jovem ficou mais pálida <strong>do</strong> que já estava e balbuciou:<br />

- Não é possível!<br />

- Claro que é! Deus abençoa seu lar e sua união dan<strong>do</strong>-lhe um filho! Isso é<br />

maravilhoso!<br />

Sem saber o que dizer, Stephanie fitou o mari<strong>do</strong>. Este comentou entusiasma<strong>do</strong>:<br />

- Será que é isso, <strong>do</strong>na Lóris? Seria maravilhoso!<br />

- Observan<strong>do</strong> melhor, e depois <strong>do</strong> que acabaram de me contar, não tenho<br />

dúvida. Stephanie está esperan<strong>do</strong> bebê.<br />

Ela ficou muda e Eric a abraçou mais forte, sem conter a alegria.<br />

- Se isso for verdade, serei o homem mais feliz <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>!<br />

A jovem tremia <strong><strong>do</strong>s</strong> pés à cabeça e sentia um me<strong>do</strong> incontro-lável, que foi<br />

<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o seu ser; vieram vozes de sua mente, ; que lhe diziam:<br />

- Agora é que as coisas vão ficar boas de fato! Você vai começar a saber o<br />

que é sofrer...<br />

Aterrorizada, ela passou a desferir golpes com as mãos, como se socasse o<br />

vento:<br />

- Parem, parem com isso, vão embora, por favor... Assusta<strong>do</strong> com aquele<br />

comportamento da esposa, Eric indagou:<br />

- O que foi? O que está acontecen<strong>do</strong>, querida?<br />

Stephanie não respondia, sequer escutava o mari<strong>do</strong>. Tomada de assombro e<br />

pavor, continuava agredin<strong>do</strong> o ar, como se espantasse moscas ao re<strong>do</strong>r. E gritava:<br />

- Chega, parem! Vão embora!<br />

Ciente da capacidade que tinha a esposa de ouvir e ver aqueles que já haviam<br />

cruza<strong>do</strong> os portões da morte, Eric a abraçou e orou em silêncio, suplican<strong>do</strong><br />

que Jesus os amparasse naquela hora; aos poucos a moça se acalmou e silenciou.<br />

Quan<strong>do</strong> a carroça parou em frente à pequena cabana, David, com as rédeas<br />

nas mãos, advertiu o genro, que a segurava ainda trêmula:<br />

- Cuide bem de sua esposa, rapaz; ela é muito <strong>do</strong>ente e fraca de espírito. O<br />

demônio a <strong>do</strong>mina com grande facilidade.<br />

No intuito de justificar o comportamento da esposa, Eric respondeu sereno:<br />

- Ela ficará bem, não se preocupe. Está emocionada demais e se descontrolou,<br />

mas ficará bem.<br />

Depois, aju<strong>do</strong>u-a a entrar em casa e acomo<strong>do</strong>u-a na cama. Stephanie mantinha<br />

os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong> e, tremen<strong>do</strong>, dizia assustada:<br />

214


- Eles estão aqui, outra vez. Posso ouvi-los. Eric sentou-se ao seu la<strong>do</strong> e<br />

indagou:<br />

- E o que desejam?<br />

- Querem me destruir...<br />

- Por quê?<br />

- Não sei... Algo sobre nosso filho...<br />

- Nosso bebê, você quer dizer... Acha que está mesmo grávida?<br />

- Eu não queria, não agora... mas eles dizem que teremos um filho...<br />

- Um menino?<br />

Com os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong>, ela acenou afirmativamente. O mari<strong>do</strong> a abraçou.<br />

- Por que tanta tristeza? Será maravilhoso! Eu a amo tanto, minha querida,<br />

que poderia dar a minha vida em troca da sua...<br />

Tocan<strong>do</strong> com ternura o ventre da esposa, disse com reverência:<br />

- E já amo esse filho que você começa a gerar...<br />

Stephanie abraçou-o forte e ele percebeu que to<strong>do</strong> o seu corpo tremia.<br />

- O que foi? Por que tanto me<strong>do</strong>?<br />

- Não sei, Eric, só sei que estou muito assustada...<br />

QUARENTA E TRÊS<br />

LOGO A GRAVIDEZ foi confirmada: Eric e Stephanie teriam um filho. Os<br />

meses que se seguiram foram de profunda angústia para a jovem. Sofria desmaios<br />

constantes, tinha enjôos e mal podia alimentar-se. Cada vez que percebia<br />

a barriga maior, chorava convulsivamente por horas. Seu abatimento era<br />

evidente. Com olhos fun<strong><strong>do</strong>s</strong> e grandes olheiras, pálida e magra, no sexto mês<br />

de gestação mal se notava a barriga, que ela, por sua vez, fazia questão de esconder<br />

em largos vesti<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Naquela manhã ensolarada, estava particularmente indisposta Sentou-se na<br />

ponta <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> templo, bem no fun<strong>do</strong>, para ter facilita<strong>do</strong> o acesso à saída.<br />

Suspirava sem parar; quanto mais o pai falava <strong>do</strong> púlpito, mais ela se movimentava<br />

na cadeira, impaciente. Ouvia gargalhadas ao seu re<strong>do</strong>r e vozes que<br />

diziam:<br />

- Você vai morrer... Por que não tira essa criança de uma vez?... Não percebe<br />

que vai morrer, se não a tirar?<br />

- Tem de acabar com ela, antes que ela acabe com você...<br />

Não suportan<strong>do</strong> o mal-estar, Stephanie desmaiou. Eric se preparava para<br />

levá-la para fora, quan<strong>do</strong> David pediu <strong>do</strong> púlpito:<br />

215


- Não, meu filho, deixe-me conversar com ele.<br />

Eric acomo<strong>do</strong>u novamente a esposa desfalecida e calou-se. Da-vid chegou<br />

bem perto e, com a Bíblia em uma das mãos, ordenou:<br />

- Deixe minha filha em paz! Vá embora! Nós não o queremos aqui!<br />

Em esta<strong>do</strong> de sonambulismo, envolvida por entidades espirituais que trabalhavam<br />

para Núbio, ela agarrou o pescoço <strong>do</strong> pai e disse:<br />

- Não se meta nisso! Ela não terá este filho!<br />

Envolvi<strong>do</strong> por Geórgia e outros amigos espirituais, Eric ergueu-se e, oran<strong>do</strong><br />

em pensamento, afastou a esposa <strong>do</strong> pai e tomou-a nos braços. Saiu dizen<strong>do</strong>:<br />

- E melhor irmos agora...<br />

David permaneceu de pé, com a Bíblia nas mãos, paralisa<strong>do</strong> sob o forte<br />

impacto da energia emanada daquelas entidades. No caminho de volta, enquanto<br />

Stephanie continuava desacordada, Geórgia falava aos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> espirituais<br />

de Eric:<br />

- Não a deixe sozinha agora. Ela precisa de você. Leve sua mãe para cuidar<br />

dela dia e noite. Stephanie não pode ficar sozinha, sob risco de cometer contra<br />

si e contra essa criança um ato <strong>do</strong> qual se arrependerá profundamente. Dê a ela<br />

seu apoio.<br />

Captan<strong>do</strong> as palavras da Geórgia, ele foi direto para a casa <strong><strong>do</strong>s</strong> pais. Quan<strong>do</strong><br />

estes chegaram, depois <strong>do</strong> culto, Emma indagou:<br />

- Como ela está, meu filho? Ficamos muito preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Está deitada; desperta, mas muito nervosa, preocupada com o que possa<br />

ter feito na frente de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Foi horrível.<br />

- Eu sei.<br />

-To<strong><strong>do</strong>s</strong> ficaram tão assusta<strong><strong>do</strong>s</strong>... Até mesmo o reveren<strong>do</strong>... Meu Deus...<br />

- Mãe, preciso de sua ajuda.<br />

- O que posso fazer?<br />

- Quero ficar aqui com Stephanie, até que o bebê nasça. Ela não pode ficar<br />

sozinha.<br />

Emma hesitou, e Eric insistiu:<br />

- Por favor, mãe.<br />

- E quanto a Lóris?<br />

- Stephanie precisa de cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> constantes, Lóris tem as meninas pequenas...<br />

- E eu tenho seu irmão.<br />

- Ela precisa de ajuda, mãe.<br />

- Mas tem uma família.<br />

Fixan<strong>do</strong> os olhos da mãe, Eric suplicou:<br />

216


- Por favor, mãe, precisamos de você... Emma sorriu e, comovida, abraçou<br />

o filho:<br />

- Claro, vou cuidar dela. Afinal, é meu neto ou minha neta...<br />

Para Stephanie, os dias que se seguiram foram longos e torturantes; as noites,<br />

cheias de pesadelos e perturbação. Ao se aproximar o final <strong><strong>do</strong>s</strong> nove meses,<br />

estava exausta e mal conseguia erguer-se da cama.<br />

Certa noite, perto de três horas da madrugada, a jovem começou a gemer<br />

de <strong>do</strong>r. A sogra constatou: a hora havia chega<strong>do</strong>. Orientou o filho:<br />

- Vá buscar Lóris e diga que o bebê vai nascer.<br />

- Precisamos de mais alguém?<br />

- Sim, vá buscar Míriam também. Foi ela quem me aju<strong>do</strong>u a trazer você e<br />

seu irmão ao mun<strong>do</strong>. Ela poderá ajudar.<br />

Eric retornou algum tempo depois com Lóris e Míriam. A madrugada foi<br />

longa, entrecortada de gritos e gemi<strong><strong>do</strong>s</strong>. O sol raiava com to<strong>do</strong> o esplen<strong>do</strong>r<br />

quan<strong>do</strong> um choro abafa<strong>do</strong> de criança soou no quarto. Ansioso, Eric levantouse<br />

e foi até a porta <strong>do</strong> aposento. A criança chorava baixinho, e ninguém abria.<br />

Ele não suportou e bateu. Não teve resposta. Bateu de novo e perguntou:<br />

- Como estão?<br />

Após longo silêncio, Míriam abriu a porta devagar, apoian<strong>do</strong> Lóris, que<br />

chorava copiosamente. Eric empalideceu:<br />

- O que foi? Algum problema com Stephanie? Ela não agüentou?<br />

- Sua esposa vai ficar bem. Está exausta, mas ficará bem. Ela está <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong><br />

e deverá repousar até que tenha condições de...<br />

- E o que foi, então?<br />

Emma apareceu à porta; igualmente com lágrimas a lhe escorrerem pela<br />

face alva, chamou:<br />

- Entre, meu filho, venha.<br />

- O que foi, mãe?<br />

- Seu filho...<br />

- O que foi mãe? Ele morreu? -Não.<br />

- Graças e Deus.<br />

Levan<strong>do</strong> Eric até a criança sem que Stephanie os ouvisse, ela abriu, os panos<br />

que envolviam a criança no berço e disse, tentan<strong>do</strong> controlar a emoção que<br />

a <strong>do</strong>minava:<br />

- Seu filho não é perfeito.<br />

Eric fitou a criança sem braços e sem pernas, no berço. Com o imenso amor<br />

que naquele momento lhe nascia <strong>do</strong> coração, tomou-o nos braços ternamente<br />

e, levan<strong>do</strong>-o de encontro ao peito, disse num sussurro, entre lágrimas:<br />

217


- Não se preocupe, meu filho, vou cuidar de você. Não importa J como você<br />

seja, eu o amo de to<strong>do</strong> o coração, meu pequeno Daniel.<br />

Geórgia e outras entidades espirituais, que acompanhavam o processo de<br />

reencarnação daquele que fora Constantino, vibravam intensas energias sobre<br />

Eric, procuran<strong>do</strong> fortalecê-lo naquela hora de prova. Depois de o pai passar<br />

longo tempo com a criança nos braços, Míriam aproximou-se e o aconselhou:<br />

- Preparei um chá bem forte para Stephanie. Quan<strong>do</strong> ela acordar, terá de<br />

saber da situação, pois logo precisará amamentar o bebê. Devo ir agora. Seu<br />

pai vai me levar, Eric, não se preocupe.<br />

Lóris, por sua vez, sentia-se desfalecer. O que diria a David? Já não aceitava<br />

a filha e agora o neto... Não sabia o que fazer. Ao ver Míriam sain<strong>do</strong>, levantou-se.<br />

- Vou também. David precisa de notícias, deve estar inquieto. Emma limpou<br />

as lágrimas e disse, inconformada:<br />

- Stephanie precisa de você, Lóris.<br />

A outra estacou na porta por alguns instantes, e então se virou para Emma:<br />

- Eu não posso - falou .<br />

Sem olhar para trás, saiu com o sogro da filha e Míriam. Eric olhou a mãe<br />

e foi buscar o chá para colocá-lo ao la<strong>do</strong> de Stephanie. Algum tempo depois<br />

ela despertou e chamou pelo mari<strong>do</strong>, que lhe tomou as mãos entre as suas:<br />

- Estou aqui, meu amor. Afagan<strong>do</strong>-lhe os cabelos, dizia:<br />

- Vai ficar tu<strong>do</strong> bem, querida, tu<strong>do</strong> bem. Tome este chá; é para ajudá-la na<br />

recuperação.<br />

Ela bebeu, depois se recostou na cama e perguntou: -E o bebê?<br />

- Está <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Mais tarde vai acordar com fome. É bom que descanse<br />

também, para poder alimentá-lo.<br />

Ela balançou afirmativamente a cabeça e recostou-se no travesseiro. A<strong>do</strong>rmeceu<br />

logo, sob o torpor <strong>do</strong> chá e também <strong><strong>do</strong>s</strong> passes magnéticos que recebia<br />

da equipe espiritual que a auxiliava. Geórgia aju<strong>do</strong>u seu corpo espiritual<br />

a desprender-se <strong>do</strong> corpo físico e sentan<strong>do</strong>-se ao seu la<strong>do</strong> na cama, envolveu-a<br />

em <strong>do</strong>ces vibrações de amor.<br />

- Quem é você? - indagou Stephanie. - Eu a conheço... De onde? O que está...<br />

- Escute-me, querida, com atenção. Sou alguém que a ama muito, infinitamente.<br />

Envolvida pelas <strong>do</strong>ces vibrações de amor, a jovem respondeu:<br />

- Posso sentir... Geórgia...<br />

- Sim, querida, aqui estou eu, como em to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias, desde o seu nascimento.<br />

218


Abraçan<strong>do</strong>-se àquela que fora sua mãe em encarnação pregressa, ela balbuciou:<br />

- Como sinto sua falta...<br />

- Eu sei, mas estamos sempre juntas... Agora, filha, precisa ser muito forte.<br />

É chega<strong>do</strong> o momento de receber Constantino em sua vida outra vez. Lembrase?<br />

Stephanie estremeceu e arregalou os olhos azuis. Geórgia interveio:<br />

- Não tenha me<strong>do</strong> dele.<br />

- Ele vai me matar outra vez...<br />

- Não poderá. Vai precisar muito de você, de seu amor.<br />

- Ele vai acabar comigo de novo...<br />

- Não poderá. Venha até aqui.<br />

Levan<strong>do</strong> a jovem até o bebê, mostrou-lhe as imperfeições físicas <strong>do</strong> recémnasci<strong>do</strong><br />

e disse:<br />

- Não poderá fazer mal algum. <strong>Além</strong> das limitações físicas, sua mente está<br />

comprometida pelo mal que causou à humanidade. Ele resgata débitos contraí<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

há muitas encarnações, e seu perispírito ainda traz profundas marcas das<br />

faltas contra a lei divina.<br />

Ao ver a condição deplorável daquele ser, Stephanie soltou um grito de<br />

horror. Geórgia a amparou e pediu:<br />

- Aceite com fé o desafio que tem à sua frente. E importante para ambos a<br />

interdependência que terão. Seu perdão e seu amor ajudarão Constantino a<br />

reequilibrar-se. E você, filha, terá a oportunidade de aprender a amar e a dedicar-se<br />

a outra criatura com devoção, a servir o semelhante em nome de Deus.<br />

Não pode imaginar o quanto isso poderá contribuir para seu progresso espiritual,<br />

se - e somente se - o fizer sem revolta.<br />

Assustada, ela respondeu:<br />

- Vou tentar... Não sei se conseguirei...<br />

- Estaremos aqui para apoiá-la...<br />

Daniel gritou de fome e Stephanie despertou; de imediato sentou-se na cama,<br />

assustada. Eric, ao seu la<strong>do</strong>, indagou:<br />

- Como se sente, Stephanie?<br />

Confusa com o que supunha ser um sonho, mas guardan<strong>do</strong> vivaz sensação<br />

<strong>do</strong> que acabara de viver, disse:<br />

- O bebê está choran<strong>do</strong>, precisa mamar.<br />

Enquanto Emma os contemplava em silêncio, Eric ergueu-se e trouxe a criança<br />

até a cama. Antes de colocá-lo nos braços da esposa, balbuciou:<br />

- Precisa saber de uma coisa, querida... Ele...<br />

219


Erguen<strong>do</strong> os olhos rasos de lágrimas que lhe escorriam pela face, Stephanie<br />

emen<strong>do</strong>u:<br />

- Ele é <strong>do</strong>ente e imperfeito, não é? O mari<strong>do</strong> assentiu com a cabeça.<br />

- Traga-o aqui - disse ela.<br />

Com cuida<strong>do</strong> Eric colocou o bebê nos braços da mãe. Ela abriu o cobertor<br />

que o envolvia e, constatan<strong>do</strong> seus defeitos físicos, apertou-o de encontro ao<br />

peito. E choran<strong>do</strong> convulsivamente, implorou:<br />

- Meu Deus... Meu Deus... Ajude-me...<br />

Eric abraçou-se a ela e chorou também. Emma saiu <strong>do</strong> quarto, deixan<strong>do</strong> os<br />

três a sós.<br />

Era o momento difícil e ao mesmo tempo sublime <strong>do</strong> necessário reencontro<br />

de almas no palco terrestre.<br />

QUARENTA E QUATRO<br />

DEBORAH AGUARDAVA a família na porta da mansão. Vestida com elegância<br />

e simplicidade, seguran<strong>do</strong> o chapéu nas mãos, pediu:<br />

- Michael, por favor, chame Sean novamente, ou nos atrasaremos para o<br />

culto. Já faz bastante tempo que não o assistimos to<strong><strong>do</strong>s</strong> juntos, e não vou deixá-lo<br />

para trás.<br />

Descen<strong>do</strong> as escadas com um sorriso maroto nos lábios, Sean falou:<br />

- Não se preocupe, já estou aqui, mãe. Pode ir na frente, vou logo depois.<br />

- De mo<strong>do</strong> algum. Quero você senta<strong>do</strong> ao meu la<strong>do</strong> na igreja. Por favor,<br />

meu filho, venha.<br />

Sem poder resistir ao <strong>do</strong>ce convite da mãe, Sean estendeu o braço para que<br />

a mãe o segurasse:<br />

- Está bem, vamos.<br />

Sentada em uma das primeiras fileiras, Deborah cantava um de seus hinos<br />

prediletos. Ao louvar os encantos <strong>do</strong> céu, sentia-se transportada para lugares<br />

de extrema beleza, como se pudesse vê-los e senti-los com perfeição. Sua alegria<br />

se fazia ainda maior por ter a família completa ao seu la<strong>do</strong>. A devoção a<br />

Deus e o amor ao próximo eram características marcantes de sua personalidade.<br />

Atuava incansavelmente junto às mulheres da igreja, em trabalho incessante<br />

volta<strong>do</strong> para os menos favoreci<strong><strong>do</strong>s</strong>. Não podia saber de uma família carente<br />

que em seguida já a estava visitan<strong>do</strong> com alimentos, remédios e roupas. Sua<br />

dedicação ao próximo não tinha limites e se estendia a qualquer um que necessitasse,<br />

inclusive os negros. Isso a tornava alvo de críticas das outras mulheres<br />

e até <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> de sua igreja, que uma vez a aconselhara:<br />

220


- Deveria ser mais cautelosa, irmã Deborah. Uma mulher em sua posição<br />

precisa preservar-se.<br />

- O que quer que eu faça, reveren<strong>do</strong>? - retrucara a sorrir. - Que deixe de ajudar?<br />

- Não, apenas que saiba ajudar. Faça-o através <strong>do</strong> grupo de nossa igreja, e<br />

não por sua própria iniciativa.<br />

- Mas eu estou sempre apoian<strong>do</strong> as atividades das senhoras...<br />

- Eu sei.<br />

- Pois então...<br />

- Atenha-se a essas atividades.<br />

- Não posso deixar de atender aqueles que necessitam.<br />

- A senhora se excede...<br />

- Não me lembro de Jesus ter dito que devemos escolher a quem ajudar.<br />

Num fun<strong>do</strong> suspiro, ele dissera:<br />

- Temo que ainda venha a ter problemas com essa sua impulsi-vidade...<br />

- Estou fazen<strong>do</strong> algo de erra<strong>do</strong>?<br />

Sem olhá-la nos olhos, o religioso respondera:<br />

- Não diga que não foi avisada...<br />

Deborah só não era hostilizada com agressividade pelas demais mulheres<br />

da comunidade porque era muito rica, o que não a livrava de embaraços e desconfortos<br />

decorrentes de sua conduta.<br />

Ao terminarem de cantar, sentaram-se. Deborah acomo<strong>do</strong>u-se no banco e<br />

olhou o filho com extrema<strong>do</strong> carinho. Amava seus filhos, mas tinha atenção<br />

especial para com Sean, aquele filho que lhe parecia sempre tão difícil e rebelde.<br />

Desde pequeno fora difícil e de personalidade arredia. Ela o educara com<br />

amor e firmeza, apontan<strong>do</strong> constantemente a direção <strong>do</strong> bem. Todavia, já em<br />

tenra idade Sean demonstrava sua tendência agressiva e seu caráter orgulhoso.<br />

Mesmo assim, nada alterava o comportamento de Deborah, que lhe dava amor<br />

incondicional e dedicação incomparável.<br />

Ao longo <strong><strong>do</strong>s</strong> anos aquele amor desprendi<strong>do</strong> de alguma forma alcançou o<br />

coração <strong>do</strong> filho, que passou a respeitar a mãe, o que não fazia quan<strong>do</strong> ainda<br />

menino.<br />

Ao colocar o livrinho com os cânticos no banco Sean observou a mãe de<br />

canto de olho, perceben<strong>do</strong> sua satisfação. Ele olhava para o pastor, que fazia o<br />

sermão daquela manhã, mas sua mente estava muito distante. Pensava em sua<br />

candidatura e mentalmente tecia estratégias para atingir seus objetivos.<br />

Amigos espirituais presentes àquele culto <strong>do</strong>minical inspiravam as palavras<br />

nos lábios <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong>, com a intenção de tocar o coração de Sean. Todavia,<br />

como em tantas outras ocasiões, o esforço se fazia vão, pois ele sequer<br />

221


escutava o que era dito. Deborah, em pensamento, rogava o auxilio de Deus<br />

para seu filho, sabe<strong>do</strong>ra de que seu coração estava afasta<strong>do</strong> das verdades divinas.<br />

Embora fosse assíduo membro da igreja, dan<strong>do</strong> fielmente seu dízimo e<br />

outras ofertas, ela sabia que Sean não se <strong>do</strong>brava de fato ao Cria<strong>do</strong>r. Olhan<strong>do</strong><br />

para o filho ela percebeu quão distante ele estava e, baixan<strong>do</strong> a cabeça, pediu<br />

ainda mais ajuda à Deus para aquele ama<strong>do</strong> ser. Enquanto orava, intenso halo<br />

a contornava, irradian<strong>do</strong> luminosidade. Ainda que aquela luz não pudesse ser<br />

vista com os olhos, to<strong><strong>do</strong>s</strong> dela se beneficiavam.<br />

Após o almoço, Deborah, Sean e Michael estavam senta<strong><strong>do</strong>s</strong> na biblioteca,<br />

aprecian<strong>do</strong> um chá gela<strong>do</strong>. Ao terminar, Deborah comentou:<br />

- Estou preocupada com você, meu filho.<br />

- Que novidade, não?<br />

- Não brinque com meu coração.<br />

- Você está sempre preocupada comigo, mãe, e eu já tenho quase quarenta<br />

anos! Deveria saber que não há razão para isso.<br />

O pai interveio:<br />

- Você conhece sua mãe, Sean.<br />

- Se conheço...<br />

Sem dar atenção aos comentários, ela prosseguiu:<br />

- Pois sua idade também me traz preocupações. Já deveria ter constituí<strong>do</strong><br />

um lar e uma família.<br />

Ajeitan<strong>do</strong>-se na poltrona confortável, Sean depositou a xícara vazia na mesinha<br />

próxima e disse:<br />

- Não preten<strong>do</strong> casar-me agora; tenho outros planos. Os pais o fitavam em<br />

silêncio. Ele prosseguiu:<br />

- Vou entrar para a carreira política. Deborah ergueu-se, alterada:<br />

- Nem pensar, Sean... Não faça isso. Michael encarou-o e considerou:<br />

- Sabe que é muito dispendioso. Embora nossa fortuna seja vultosa, não<br />

preten<strong>do</strong> desperdiçá-la em algo tão conturbada como uma carreira política. Foi<br />

para isso que se preparou na universidade, estudan<strong>do</strong> Direito?<br />

Com a tranqüilidade de quem tem o controle, Sean respondeu:<br />

- Exatamente, foi com essa intenção que estudei Direito. Deborah suspirou,<br />

irrequieta.<br />

- Não acredito.<br />

- Pois acredite, mãe.<br />

- Já disse que não preten<strong>do</strong> despender nossa fortuna para isso... - reiterou o<br />

pai.<br />

222


- E não vai precisar. Tenho meus próprios recursos. Contanto que você me<br />

garanta os recursos de que preciso para sobreviver, o investimento na carreira<br />

política eu mesmo farei.<br />

Espantada, a mãe indagou:<br />

- Mas de que quantia está falan<strong>do</strong>?<br />

- Muito dinheiro, mãe. Eu tenho o suficiente para definir como meta a presidência<br />

<strong>do</strong> país.<br />

Sorrin<strong>do</strong>, satisfeito, o pai disfarçou:<br />

- Quer chegar bem alto, não é?<br />

- O mais alto que puder. Quero ser presidente deste país.<br />

- E pode-se saber com que interesse, meu filho? - questionou a mãe.<br />

Erguen<strong>do</strong>-se, o rapaz foi até uma estante. Pegou um livro e o abriu na primeira<br />

página, onde havia a bandeira americana estampada. Virou o livro para<br />

os pais e disse:<br />

- Quero ir muito longe, até onde eu puder chegar... Como esta águia...<br />

Ao escutar as palavras <strong>do</strong> filho, Deborah sentiu um calafrio percorrer-lhe o<br />

corpo. Fitou-o com tristeza e mais uma vez indagou:<br />

- Como foi que conquistou tal fortuna, meu filho?<br />

- Negocian<strong>do</strong> escravos <strong>do</strong> norte para o sul.<br />

- Tantos assim?<br />

- Você não imagina, mãe, como esses escravos são rentáveis.<br />

- Os proprietários <strong>do</strong> norte os libertaram, até onde eu sei.<br />

- Alguns, não to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Muitos dizem que libertaram os escravos, quan<strong>do</strong> de<br />

fato os venderam para o sul.<br />

Falan<strong>do</strong> com a esposa, Michel comentou:<br />

- Eu não lhe disse? Esses ianques sujos são mentirosos e ines-crupulosos.<br />

- São insuportáveis. Mas eles terão o que merecem, quan<strong>do</strong> eu ocupar uma<br />

cadeira no sena<strong>do</strong>.<br />

Deborah, entristecida, caminhou até o filho; pousou a mão em seu ombro e<br />

pediu:<br />

- Pense muito bem, meu filho, no que está fazen<strong>do</strong> com sua vida. Precisa<br />

caminhar para Deus e não contra ele.<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

Como se soubesse de todas as ações criminosas <strong>do</strong> filho, ela explicou:<br />

- De suas escolhas, Sean. Precisa aprender a colocar o seu coração no bem,<br />

ou o bem dentro <strong>do</strong> seu coração. Amar a Deus e a seus semelhantes, controlar<br />

o orgulho e a vaidade.<br />

Furioso, Sean retorquiu com rispidez:<br />

223


- Estou cansa<strong>do</strong> de seus sermões, ouviu bem? Cansa<strong>do</strong>. Hoje mesmo deixarei<br />

esta casa.<br />

Dessa vez foi o pai quem pediu:<br />

- Não, meu filho, por favor... Michael foi impedi<strong>do</strong> de concluir:<br />

- Não suporto mais esses sermões constantes. Vou embora. Tenho uma<br />

propriedade ao sul e vou para lá, dirigir minha própria fazenda. Quero liberdade<br />

para fazer o que desejo.<br />

Sem esperar que os pais dissessem mais nada, ele saiu. Com lágrimas nos<br />

olhos, Deborah viu o filho deixar a sala e depois a casa. Michael encarou a<br />

esposa e não se conteve:<br />

- Viu o que você fez? - acusou. - Está satisfeita agora? Ele vai embora e a<br />

culpa é sua. Esses seus sermões constantes cansam qualquer um.<br />

- Quero o bem <strong>do</strong> meu filho, e o seu também.<br />

- Você é como ele: faz o que quer e bem entende.<br />

- O que quer dizer?<br />

- O reveren<strong>do</strong> tem me fala<strong>do</strong> de seus arroubos para ajudar toda e qualquer<br />

pessoa, sem avaliar de quem se trata.<br />

- Você parece desconhecer a parábola <strong>do</strong> bom samaritano. Devemos auxiliar<br />

a to<strong><strong>do</strong>s</strong>, sem distinção de qualquer tipo. E o que faço.<br />

- Você desafia nossa comunidade, nosso reveren<strong>do</strong> e até nossa família. Faz<br />

tu<strong>do</strong> o que quer, sem se preocupar com o impacto de suas ações.<br />

- Eu socorro pessoas necessitadas, apenas isso.<br />

- Qualquer uma... Mesmo aquelas que não fazem parte de nossa comunidade.<br />

- Sim.<br />

- Mesmo de outras religiões, que blasfemam contra Deus, não aceitan<strong>do</strong><br />

seus ensinamentos.<br />

- São seres humanos como nós, nossos irmãos.<br />

- Não. São criaturas de Deus, não filhos dele. Somente nós, os cristãos,<br />

somos filhos de Deus, e você sabe disso.<br />

- Meu queri<strong>do</strong> Michael, vejo e sinto de mo<strong>do</strong> diverso. No meu entendimento,<br />

somos to<strong><strong>do</strong>s</strong> filhos de Deus, e por isso devemos nos ajudar mutuamente.<br />

- Está blasfeman<strong>do</strong>.<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> somos iguais perante Deus, independentemente de religião, cor,<br />

raça...<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, irrita<strong>do</strong>, Michael respondeu:<br />

224


- Não, senhora minha esposa. Temos uma essência diferente, somos predestina<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por Deus para possuirmos o céu. Somos agracia<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo Altíssimo,<br />

que nos abençoa, confirman<strong>do</strong> nossa superioridade.<br />

- Para mim, isso sim é que é uma blasfêmia.<br />

- Pois não sou só eu quem pensa dessa forma. To<strong><strong>do</strong>s</strong> em nossa comunidade<br />

comungam a mesma idéia, e você sabe bem disso. Você, Deborah, é a única<br />

que defende esses conceitos inconcebíveis, que só podem vir de satanás.<br />

Ela conservou a serenidade:<br />

- Como, então, posso ter tanta paz no coração? Paz e confiança plena em<br />

Deus.<br />

Michel sentenciou, antes de deixar a esposa sozinha na sala: -Você é muito<br />

pior <strong>do</strong> que seu filho...<br />

- Deborah ficou junto à porta até ver o mari<strong>do</strong> se afastar; depois retornou<br />

para a biblioteca e sentou-se, cansada. Observou pela janela o azul intenso <strong>do</strong><br />

céu, emoldura<strong>do</strong> pelas copas verdes das árvores; escutou com atenção o chilreio<br />

das aves e fechou os olhos. Suspirou fun<strong>do</strong>, pensan<strong>do</strong> em como Michael e<br />

Sean não conseguiam compreendê-la. Como era diferente sua maneira de ver o<br />

mun<strong>do</strong>... O que para ela se mostrava tão claro, para eles parecia inaceitável.<br />

Silenciou os pensamentos, buscan<strong>do</strong> sentir a presença divina na natureza e em<br />

tu<strong>do</strong> o que a cercava.<br />

Amava a Deus acima de tu<strong>do</strong> e aos seus semelhantes como irmãos. Entretanto,<br />

por mais que fosse compatível com a lei divina, o fato de tratar a to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

como irmãos era incompreensível até mesmo para o reveren<strong>do</strong> da Igreja Menonita<br />

da qual faziam parte. Escutou ao longe o canto triste <strong><strong>do</strong>s</strong> negros que<br />

trabalhavam em sua propriedade, e forte emoção a <strong>do</strong>minou. Não podia aceitar<br />

aquela condição de escravidão. Sabia que Deus não a aprovava e tu<strong>do</strong> faria<br />

para beneficiar aqueles homens e mulheres que sofriam tanto.<br />

Transcorri<strong>do</strong> longo tempo, ergueu-se e caminhou pela biblioteca. Pegan<strong>do</strong><br />

a Bíblia, voltou a sentar-se, fechou os olhos e pediu que Deus amparasse seus<br />

esforços e a orientasse. Estaria no caminho certo, ainda que em oposição ao<br />

mari<strong>do</strong>, ao filho e aos líderes religiosos? Abriu o livro e leu:<br />

"Senhor, qual o maior mandamento? Amarás ao senhor teu Deus de toda a<br />

tua alma e de to<strong>do</strong> o teu entendimento. E o outro, semelhante a este, é: amarás<br />

ao teu próximo como a ti mesmo..."<br />

Fechou o livro e levou-o até o peito; apertan<strong>do</strong>-o junto ao coração e balbuciou,<br />

suplicante:<br />

- Ajude-me, senhor, por favor.<br />

Forte torpor apossou-se de sua mente, suave sonolência a <strong>do</strong>minou e ela<br />

a<strong>do</strong>rmeceu. Retirada por Helena e outros companheiros espirituais, contem-<br />

225


plou o ambiente ao seu re<strong>do</strong>r e sorriu, logo reconhecen<strong>do</strong> os amigos. Abraçou<br />

Helena e falou:<br />

- Meu bom anjo...<br />

- Acalme seu coração, minha querida irmã. Lembre-se de que cada ser escolhe<br />

seu caminho sobre a Terra. E possível incentivar, apoiar, compreender e<br />

per<strong>do</strong>ar, mas não decidir por ninguém. A escolha é individual, e cada um colherá<br />

sempre as conseqüências de seus atos, bons ou maus. Podemos ajudar,<br />

sem jamais interferir nas situações, especialmente nas decisões. Pode ajudar<br />

Licínio, mas não lhe cabe impedir que ele faça as próprias escolhas...<br />

- Sean...<br />

- Sim, Constância, você vem se esforçan<strong>do</strong>. Desde que ele nasceu, tem ofereci<strong>do</strong><br />

o melhor de si.<br />

- Mesmo assim, ele não me compreende e está prestes a entrar em uma rota<br />

perigosa.<br />

- São pesadas as sombras de ódio e desejo de poder que ainda o envolvem.<br />

Ele se colocou a serviço de nossos irmãos menos felizes, que acreditam no<br />

mal, e mudar de direção implica transformação interior. Por ora Licínio não<br />

tem essa consciência. Caminha sob o <strong>do</strong>mínio das trevas.<br />

Com lágrimas nos olhos, Constância indagou:<br />

- E o que posso fazer para ajudá-lo? Abraçan<strong>do</strong> a companheira, Helena aconselhou:<br />

- Continue a amá-lo e a orar por ele, como tem feito; apenas afaste a aflição<br />

e a angústia de sua alma. Confiemos em Deus. To<strong><strong>do</strong>s</strong> temos nosso tempo<br />

para reencontrar o Cria<strong>do</strong>r. Alguns demoram mais, outros retornam mais depressa.<br />

- Licínio é tão resistente ao bem... Parece que to<strong><strong>do</strong>s</strong> os meus esforços na<br />

presente experiência terrena têm si<strong>do</strong> vãos.<br />

- Nenhum esforço no bem é perdi<strong>do</strong>, Constância, e você sabe disso. To<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os atos bons que praticamos são como sementes de luz que plantamos à nossa<br />

volta. Você tem planta<strong>do</strong> essas sementes, em forma de amor e paz no coração<br />

de Sean, desde o dia em que o recebeu como filho. Apesar de ser ári<strong>do</strong> o terreno<br />

daquele coração, as sementes permanecerão em esta<strong>do</strong> latente; não morrerão.<br />

Quan<strong>do</strong> o solo <strong>do</strong> coração de nosso irmão estiver mais propício, essas<br />

sementes começarão a germinar. Tenhamos fé e confiança em Deus, que há<br />

milênios vem semean<strong>do</strong> em nossas almas, sem desanimar.<br />

Ambas estavam envolvidas em suaves energias, que reconfor-taram o coração<br />

amoroso de Constância. Ela demorou a quebrar o silêncio:<br />

- Há algo mais a me afligir.<br />

- Eu sei: os escravos.<br />

226


- Não consigo aceitar essa situação... O que posso fazer?<br />

- Prossiga no exemplo <strong>do</strong> amor a eles, e ajude sempre. A transformação<br />

que você deseja não pode ser feita com a luta e a revolta. Ela precisa vir <strong>do</strong><br />

amor e <strong>do</strong> respeito ao próximo. Essa é a nossa luta, essa é a luta <strong>do</strong> Mestre: a<br />

transformação silenciosa, mas profunda, <strong>do</strong> coração humano. Somente ela trará<br />

as conquistas perenes de que a humanidade necessita.<br />

- E a luta abolicionista, é uma causa que devo defender?<br />

- A liberdade de nossos irmãos africanos, sim, com toda a certeza. Todavia,<br />

a luta pelo ideal abolicionista, da maneira como vem sen<strong>do</strong> conduzida por<br />

muitos, poderá não levar a bons resulta<strong><strong>do</strong>s</strong>. Muitos defendem a abolição visan<strong>do</strong><br />

aos próprios interesses econômicos, sem ser movi<strong><strong>do</strong>s</strong> pela consciência<br />

da exploração perpetrada contra as criaturas escravizadas. Sempre que nos<br />

entregamos cegamente às idéias, deixan<strong>do</strong> de ver seu senti<strong>do</strong> mais amplo e<br />

suas conseqüências possíveis, podemos incorrer em graves enganos, por melhores<br />

que elas nos pareçam. Por isso, Constância, permaneça a serviço de<br />

nossos irmãos escravos, não a serviço daqueles que desejam usá-los ainda<br />

mais.<br />

Constância balançou a cabeça em sinal afirmativo e abraçou a amiga:<br />

- Obrigada, Helena, por sua dedicação.<br />

E fitan<strong>do</strong> os outros companheiros espirituais que ali estavam, despediu-se<br />

deles com emoção:<br />

- Obrigada a to<strong><strong>do</strong>s</strong> pela ajuda constante.<br />

Constância retornou ao corpo físico, que permanecera a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, e logo<br />

despertou. Com profun<strong>do</strong> sentimento de gratidão e de paz, ergueu-se resoluta,<br />

saben<strong>do</strong> como deveria conduzir-se dali por diante. A caminho da cozinha, encontrou<br />

Sarah, que chorava, amparada por outra escrava.<br />

- O que aconteceu? - indagou a patroa.<br />

- Nada, senhora, nada. Deborah insistiu:<br />

- Como, nada? O que foi, Sarah? Por favor, conte-me.<br />

Assustada, a jovem, que segurava uma das mãos junto <strong>do</strong> peito, não ousava<br />

falar. Perceben<strong>do</strong> que protegia a mão, Deborah pegou firme em seu pulso, e de<br />

novo inquiriu:<br />

- O que houve? O que aconteceu?<br />

Puxan<strong>do</strong> o braço da jovem, viu feia queimadura, que tomava toda a palma<br />

da mão.<br />

- Meu Deus, como ocorreu isso? Sarah a puxou com força e disse:<br />

- Não foi nada...<br />

Surpreenden<strong>do</strong> o me<strong>do</strong> nos olhos e na voz da menina, ela a olhou fixo:<br />

- Foi Sean, não foi? Por quê?<br />

227


Depois de ligeiro silêncio, a outra escrava explicou:<br />

- O senhor Sean queria levar Sarah... Queria obrigá-la a ir com ele para sua<br />

casa, sem que a senhora soubesse. Como ela não quis, ele a queimou com brasas<br />

<strong>do</strong> fogão.<br />

Num suspiro magoa<strong>do</strong>, Deborah não reteve as grossas lágrimas que lhe<br />

desciam pela face. Abraçou a jovem:<br />

- Pode deixar que eu mesma vou cuidar dela.<br />

- Não precisa, senhora...<br />

Ignoran<strong>do</strong> as objeções, ela entrou com Sarah na cozinha e pediu à outra<br />

moça que trouxesse ervas que plantava; fez curativos e ao terminar pediu:<br />

- Não odeie Sean por isso, Sarah, deixe que a providência Divina cuide dele.<br />

Concordan<strong>do</strong> com a cabeça, a jovem escrava permaneceu calada. Deborah<br />

orientou:<br />

- Agora quero que vá para o seu quarto e descanse; tratei a queimadura,<br />

mas ela foi muito profunda e precisamos cuidar para que não se transforme em<br />

coisa pior. Você só retornará às suas atividades quan<strong>do</strong> eu autorizar, entendeu<br />

bem? Não quero que aceite ordem de mais ninguém, estou sen<strong>do</strong> bem clara?<br />

Quero ser informada imediatamente de qualquer coisa que aconteça.<br />

Por conhecerem o bastante a sua senhora, os outros escravos lhe asseguraram<br />

obediência. Cansada, Deborah foi para seus aposentos e no caminho passou<br />

pelo quarto vazio <strong>do</strong> filho. Entrou, abriu os armários e os viu vazios. Abriu<br />

o baú, também vazio. Ele levara tu<strong>do</strong>; não tinha intenção de voltar. Deborah<br />

sentou-se na cama <strong>do</strong> filho e acariciou o lençol desfeito. Tomou o travesseiro<br />

entre as mãos e levou-o ao rosto, sentin<strong>do</strong> nele o cheiro <strong>do</strong> filho. Colocou-o de<br />

volta no lugar, desamassan<strong>do</strong> o teci<strong>do</strong> da fronha. Avistou sobre a cômoda um<br />

exemplar da Bíblia que presenteara ao filho, que ficara para trás, e pediu em<br />

pensamento:<br />

- Por favor, meu Pai, cuide de meu filho... Ajude-o.<br />

O impetuoso Sean chegou em sua propriedade e, reunin<strong>do</strong> serviçais e escravos,<br />

esclareceu que se mudava em definitivo e assegurou que logo traria<br />

uma governanta para assumir to<strong><strong>do</strong>s</strong> os afazeres da casa.<br />

A partir daquele dia, passou a dedicar-se com afinco à carreira política. Tinha<br />

grandes influências, era um hábil estrategista, sabia empregar o poder <strong>do</strong><br />

dinheiro para angariar apoio. Não demorou muito a ser eleito e em pouco tempo<br />

tornou-se poderoso e influente político <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> da Virgínia. Em paralelo,<br />

prosseguiu com o contraban<strong>do</strong> de escravos, aumentan<strong>do</strong> sua fortuna e seu poder.<br />

Deborah via o filho raramente, apenas em ocasiões especiais, como dia de<br />

ação de graças, Natal e aniversário dela e <strong>do</strong> pai, quan<strong>do</strong> ele vinha para as ce-<br />

228


lebrações tradicionais da família. Nessas ocasiões, a mãe não perdia a oportunidade<br />

de <strong>do</strong>ar-lhe amor e simpatia, compreensão e benevolência.<br />

QUARENTA E CINCO<br />

O PEQUENO DANIEL CHORAVA. Stephanie olhou para o berço e, preparan<strong>do</strong><br />

a comida <strong>do</strong> menino, falou alto:<br />

- Já vou, estou in<strong>do</strong>. Você come demais, Daniel. Vive com fome. Não<br />

compreen<strong>do</strong>; não faz muito esforço com seu corpo, e sempre tem apetite.<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> berço, olhou o pequeno ser que completara nove meses.<br />

Nesse tempo to<strong>do</strong> ela não tivera coragem de levá-lo à igreja. Logo ficou<br />

saben<strong>do</strong> das reações de to<strong><strong>do</strong>s</strong> à notícia de seu nascimento; especialmente <strong>do</strong><br />

pai, que não veio visitar o neto. Stephanie sentia-se extremamente magoada<br />

pela família e por toda a comunidade que a vira crescer. Com um olhar demora<strong>do</strong><br />

ao bebê que gritava, pensou, como pensava to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias desde o nascimento<br />

<strong>do</strong> filho: por que Deus fizera aquilo com ela? O que a levara a merecer<br />

tamanha punição? Estaria sen<strong>do</strong> penalizada por sua capacidade de ver os espíritos?<br />

Por mais que se esforçasse, não compreendia. Por que ela? Seus sonhos<br />

haviam si<strong>do</strong> destruí<strong><strong>do</strong>s</strong> e tornara-se escrava daquele ser que para tu<strong>do</strong> dependia<br />

dela, como sempre dependeria.<br />

Todas as manhãs, depois que Eric saía, Stephanie se olhava no espelho e só<br />

via abatimento, cansaço e desalento. Por mais que o mari<strong>do</strong> procurasse estimulá-la,<br />

sentia-se só e sem esperança. Sentia que sua vida, seus planos estavam<br />

acaba<strong><strong>do</strong>s</strong>. O que poderia esperar <strong>do</strong> futuro? Lamentava-se, assim, todas as manhãs.<br />

Os dias eram longos e as horas se arrastavam. Ela cuidava <strong>do</strong> menino,<br />

mas não conseguia sentir por ele nada além de repugnância. Eric, no entanto,<br />

cercava o garoto de afeto, cuidan<strong>do</strong> dele com desvela<strong>do</strong> amor.<br />

Naquela manhã, depois de alimentá-lo, ia recolocá-lo no berço quan<strong>do</strong> Eric<br />

entrou. Ela estranhou:<br />

- Já em casa?<br />

- Vendemos toda a nossa produção, e fizemos um ótimo negócio. Seu pai<br />

ficou satisfeito. Posso tirar o dia de folga.<br />

- Até que enfim você pode ajudar-me com Daniel.<br />

- Vou levá-lo comigo até a cidade. Quero comprar alguns mantimentos e<br />

material para construir uma cerca ao re<strong>do</strong>r da casa, a fim de podermos deixar<br />

Daniel lá fora, sem tanto me<strong>do</strong> de animais.<br />

Colocan<strong>do</strong>-se diante <strong>do</strong> berço ela pediu, angustiada:<br />

- Não faça isso, por favor.<br />

229


- E por que não? Vou cuidar muito bem dele.<br />

- Eu sei disso.<br />

- Então, o que é?<br />

- E que... bem... você sabe, é...<br />

- Vamos, prepare logo o Daniel que vou levá-lo. Desse mo<strong>do</strong> você passará<br />

algum tempo tranqüila.<br />

- Não, por favor, não o leve para a vila. To<strong><strong>do</strong>s</strong> vão zombar dele, vão ver e<br />

depois falar por aí....<br />

Erguen<strong>do</strong>-se e in<strong>do</strong> na direção da esposa, que protegia o berço, Eric ponderou:<br />

- Eu enten<strong>do</strong> que queira escondê-lo de to<strong><strong>do</strong>s</strong>, mas não poderá fazer isso para<br />

sempre.<br />

- Por que não?<br />

- Ora, Stephanie, precisamos assumir nosso filho como ele é. Se Deus nos<br />

deu esse pequeno e necessita<strong>do</strong> ser para cuidarmos, devemos fazer nosso melhor<br />

por ele.<br />

Stephanie caiu em pranto convulsivo, custan<strong>do</strong> muito a se acalmar. Eric,<br />

que já se acostumara com as explosões de desespero da esposa, manteve-se<br />

cala<strong>do</strong>. Depois abraçou-a, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Sei de seu sofrimento, querida, compreen<strong>do</strong> sua decepção e sua <strong>do</strong>r; contu<strong>do</strong>,<br />

devemos confiar em Deus.<br />

- Deus não me ama, da mesma forma que meus pais. Só tenho da vida o<br />

pior...<br />

- Não é verdade. E eu? E o nosso amor? Não, Stephanie, você tem saúde,<br />

tem um lar, e tem muitos problemas, como todas as pessoas. Não desanime,<br />

por favor.<br />

Ela ficou calada, com os olhos vermelhos de chorar. Ele foi firme, pegan<strong>do</strong><br />

o bebê <strong>do</strong> berço:<br />

- Não vamos escondê-lo para sempre. Vou levá-lo comigo, assim você pode<br />

ficar mais tranqüila por aqui.<br />

Quan<strong>do</strong> Eric saía, ela segurou seu braço e pediu:<br />

- Quero ter outro filho.<br />

- Mas Daniel é muito pequeno ainda...<br />

- Não importa. Você não disse que quer uma família numerosa? Pois então,<br />

quero logo ter outros filhos, por favor, Eric.<br />

O jovem sorriu e respondeu:<br />

- Conversaremos quan<strong>do</strong> eu voltar. Se realmente estiver preparada para<br />

cuidar de Daniel e ainda dar conta de outro bebê, poderemos pensar seriamente<br />

no assunto. Pense bem, Stephanie, pois suas responsabilidades serão muito<br />

230


maiores. Não pode deixar Daniel de la<strong>do</strong>, para cuidar de outros filhos. Ele precisa<br />

muito de você. Caso se sinta realmente pronta para isso, poderemos tentar<br />

outra vez.<br />

Ela deu ligeiro sorriso e recebeu um beijo no rosto.<br />

- E assim que gosto de ver minha esposa - brincou Eric. Despediu-se, beijan<strong>do</strong>-a<br />

suavemente nos lábios, e saiu com o filho<br />

na cesta que utilizavam para transportá-lo. Stephanie os observou da varanda<br />

até desaparecerem. Tinha vontade de gritar que o mari<strong>do</strong> não levasse<br />

aquele bebê disforme para a vila, pois sabia que não somente o pequenino seria<br />

trata<strong>do</strong> com desprezo, como também ela própria seria considerada uma<br />

mulher amaldiçoada por Deus. Queria sair corren<strong>do</strong> atrás da carroça, porém<br />

faltavam-lhe forças; sabia que Eric estava certo: por mais que ela desejasse,<br />

não poderiam ocultar a criança para sempre. Em algum momento as pessoas,<br />

que já estavam cheias de curiosidade, o veriam e comprovariam a desgraça de<br />

sua vida.<br />

Quan<strong>do</strong> sumiram na estrada, a jovem sentou-se no chão e pôs-se a chorar,<br />

cheia de angústia e revolta. Por que aquilo havia aconteci<strong>do</strong>? O que seria dela<br />

agora? Até o final da vida teria de enfrentar o escárnio e o desprezo da comunidade<br />

na qual nascera, bem como de seus pais e de toda a sua família. Sentiase<br />

sem forças e chorou por muito tempo. De súbito, uma idéia começou a insinuar-se<br />

em sua mente: melhor seria morrer. Sim, de fato, sua vida já estava<br />

acabada... Como poderia passar daquele jeito o resto de seus dias? Não, ela<br />

não agüentaria. A morte seria a única saída para escapar da sensação insuportável<br />

de ser desprezada e olhada com desdém. Só assim não teria de enfrentar<br />

sua realidade.<br />

Sem oferecer nenhuma resistência mental àquela idéia que era contrária a<br />

tu<strong>do</strong> o que aprendera em seu lar e em sua igreja, Stephanie deu espaço livre<br />

para que os inimigos de Constantino, e também dela própria, <strong>do</strong>minassem seus<br />

pensamentos e, logo, suas emoções. A influência constante que exerciam sobre<br />

ela se tornou em idéia fixa, e, como se transformada em zumbi, começou a<br />

obedecer-lhes às ordens.<br />

- "Levante-se e vá até o celeiro. Lá, sem que ninguém a impeça, você poderá<br />

pôr fim à sua miserável existência. Não há mais nada a ser feito. É melhor<br />

morrer."<br />

Stephanie tomava aqueles pensamentos como se fossem dela própria, e obedecia.<br />

Levantou-se e foi para o celeiro. Entrou e trancou a porta, para que<br />

ninguém pudesse entrar.<br />

- "To<strong><strong>do</strong>s</strong> se sentirão culpa<strong><strong>do</strong>s</strong> por sua morte. Eles são responsáveis por isso<br />

que você está fazen<strong>do</strong>. Eles. Ninguém se dispôs a ajudá-la, to<strong><strong>do</strong>s</strong> a hostilizam,<br />

231


inclusive seus pais. Especialmente David. Esse, mais <strong>do</strong> que ninguém, será<br />

corroí<strong>do</strong> pelo remorso."<br />

A essas palavras, Stephanie sentiu inesperada satisfação. Pensou que seriam<br />

puni<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo que haviam feito a ela. Sem titubear, pegou uma corda e, subin<strong>do</strong><br />

em uma cadeira, amarrou-a na viga principal <strong>do</strong> telha<strong>do</strong>. Depois, seguin<strong>do</strong><br />

as orientações mentais que os espíritos infelizes lhe transmitiam, fez<br />

um laço com nó móvel, que ajustaria em torno <strong>do</strong> pescoço.<br />

Assim que tu<strong>do</strong> estava prepara<strong>do</strong> ela subiu na cadeira, respirou fun<strong>do</strong> e,<br />

toman<strong>do</strong> o laço nas mãos, ia levá-lo à cabeça quan<strong>do</strong> viu uma luz fulgurante<br />

surgir dentro <strong>do</strong> celeiro. Do centro da luz surgiu uma figura de mulher, que<br />

Stephanie sentiu que conhecia. No instante em que Geórgia se fez presente no<br />

ambiente e visível aos olhos de Stephanie, as forças que <strong>do</strong>minavam mentalmente<br />

a jovem se enfraqueceram e logo de desfizeram. Antes que Geórgia<br />

dissesse qualquer palavra, Stephanie sentou-se na cadeira e se pôs a chorar:<br />

- Meu Deus, o que eu vou fazer... o que estou fazen<strong>do</strong>... Geórgia aproximou-se<br />

e, envolven<strong>do</strong>-a ainda mais em suaves energias de amor e compreensão,<br />

disse:<br />

- Sei que o far<strong>do</strong> que carrega neste momento de sua existência é pesa<strong>do</strong>,<br />

mas não o está carregan<strong>do</strong> sozinha, querida. Eu, sua mãe em outras experiências<br />

terrenas, e outros amigos que desejam seu bem estamos aqui para ajudá-la<br />

com a autorização de Jesus. Não se desespere nem se revolte. Confie e persevere.<br />

Não desista novamente, minha filha. Você já desistiu muitas vezes antes,<br />

e isso a fez sofrer muito. Persevere. Mesmo que os dias sejam de muito esforço,<br />

durante a noite estaremos com você, revitalizan<strong>do</strong> suas energias e ajudan<strong>do</strong>-a<br />

a permanecer no caminho que, efetivamente, a ajudará nesta vida.<br />

- Por que isso foi acontecer comigo?<br />

- Daniel foi alguém que você prejudicou, tal como seu pai.<br />

- Como assim?<br />

- Vivemos muitas vidas, Stephanie, aqui na Terra.<br />

- Do que você está falan<strong>do</strong>?<br />

- De nossas várias encarnações. Você nunca se questionou sobre de onde<br />

viemos, o que estamos fazen<strong>do</strong> na Terra e para onde iremos ao morrer?<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas abundantes que banhavam sua face, a jovem comentou:<br />

- De vez em quan<strong>do</strong> penso nisso, mas logo acho uma questão difícil demais<br />

de compreender. Aprendi que viemos <strong>do</strong> Céu, quan<strong>do</strong> Deus nos criou, e<br />

estamos aqui para fazer a vontade dele. Iremos para o Céu se aceitarmos Jesus,<br />

e para o Inferno se não fizermos o que manda o Cria<strong>do</strong>r.<br />

Sorrin<strong>do</strong> com carinho, Geórgia comentou:<br />

232


- De certa forma, tu<strong>do</strong> isso que você disse é verdade. Só que é uma parte<br />

superficial da verdade mais ampla e profunda. To<strong><strong>do</strong>s</strong> fomos cria<strong><strong>do</strong>s</strong> por Deus,<br />

porém muito antes <strong>do</strong> momento em que nascemos na Terra. Antes de vir para<br />

cá, vivemos no plano espiritual, que não é bem o céu, e sim um lugar onde<br />

podemos encontrar entes queri<strong><strong>do</strong>s</strong>, que nos precederam na vida além <strong>do</strong> túmulo.<br />

A existência na Terra representa para nós, realmente, a busca da harmonia<br />

com as leis divinas, que desrespeitamos e ofendemos com nossas ações em<br />

outras encarnações. Por isso sofremos.<br />

Stephanie, atenta, percebia senti<strong>do</strong> em cada palavra que escutava. Geórgia<br />

continuou:<br />

- A estada aqui na Terra é para aprendermos a fazer a vontade de Deus,<br />

que nos ama infinitamente e deseja o nosso bem. Foi por saber da nossa capacidade<br />

de discernir que o Pai nos concedeu o livre-arbítrio, ou seja, o poder de<br />

escolher entre o bem e o mal, o amor e o ódio, o egoísmo e a renúncia, o orgulho<br />

e a humildade. Cabe a nós decidir se nos harmonizamos com o Cria<strong>do</strong>r,<br />

reconhecen<strong>do</strong>-o como o senhor <strong>do</strong> Universo e de todas as coisas, ou se caminhamos<br />

por nossa conta, cometen<strong>do</strong> erros e sofren<strong>do</strong> as conseqüências naturais<br />

de nossas escolhas.<br />

Geórgia fez breve pausa, depois prosseguiu, acarician<strong>do</strong> os cabelos de Stephanie.<br />

Quan<strong>do</strong> morremos, o lugar para onde vamos e a forma como nos sentimos<br />

dependem da natureza das escolhas que fizemos na Terra. Se caminhamos no<br />

bem, naturalmente iremos para a companhia daqueles que também caminharam<br />

no bem. Se fomos rebeldes a Deus, encontraremos aqueles que se assemelham<br />

a nós em rebeldia, orgulho e ódio, e certamente sentiremos como se estivéssemos<br />

no inferno de que temos referência no íntimo. A despeito disso,<br />

Deus é absolutamente justo e bom; segun<strong>do</strong> as palavras de Jesus, é amor. Amor<br />

que, como Paulo descreveu na primeira carta aos Coríntios, capítulo 13,<br />

tu<strong>do</strong> espera, tu<strong>do</strong> suporta, tu<strong>do</strong> crê... Com esse sentimento sublime, que ainda<br />

não compreendemos, Deus nos espera e nos dá outras oportunidades, permitin<strong>do</strong>-nos<br />

voltar à Terra para consertar antigos desatinos e, ao mesmo tempo,<br />

trabalhar para o progresso da humanidade.<br />

Mais serena, Stephanie estava completamente envolvida pelas energias de<br />

amor e renovação que Geórgia e os demais espíritos bons que ali agrupa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

vibravam sobre a jovem. Ela balbuciou:<br />

- O que posso fazer?<br />

- Seguir sem desânimo, minha querida. Mesmo que você viva cem anos na<br />

Terra, seu espírito é eterno e é ele que precisa aprender e crescer. Tu<strong>do</strong> aqui é<br />

233


passageiro. Somos peregrinos, e nossa verdadeira morada é o mun<strong>do</strong> espiritual,<br />

onde somos o que nossas conquistas espirituais nos permitem ser.<br />

- Não encontro forças... Tenho vergonha, sinto-me culpada...<br />

- Ame, Stephanie. Ame a Deus, a seu filho, a seu mari<strong>do</strong> e a si mesma.<br />

Não se importe tanto com o que outros dizem ou pensem. Ame. Aprenda com<br />

a existência terrena, para poder deixar a Terra em melhores condições espirituais<br />

<strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> chegou. Vimos nascen<strong>do</strong> e morren<strong>do</strong> neste planeta há muito<br />

tempo... De fato, há milênios. Chegou a hora de nos conscientizarmos da necessidade<br />

de fazer nossa parte e mudar. Precisamos atender ao convite que<br />

Jesus nos fez quase <strong>do</strong>is mil anos atrás, e deixar que o amor seja o centro de<br />

nossas vidas. Esta é a essência de to<strong>do</strong> o ensino <strong>do</strong> Mestre: o amor.<br />

Stephanie mantinha os olhos fixos em Geórgia, que acrescentou:<br />

- Se Deus me permitir, farei o possível para me tornar visível a você em<br />

outras ocasiões, lembran<strong>do</strong>-a de suas responsabilidades.<br />

- Responsabilidades?<br />

- Sim, aquelas com as quais se comprometeu antes de vir para a Terra.<br />

Concor<strong>do</strong>u em receber Constantino como filho e ajudá-lo, como forma de reparar<br />

seus erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e, principalmente, de aprender sobre amor e renúncia.<br />

- Meu peito dói muito.<br />

Geórgia abraçou-a novamente, transferin<strong>do</strong>-lhe energias salutares.<br />

- Eu sei, minha filha, essa <strong>do</strong>r está dentro <strong>do</strong> meu próprio coração. Sei como<br />

se sente, porque posso sentir seu sofrimento. Saiba, entretanto, que será<br />

através dele que você renascerá para Deus, por sua própria decisão, forte e<br />

firme, de seguir sua jornada evolutiva.<br />

Stephanie já não chorava. Seus olhos permaneciam fixos na figura luminosa<br />

de Geórgia, e seu coração sentia paz. Aquele enlevo foi repentinamente<br />

quebra<strong>do</strong> pelo som da carruagem e a voz de Eric, falan<strong>do</strong> com o filho. O tempo<br />

havia passa<strong>do</strong> e a moça não se dera conta. Olhou para a porta, desejan<strong>do</strong> ir<br />

ao encontro <strong>do</strong> filho e <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Geórgia aconselhou:<br />

- Vá, querida, vá ao encontro daqueles que Deus lhe concedeu por família.<br />

Stephanie ia em direção à porta quan<strong>do</strong> se deteve e virou-se para Geórgia:<br />

- Gostaria de ter outros filhos, será possível?<br />

- Abriria mão desse desejo, se fosse o melhor, por você e por seu filho?<br />

Captan<strong>do</strong> o que Geórgia desejava transmitir, ela respondeu:<br />

- Ficaria frustrada, sem dúvida, mas acho que sou capaz de aceitar...<br />

- Então vá, minha filha, e confie em Deus. Ele quer sempre o melhor para<br />

nós. Vá, que nos veremos outras vezes.<br />

234


Gradualmente, a imagem de Geórgia foi desaparecen<strong>do</strong> diante <strong><strong>do</strong>s</strong> olhos de<br />

Stephanie. A jovem tirou a corda <strong>do</strong> teto e lançou-a longe, depois abriu a porta<br />

e saiu, em busca <strong>do</strong> filho e <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Eric já estava no interior da casa, a procurá-la.<br />

Ela entrou e o mari<strong>do</strong>, que, de costas, colocava o bebê no berço, indagou:<br />

- Onde estava? Daniel está com fome... Virou-se e deparou com a esposa.<br />

- O que foi, Stephanie? O que aconteceu com você? Ela sorriu e respondeu:<br />

- Não sei ao certo, Eric, mas creio que recebi a visita de um anjo de Deus.<br />

Ele me impediu de cometer um ato terrível e me trouxe paz e esperança.<br />

Stephanie abraçou o mari<strong>do</strong> e disse, suspiran<strong>do</strong> profundamente:<br />

- Eu amo você, queri<strong>do</strong>.<br />

Surpreso com aquela demonstração espontânea que não era freqüente, abraçou-a.<br />

- Também a amo, querida.<br />

Depois ela caminhou até o berço. Toman<strong>do</strong> o bebê no colo, disse com voz<br />

suave e meiga, esforçan<strong>do</strong>-se ao máximo para manifestar apenas bons sentimentos:<br />

- Está com fome? Venha, meu colo será seu lugar, de agora em diante.<br />

Levou o pequeno para a cozinha e, viran<strong>do</strong>-se para Eric, pediu:<br />

- Amarre-o em meu peito, Eric.<br />

- Como assim?<br />

Ela respondeu com os olhos rasos de lágrimas:<br />

- Quero traze-lo perto <strong>do</strong> coração o mais que puder, para aprender a amá-lo.<br />

Comovi<strong>do</strong>, Eric não discutiu. Tomou algumas fraldas <strong>do</strong> filho e rasgou-as,<br />

emendan<strong>do</strong>-as, e prenden<strong>do</strong> mãe e filho apenas indagou:<br />

- Tem certeza de que consegue fazer o que precisa, sem machucá-lo?<br />

- Vou tentar, vou aprender.<br />

Sob o olhar feliz de Geórgia, a partir daquele dia Stephanie lutou para afastar<br />

<strong>do</strong> coração a revolta e o desespero. Não raro eles retornavam. Muitas e<br />

muitas vezes, no curso <strong><strong>do</strong>s</strong> anos que se seguiram, ela desanimou e teve vontade<br />

de aban<strong>do</strong>nar tu<strong>do</strong>. Nas ocasiões extremas, sentia a presença de Geórgia,<br />

reavivan<strong>do</strong> o propósito firma<strong>do</strong> naquele dia no celeiro, que nunca mais pôde<br />

esquecer. Aquele momento fora grava<strong>do</strong> para sempre em seu coração.<br />

235


QUARENTA E SEIS<br />

STEPHANIE PREPARAVA o almoço. O correr <strong><strong>do</strong>s</strong> anos e as diversas dificuldades<br />

pelas quais passara já haviam embranqueci<strong>do</strong> a maior parte <strong><strong>do</strong>s</strong> seus<br />

cabelos. Escutou o chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho. Era a única pessoa capaz de conversar<br />

com ele e entender o que dizia. Nem mesmo Eric tinha condição de se comunicar<br />

a tal ponto com o filho. Ela se aproximou e indagou:<br />

- O que foi, Daniel?<br />

Tentou traduzir a fala quase incompreensível:<br />

- Quer saber o que está acontecen<strong>do</strong>, não é?<br />

Enxugou as mãos, puxou uma cadeira e sentou-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho, para<br />

explicar.<br />

- Nosso país está em guerra. Uma guerra estúpida entre os esta<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> norte<br />

e alguns outros que se rebelaram no sul.<br />

- Pr por caqua?<br />

- Por quê? - procurou confirmar o que ele dizia.<br />

Ele aquiesceu com a cabeça e ela prosseguiu, com o olhar cansa<strong>do</strong>, soltan<strong>do</strong><br />

um fun<strong>do</strong> suspiro:<br />

- Não enten<strong>do</strong> muito bem, mas parece que o principal são os escravos. Os<br />

sulistas querem continuar ten<strong>do</strong> escravos, e nós, aqui <strong>do</strong> norte, não.<br />

Após tentativa frustrada de expressar o que pensava e sentia, Daniel rugiu<br />

irrita<strong>do</strong>. Ela ergueu-se e falou, olhan<strong>do</strong> firme para o filho:<br />

- Se vai começar a urrar de novo, volto para o que estava fazen<strong>do</strong>. Sabe<br />

que nós <strong>do</strong>is precisamos ter paciência; <strong>do</strong> contrário, não conseguimos nos entender.<br />

Daniel esforçou-se por se acalmar e ela, ao vê-lo mais controla<strong>do</strong>, disse:<br />

- Sei que também não gosta <strong><strong>do</strong>s</strong> negros. Já percebi o mo<strong>do</strong> como olha para<br />

eles quan<strong>do</strong> vêm auxiliar seu pai na lavoura.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se e voltan<strong>do</strong> para a mesa onde preparava a refeição, continuou:<br />

- Temos de aprender a respeitá-los. No norte a maioria é livre, mas muitos<br />

conseguem fugir <strong>do</strong> sul e vêm parar aqui, quase mortos.<br />

Era o início <strong>do</strong> mês de maio de 1861 e a situação no país estava tensa.<br />

Abraham Lincoln 22 acabara de ser eleito presidente <strong>do</strong> país, o que desagradara<br />

sobremaneira os esta<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> sul, que então se rebelaram e declararam-se desliga<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

da União. Os mais atentos pressentiam que algo estava por acontecer.<br />

22 Abraham Lincoln foi o 16° presidente <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>. Liderou o país de forma bemsucedida<br />

durante sua maior crise interna, a Guerra Civil Americana, preservan<strong>do</strong> a União e<br />

abolin<strong>do</strong> a escravidão.<br />

236


Stephanie silenciou e concentrava-se no preparo da refeição, quan<strong>do</strong> Eric entrou<br />

ofegante. A esposa virou-se e o fitou.<br />

- O que houve? Que tumulto é esse lá fora?<br />

E apontan<strong>do</strong> o filho com a cabeça, prosseguiu:<br />

- Daniel está aflito, queren<strong>do</strong> entender o que se passa.<br />

Eric, que agora já respirava com mais calma, respondeu:<br />

- Os confedera<strong><strong>do</strong>s</strong> atacaram o forte Sumter e o presidente está convocan<strong>do</strong><br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens saudáveis de menos de cinqüenta anos para engrossar as fileiras<br />

<strong>do</strong> exército, com o objetivo de conter e acabar com essa guerra o mais rápi<strong>do</strong><br />

possível.<br />

Stephanie sentiu o chão escapar-lhe. Sentou-se ator<strong>do</strong>ada e indagou, incrédula:<br />

- Então... estamos em guerra?<br />

- É uma guerra civil 23 , Stephanie.<br />

Faltou-lhe o fôlego e ela tentou inutilmente manter o controle. Diante <strong>do</strong><br />

pranto a que se entregou, o mari<strong>do</strong> abraçou-a com força e pediu:<br />

- Precisa ficar firme, meu amor, para poder tranqüilizar Daniel... Olhe como<br />

já está agita<strong>do</strong>. Ele depende muito de você para ficar bem.<br />

Depois de ligeira pausa, ele aduziu:<br />

- Vamos, confie. Logo estarei de volta.<br />

- E por que você deve ir? Já tem praticamente cinqüenta anos.<br />

- Tenho 48, o que me coloca dentro da convocação <strong>do</strong> presidente. Não posso<br />

me negar; outros até mais velhos <strong>do</strong> que eu estão in<strong>do</strong>, em favor da democracia,<br />

como diz o presidente.<br />

Sentin<strong>do</strong> forte aperto no peito e tomada de repentino pavor, ela abraçou o<br />

mari<strong>do</strong> e pediu veemente:<br />

- Não vá, Eric, por favor. Nós precisamos de você aqui. Eu preciso de você!<br />

Não nos deixe, por favor.<br />

Eric abraçou a esposa, procuran<strong>do</strong> acalmá-la, quan<strong>do</strong> bateram à porta. Ela<br />

agarrou-se ainda mais ao mari<strong>do</strong> e implorou:<br />

- Não abra! Não importa quem seja, não abra.<br />

As batidas tornaram-se mais fortes e Eric afastou a esposa com gentileza.<br />

Abriu a porta para encarar um solda<strong>do</strong> arma<strong>do</strong>.<br />

- Senhor, partiremos ao anoitecer. Aqui está o uniforme que deverá usar.<br />

Toman<strong>do</strong> a indumentária das mãos <strong>do</strong> solda<strong>do</strong>, ele respondeu:<br />

23 A guerra civil ocorreu nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> da América entre 1861 e 1865. Foi o conflito<br />

que causou mais mortes de norte-americanos, num total estima<strong>do</strong> de 970 mil pessoas.<br />

237


- Obriga<strong>do</strong>, estarei pronto antes <strong>do</strong> anoitecer. O solda<strong>do</strong> retirou-se e Eric<br />

dirigiu-se à esposa:<br />

- Não há nada que eu possa fazer. Estamos convoca<strong><strong>do</strong>s</strong>. Stephanie sentouse<br />

e, debruçan<strong>do</strong> a cabeça sobre os braços, chorou amargurada; sentia as forças<br />

esvaírem-se de seu corpo. O mari<strong>do</strong> abraçou-a e guar<strong>do</strong>u silêncio. Depois,<br />

ajoelhou-se e, erguen<strong>do</strong> seu rosto, falou gentil, inspira<strong>do</strong> por Geórgia:<br />

- Confio em você na minha ausência. Sei que saberá tomar as decisões certas,<br />

as melhores atitudes. Você cresceu muito ao longo desses dezenove anos,<br />

minha querida. Veja como se transformou em uma esposa, <strong>do</strong>na de casa e mãe<br />

dedicada. Superou dificuldades, preconceitos, me<strong><strong>do</strong>s</strong>. Aprendeu a lidar com<br />

sua faculdade de ver e falar com os espíritos e tornou-se uma mulher mais madura.<br />

Está fazen<strong>do</strong> excelente trabalho com Daniel. Não foi fácil passar por<br />

tu<strong>do</strong> o que enfrentou.<br />

- Tem si<strong>do</strong> assim porque você está comigo... - ela rebateu entre lágrimas. -<br />

Só com você posso fazer o que tenho feito. Você é minha força, Eric. Sem<br />

você, não saberei...<br />

Ele colocou o de<strong>do</strong> nos lábios da esposa:<br />

- Não diga isso. Você vai continuar tu<strong>do</strong> o que está fazen<strong>do</strong>. Eu estarei<br />

sempre com vocês, em pensamento, mesmo que longe fisicamente. Vamos nos<br />

unir em nossas orações e Deus haverá de nos manter liga<strong><strong>do</strong>s</strong>. Por favor, Stephanie,<br />

prometa que não vai desanimar, um dia sequer. Só com essa promessa<br />

poderei ir em paz.<br />

Envolvida por Geórgia e por outros espíritos amigos que amparavam a família,<br />

ela, num esforço imenso, respondeu:<br />

- Eu prometo.<br />

Com um abraço demora<strong>do</strong>, Eric reafirmou:<br />

- Somente assim poderei ir em paz.<br />

Em seguida abraçou o filho e pediu, fitan<strong>do</strong>-o bem nos olhos:<br />

- Daniel, enquanto eu não estiver aqui, quero que se esforce ainda mais e<br />

faça o que puder para colaborar com sua mãe. Mantenha-se calmo, por favor,<br />

meu filho. Ela precisa de você. Enquanto eu estiver fora, vocês terão um ao<br />

outro. Por favor, ajudem-se.<br />

Demonstran<strong>do</strong> que compreendia o pai, Daniel, com os olhos rasos de lágrimas,<br />

moveu a cabeça afirmativamente. Eric abraçou-o de novo e falou, refrean<strong>do</strong><br />

a emoção que o <strong>do</strong>minava:<br />

- Isso mesmo, meu filho. Eu conto com você!<br />

E logo foi para o quarto, buscan<strong>do</strong> ficar um pouco a sós. Stephanie continuou<br />

por longo tempo sentada à mesa, sem ânimo para sair dali. Escoada quase<br />

uma hora, Eric voltou para a sala e estranhou:<br />

238


- Não vamos almoçar? Preciso sair daqui bem forte... Stephanie, que tinha<br />

o olhar perdi<strong>do</strong>, parecia não ouvir o mari<strong>do</strong>. Ele insistiu.<br />

- O almoço está pronto? Estou com fome.<br />

Como se despertasse daquele pesadelo, Stephanie levantou-se e respondeu:<br />

- Está tu<strong>do</strong> pronto, claro. Pode sentar-se para almoçar.<br />

- Vou auxiliá-la com a mesa.<br />

Durante a refeição, Eric fez o possível para comer normalmente, enquanto<br />

Stephanie, depois de alimentar o filho, ergueu-se e foi para a pia. O mari<strong>do</strong><br />

indagou:<br />

- Não vai comer nada?<br />

- Mais tarde.<br />

Eric ficou em silêncio. Sabia que, como ele, Stephanie se empenhava o<br />

mais que podia para evitar o desespero. Cada segun<strong>do</strong> que passava era como<br />

uma lança penetran<strong>do</strong> o coração dela. Como nunca em toda a sua vida, desejou<br />

que o tempo parasse naquele momento. Não suportava pensar que dentro em<br />

pouco veria seu mari<strong>do</strong> sair, partin<strong>do</strong> para uma guerra, em algum lugar distante<br />

de casa. Os <strong>do</strong>is juntos prepararam uma pequena mochila com os pertences<br />

essenciais que deveria levar e ele colocou ali também a Bíblia. Sentin<strong>do</strong> a hora<br />

se aproximar, Stephanie não conseguia conter o pranto incessante que rolava<br />

silencioso pelo seu rosto. Sua <strong>do</strong>r era profunda. Eric despediu-se <strong>do</strong> filho com<br />

um longo abraço. Depois, ela o acompanhou até a varanda e o abraçou com<br />

extrema<strong>do</strong> carinho. Beijou-lhe a face, depois a testa, depois os lábios e pediu:<br />

- Cuide-se, meu amor. E lembre-se de que eu o amo mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong>. Você<br />

é a luz da minha vida.<br />

Ele limpou as lágrimas que desciam pela face da esposa e insistiu:<br />

- Seja forte, Stephanie. Confie em Deus.<br />

- Vou tentar, Eric. Não posso compreender por que essa guerra estúpida está<br />

acontecen<strong>do</strong>... Mas vou tentar...<br />

- Lembre-se de que Deus nada tem a ver com o desatino <strong><strong>do</strong>s</strong> homens. Essa<br />

guerra é estúpida, concor<strong>do</strong>, e é uma guerra feita pelos homens.<br />

- Só que Deus permite.<br />

- Ele nos deu a liberdade, que nos é tão preciosa. Faça bom uso dela, Stephanie.<br />

Buscan<strong>do</strong> no íntimo to<strong>do</strong> o vigor possível, ela afirmou:<br />

- Eu farei, queri<strong>do</strong>.<br />

Eric beijou-a e se despediu. Enquanto a carroça transportan<strong>do</strong> os recémrecruta<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

partia, Stephanie fixou o olhar no mari<strong>do</strong>, até sua imagem se tornar<br />

invisível. Sentin<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r mais profunda que jamais experimentara, olhou para<br />

o céu, depois ajoelhou-se na varanda e pediu:<br />

239


- Por favor, meu Deus, dê-me forças...<br />

Geórgia sustentava a filha <strong>do</strong> coração com intensas energias, para que não<br />

desfalecesse. Então, os seis espíritos amigos e protetores que ali se encontravam<br />

uniram as mãos, forman<strong>do</strong> um círculo em torno de Stephanie, e rogaram<br />

as bênçãos de Deus para aquela mulher e seu lar. À medida que oravam com<br />

fervor, flui<strong><strong>do</strong>s</strong> suaves se derramavam sobre eles e atingiam os centros de força<br />

de Stephanie, que aos poucos conseguiu absorvê-los. Com isso, ela pôde enfim<br />

levantar-se e entrar, tentan<strong>do</strong> concentrar a atenção em seus afazeres.<br />

Dia e noite Geórgia a acompanhava, transmitin<strong>do</strong>-lhe energias e influencian<strong>do</strong>-lhe<br />

os pensamentos e sentimentos para que não se entregasse ao desânimo<br />

nem se deixasse abater, como era de sua tendência habitual. Stephanie,<br />

apoiada naquelas vibrações e sob a inspiração de Geórgia, orava três vezes ao<br />

dia: às nove horas da manhã, ao meio-dia e às seis da tarde. Assim se fortalecia,<br />

bem como permitia que fossem manti<strong><strong>do</strong>s</strong> a distância os espíritos que desejavam<br />

perturbá-la e ao filho. Entretanto, tão logo Eric partiu, Núbio orientou<br />

seus servos a tu<strong>do</strong> fazerem para destruir aquele lar, com o objetivo de resgatar<br />

o <strong>do</strong>mínio sobre Constantino. Também eles notavam as sutis transformações<br />

que ocorriam com Stephanie; percebiam mudanças reais acontecen<strong>do</strong> em seu<br />

campo espiritual e isso lhes desagradava muito. Núbio bateu com violência na<br />

mesa e gritou:<br />

- Quero que a destruam. Não admitimos ninguém despertan<strong>do</strong> por lá. É<br />

fundamental mantermos o controle sobre eles. Faremos <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> a<br />

maior nação <strong>do</strong> planeta e através deles <strong>do</strong>minaremos o mun<strong>do</strong> inteiro.<br />

Incapaz de seguir o raciocínio de Núbio, um de seus comanda<strong><strong>do</strong>s</strong> indagou:<br />

- Essa guerra se alastrará pelo mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>?<br />

- Não, nosso <strong>do</strong>mínio se firmará de maneira muito mais sutil. Os homens<br />

progridem com lentidão e para deter esse progresso, daqui para a frente, não<br />

usaremos apenas a força bruta; atuaremos sobre suas mentes de forma hábil e<br />

ardilosa. Vamos criar, através <strong><strong>do</strong>s</strong> americanos, uma cultura que haverá de aprisionar<br />

as mentes humanas ao nosso controle. Nenhuma religião nos fará recuar.<br />

Nem mesmo Deus poderá nos impedir.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> colabora<strong>do</strong>res, que desejava maior destaque no meio <strong>do</strong> ban<strong>do</strong>, interveio<br />

<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da sala:<br />

- E a tal atividade incansável <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos <strong>do</strong> bem que se percebe em toda<br />

a Europa? Você já foi informa<strong>do</strong> <strong>do</strong> novo movimento, chama<strong>do</strong> Espiritismo,<br />

que apareceu por lá? Sabe se ele oferece algum perigo para nós?<br />

Núbio fechou o cenho, ira<strong>do</strong>:<br />

240


- Por enquanto não podemos fazer absolutamente nada. Estão protegi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por poderosas falanges de espíritos de luz, que não nos permitem maior aproximação<br />

daqueles a quem orientam.<br />

- E o tal Denizard Rivail 24 ? Não podemos atingi-lo? Ele deve ter pontos<br />

fracos... Já sabemos como é isso. Podemos derrubá-lo.<br />

- Você é muito burro mesmo. Não ouviu o que eu disse? To<strong><strong>do</strong>s</strong> eles estão<br />

sob forte proteção, especialmente Rivail.<br />

- Até esse deve ter um ponto fraco.<br />

- Recebi detalhada ficha dele. E um espírito <strong>do</strong> bem há muito tempo. Será<br />

difícil afetá-lo neste momento. Mas não se preocupem tanto. Nós vamos detêlos<br />

logo que nos derem a primeira oportunidade. Essa elevada falange que se<br />

mobilizou sobre a Terra não poderá defendê-los para sempre. Derrubaremos os<br />

segui<strong>do</strong>res desse movimento e o enfraqueceremos, deturparemos e destruiremos,<br />

exatamente como fizemos nos primórdios <strong>do</strong> Cristianismo e, depois, com<br />

a reforma protestante. Não se preocupem. Vamos primeiro nos dedicar a fortalecer<br />

o império americano, transforman<strong>do</strong>-o no que queremos e na referência<br />

para o mun<strong>do</strong> inteiro. Não haverá religião que seja capaz de nos conter. Agora<br />

vão, acabem com Stephanie e com o filho.<br />

- E como faremos? Ela não nos dá ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Está sob proteção cerrada.<br />

Fitan<strong>do</strong>-os com olhos flamejantes, Núbio sugeriu:<br />

- Destruam Eric; será muito mais fácil <strong>do</strong> que imaginam. Ele está vulnerável<br />

no meio da guerra.<br />

Diante da visível dúvida de seus comanda<strong><strong>do</strong>s</strong>, ele orientou:<br />

- Façam Eric participar da linha de frente <strong>do</strong> pelotão, no campo de batalha,<br />

e coloquem a divisão de Licínio contra ele. O restante acontecerá por si só,<br />

entenderam?<br />

- Licínio está na Virginia e o esquadrão de Eric não deve chegar até lá.<br />

- Pois tratem de colocá-los frente a frente. E insuflem a memória de Licínio<br />

para reavivar o ódio que ainda traz daquele que o assassinou um dia. Ele<br />

saberá encontrar Marco em meio à multidão de solda<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

24 Hyppolyte-Léon-Denizart Rivail, conheci<strong>do</strong> como Allan Kardec, foi o educa<strong>do</strong>r francês<br />

nasci<strong>do</strong> em Lyon, cujas observações, estu<strong><strong>do</strong>s</strong> e pesquisas sobre os fenômenos espirituais deram<br />

origem à Doutrina Espírita.<br />

241


QUARENTA E SETE<br />

ALGUMAS SEMANAS DEPOIS, <strong>do</strong> alto da colina, um oficial <strong>do</strong> exército confedera<strong>do</strong><br />

observava a movimentação no vale. Sabiam que os ianques estavam<br />

chegan<strong>do</strong> e se preparavam. Sean, que se tornara um <strong><strong>do</strong>s</strong> principais líderes <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

confedera<strong><strong>do</strong>s</strong> - ten<strong>do</strong> participa<strong>do</strong> inclusive da decisão da invasão <strong>do</strong> forte Samter<br />

-, aproximou-se <strong>do</strong> oficial:<br />

- Algum sinal daqueles ianques asquerosos? - indagou<br />

- Não, senhor. Por enquanto nenhum sinal.<br />

- Não se iluda, solda<strong>do</strong>, eles estão chegan<strong>do</strong>. Portanto, fique atento; não<br />

quero que o batalhão seja pego de surpresa.<br />

Afastou-se e voltou para sua tenda, onde aguar<strong>do</strong>u em prontidão. Alguns<br />

minutos depois o oficial foi até lá e informou, ansioso:<br />

- Eu os avistei, senhor. Com certeza passarão pelo vale. Levantan<strong>do</strong>-se rápi<strong>do</strong>,<br />

Sean procurou o comandante <strong>do</strong> batalhão e avisou:<br />

- Quero comandar pessoalmente esta batalha. O outro argumentou, receoso:<br />

- Você é importante demais para pôr sua vida em risco. E um <strong><strong>do</strong>s</strong> principais<br />

líderes deste movimento. Se algo lhe acontecer, to<strong><strong>do</strong>s</strong> ficaremos mais fracos.<br />

Acho melhor que permaneça aqui. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, não tem treinamento de<br />

guerra.<br />

Sean o ignorou. Montou e, apertan<strong>do</strong> nas mãos a rédea <strong>do</strong> cavalo, respondeu:<br />

- Comandante, não me pergunte como nem porque, mas sinto que tenho<br />

mais experiência em batalhas <strong>do</strong> que você! Sinto-me totalmente à vontade,<br />

como se tivesse me prepara<strong>do</strong> por toda a vida para este momento. Não se preocupe,<br />

vou liderá-los pessoalmente.<br />

E o exército to<strong>do</strong> se pôs a caminho, sob o vigoroso coman<strong>do</strong> de Sean. No<br />

momento em que cruzava o vale próximo ao rio, o pelotão de Eric foi cerca<strong>do</strong><br />

pelos solda<strong><strong>do</strong>s</strong> confedera<strong><strong>do</strong>s</strong> e travou-se uma das primeiras batalhas daquela<br />

guerra, que se estenderia por quatro anos, incendian<strong>do</strong> uma nação. Na luta<br />

corpo a corpo, muitos homens de ambos os la<strong><strong>do</strong>s</strong> foram abati<strong><strong>do</strong>s</strong>, e uma significativa<br />

superioridade <strong><strong>do</strong>s</strong> solda<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> norte já podia ser notada. Entretanto,<br />

Sean lutava com uma agressividade desconhecida pelos seus próprios solda<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

De repente, avistou ao longe um solda<strong>do</strong> que, com visível inexperiência,<br />

lutava timidamente com um de seus homens. Magneticamente atraí<strong>do</strong> para<br />

Eric - embora este não conseguisse ferir o outro, desarman<strong>do</strong>-o -, Sean ergueu<br />

sua arma e sem pensar um só instante, movi<strong>do</strong> por um ódio que não sabia de<br />

onde vinha, desferiu tiro certeiro contra o seu peito. Eric de imediato tombou<br />

ao chão, gravemente feri<strong>do</strong>.<br />

242


Sean caminhou, derruban<strong>do</strong> outros solda<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> norte, até chegar perto de<br />

Eric. Fitan<strong>do</strong>-o nos olhos, disse:<br />

- Tem o que merece! Morra, ianque inútil!<br />

E disparou outra vez, tiran<strong>do</strong> a vida <strong>do</strong> antigo inimigo. Apesar das densas e<br />

pesadas energias que <strong>do</strong>minavam o vale, onde irmãos da mesma nação matavam<br />

uns aos outros, muitos espíritos servi<strong>do</strong>res de Jesus ali se encontravam<br />

socorren<strong>do</strong> aqueles que lhes ofereciam sintonia apropriada. Um deles aproximou-se<br />

<strong>do</strong> corpo inerte de Eric e, desprenden<strong>do</strong> seu corpo espiritual, retirou-o<br />

para longe da batalha. O perispírito de Eric vertia sangue e foi transporta<strong>do</strong> em<br />

uma maça para longe <strong>do</strong> vale. Ele gemia de <strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> um enfermeiro aplicou<br />

passes sobre a região atingida e deu-lhe sedativo para beber. A<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>,<br />

foi leva<strong>do</strong> para a colônia espiritual de onde viera. Logo Geórgia estava ao la<strong>do</strong><br />

daquele a quem muito amava, auxilian<strong>do</strong> no trabalho de revitalização de seu<br />

corpo espiritual.<br />

Dadas as condições de evolução de Eric, não demorou para que o ferimento<br />

cicatrizasse e ele despertasse <strong>do</strong> sono, razoavelmente refeito. Sentou-se na<br />

cama, observan<strong>do</strong> a sala clara e a cama limpa em que se encontrava. Uma jovem<br />

entrou no quarto e perguntou:<br />

- Sente-se melhor?<br />

- Onde estou? A última coisa de que me lembro é que estava no meio de<br />

uma batalha...<br />

- Fique calmo, vou avisar a Geórgia que você despertou.<br />

Em seguida apareceu no agradável aposento a figura suave e amorosa de<br />

Geórgia, que sorria ao recém-chega<strong>do</strong>. Ela o cumprimentou:<br />

- Seja bem-vin<strong>do</strong> de volta ao lar, Eric. Cumpriu bem sua missão.<br />

- Estou em casa?<br />

Colocan<strong>do</strong> as mãos sobre a cabeça, continuou.<br />

- Estou confuso. Minha cabeça ro<strong>do</strong>pia, sinto-me desfalecer. Ele voltou a<br />

focar a atenção no ambiente.<br />

- Este não é o meu lar - declarou. - E de que missão está falan<strong>do</strong>? Vencemos<br />

a guerra?<br />

Carinhosa, Geórgia sentou-se ao la<strong>do</strong> dele, toman<strong>do</strong>-lhe as mãos com ternura.<br />

- Você venceu sua batalha pessoal, Eric, resgatan<strong>do</strong> débitos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />

Está pronto para seguir em seu caminho de iluminação espiritual.<br />

Enquanto falava, Geórgia envolvia Eric em radiosas vibrações de amor.<br />

Pouco a pouco ele se acalmou; encostan<strong>do</strong>-se na cabeceira da cama, falou:<br />

- Estou com fome. Geórgia sorriu e convi<strong>do</strong>u:<br />

243


- Venha, vamos dar um pequeno passeio e você poderá alimentar-se no refeitório.<br />

Uma curta caminhada lhe fará bem.<br />

Saíram. Ao observar as ruas e construções, Eric percebeu que estava em<br />

um lugar diferente de sua cidade; ao mesmo tempo, tu<strong>do</strong> lhe parecia familiar.<br />

- Onde estamos?<br />

- Em uma colônia espiritual logo acima da Terra.<br />

- O quê?<br />

- Estamos no plano espiritual.<br />

- No Céu?<br />

- Bem, não é propriamente o Céu... Mas em comparação com as densas regiões<br />

onde permanece a maioria de nossos irmãos que deixaram o corpo físico,<br />

até se poderia dizer que você está no paraíso.<br />

- Então... morri?<br />

Logo tu<strong>do</strong> retornou-lhe à mente. A batalha, a luta, os tiros que o fizeram<br />

tombar. O rosto de Sean e seus olhos, antes de desferir-lhe o último tiro. Sentiu<br />

forte vertigem e precisou apoiar-se em Geórgia, que apontou um banco próximo.<br />

- Sente-se um pouco.<br />

Ele se acomo<strong>do</strong>u, respirou profundamente e disse, confuso e angustia<strong>do</strong>:<br />

- Eu morri, não foi?<br />

- Sim, Eric, você deixou o corpo físico; porém, como vê, não está morto. A<br />

morte é uma transformação, e este é, de fato, um novo começo.<br />

- E o que será de Stephanie e de Daniel agora?<br />

- Assim que se recuperar e estiver prepara<strong>do</strong>, poderá auxiliar-nos no apoio<br />

que temos da<strong>do</strong> a ela. Stephanie está cumprin<strong>do</strong> a promessa que lhe fez. Mesmo<br />

depois que soube de sua morte, ela vem lutan<strong>do</strong>, com nossa ajuda, para não<br />

desistir de sua tarefa na Terra.<br />

- Então ela já soube... Há quanto tempo estou aqui?<br />

- Quase seis meses.<br />

- Seis meses? Dormi to<strong>do</strong> esse tempo?<br />

- Teve breves intervalos de semi consciência, mas somente agora despertou.<br />

Eric sentiu as forças se esvaírem e Geórgia, toman<strong>do</strong>-lhe novamente as<br />

mãos, aconselhou:<br />

- Tenha calma. Muitas lembranças retornarão aos poucos e você acabará<br />

por recordar tu<strong>do</strong> o que aconteceu antes que voltasse à Terra e assumisse a<br />

vida como Eric.<br />

- Lembrar? Outras vidas?<br />

- Muitas outras. Aos poucos tu<strong>do</strong> ficará mais claro e você compreenderá<br />

melhor sua nova vida, suas possibilidades e seus desafios. Stephanie igualmen-<br />

244


te não tardará a retornar. Não pode vir ainda porque não completou sua tarefa.<br />

Portanto, quanto mais depressa você se recuperar, mais rápi<strong>do</strong> poderá contribuir<br />

para que ela o faça. No entanto, não se angustie, ela não está sozinha. Tenho<br />

esta<strong>do</strong> a seu la<strong>do</strong> constantemente e mesmo neste momento ela conta com<br />

o amparo de <strong>do</strong>is irmãos de nossa colônia.<br />

- Estou muito confuso. Pensei que ao morrer iria para o céu... agora você<br />

me diz que estou em uma colônia, que posso voltar à Terra, que você estava<br />

por lá... Você é um anjo, ou o quê?<br />

- Não, queri<strong>do</strong>, sou exatamente como você. Temos nos esforça<strong>do</strong> para<br />

crescer e auxiliar nossos queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos que se encontram um pouco atrás.<br />

- Não foi nada disso que aprendi...<br />

- Eu sei, mas logo vai se lembrar deste lugar e de suas pretéritas experiências<br />

na Terra... Quan<strong>do</strong> estiver pronto. E tu<strong>do</strong> ficará mais claro.<br />

Fez breve pausa e indagou:<br />

- Podemos prosseguir? Ainda está com fome, não está?<br />

- Sim, estou...<br />

Geórgia sorriu, oferecen<strong>do</strong>-lhe o braço.<br />

- Então venha, apoie-se em mim e vamos devagar. Seguiram para o refeitório<br />

<strong>do</strong> hospital.<br />

A partir daí, Eric foi gradativamente se adaptan<strong>do</strong> à nova condição e ten<strong>do</strong><br />

relances de episódios das encarnações pregressas. O rosto de Sean não lhe saía<br />

da memória e o torturava.<br />

Vários meses mais tarde, em uma ensolarada manhã, Geórgia chegou da<br />

crosta para visitá-lo; caminhavam juntos quan<strong>do</strong> ele comentou:<br />

- Estou muito bem, mas a lembrança daquele homem que me tirou a vida é<br />

muito forte em minha mente. Sinto um misto de me<strong>do</strong>, raiva e ... não sei mais<br />

o quê. Sabe quem é ele?<br />

- Sim, eu sei, e você também sabe.<br />

- Não, eu não sei.<br />

- Aquele homem foi assassina<strong>do</strong> por você em outra encarnação, há muitos<br />

séculos. Você precisa per<strong>do</strong>á-lo e ajudá-lo o quanto puder.<br />

-Ajudá-lo?<br />

- Sim, Eric, toda a humanidade necessita de socorro. Teremos hoje, em<br />

nossa colônia, uma presença muito importante. Ernesto virá nos visitar, trazen<strong>do</strong><br />

orientações e ajuda.<br />

- Ernesto?<br />

- Sim, junto com outros espíritos mais eleva<strong><strong>do</strong>s</strong>, que estão comprometi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

com o progresso da humanidade. Já sabemos que em poucos anos a Terra passará<br />

por um processo de transformação muito grande, e precisamos preparar-<br />

245


nos para contribuir e, ao mesmo tempo, tratar da nossa própria transformação<br />

pessoal.<br />

- Não compreen<strong>do</strong>...<br />

- Ainda é ce<strong>do</strong> para que se lembre. Quan<strong>do</strong> estiver pronto as lembranças<br />

virão à tona. E então compreenderá cada vez mais.<br />

Baixan<strong>do</strong> a cabeça, ele lamentou:<br />

- Sinto tanta falta de Stephanie e de Daniel... Geórgia pensou por instantes<br />

antes de responder.<br />

- Acho que podemos trazer Stephanie até aqui durante o sono, para que se<br />

encontrem.<br />

Toma<strong>do</strong> de entusiasmo, ele exultou:<br />

- Pode mesmo fazer isso? Seria maravilhoso falar com ela!<br />

- Vamos fazer o possível para que isso aconteça. E como vão os estu<strong><strong>do</strong>s</strong>?<br />

- Tenho feito algumas visitas à França e participa<strong>do</strong> de reuniões em que<br />

acontecem intercâmbios entre nós e os homens que ainda estão por lá. São...<br />

como é mesmo?... São médiuns. Exatamente como Stephanie.<br />

- Sim, são médiuns, como Stephanie. Esse intercâmbio é não apenas possível,<br />

como necessário para o progresso da humanidade. Os conhecimentos<br />

espirituais estão sen<strong>do</strong> revela<strong><strong>do</strong>s</strong> na Terra sob a tutela de espíritos muito eleva<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

comanda<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo próprio Mestre Jesus.<br />

- Sim, nessas reuniões de que participei pude constatar a sublimidade <strong>do</strong><br />

ambiente em que nos encontrávamos... De uma beleza que eu desconhecia até<br />

então.<br />

- Eu sei. Tem si<strong>do</strong> uma grande oportunidade para nós, que habitamos esta<br />

colônia e outras de idêntico grau de elevação, podermos acompanhar de perto<br />

esse momento, maravilhoso para a Terra, <strong>do</strong> desabrochar das verdades espirituais<br />

que tanto foram desvirtuadas e deturpadas pelos interesses <strong><strong>do</strong>s</strong> homens.<br />

Os esclarecimentos que ora descem à crosta têm como principal objetivo reavivar<br />

as verdades puras <strong>do</strong> Evangelho de Jesus.<br />

- Espero ansioso para poder participar de novas reuniões.<br />

- Sim, to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós desejamos aproveitar essa divina oportunidade.<br />

Algumas noites mais tarde, Geórgia bateu na porta <strong>do</strong> quarto de Eric, que<br />

abriu feliz.<br />

- Boa noite, Geórgia.<br />

- Boa noite, Eric. Como está?<br />

- Estou bem.<br />

- Ótimo, porque trouxe alguém para vê-lo.<br />

Vibrante de contentamento, Eric abriu largo sorriso, e Geórgia convi<strong>do</strong>u<br />

<strong>do</strong>is companheiros que traziam Stephanie:<br />

246


- Venham.<br />

Apesar da dificuldade com que controlava a emoção, Eric sabia que isso<br />

era essencial para que pudesse estar com a esposa sem prejuízo para ela. Stephanie<br />

entrou, visivelmente abatida. Seu corpo espiritual trazia chagas profundas,<br />

especialmente na área <strong>do</strong> coração.<br />

- Venha, Stephanie, sente-se - chamou Geórgia. Stephanie estava confusa e<br />

parecia alheia ao que acontecia. Eric<br />

aproximou-se e, tocan<strong>do</strong>-lhe os cabelos com ternura, disse:<br />

- Meu amor, sinto tanto a sua falta!<br />

Ajoelhou-se em frente a ela, segurou-lhe as mãos feridas e beijou-as com<br />

extremo carinho. Ao seu toque, Stephanie começou a chorar. Olhan<strong>do</strong> para ele,<br />

surpreendeu-se:<br />

- Eric, é você mesmo? Como pode ser isso?<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a, ele respondeu:<br />

- Não pense em nada, minha querida, sou eu mesmo! Aproveitemos este<br />

momento ao máximo...<br />

Ela abraçou-o ainda mais forte, em pranto <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>. Após se acalmar ligeiramente,<br />

falou entre soluços:<br />

- Eu não posso mais, sem... você... Não consigo... Sinto demais a sua falta...<br />

Olhan<strong>do</strong>-a com amor, ele afagava-lhe os cabelos desalinha<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Eu sei que é difícil, querida, imagino o quanto deve estar sofren<strong>do</strong>...<br />

Fitou Geórgia, como a pedir socorro, e ela interveio de imediato:<br />

- Tu<strong>do</strong> isso é transitório... Logo passará e você regressará ao seu verdadeiro<br />

lar. A Terra é nossa abençoada escola, onde podemos aprender o caminho<br />

da iluminação espiritual; não é nosso lugar definitivo. Tu<strong>do</strong> passará, Stephanie.<br />

O que vai ficar dentro de você são as lições que consiga de fato assimilar: o<br />

amadurecimento que obtiver, o amor que expandir em seu coração, as virtudes<br />

que fixar na alma. Apenas aquilo que desenvolver em seu interior poderá trazer<br />

para o verdadeiro lar, quan<strong>do</strong> retornar. Tu<strong>do</strong> o mais fica na Terra, onde nos<br />

é ofereci<strong>do</strong> como ferramenta de aprendiza<strong>do</strong>.<br />

Geórgia fez longa pausa e Stephanie, que a escutava com respeito, acalmou-se<br />

um pouco mais. Eric limpou-lhe as lágrimas.<br />

- Também sinto sua falta, mas sei que o que Geórgia nos disse é a mais pura<br />

verdade. Aqui estou eu, desfrutan<strong>do</strong> tão-somente aquilo que pude aprender<br />

enquanto estive na Terra. Apesar disso, meu coração ainda fica muito triste<br />

sem sua companhia. Assim que for possível, estarei mais perto de você e de<br />

Daniel, para ajudá-los.<br />

Stephanie baixou a cabeça, lamentosa:<br />

247


- Daniel não está bem. Depois que você nos deixou tornou-se mais e mais<br />

agressivo. Por mais que me esforce para ampará-lo, parece que já não nos entendemos...<br />

Geórgia interferiu:<br />

- Não desista dele, Stephanie. Ajude-o a aceitar sua condição. Essa é a única<br />

maneira de Constantino vir a libertar-se <strong><strong>do</strong>s</strong> pesa<strong><strong>do</strong>s</strong> liames que o prendem<br />

ao passa<strong>do</strong> de débitos contra a humanidade. Uma única gota de amor que você<br />

lhe <strong>do</strong>a a cada dia pode mudar o destino daquela alma. E uma tarefa árdua,<br />

bem sei, porém de profun<strong>do</strong> significa<strong>do</strong>. Persevere, por favor.<br />

- Sinto-me fraca e muito sozinha; se não fosse por você, Geórgia, acho que<br />

já teria desisti<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>...<br />

- Deus não nos aban<strong>do</strong>na jamais. Você nunca estará sozinha. Sempre irá<br />

contar com o amparo <strong>do</strong> Pai e de Jesus, através de mil mo<strong><strong>do</strong>s</strong> diferentes. Basta<br />

estar atenta para perceber.<br />

Eric e Stephanie conversaram por várias horas, permutan<strong>do</strong> emoções positivas.<br />

Por fim, Geórgia aproximou-se e informou:<br />

- Precisamos levar Stephanie de volta, já é quase o momento <strong>do</strong> amanhecer.<br />

Os três se despediram envolvi<strong><strong>do</strong>s</strong> em suaves energias e bons sentimentos.<br />

QUARENTA E OITO<br />

NA CROSTA, Sean continuava ativo em seu posto de coman<strong>do</strong>. Ainda que<br />

não participasse de todas as batalhas, acompanhava de perto as manobras, os<br />

sucessos e insucessos de seus comanda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Seu objetivo era presidir o novo<br />

país, que nasceria de um sul liberto e independente. Não obstante seus desejos,<br />

esse sonho se distanciava cada vez mais. Os solda<strong><strong>do</strong>s</strong> confedera<strong><strong>do</strong>s</strong> perdiam<br />

sucessivas batalhas. Os oponentes <strong>do</strong> norte eram mais coesos, melhor aparelha<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

em munições e outros equipamentos; sua superioridade econômica e<br />

numérica era inegável. A cada derrota, mais débil se tornava a esperança da<br />

vitória <strong>do</strong> sul. Sean se amargurava mais a cada dia, anteven<strong>do</strong> que seu anseio<br />

de vencer o norte não se concretizaria. Nem foi preciso que a guerra acabasse,<br />

quatro anos depois de deflagrada, para ele saber que não venceriam. Descontava<br />

a raiva e a frustração nos escravos, maltratan<strong>do</strong>-os até tirar a vida de muitos<br />

deles.<br />

Naquele dia, antes mesmo <strong>do</strong> café da manhã, chamou <strong>do</strong>is de seus homens.<br />

- Quero que vão buscar Sarah. Quero-a aqui, comigo.<br />

Os <strong>do</strong>is se entreolharam e um deles argumentou:<br />

248


- Senhor, seu pai não vai permitir. Sarah permanece sob a proteção de sua<br />

mãe.<br />

- Não quero saber! Tragam-na para mim...<br />

Sem conseguir completar a ordem, desmaiou sobre a mesa central de sala,<br />

derruban<strong>do</strong> o copo e a garrafa que tinha nas mãos. Os <strong>do</strong>is o levaram até o<br />

quarto e o colocaram na cama. Mais tarde, Sean despertou com forte enxaqueca.<br />

Levantou-se e abriu a janela. Já era noite. O céu estava coalha<strong>do</strong> de estrelas<br />

e um ar fresco e perfuma<strong>do</strong> invadia o ambiente. Ele olhou para cima e resmungou,<br />

fechan<strong>do</strong> a janela:<br />

- Para que tantas estrelas se não podemos alcançá-las? Desperdício...<br />

Sentou-se de novo na cama e segurou a cabeça com as duas mãos; apertava<br />

os ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> com força, tentan<strong>do</strong> conter a <strong>do</strong>r. Depois falou alto consigo próprio:<br />

- Esta guerra está perdida!<br />

Desceu e encontrou a casa toda em silêncio. Constatou então que já era<br />

madrugada. Comeu e voltou para o quarto, <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> até o amanhecer. Com os<br />

primeiros raios <strong>do</strong> sol, levantou-se e preparava-se para sair quan<strong>do</strong> os mesmos<br />

subordina<strong><strong>do</strong>s</strong> chegaram, trazen<strong>do</strong> notícias:<br />

- Os últimos batalhões se entregaram... O general Lee 25 assinou a rendição...<br />

Nós perdemos, afinal...<br />

Desola<strong>do</strong>, Sean sentou-se pensativo. Em vão empregara to<strong><strong>do</strong>s</strong> os seus conhecimentos<br />

e teorias. Não obtivera sucesso... Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens prosseguiu:<br />

- Com a declaração de abolição da escravatura que Lincoln assinou, e agora<br />

com a rendição, teremos de deixar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os escravos livres... Será humilhante...<br />

Sean disse entredentes:<br />

- Vamos acabar com esse homem.<br />

Os <strong>do</strong>is se entreolharam, mu<strong><strong>do</strong>s</strong>. Sean insistiu:<br />

- Vamos acabar com esse Lincoln. Ele jamais deveria ter si<strong>do</strong> eleito, só nos<br />

trouxe desgraças. Não entendem? Vamos eliminá-lo.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens perguntou, incrédulo, imaginan<strong>do</strong> que Sean ainda estivesse<br />

bêba<strong>do</strong>:<br />

- E como pretende fazer isso?<br />

- Ainda não sei, mas vou descobrir. Tem de haver um mo<strong>do</strong> de acabar com<br />

ele.<br />

- O que deseja que façamos? - indagou o outro solda<strong>do</strong>.<br />

- Por enquanto nada. Quero que fiquem atentos a tu<strong>do</strong> o que acontecer.<br />

25 Robert Edward Lee, militar e general <strong>do</strong> Exército <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Confedera<strong><strong>do</strong>s</strong>, durante a<br />

Guerra Civil Americana.<br />

249


- E quanto aos escravos? Vamos libertá-los?<br />

- Só os libertarei quan<strong>do</strong> não restar um único escravo...<br />

- Eles poderão rebelar-se, agora que já sabem que são livres...<br />

- Ao mínimo sinal de insurreição de algum deles, sabem o que fazer... E<br />

qualquer desobediência deverá ser punida com maior dureza. Mais <strong>do</strong> que<br />

nunca, eu os quero <strong>do</strong>mina<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo me<strong>do</strong>.<br />

Sean não manteve seus escravos por muito tempo. Sem demora milícias <strong>do</strong><br />

norte iniciaram a vistoria das propriedades, asseguran<strong>do</strong>-se de que a lei fosse<br />

cumprida. To<strong><strong>do</strong>s</strong> os escravos foram liberta<strong><strong>do</strong>s</strong>, passan<strong>do</strong> a depender da boa<br />

vontade de seus antigos proprietários e de outros para sobreviver.<br />

Inconforma<strong>do</strong>, Sean buscava um jeito de agredir os negros que via em seu<br />

caminho, escapan<strong>do</strong> à severa repressão <strong><strong>do</strong>s</strong> solda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Uma noite, em um bar,<br />

encontrou John Wilkes, ator que atuava em teatros de to<strong>do</strong> o país. Naquela<br />

semana ele visitava amigos na cidade, e dizia-se revolta<strong>do</strong> com a situação em<br />

que se encontravam. Depois de trocarem muitas impressões a respeito, Wilkes<br />

sussurrou:<br />

- Estamos forman<strong>do</strong> um grupo, em Nashville, que pretende colocar os negros<br />

no devi<strong>do</strong> lugar. Você poderia juntar-se a nós...<br />

- Apesar de odiar os negros, odeio ainda mais esse Lincoln. Quero acabar<br />

primeiro com ele. E não apenas eu: muitos de meus amigos fariam qualquer<br />

coisa para conseguir esse objetivo.<br />

Wilkes, convicto, renovou o convite:<br />

- Junte-se a nós; falaremos sobre isso em uma de nossas reuniões. Decerto<br />

poderemos pensar em algo...<br />

Sean passou a fazer parte daquela sociedade secreta, que <strong>do</strong>is anos mais<br />

tarde seria conhecida como Ku-Klux-Klan 26 : organização racista e terrorista<br />

cuja principal finalidade era impedir a integração <strong><strong>do</strong>s</strong> negros como homens<br />

livres, com direitos adquiri<strong><strong>do</strong>s</strong> e garanti<strong><strong>do</strong>s</strong> por lei depois de abolida a escravidão.<br />

<strong>Além</strong> disso, tramavam a eliminação <strong>do</strong> presidente <strong>do</strong> país.<br />

Na noite de 14 de abril de 1865, uma sexta-feira santa, Abraham Lincoln<br />

foi assassina<strong>do</strong> no Teatro Ford, em Washington, enquanto assistia a uma peça<br />

encenada por John Wilkes, autor <strong><strong>do</strong>s</strong> disparos que tiraram a vida <strong>do</strong> presidente<br />

americano. Ao receber a notícia <strong>do</strong> êxito da trama, Sean exultou. Perdera a<br />

26 Ku Klux Klan é o nome de várias organizações racistas <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> que apoiam a<br />

supremacia branca e o protestantismo em detrimento de outras religiões. A KKK, em seu perío<strong>do</strong><br />

mais forte, localizou-se principalmente em esta<strong><strong>do</strong>s</strong> sulinos como Texas e Mississipi. Ao<br />

ser fundada por um grupo de amigos no Tennessee, em 1865 (após o término da Guerra Civil<br />

Americana), seu objetivo era impedir a integração social <strong><strong>do</strong>s</strong> negros recém-liberta<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

250


guerra, porém não deixara impune aquele que acreditava ser o grande responsável<br />

pela derrota <strong><strong>do</strong>s</strong> esta<strong><strong>do</strong>s</strong> confedera<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Algum tempo depois, Sean comandava as atividades da sociedade em sua<br />

própria região. Em uma noite enluarada, o grupo de encapuza<strong><strong>do</strong>s</strong> se preparava<br />

para atacar alguns negros que viviam próximo das terras de Michael e Deborah,<br />

e com os quais morava Sarah. A casa foi invadida e os três negros, mais<br />

duas crianças, foram leva<strong><strong>do</strong>s</strong> para o la<strong>do</strong> de fora, para serem executa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Sean,<br />

que liderava o grupo, permanecia a distância, não notan<strong>do</strong> a presença de Sarah<br />

entre eles. To<strong><strong>do</strong>s</strong> foram amarra<strong><strong>do</strong>s</strong> e coloca<strong><strong>do</strong>s</strong> no centro de um círculo ilumina<strong>do</strong><br />

por fogo. Ao escutar os gritos de pavor <strong><strong>do</strong>s</strong> negros, Sean pensou ter reconheci<strong>do</strong><br />

uma voz. Era Sarah, efetivamente. Deborah, que vinha buscar a jovem,<br />

de longe viu o que ocorria e logo identificou a voz de sua protegida. Correu<br />

na direção <strong><strong>do</strong>s</strong> homens encapuza<strong><strong>do</strong>s</strong> e, entre lágrimas, rogava:<br />

- Parem com isso, por favor, não façam isso... Um deles empurrou-a com<br />

violência e avisou:<br />

- Afaste-se daqui, se não quiser ter destino igual ao deles. Deborah insistia:<br />

- Parem, por favor! Eles não fazem mal a ninguém...<br />

Ten<strong>do</strong> uma tocha nas mãos, o homem aproximou-a <strong><strong>do</strong>s</strong> cabelos de Deborah<br />

e gritou, irrita<strong>do</strong>:<br />

- Cale-se, ou ateio fogo aos seus cabelos agora mesmo. Sarah gritava:<br />

- Vá embora, <strong>do</strong>na Deborah, é muito perigoso ficar aqui... Movida por profunda<br />

indignação, Deborah não desistia: -Tenham respeito por Deus, meus<br />

irmãos, parem com isso... Outro, ainda mais agressivo, gritou:<br />

- É em nome dele mesmo que fazemos isto! Esses negros trouxeram magia<br />

negra para perto de nossos lares, de nossas famílias. Precisam compreender<br />

qual é seu lugar. Estes aqui servirão de exemplo.<br />

Os encapuza<strong><strong>do</strong>s</strong>, influencia<strong><strong>do</strong>s</strong> por espíritos ainda presos ao mal, ficaram<br />

incontroláveis. Parecia que os rogos de Deborah por piedade mais os insuflavam.<br />

De súbito, Sean, que os comandava, reconheceu a voz da mãe e a viu no<br />

meio da turba. Foi então toma<strong>do</strong> por um repentino sentimento de afeto, proveniente<br />

<strong>do</strong> âmago de seu ser. Ven<strong>do</strong> a mãe exposta e frágil diante daqueles homens<br />

embruteci<strong><strong>do</strong>s</strong> sob seu coman<strong>do</strong>, sentiu-se um monstro. Correu para ela<br />

na intenção de ajudá-la, mas já era tarde. Antes que pudesse fazer qualquer<br />

coisa para impedir, Deborah foi colocada junto com os negros, e em seguida<br />

lançaram querosene sobre eles e lhes atearam fogo. Sean gritava que parassem,<br />

sem que ninguém o escutasse. Quan<strong>do</strong> conseguiu passar pelos próprios comanda<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

agora ensandeci<strong><strong>do</strong>s</strong>, e pelo círculo de fogo, chegan<strong>do</strong> ao centro, a<br />

mãe já estava muito queimada. Ele a afastou <strong><strong>do</strong>s</strong> demais e, arrancan<strong>do</strong> as rou-<br />

251


pas, procurou abafar o fogo que a consumia. Um <strong><strong>do</strong>s</strong> homens, ao ver a atitude<br />

de Sean, justificava:<br />

- Ela pediu isso... Quis tirar nossas máscaras, tentou nos impedir...<br />

Ajoelha<strong>do</strong> sobre a mãe, Sean gritava:<br />

- Ela é minha mãe, estão entenden<strong>do</strong>? Minha mãe! Vão procurar ajuda!!!<br />

Quan<strong>do</strong> se deu conta <strong>do</strong> que fizera, o grupo logo se dispersou, ao invés de<br />

obedecer. Sean, também queima<strong>do</strong>, carregou a mãe nos braços em direção à<br />

casa. No caminho, ouviu-a balbuciar:<br />

- Obrigada, meu filho.<br />

Sean foi <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo remorso, que se originara na profunda ternura com<br />

que sempre fora trata<strong>do</strong> por Deborah. Assomavam-lhe à mente to<strong><strong>do</strong>s</strong> os momentos<br />

de amor, ternura e carinho que a mãe lhe dedicara. Sem conseguir conter<br />

as lágrimas, repetia:<br />

- Você vai ficar boa, mãe, vai ficar...<br />

Deborah não podia mais ouvi-lo. Seu espírito fora retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo físico<br />

e ela era transportada, em sono profun<strong>do</strong>, para a colônia espiritual de onde<br />

viera. Ao notar o corpo inerte da mãe, Sean gritou:<br />

- Mãe! Mãe, por favor, responda!<br />

Temen<strong>do</strong> ter aconteci<strong>do</strong> o pior, colocou-a com cuida<strong>do</strong> no chão e buscou<br />

auscultar-lhe o coração, constatan<strong>do</strong> que não batia mais. Debruça<strong>do</strong> sobre o<br />

corpo sem vida, gritava em desespero:<br />

- Não! Por favor, não! Você não pode morrer!<br />

Servos de Núbio acompanhavam to<strong><strong>do</strong>s</strong> os fatos e um deles comentou, com<br />

sorriso cínico:<br />

- Acho que ele está mesmo sofren<strong>do</strong>...<br />

- E, parece que ela conseguiu tocar fun<strong>do</strong> em Licínio. - respondeu outro. -<br />

O que fará agora?<br />

- Nada! Ficará completamente sob o nosso <strong>do</strong>mínio, de novo. Ele nos pertence<br />

e ela quase o amoleceu.<br />

- Mas veja como está... Será que poderemos utilizá-lo assim?<br />

- Se não nos for útil, acabaremos com ele e pronto... Todavia, alguns espíritos<br />

que trabalhavam pela transformação<br />

de Sean, protegen<strong>do</strong> e auxilian<strong>do</strong> a família, também presenciavam os fatos.<br />

Entre eles estava Helena, que antes mesmo de receber o espírito de Constância,<br />

para reencaminhá-la à colônia espiritual, comentou com Ana:<br />

- Atingi<strong>do</strong> pelo remorso, Sean mostra sinais de arrependimento. - Esse sentimento<br />

poderá auxiliar-nos a encaminhá-lo a uma nova e mais promissora<br />

encarnação?<br />

252


- E uma mudança marcante em suas emoções. Que Deus nos ajude a utilizar<br />

essa semente para o bem... Dessa forma, o sacrifício e a dedicação de<br />

Constância não terão si<strong>do</strong> em vão...<br />

Acolheram nos braços a querida trabalha<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> bem e a conduziram de<br />

volta ao lar, para o necessário perío<strong>do</strong> de descanso e recomposição. Sean permaneceu,<br />

transtorna<strong>do</strong>, sobre o corpo inerte da mãe, enquanto ao longe a fumaça<br />

ainda subia aos céus. Por outro la<strong>do</strong>, à medida que Helena, Ana e mais<br />

<strong>do</strong>ze companheiros espirituais se afastavam, levan<strong>do</strong> Deborah, deixavam no<br />

céu um rastro de luz na escuridão.<br />

Os anos que se seguiram foram de incessante conflito para Sean. Fazia<br />

questão de abafar a <strong>do</strong>r que sentia, pela forma como perdera a mãe, lutan<strong>do</strong><br />

ativamente na sociedade secreta, que não aban<strong>do</strong>nou. Muitos outros escravos<br />

perderam a vida através de suas atitudes violentas. O vício da bebida o cegava,<br />

e continuava a beber cada vez mais. Depois de alguns anos começou a escutar<br />

os espíritos que o acompanhavam e, mesmo com a perfeita sintonia que mantinham,<br />

ele os temia. A lembrança da mãe preservava o único fio de lucidez que<br />

restava naquela alma a<strong>do</strong>ecida pelo mal.<br />

Stephanie e Daniel passaram juntos mais alguns anos, com sérias dificuldades<br />

de convivência e aceitação. Foi Daniel quem primeiro deixou o corpo<br />

físico, nos braços da mãe, que cerrou-lhe os olhos com carinho e por ele derramou<br />

longo e senti<strong>do</strong> pranto. Apesar <strong>do</strong> convívio atribula<strong>do</strong>, o filho lhe faria<br />

muita falta.<br />

Ao fechar os olhos, Daniel viu-se liberto <strong>do</strong> corpo físico, mas tal era seu<br />

condicionamento ao desencarnar que não conseguiu retomar logo a normalidade<br />

de sua forma espiritual. Sentia-se confuso e angustia<strong>do</strong>, como um prisioneiro<br />

recém-liberto que, toma<strong>do</strong> de assalto pela nova situação, não sabia o que<br />

fazer com ela. Entretanto, não demorou para que vislumbrasse tenebrosas entidades<br />

ao seu re<strong>do</strong>r. Por mais que quisesse correr, sentia-se paralisa<strong>do</strong>.<br />

Assim Daniel atravessou longos anos, ora imobiliza<strong>do</strong> pelo me<strong>do</strong>, ora arrastan<strong>do</strong>-se<br />

desespera<strong>do</strong>. Embora alguns momentos de lucidez surgissem de<br />

quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>, eram insuficientes para que ele pudesse conscientizar-se<br />

de sua condição real e buscar ajuda.<br />

Transcorri<strong>do</strong> muito tempo, sentiu-se arrebata<strong>do</strong> daquele lugar e voou por<br />

sobre a Terra, ven<strong>do</strong>-se depois em um ambiente de muita paz, cerca<strong>do</strong> por bela<br />

natureza. Sem a capacidade de compreender o que lhe acontecia, ficou mais<br />

uma vez paralisa<strong>do</strong>. Foi então que ouviu uma voz, que sua memória reconhecia,<br />

a cumprimentá-lo.<br />

- Seja bem-vin<strong>do</strong>, meu irmão. Que Jesus o ampare e abençoe. Viran<strong>do</strong>-se,<br />

viu Eric, que lhe tocou o ombro com carinho.<br />

253


- Pai, é você? Onde estou?<br />

- Acalme-se, filho, agora você está entre amigos. Deixou seu corpo físico<br />

na Terra, e começa nova vida aqui.<br />

- Tantas coisas passam por minha mente... Estou confuso... Eric procurou<br />

tranquiliza-lo:<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> ficamos confusos depois de deixar o corpo físico. E assim mesmo:<br />

até que nos habituemos à mudança de condição, achamos tu<strong>do</strong> impreciso. Tenha<br />

paciência, tu<strong>do</strong> isso vai passar, e as lembranças logo virão. Até lá, descanse.<br />

Estarei ao seu la<strong>do</strong>.<br />

Toman<strong>do</strong> o rapaz pelo braço, convi<strong>do</strong>u:<br />

- Venha, vamos para casa.<br />

Demorou um pouco até que Daniel começasse a se recordar com clareza<br />

<strong>do</strong> que vivera na recente encarnação. Depois, outras lembranças mais antigas<br />

foram afloran<strong>do</strong>, devagar, em sua mente.<br />

Estava senta<strong>do</strong> em um banco, contemplan<strong>do</strong> o luar, quan<strong>do</strong> recebeu a notícia<br />

da chegada de Stephanie. Triste e abati<strong>do</strong>, não teve pressa de encontrá-la.<br />

Lamentava ter feito de suas experiências anteriores grande desperdício de<br />

tempo e energia. Aos poucos, a brilhante inteligência emergia, embora apenas<br />

com Eric ele conseguisse entabular conversas mais agradáveis.<br />

- Vou recebê-la. - Eric anunciou. - Quer vir comigo?<br />

- Não sinto vontade.<br />

- Está bem, mas precisa lutar contra essa apatia.<br />

- Acho que estou <strong>do</strong>ente.<br />

- De fato está. Contu<strong>do</strong>, deve saber que as bênçãos divinas não nos aban<strong>do</strong>nam.<br />

Fitan<strong>do</strong> o amigo, Daniel, já ciente de sua última encarnaçáo em Capela,<br />

onde fora Ferdinan<strong>do</strong>, comentou:<br />

- Gostaria imensamente de retornar a Capela. Tu<strong>do</strong> o que desejo para mim<br />

ficou lá...<br />

- Capela é hoje um planeta de regeneração, em que pre<strong>do</strong>minam a paz e o<br />

amor. Seus atuais habitantes estão alinha<strong><strong>do</strong>s</strong> com as leis divinas. Para o regresso,<br />

será necessário elevarmos muito nossa vibração; não conseguiremos viver<br />

em Capela da maneira como nos encontramos agora. É imprescindível que nos<br />

esforcemos mais, que voltemos para a Terra e conscientemente trabalhemos<br />

pela nossa transformação interior, buscan<strong>do</strong> a elevação espiritual sem a qual<br />

não poderemos retornar ao nosso orbe de origem.<br />

O outro baixou a cabeça, com tristeza crescente.<br />

- Enten<strong>do</strong>...<br />

254


Stephanie foi recebida e acolhida por Geórgia e Eric, além de outros espíritos<br />

amigos da família. Sua recuperação foi lenta e progressiva. Ainda que seu<br />

esta<strong>do</strong> íntimo não revelasse grande alteração, havia efetua<strong>do</strong> alguns progressos<br />

em relação às romagens terrenas anteriores. Conseguira perseverar sem desistir,<br />

o que a fortalecera interiormente, dan<strong>do</strong>-lhe subsídios morais que lhe permitiam<br />

traçar planos mais efetivos para uma próxima encarnação.<br />

QUARENTA E NOVE<br />

VARIAS DÉCADAS SE PASSARAM. Stephanie, Eric, Geórgia, Daniel e outros<br />

componentes daquele grupo espiritual estudavam e se preparavam para uma<br />

nova experiência - alguns com disposição e dedicação notáveis, outros enfrentan<strong>do</strong><br />

muitas dificuldades para persistir na vontade de mudança. Faziam visitas<br />

freqüentes à Crosta, visan<strong>do</strong> a estudar as transformações pelas quais passava o<br />

planeta, para que pudessem melhor se adequar. Esporadicamente visitavam<br />

outras colônias de padrões espirituais diversos, próximas à Terra, onde conviviam<br />

com almas em diferentes graus de adiantamento moral, sempre com o<br />

objetivo de aprendizagem. Certa ocasião, fizeram breve visita à cidade espiritual<br />

"Nosso Lar", onde, por breve tempo, experimentaram a elevada vibração<br />

ambiente. Ao retornar, Stephanie permaneceu em prolonga<strong>do</strong> silêncio, e por<br />

fim indagou a Eli, o instrutor que os acompanhava:<br />

- Como atingir tamanha evolução? "Nosso Lar" é tu<strong>do</strong> o que qualquer ser<br />

humano pode desejar por morada... Como merecer tal oportunidade? O que<br />

poderia fazer para obter essa bênção?<br />

- Você tem observa<strong>do</strong> a atuação <strong>do</strong> movimento espírita?<br />

- Tenho estuda<strong>do</strong> os princípios da Doutrina Espírita, porém os acho difíceis...<br />

- Difíceis? O que lhe parece difícil de compreender?<br />

- De compreender nem tanto, mas de viver...<br />

- Enten<strong>do</strong>... E você, Eric? O que tem senti<strong>do</strong>?<br />

Eric, que também participara da expedição, comentou:<br />

- Os ensinamentos espíritas têm me esclareci<strong>do</strong> muito. Gostaria de poder<br />

tornar-me espírita ao reencarnar.<br />

- Seria ótimo. Temos muito trabalho a ser feito na Terra, e precisamos de<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que possam somar esforços, aproveitan<strong>do</strong> a encarnação para se<br />

aprimorar e desenvolver. De fato, os princípios espíritas nos permitem aprender<br />

rapidamente verdades que são fundamentais para nosso aprimoramento<br />

moral. Sem esses conhecimentos, muitos atos de renúncia e desapego nos pa-<br />

255


eceriam absur<strong><strong>do</strong>s</strong>. Graças à compreensão espiritual que a Doutrina Espírita<br />

nos proporciona, percebemos a importância da renúncia, <strong>do</strong> amor e <strong>do</strong> trabalho<br />

para nosso trabalho de renovação interior.<br />

Tocan<strong>do</strong> de leve o ombro de Eric, Eli acrescentou:<br />

- Vejo que já está bem prepara<strong>do</strong>. Isso é excelente, pois o momento de retornarem<br />

à Terra se aproxima.<br />

Stephanie nada disse. Perceben<strong>do</strong> sua insegurança, Geórgia aconselhou:<br />

- Precisa fortalecer a fé em Deus, minha filha. Ela procurou explicar-se:<br />

- A luta na Terra é muito grande. Temo não conseguir fazer aquilo de que<br />

necessito. Tenho me<strong>do</strong> de não ser capaz... de falhar. É assusta<strong>do</strong>r pensar em<br />

retomar o corpo físico e esquecer tu<strong>do</strong> o que aprendi até agora... Gostaria muito<br />

de não ter de voltar...<br />

To<strong><strong>do</strong>s</strong> ficaram cala<strong><strong>do</strong>s</strong>. Aquele já havia si<strong>do</strong> tema de estu<strong><strong>do</strong>s</strong> e muitas palestras.<br />

A necessidade de sucessivas encarnações para realizar o trabalho de<br />

iluminação interior e conquistar o progresso moral já era compreendida por<br />

eles. Depois de longo silêncio, Stephanie reiterou:<br />

- Mesmo saben<strong>do</strong> que preciso retornar, tenho me<strong>do</strong>. Eric sorriu e disse:<br />

- To<strong><strong>do</strong>s</strong> temos receio, Stephanie, mas temos de vencer isso e confiar em<br />

Deus. Ele estará sempre a nos guiar. Temos testemunha<strong>do</strong> a atuação <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos<br />

sobre os homens de boa vontade e empenha<strong><strong>do</strong>s</strong> em caminhar no bem.<br />

Eles nunca estão sozinhos, por mais difíceis que sejam os momentos que atravessam.<br />

Você tem visto quanta proteção recebem a to<strong>do</strong> instante. Conosco não<br />

será diferente.<br />

- É o esquecimento que me apavora. Sinto verdadeiro pânico ao pensar que<br />

esquecerei de tu<strong>do</strong> e terei de recomeçar...<br />

Dessa vez foi Geórgia quem abraçou a jovem e ressaltou:<br />

- Estaremos juntos, uns apoian<strong>do</strong> os outros.<br />

- Até você, que já tem tanto conhecimento, Geórgia? Também precisa reencarnar?<br />

- Sim, estou apenas inician<strong>do</strong> minha trajetória de crescimento espiritual.<br />

Muito precisa ser feito, e estou pronta para submeter-me às leis divinas em<br />

busca de nova oportunidade de aprendiza<strong>do</strong> e crescimento.<br />

Eli tomou a palavra para esclarecer:<br />

- O receio de Stephanie é compreensível e demonstra que ela tem consciência<br />

de si própria e também da situação da Terra, que não podemos esquecer.<br />

O planeta passa por um momento gravíssimo de transformação. Com_efeito,<br />

há cerca de dez anos iniciou-se o processo de expurgo de almas recalcitrantes<br />

no mal, que estão sen<strong>do</strong> levadas para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> mais primitivos. O momento de<br />

transição da Terra se aproxima e vocês viverão dentro desse turbilhão de mu-<br />

256


danças. Pelas experiências que já viveram e pela consciência que adquiriram,<br />

têm condições de trabalhar pela própria renovação, além de colaborar com<br />

outros que ainda <strong>do</strong>rmem, totalmente inconscientes.<br />

Prosseguiram por largo tempo em elevada troca de informações e impressões,<br />

que a to<strong><strong>do</strong>s</strong> engrandeceu. Naquela noite estavam reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> em amplo salão,<br />

onde aguardavam uma palestra preparatória, pois em breve muitos deles<br />

regressariam à Terra pelas portas da reencarnação.<br />

A tribuna era ocupada por seis espíritos que trabalhavam com afinco pelo<br />

adiantamento humano. Ernesto se encontrava entre eles. Depois de linda e inspira<strong>do</strong>ra<br />

melodia entoada por um coral de quase cem vozes, Eli fez a abertura<br />

das atividades da noite e em seguida apresentou:<br />

- Sei que muitos não conhecem nosso irmão Ernesto, que tem trabalha<strong>do</strong><br />

incansavelmente pelo despertar da humanidade terrena. Ele traz importante<br />

mensagem para nos transmitir nesta noite. Venha, Ernesto, a palavra é sua.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, Ernesto se aproximou de Eli e agradeceu:<br />

- Obriga<strong>do</strong> por suas belas palavras, às quais cabe uma correção.<br />

Ao invés de trabalha<strong>do</strong>r incansável, sou mesmo um deve<strong>do</strong>r consciente.<br />

Sei o quanto Jesus fez e faz por mim, e por isso busco incessantemente uma<br />

forma de lhe ser útil.<br />

Fez curta pausa, até que Eli se sentasse. Então, viran<strong>do</strong>-se para o público<br />

presente, falou envolvi<strong>do</strong> em suave luz que lhe aureolava o corpo inteiro:<br />

- Meus queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, estou aqui para incentivá-los a seguirem com determinação<br />

as decisões que tomaram e as responsabilidades que assumiram.<br />

Como muitos de vocês sabem, sou um exila<strong>do</strong> de Capela que vive na Terra há<br />

milênios. Vivi a separação e a distância de seres ama<strong><strong>do</strong>s</strong>, os quais, por enquanto,<br />

só encontro esporadicamente. Experimentei a ascensão intelectual sem a<br />

devida elevação moral, e hoje compreen<strong>do</strong> o quanto estava afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r.<br />

Na minha última encarnação em Capela, deixei que o orgulho me cegasse<br />

e fracassei em meus objetivos. Tinha condições interiores de perseverar no<br />

esforço de renovação e permanecer no orbe que se encontrava em transição, tal<br />

qual a Terra na atualidade. Descuida<strong>do</strong>, deixei que o orgulho me <strong>do</strong>minasse e,<br />

entregue à cegueira espiritual, acreditei que era auto suficiente e que a justiça<br />

divina não me alcançaria. Qual não foi minha surpresa quan<strong>do</strong> despertei, séculos<br />

mais tarde, preso em um orbe primitivo, aparta<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> o que já tinha<br />

conquista<strong>do</strong> e de meus afetos mais queri<strong><strong>do</strong>s</strong>! Jesus, no entanto, apesar <strong>do</strong> mal<br />

que persistia dentro de mim, aceitou-me em seu planeta e trabalhou pela minha<br />

regeneração. É por isso que, não obstante os momentos de desespero e saudade<br />

- tantos que quase me abateram e destruíram a possibilidade da encarnação -,<br />

com a proteção de Jesus e o apoio de seus mensageiros abnega<strong><strong>do</strong>s</strong> aqui estou,<br />

257


nesta noite, servin<strong>do</strong> ao Mestre e poden<strong>do</strong> compartilhar com vocês minhas<br />

experiências.<br />

Por um instante Ernesto interrompeu-se, como a serenar as próprias emoções,<br />

e então continuou:<br />

- É possível vencer o mal. Vocês reencarnarão em breve, em uma fase de<br />

grande prova para a humanidade. É a hora da renovação, da mudança vibracional<br />

<strong>do</strong> planeta, que de mun<strong>do</strong> de expiação e provas se transformará gradativamente<br />

em mun<strong>do</strong> de regeneração. Todas as religiões têm fala<strong>do</strong> sobre essa<br />

transição, de uma ou de outra maneira, mas em um ponto há unanimidade: este<br />

é um momento de <strong>do</strong>r e sofrimento para a Terra, que colhe os frutos de sua<br />

relutância em seguir os ensinos de Jesus. A tarefa que os aguarda é árdua, bem<br />

sabemos, até porque a partir de agora muitos irmãos que estão situa<strong><strong>do</strong>s</strong> em<br />

abismos espirituais, fugin<strong>do</strong> da luz, negan<strong>do</strong>-se à reencarnação, serão compulsoriamente<br />

leva<strong><strong>do</strong>s</strong> à vida física como derradeira oportunidade. O mal, portanto,<br />

espalhará ainda mais sua influência sobre o orbe. Mesmo assim, vocês têm<br />

todas as condições de ser vitoriosos, porque grande número de falanges <strong>do</strong><br />

bem vindas de outras dimensões espirituais se movimenta para auxiliar aqueles<br />

que mantêm o firme propósito de trabalhar para o bem de si próprios e <strong><strong>do</strong>s</strong> que<br />

os rodeiam. Essas falanges darão sustentação aos espíritos encarna<strong><strong>do</strong>s</strong> e também<br />

àqueles que permanecem no plano espiritual da Terra, trabalhan<strong>do</strong> para o<br />

progresso <strong>do</strong> planeta.<br />

Mais um pequeno intervalo se fez, para em seguida Ernesto dar seqüência<br />

à mensagem:<br />

- Por outro la<strong>do</strong>, como vocês não ignoram, muitos espíritos que não conseguiram<br />

aceitar a supremacia <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, insistin<strong>do</strong> em permanecer no mal,<br />

ainda se iludem acreditan<strong>do</strong> poder frustrar o desígnio de Deus para regeneração<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> homens. Eles tu<strong>do</strong> fazem para atrasar o progresso e, se possível fosse,<br />

o impediriam. Mas é chega<strong>do</strong> o momento assinala<strong>do</strong> pela justiça divina para a<br />

renovação planetária. Muitos estão sen<strong>do</strong> beneficia<strong><strong>do</strong>s</strong> com a reencarnação<br />

que representa sua última oportunidade de permanência na Terra. Muitos outros<br />

já_ foram retira<strong><strong>do</strong>s</strong> e envia<strong><strong>do</strong>s</strong> para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> em estágio primitivo de evolução,<br />

para reiniciar o percurso de todas as etapas de lutas, pois não valorizaram<br />

as possibilidades que tiveram. Por isso, meus queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos, aproveitem<br />

sua encarnação. Aproveitem o tempo, a consciência que começa a despertar, e<br />

mantenham-se acorda<strong><strong>do</strong>s</strong>. A Doutrina Espírita, que se fortalece no Brasil, é um<br />

eloqüente chama<strong>do</strong> à conscientização de to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que já estão prepara<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

para compreendê-la e aceitá-la. Vençam o me<strong>do</strong>, meus irmãos, porque terão<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os recursos necessários para o êxito.<br />

258


Ernesto voltou a fazer breve pausa e depois, respiran<strong>do</strong> profundamente, finalizou:<br />

- Estarei com vocês por mais <strong>do</strong>is dias, e ficarei completamente disponível<br />

para esclarecer dúvidas e ajudar em tu<strong>do</strong> o que me for possível. Uma importante<br />

jornada começará, a mais decisiva encarnação que vocês já tiveram. Será<br />

nela, provavelmente, que terão melhores condições para as realizações individuais<br />

de que necessitam. Que Jesus nos envolva a to<strong><strong>do</strong>s</strong> com seu amor, iluminan<strong>do</strong><br />

nossas mentes e nossos corações para que sigamos firmes em seu caminho<br />

de luz.<br />

Quan<strong>do</strong> a preleção terminou, a emoção <strong>do</strong>minava a to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ele estava envolvi<strong>do</strong><br />

em intensa luz azul e <strong>do</strong> céu desciam pequenas gotas de energia sobre<br />

os presentes, fortalecen<strong>do</strong>, curan<strong>do</strong> e auxilian<strong>do</strong>. Foi a muito custo que o salão<br />

por fim se esvaziou. To<strong><strong>do</strong>s</strong> queriam passar o maior tempo que pudessem na<br />

companhia daquela alma que os inspirava com simplicidade e sabe<strong>do</strong>ria.<br />

Alguns meses mais tarde, muitos <strong><strong>do</strong>s</strong> que haviam participa<strong>do</strong> daquela reunião<br />

retomavam um corpo na Terra e iniciavam uma de suas mais importantes<br />

reencarnações.<br />

A resistência contra o bem se intensificava, e muitas falanges de espíritos<br />

infelizes e recalcitrantes no mal espalhavam sua entre to<strong><strong>do</strong>s</strong> os povos. Pressentiam,<br />

ainda que inconscientemente, que era chega<strong>do</strong> o momento da transição<br />

da Terra. A Doutrina Espírita - descortinan<strong>do</strong> a essência das verdades espirituais<br />

ensinadas por Jesus - tornava-se alvo primordial <strong><strong>do</strong>s</strong> ataques das trevas.<br />

Para seus agentes, era imperioso calar os segui<strong>do</strong>res da <strong>do</strong>utrina que trazia no<br />

bojo a possibilidade de despertar a consciência <strong><strong>do</strong>s</strong> homens, tal como Jesus<br />

fizera aos primeiros cristãos e, depois, alguns reforma<strong>do</strong>res haviam tenta<strong>do</strong>.<br />

259


Aqueles espíritos recalcitrantes no mal tinham urgência de ampliar sua área<br />

de ação. Deviam r is suas consciências, para que não<br />

TERCEIRA PARTE<br />

"Homens, por que lamentais as calamidades que vós mesmos<br />

amontoastes sobre a vossa cabeça? Desprezastes a santa<br />

e divina moral <strong>do</strong> Cristo; não vos admireis de que a taça<br />

da iniqüidade tenha transborda<strong>do</strong> por toda a parte."<br />

Evangelho Segun<strong>do</strong> o Espiritismo<br />

Toda reforma terá de nascer no interior. Da iluminação <strong>do</strong> coração<br />

vem a verdadeira cristianização <strong>do</strong> lar, e <strong>do</strong> aperfeiçoamento das<br />

coletividades surgirá o novo e glorioso dia da Humanidade.<br />

260


NOME DAS PERSONAGENS<br />

NAS DIVERSAS ENCARNAÇÕES<br />

CINQUENTA<br />

NOVA YORK, DEZEMBRO de 1997. Sentada no centro da igreja imensa, Isabela<br />

observava a perfeição da arquitetura e a preciosidade das pinturas estampadas<br />

nos vitrais. A luz entrava pelas janelas enormes e valorizava ainda mais<br />

as obras de arte espalhadas por to<strong>do</strong> o templo. Depois de examinar com atenção<br />

os pormenores, percebeu que na parte superior da nave a luz era intensamente<br />

azul. Levantou a cabeça e viu os amplos vitrais que permitiam a entrada<br />

da magnífica luminosidade, a qual, contrastan<strong>do</strong> com o mármore claro, acentuava<br />

o brilho no alto da famosa catedral de Saint Patrick. Isabela esqueceu as<br />

horas, fascinada por aquele templo encanta<strong>do</strong>r. Esqueceu o barulho <strong>do</strong> trânsito<br />

que vinha de fora, o corre-corre das centenas de americanos e turistas que andavam<br />

apressa<strong><strong>do</strong>s</strong>, subin<strong>do</strong> e descen<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> automóveis, entran<strong>do</strong> e sain<strong>do</strong> das<br />

luxuosas e apinhadas lojas de departamentos. Sentia-se transportada para longe<br />

daquela realidade, muito longe; embevecida, pensou em Deus, o ser supremo<br />

que lhe parecia distante e ocupa<strong>do</strong>.<br />

261


Sem saber quanto tempo passara ali, ela se ergueu devagar, sem vontade de<br />

ir embora, e caminhou até alguns nichos com lindas esculturas, estudan<strong>do</strong> cada<br />

detalhe. Ainda apreciava as obras quan<strong>do</strong> ouviu uma voz conhecida sussurrar:<br />

- Isa, vamos, você está aqui há mais de duas horas... Já fiz compras, já almocei,<br />

e você não aparece...<br />

A jovem se virou, como se voltasse de um lugar distante:<br />

- Estou encantada com esta catedral, Rafael. Nunca vi uma igreja tão linda...<br />

- Você nunca esteve aqui antes?<br />

- Não, na primeira viagem a Nova York não conseguimos vir à catedral...<br />

Rafael concor<strong>do</strong>u, relembran<strong>do</strong>:<br />

- É, não sobrou tempo.<br />

Olhan<strong>do</strong> em torno mais uma vez, ela comentou enquanto saíam:<br />

- É muito bonita, estou impressionada...<br />

- E uma construção belíssima e, certamente, uma das mais importantes <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- O que me chamou a atenção é que fica encravada em um lugar movimenta<strong>do</strong><br />

assim... Bem no meio de tantas lojas e atrações turísticas... Contu<strong>do</strong>,<br />

quan<strong>do</strong> se está lá dentro, é tão calmo...<br />

- Gostaria de vir à missa de Natal? É muito bonita...<br />

- Você já assistiu?<br />

- Sim, algumas vezes. Acho que você gostaria.<br />

Ela suspirou fun<strong>do</strong> e, pensan<strong>do</strong> um pouco, respondeu:<br />

- Não sei... O pai e a mãe não vão querer...<br />

- Por que acha que não?<br />

- Conhece o papai, ele não gosta de igrejas... Muito menos de cultos... E<br />

em seu esta<strong>do</strong>, acho que não teria mesmo condições para vir...<br />

- É uma pena, pois é um evento especial: um grande coral entoa algumas<br />

canções, a igreja fica lotada, é emocionante...<br />

Ao alcançarem a rua, ele indagou:<br />

- E agora? O que quer fazer? Já terminou as compras?<br />

- Ainda faltam alguns presentinhos, mas o dinheiro que destinei para isso<br />

está acaban<strong>do</strong><br />

Ao atravessarem a esquina, um homem precipitou-se sobre Isabela; parou<br />

diante dela e mendigou, ríspi<strong>do</strong>:<br />

- Algum dinheiro, preciso de algum dinheiro.<br />

Rafael tentou rechaçá-lo, porém o homem, hirto, insistiu:<br />

- Dinheiro, preciso de dinheiro para minha família.<br />

262


Isabela olhava para aquele estranho e sentia-se inexplicavelmente atraída.<br />

Ficou paralisada, de olhos fixos no homem loiro, de olhos muito azuis, enquanto<br />

Rafael insistia para que ele se afastasse. Sem conseguir desviar os olhos,<br />

Isabela enfiou a mão na bolsa, tirou uma nota de 10 dólares e colocou-a<br />

nas mãos dele.<br />

- Compre algo para comer, você está precisan<strong>do</strong>.<br />

O estranho olhou para o dinheiro e resmungou, amassan<strong>do</strong> a nota entre as<br />

mãos. Ao sair, olhava para Isabela por sobre os ombros. Assim, distraí<strong>do</strong>, pisou<br />

no meio-fio e foi atingi<strong>do</strong> por um carro que desviava de pedestres. Caiu<br />

sem senti<strong><strong>do</strong>s</strong>. Isabela, que lhe acompanhava os movimentos, gritou:<br />

- Meu Deus, ele foi atropela<strong>do</strong>!<br />

Virou-se, pronta para correr na direção <strong>do</strong> acidente, quan<strong>do</strong> Rafael a segurou<br />

pelo braço.<br />

- Isa, o que você vai fazer?<br />

- Vou ver se ele precisa de ajuda.<br />

- Está louca? Nem conhece aquele homem...<br />

- Ele me pareceu tão familiar... É como se já o conhecesse de algum lugar...<br />

- Você está deliran<strong>do</strong>, Isabela. Desvencilhan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> irmão, ela teimou:<br />

- Quero ver se posso ajudá-lo.<br />

Rafael caminhou ao la<strong>do</strong> da irmã, tentan<strong>do</strong> dissuadi-la. Ela foi até a beira<br />

da calçada, onde já se formara um aglomera<strong>do</strong> de pessoas. O homem continuava<br />

inconsciente, estira<strong>do</strong> no chão, e a jovem, passan<strong>do</strong> por entre as pessoas,<br />

dizia:<br />

- Deixem-me passar, sou médica...<br />

Com esforço alcançou o homem estendi<strong>do</strong> na rua. Ajoelhou-se e auscultou-lhe<br />

o coração. Os batimentos estavam fracos. Tomou o pulso e verificou o<br />

ritmo cardíaco: também fraco. A respiração estava sumin<strong>do</strong>. Ela, então, pediu<br />

que to<strong><strong>do</strong>s</strong> se afastassem e fez de imediato uma massagem no coração. Auscultou<br />

novamente e não constatou alteração. Repetiu a tentativa, e viu que ele<br />

enfraquecia mais. Tomada de súbita angústia, debruçou-se sobre o homem,<br />

massagean<strong>do</strong> o coração com ansiedade; os batimentos ficaram cada vez mais<br />

débeis, até pararem por completo. Antes que terminasse o socorro que tentava<br />

prestar, Rafael estava ajoelha<strong>do</strong> ao seu la<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> percebeu que o homem<br />

estava morto, Isabela ergueu-se, entristecida. Dois paramédicos se aproximaram<br />

com uma maça e ela informou em inglês fluente:<br />

- Não adianta, acabou de morrer. Fiz o que pude, mas não reagiu.<br />

Ven<strong>do</strong> a expressão interrogativa <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is, ela explicou, mostran<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento:<br />

263


- Sou médica e faço residência no Brasil. Procurei reanimá-lo com os procedimentos<br />

básicos, e não adiantou.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> paramédicos perguntou:<br />

- Algum ferimento aparente?<br />

Como Isabela falava e compreendia perfeitamente o idioma, respondeu de<br />

pronto:<br />

- Não, deve ter alguma lesão interna...<br />

Isabela esperou enquanto os paramédicos examinavam o homem e, frustrada,<br />

virou-se para sair, quan<strong>do</strong> escutou:<br />

- Não fique triste, ainda não chegou a minha hora... Voltou-se assustada, ao<br />

reconhecer a voz daquele que a abordara<br />

minutos antes. Estarrecida, viu a figura <strong>do</strong> homem, de pé, ao la<strong>do</strong> de seu<br />

corpo físico, que estava sen<strong>do</strong> coloca<strong>do</strong> na maça. Muda, sem compreender,<br />

ouviu-o de novo:<br />

- Não se assuste, sou eu mesmo.<br />

Paralisada, Isabela observou quan<strong>do</strong> o homem subiu na ambulância, sem<br />

ser visto, junto da maça que levava seu corpo. Antes de fecharem a porta, ele<br />

disse:<br />

- Obriga<strong>do</strong> pela ajuda e pelo dinheiro. Minha família precisa muito dele...<br />

Logo que a ambulância saiu com a sirene ligada, Rafael indagou:<br />

- O que foi? Você está pálida... Como ela não respondia, ele insistiu:<br />

- O que foi, <strong>do</strong>utora, está passan<strong>do</strong> bem? Isabela! A médica o encarou.<br />

- O que você tem? - perguntou o rapaz.<br />

- Eu vi o espírito daquele homem.<br />

- O quê?!<br />

- Ele estava perto <strong>do</strong> corpo, exatamente <strong>do</strong> mesmo jeito, com a roupa igual,<br />

como se fosse uma cópia fiel.<br />

- Isabela, acho que ficou impressionada demais... Deve ser por causa <strong>do</strong> esta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> pai. Você está mais sensível por causa disso.<br />

- Não, Rafael, eu sei perfeitamente o que vi. O homem estava ao la<strong>do</strong> de<br />

seu corpo e falou comigo. Até me agradeceu pela ajuda.<br />

- Ele foi embora?<br />

- Entrou na ambulância, acompanhan<strong>do</strong> o próprio corpo. Após breve pausa,<br />

ela fixou ao irmão:<br />

- Estou apavorada...<br />

Olhan<strong>do</strong>-a com desconfiança, o cético irmão tomou-a pela mão.<br />

- Vamos comer alguma coisa. Você está sem almoço até agora? Suspiran<strong>do</strong>,<br />

ela confirmou:<br />

- E sem café da manhã também. Não consegui comer nada hoje ce<strong>do</strong>.<br />

264


- Então venha, tem de se alimentar.<br />

Entraram em um restaurante e pediram um lanche. Isabela não parava de<br />

pensar na imagem etérea <strong>do</strong> homem que vira ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio corpo. Tomou<br />

alguns goles de café e retomou a questão:<br />

- Preciso saber quem é aquele homem e o que aconteceu com ele.<br />

- Por favor, Isa, você precisa comer e depois descansar. Está sob muita<br />

pressão.<br />

Ela engoliu o resto <strong>do</strong> lanche e levantou-se decidida:<br />

- Vamos, Rafael, você tem de me ajudar. Para onde acha que levaram o<br />

homem?<br />

- Ele estava morto, não é?<br />

- Estava... Quer dizer, não sei mais.<br />

- Estava ou não estava, Isabela?<br />

Pegan<strong>do</strong> o pesa<strong>do</strong> casaco, ela o vestiu, enrolou o cachecol no pescoço, colocou<br />

as luvas e falou, dirigin<strong>do</strong>-se para a porta:<br />

- Temos de saber para onde o levaram.<br />

Rafael pagou a conta e seguiu a irmã; alcançou-a na calçada.<br />

- Isabela, estou fican<strong>do</strong> preocupa<strong>do</strong>. Você está estranha e distraída há dias...<br />

E agora essa reação descontrolada e inexplicável. O que está haven<strong>do</strong>?<br />

- É que acabo de viver uma experiência inexplicável, mas absolutamente<br />

real. Vi um homem morrer na minha frente, para logo em seguida ouvi-lo falar<br />

comigo. E espantoso, mas aconteceu. Quero saber quem é ele.<br />

Enquanto andavam em busca de um táxi, Rafael tentava dissuadi-la. Como<br />

se não o escutasse, ela falou:<br />

- Não sei por que, tenho a nítida sensação de que conheço aquele homem...<br />

Quan<strong>do</strong> ele se afastou, foi como se eu soubesse que algo lhe aconteceria...<br />

Como se já tivesse vivi<strong>do</strong> aquilo tu<strong>do</strong>... Foi uma sensação muito esquisita.<br />

Devo conhecê-lo de algum lugar. Pode ser um amigo... Preciso achá-lo...<br />

- Você já tinha passa<strong>do</strong> por isso, Isabela? Ouvi dizer que muitas pessoas<br />

são capazes de conversar com os espíritos. Será que você tem essa capacidade?<br />

Ela fitou o irmão e relembrou:<br />

- Já estive em um centro espírita, antes de entrar na faculdade, a convite de<br />

uma amiga.<br />

- E por que foi?<br />

- Eu tinha muitos pesadelos, e às vezes parecia que escutava vozes...<br />

- Como assim? Você nunca me disse isso.<br />

- Não gosto de falar no assunto. Quan<strong>do</strong> era mais jovem tinha dificuldade<br />

para <strong>do</strong>rmir; de vez em quan<strong>do</strong>, estava deitada e era como se muitas pessoas<br />

265


falassem simultaneamente ao meu re<strong>do</strong>r. Comentei isso com uma amiga e ela<br />

disse que poderia ser mediunidade...<br />

Isabela silenciou por instantes. Encarou o irmão, também cala<strong>do</strong>, e indagou:<br />

- O que será isso, Rafael?<br />

- Não conheço nada desse assunto. E se quer saber a verdade, não me interesso<br />

muito.<br />

- O que devo fazer?<br />

Rafael abriu largo sorriso e, prático como sempre fora, sugeriu:<br />

- Quer minha opinião? Esqueça isso de uma vez e vamos embora. O pai e a<br />

mãe devem estar preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Vou ligar para eles e ver como estão.<br />

Ela tirou o celular da bolsa e telefonou para os pais. A mãe atendeu, conversaram<br />

e logo desligou.<br />

- Está tu<strong>do</strong> bem.<br />

- Como está papai?<br />

- Muito ansioso.<br />

- É natural.<br />

- E, amanhã saberemos o parecer <strong><strong>do</strong>s</strong> especialistas daqui... O que você acha,<br />

sinceramente?<br />

- Penso que o caso dele é grave.<br />

Os olhos de Isabela se encheram de lágrimas.<br />

- Acha que ele não vai conseguir... Procuran<strong>do</strong> acalmar a irmã, Rafael amenizou:<br />

- Eu não disse isso, Isa, apenas temos de ser realistas. O caso dele é difícil;<br />

ainda assim, existem relatos de casos semelhantes em que houve sobrevida de<br />

muitos anos. Eu pesquisei.<br />

- Em que condições?<br />

- Diversas.<br />

- Mas você não acredita em tratamentos alternativos, não é? Ouvi sua conversa<br />

com o papai quan<strong>do</strong> chegamos.<br />

- Não acredito mesmo. Temos estu<strong><strong>do</strong>s</strong> sérios sinalizan<strong>do</strong> as melhores medidas<br />

a serem a<strong>do</strong>tadas...<br />

- Só os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> que interessam são realiza<strong><strong>do</strong>s</strong>, você sabe disso. Muitas descobertas<br />

efetivamente importantes ficam sem comprovação por falta de interesse<br />

financeiro <strong><strong>do</strong>s</strong> laboratórios.<br />

- Olhe, não vamos discutir, está bem? Temos pontos de vista diametralmente<br />

opostos sobre essas questões.<br />

- De fato, temos.<br />

266


Isabela não hesitou em retornar ao que a intrigava:<br />

- Depois falaremos sobre isso. Agora temos de achar aquele homem.<br />

- Por que, Isa?<br />

- Não me peça que explique, só sei que precisamos achá-lo.<br />

- Para quê? Ele está morto, o que quer saber?<br />

- Não sei, mas preciso vê-lo de novo.<br />

- Você e seus impulsos... É a mesma Isabela de sempre... Ela agarrou o irmão<br />

pelo braço:<br />

- Venha, vamos logo.<br />

CINQUENTA E UM<br />

ATRAVÉS DE TELEFONEMA a um amigo que era paramédico, Rafael conseguiu<br />

localizar o hospital para onde o homem fora leva<strong>do</strong>. Chegan<strong>do</strong> à recepção,<br />

Isabela perguntou à atendente:<br />

- Ele está no necrotério?<br />

- Não, senhora; está na unidade de terapia intensiva. Isabela olhou para Rafael,<br />

surpresa, e indagou:<br />

- Por que na UTI?<br />

- Olhe, moça, não posso dar maiores informações. A senhora é parente dele?<br />

- É meu... primo. Estava com ele quan<strong>do</strong> ocorreu o acidente.<br />

- Os paramédicos não reportaram...<br />

- Houve muito tumulto na hora...<br />

- Ele está no leito 12. O médico responsável é o <strong>do</strong>utor Robert Anderson.<br />

Os <strong>do</strong>is agradeceram e procuraram pelo médico, que esclareceu:<br />

- Ele sofreu uma parada cardíaca e estava tecnicamente morto. De súbito,<br />

na ambulância, voltou a respirar e o coração recomeçou a bater. Embora muito<br />

fraco, está vivo. Agora está seda<strong>do</strong>.<br />

- Posso vê-lo?<br />

Perceben<strong>do</strong> a interrogação no rosto <strong>do</strong> médico, logo justificou:<br />

- Sou prima dele; os meus tios são de longe e quero mandar notícias...<br />

- Ele está ali.<br />

Isabela aproximou-se temerosa <strong>do</strong> vidro de onde podia ver o homem deita<strong>do</strong>,<br />

liga<strong>do</strong> a vários aparelhos. Notou o corpo espiritual que estava na cama,<br />

senta<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo físico. Soltou um grito abafa<strong>do</strong> e Rafael se espantou:<br />

- O que foi? -Nada... Dirigiu-se ao médico:<br />

- Podemos ficar aqui um pouco?<br />

267


- Apenas alguns minutos.<br />

- Tu<strong>do</strong> bem.<br />

Assim que o médico se afastou, Rafael questionou:<br />

- O que deu em você?<br />

Ela respondeu cochichan<strong>do</strong>:<br />

- Ele está lá dentro.<br />

- E lógico que está.<br />

- Não, você não entendeu... Estou ven<strong>do</strong> o espírito dele outra vez.<br />

Isabela continuou a observar pelo vidro por mais algum tempo, e então disse:<br />

- Preciso falar com ele.<br />

- Não pode entrar na UTI sem autorização! Aqui não é o Brasil.<br />

- Não importa, vou entrar.<br />

Abriu a porta e entrou. Aproximou-se da cama e fitou as duas imagens <strong>do</strong><br />

mesmo homem que tinha diante de si, a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> e desperto. Logo que a viu<br />

ele disse:<br />

- Você veio atrás de mim...<br />

- Quem é você?<br />

- Sou Petter O'Neil. Mais uma vez, obriga<strong>do</strong> pela sua ajuda.<br />

Poderia avisar minha família? Minha mãe deve estar aflita com minha demora.<br />

<strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, ela está <strong>do</strong>ente e precisa de remédios, por isso eu pedia<br />

dinheiro. Estou sem trabalho...<br />

- Vou avisar sua mãe.<br />

Com os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong>, Peter agradeceu:<br />

- Quan<strong>do</strong> estiver recupera<strong>do</strong>, agradecerei como se deve.<br />

- Qual é o endereço?<br />

Peter explicou como chegar em sua casa, informou o nome <strong><strong>do</strong>s</strong> remédios<br />

que a mãe tomava e concluiu:<br />

- Estou cansa<strong>do</strong>, com sono... - acomo<strong>do</strong>u-se sobre o corpo físico. - Você<br />

volta para me ver?<br />

Hesitante, frente aos corpos idênticos, ligeiramente dissocia<strong><strong>do</strong>s</strong>, Isabela<br />

respondeu:<br />

- Sim, volto.<br />

O homem logo a<strong>do</strong>rmeceu diante <strong>do</strong> olhar confuso da jovem. Uma enfermeira<br />

entrou e a advertiu:<br />

- Não pode entrar aqui...<br />

Fortemente impressionada, Isabela guar<strong>do</strong>u o papel com o endereço e o<br />

nome <strong><strong>do</strong>s</strong> remédios; depois mostrou seu <strong>do</strong>cumento à enfermeira, explican<strong>do</strong>:<br />

- Sou médica.<br />

- A ordem vale para to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

268


- Sou prima dele e precisava ver como estava.<br />

- Saia já, ou chamarei os seguranças.<br />

Isabela saiu depressa, e puxou Rafael pelo braço.<br />

- Venha, vamos falar com a mãe dele.<br />

- Como assim?<br />

- Ele me deu o endereço da família; a mãe precisa de ajuda.<br />

- Isabela...<br />

- Sei que parece loucura, mas eu o vi, falei com ele. Isso é real...<br />

- Você está fican<strong>do</strong> maluca e eu também...<br />

- Vamos, Rafael, logo saberemos se estou louca ou não. Se encontrarmos o<br />

endereço e tu<strong>do</strong> for como ele disse, você será testemunha de que não estou<br />

ten<strong>do</strong> alucinações... Se for verdade, estará prova<strong>do</strong> que o espírito existe... Já<br />

pensou nisso?<br />

Dirigiram-se a Nova Jersey, passan<strong>do</strong> bem próximo à casa de Rafael, onde<br />

a família estava hospedada.<br />

O rapaz, que se formara administra<strong>do</strong>r de empresas e fazia um curso de especialização<br />

em negócios, era ambicioso e desejava, acima de tu<strong>do</strong> e a qualquer<br />

custo, alcançar sucesso profissional.<br />

Depois seguiram pela avenida até chegarem a uma região mais afastada.<br />

Identifican<strong>do</strong> o nome pela anotação que fizera, Isa-bela avisou:<br />

- Esta é a rua.<br />

Andaram até o final, sem encontrar o número informa<strong>do</strong> pelo homem. Voltaram<br />

e procuraram na rua toda mais duas vezes, sem sucesso. Estavam prestes<br />

a desistir quan<strong>do</strong> avistaram uma mulher passean<strong>do</strong> com <strong>do</strong>is cachorros. Rafael<br />

se aproximou e, abrin<strong>do</strong> o vidro, indagou:<br />

- Senhora, por favor, sabe se existe este número nesta rua? Estamos procuran<strong>do</strong><br />

a casa de Peter O'Neil, mas não achamos o número 723.<br />

A mulher apontou:<br />

- É aquele trailer lá no fun<strong>do</strong>. A placa com o número está quase apagada.<br />

Ele agradeceu, fechou o vidro e logo parou perto de uma caixa de correio<br />

meio despedaçada pelo tempo. Lá, quase invisível, estava o número 723. O<br />

coração de Isabela batia descompassa<strong>do</strong>. Caminhou até o pequeno trailer e<br />

bateu. Escutou uma voz abafada:<br />

- E você, Peter?<br />

A jovem respondeu:<br />

- Sou Isabela. Trago notícias de seu filho... A porta se abriu e uma senhora<br />

i<strong><strong>do</strong>s</strong>a a examinou de cima a baixo.<br />

- Onde está Peter?<br />

- Ele... Bem... Sofreu um acidente...<br />

269


Ator<strong>do</strong>ada e trêmula, a mulher sentou-se.<br />

- Ele está morto?<br />

- Não, está vivo e muito preocupa<strong>do</strong> com a senhora... Rafael apertou o braço<br />

da moça, que o ignorou:<br />

- Podemos entrar?<br />

Abrin<strong>do</strong> a porta da pequena moradia, a mulher respondeu:<br />

- Entrem.<br />

Afastan<strong>do</strong> algumas almofadas de um velho sofá, ela ofereceu o lugar para<br />

que se sentassem e se apresentou, estenden<strong>do</strong> a mão:<br />

- Sou Dorothy O'Neil. O que houve com meu filho?<br />

- Ele sofreu um acidente, foi atingi<strong>do</strong> por um carro...<br />

- Está muito machuca<strong>do</strong>?<br />

- De fato, ainda não sabemos. Teve uma parada cardíaca, mas foi ressuscita<strong>do</strong><br />

pelos paramédicos.<br />

Fechan<strong>do</strong> os olhos, a mulher exclamou:<br />

- Meu Deus!<br />

- Calma, senhora, ele está no hospital.<br />

- Está acorda<strong>do</strong>?<br />

Isabela pensou um pouco, depois respondeu:<br />

- Às vezes sim, às vezes não.<br />

- O que quer dizer?<br />

- Ele acorda e a<strong>do</strong>rmece, e está sen<strong>do</strong> manti<strong>do</strong> seda<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong><br />

tempo.<br />

- Graças a Deus conseguiu avisar você... Aliás, quem...<br />

- Sou uma amiga dele, meu nome é Isabela.<br />

Com um fun<strong>do</strong> suspiro, a mulher - que aparentava imenso cansaço - acomo<strong>do</strong>u-se<br />

na poltrona e falou, limpan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Meu filho me ajuda muito. Ele é bom para mim, apesar de ter tantos problemas...<br />

Apontou para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trailer, onde <strong>do</strong>rmia uma menina de cerca de <strong>do</strong>is<br />

anos.<br />

- A esposa o aban<strong>do</strong>nou com a filha pequena. Sumiu sem deixar sequer um<br />

reca<strong>do</strong>. Uma tristeza. Peter tem de cuidar de mim e filha... E desde que a mulher<br />

o deixou, não arranja emprego. Tenho problemas de coração e tomo remédio<br />

que ele, não sei como, consegue para mim.<br />

- É este? - Isabela colocou-o nas mãos dela.<br />

- Esse mesmo.<br />

- Ele pediu que o trouxéssemos.<br />

270


A mulher tomou o medicamento e agradeceu, queren<strong>do</strong> mais informações<br />

para ir ver o filho. Não demorou e eles saíram da pequena residência a caminho<br />

de casa. Ambos seguiam cala<strong><strong>do</strong>s</strong>. Pouco antes da chegada, Rafael falou:<br />

- Isabela, você não vai contar a ninguém o que aconteceu hoje, não é?<br />

A jovem negou com a cabeça.<br />

- Antes vou precisar compreender melhor o que houve. Ao entrar depararam<br />

com a mãe, Ana Lídia, muito agitada.<br />

- Ainda bem que chegaram. Como demoraram!<br />

- O que foi, mãe?<br />

- Seu pai não passa bem. Está angustia<strong>do</strong>... Isabela, procuran<strong>do</strong> acalmá-la,<br />

comentou:<br />

- É normal, mãe. Vai fazer muitos exames amanhã e deve estar com receio.<br />

- Não, filha, ele está abati<strong>do</strong> mesmo, parece cansa<strong>do</strong>. Dessa vez foi Rafael<br />

quem comentou:<br />

- Também tenho nota<strong>do</strong> o abatimento dele.<br />

- Por onde andaram? - Ana indagou. Isabela mostrou as sacolas colocadas<br />

no hall:<br />

- Fizemos umas comprinhas...<br />

- Por isso demoraram tanto? Fiquei preocupada. Afinal, estamos em um<br />

país estrangeiro, com seu pai nesse esta<strong>do</strong>, e vocês nos deixam sozinhos o dia<br />

to<strong>do</strong>?<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a, a filha respondeu:<br />

- Pronto, já estamos aqui e está tu<strong>do</strong> certo. Ele está deita<strong>do</strong>?<br />

- Está.<br />

Isabela beijou a face da mãe e disse:<br />

- Vou subir para vê-lo.<br />

- Faça isso.<br />

Ana virou-se para Rafael:<br />

- Vocês jantaram? A comida está pronta, é só esquentar.. Erguen<strong>do</strong>-se rápi<strong>do</strong>,<br />

Rafael respondeu:<br />

- Que bom! Estou morren<strong>do</strong> de fome...<br />

271


CINQUENTA E DOIS<br />

POR ORIENTAÇÃO DO médico que coordenava os exames, Márcio permanecia<br />

imóvel deita<strong>do</strong> sobre uma maça, em um equipamento de última geração<br />

(que realizaria os exames de tomografia computa<strong>do</strong>rizada). A máquina se movimentava<br />

e ele, tenso e preocupa<strong>do</strong>, prendia a respiração sem perceber. Escutava<br />

a filha pelo aparelho de som da sala:<br />

- Respire, pai, respire normalmente.<br />

Para Márcio, os exames duraram uma eternidade. Quan<strong>do</strong> finalmente o<br />

médico o recomen<strong>do</strong>u que se vestisse e esperasse na sala contígua, ergueu-se<br />

devagar, exauri<strong>do</strong>. Aguar<strong>do</strong>u senta<strong>do</strong> na ante-sala, já com Ana Lídia, que o<br />

acompanhava em todas as peregrinações que precisara fazer desde a descoberta<br />

de um tumor no pulmão. Ela permanecia otimista, apoian<strong>do</strong>-o em to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />

momentos. Agora, recorriam a um <strong><strong>do</strong>s</strong> grandes especialistas em Nova York, na<br />

expectativa de um diagnóstico preciso e <strong>do</strong> melhor tratamento disponível. Detentor<br />

de boa situação financeira, Márcio dispunha de seus recursos em busca<br />

de alternativas para recuperar a saúde.<br />

Pouco depois, Isabela entrou na sala conversan<strong>do</strong> com o médico que efetuara<br />

os exames. O <strong>do</strong>ente encarou a filha, ansioso. Ela acomo<strong>do</strong>u-se ao seu la<strong>do</strong><br />

e disse:<br />

- Pai, o médico está avalian<strong>do</strong> os exames cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>amente, e pede que retornemos<br />

amanhã.<br />

Ana Lídia antecipou-se, perguntan<strong>do</strong> ao médico que estava com a filha:<br />

- Não podem adiantar nada agora? Você acompanhou os exames, o que acha?<br />

- Acompanhei por boa vontade <strong>do</strong> médico e pela indicação <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Ferraz,<br />

porém não tenho muita experiência.<br />

- Mas escutou o que eles conversavam, não foi? Deve saber alguma coisa.<br />

Abraçan<strong>do</strong> a mãe, Isabela pediu:<br />

- Acalme-se, <strong>do</strong>na Lídia, por favor. Precisamos de sua serenidade e confiança<br />

para nos fortalecer.<br />

Ana Lídia deixou-se acolher nos braços da filha por instantes, e então limpou<br />

as lágrimas:<br />

- Eu não sou de ferro... Estou preocupada também. Por mais que confie e<br />

saiba que sairemos desta situação, às vezes sinto-me angustiada, como to<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Eu sei, mãe, você tem to<strong>do</strong> o direito de expressar sua <strong>do</strong>r... No entanto, o<br />

fato é que eles querem analisar os exames com to<strong>do</strong> o cuida<strong>do</strong>. Não há outro<br />

jeito, teremos de retornar amanhã.<br />

Tocou as mãos de Márcio:<br />

272


- E você, pai, como se sente?<br />

- Ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>.<br />

- E natural.<br />

A jovem médica pegou o pesa<strong>do</strong> casaco e os outros agasalhos.<br />

- Vamos? Tenho uma sugestão a fazer. Vocês pouco vieram a Nova York,<br />

fican<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong> tempo em Nova Jersey. Podemos ir até o Rockefeller<br />

Center ver a decoração de Natal... A gigantesca árvore já está montada. Que tal<br />

nos distrairmos um pouco?<br />

Lentamente, Márcio juntou suas coisas enquanto pensava; depois olhou a<br />

filha dizen<strong>do</strong>:<br />

- Não me sinto anima<strong>do</strong> para andar por aí, muito menos para ver árvore de<br />

Natal gigante.<br />

Isabela abriu largo sorriso e sugeriu:<br />

- E que tal uma peça na Broadway? Um musical? O pai fitou a filha e a esposa,<br />

refletin<strong>do</strong>:<br />

-Não sei...<br />

- Vamos, pai, é bom que você se distraia, veja coisas bonitas...<br />

- Não consigo parar de pensar na <strong>do</strong>ença, Isabela. Como pode pedir-me para<br />

ir ao teatro, se não sinto ânimo para nada?<br />

- E por isso mesmo que você precisa se esforçar. Lembre-se: atitude positiva<br />

é parte <strong>do</strong> tratamento de qualquer <strong>do</strong>ença.<br />

Ana Lídia foi irônica:<br />

- Aprendeu isso na faculdade? Isabela deu ligeiro sorriso.<br />

- Na verdade li em alguns livros... Não propriamente da faculdade...<br />

- Aquelas baboseiras espíritas de que gosta?<br />

- Pai, não fale assim. Sabe que gosto <strong>do</strong> Espiritismo; apesar de não o conhecer<br />

muito, o pouco que leio acho interessante.<br />

Tencionan<strong>do</strong> mudar de assunto, o pai indagou:<br />

- Acha que encontraremos ingressos ainda para hoje?<br />

- Claro. Vou ligar para o Rafael e pedir que providencie algo bem agradável.<br />

- E acha que seu irmão virá conosco?<br />

- Por que não? Ele a<strong>do</strong>ra divertir-se e ama o teatro. Isabela saiu falan<strong>do</strong> ao<br />

celular e logo retornou:<br />

- Pronto, vamos para casa descansar um pouco. Mais tarde, encontraremos<br />

Rafael para jantar e, em seguida, iremos ao teatro.<br />

Entre as ofuscantes luzes de neon da Broadway, Isabela e Rafael conseguiram<br />

proporcionar aos pais uma noite divertida. Mais tarde, ao deitar-se, ela<br />

mergulhou num sono agita<strong>do</strong> no qual via o pai, que lhe parecia outra pessoa,<br />

com quem não conseguia relacionar-se. Depois se afastava dele e via Peter no<br />

273


hospital, como se tivesse de escolher entre os <strong>do</strong>is. Acordava e a<strong>do</strong>rmecia várias<br />

vezes, reviran<strong>do</strong>-se na cama. Sentia-se perturbada, como se buscasse alguma<br />

coisa escondida dentro de si própria.<br />

Despertou cansada e não demorou a se dirigir ao hospital, com os pais, para<br />

as avaliações da situação de Márcio. O médico informou, direta e objetivamente:<br />

- Seu caso é grave: o tumor tomou um terço <strong>do</strong> pulmão direito. O teste <strong>do</strong><br />

laboratório confirmou que se trata de um tumor maligno, de difícil tratamento.<br />

Ana Lídia recebia com os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong> o diagnóstico <strong>do</strong> especialista,<br />

sentin<strong>do</strong> como se o chão lhe fugisse aos pés. Apertava a mão da filha, à medida<br />

que escutava. À primeira pausa <strong>do</strong> médico, indagou:<br />

- É aconselhável uma cirurgia?<br />

- Sim, quan<strong>do</strong> ele estiver mais forte. Por ora, prescreveremos a quimioterapia,<br />

para conter o avanço <strong>do</strong> tumor.<br />

- Ele se espalhou para outros órgãos?<br />

- Não, felizmente. O senhor tem sorte, pois em geral esse tipo de tumor se<br />

espalha com rapidez. No seu caso, ele está restrito; o único órgão afeta<strong>do</strong> foi o<br />

pulmão direito. O outro, por enquanto, está limpo.<br />

Dessa vez foi Isabela quem interpelou o médico:<br />

- No Brasil nos disseram que poderia haver outro, pequeno, no pulmão esquer<strong>do</strong>...<br />

- Sim, vi nas observações <strong>do</strong> médico que cuida seu pai lá, mas não é o caso;<br />

não confio muito no exame anterior, e o atual mostra que o pulmão esquer<strong>do</strong><br />

está limpo.<br />

Isabela ajeitou-se na poltrona e balbuciou:<br />

- Menos mal.<br />

Ana Lídia ponderou:<br />

- Quer dizer que a situação não é tão ruim...<br />

O médico procurou esclarecer:<br />

- O problema é o tipo de tumor, muito invasivo. Pode espalhar-se de um<br />

momento para outro, por isso deve ser controla<strong>do</strong> e extirpa<strong>do</strong>. Embora haja o<br />

risco de progredir em uma ou duas semanas, de mo<strong>do</strong> a dificultar o controle, é<br />

possível que se mantenha da forma como está. Seu caso precisa ser trata<strong>do</strong><br />

com muita atenção, o que poderá ser feito no Brasil mesmo; não há necessidade<br />

de ficarem aqui, onde os recursos utiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> serão os mesmos de lá. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o momento se apresentar, a cirurgia poderá ser realizada<br />

conosco. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, o tratamento aqui é bastante dispendioso.<br />

Voltan<strong>do</strong> para o médico os olhos cheios de lágrimas, Lídia questionou,<br />

com a voz trêmula de emoção:<br />

274


- Por que, <strong>do</strong>utor? Por que meu mari<strong>do</strong> contraiu uma <strong>do</strong>ença como essa?<br />

Qual é a causa?<br />

- Não há uma resposta simples e única para a sua pergunta. De fato, há diversas<br />

possibilidades.<br />

Descontrolada, ela desabafou:<br />

- Não sabem dizer, é isso? Tanta ciência, tantos equipamentos, tantos conhecimentos<br />

e não sabem dizer o que originou a <strong>do</strong>ença.<br />

- E que as possibilidades são muitas...<br />

- Isso é uma evasiva. Vocês não sabem...<br />

Tentan<strong>do</strong> controlar a mãe, Isabela fitou o pai, que guardava silêncio:<br />

- Pai, você tem alguma dúvida? Quer saber alguma outra coisa?<br />

- Não, quero ir embora. De nada me adiantou vir até este hospital. Mesmo<br />

que seja mais preciso, o diagnóstico não é diferente <strong>do</strong> que tive no Brasil.<br />

A jovem argumentou:<br />

- Só que agora temos maior clareza da situação, pai, e poderemos decidir o<br />

melhor tratamento. Precisávamos ter certeza; eu não sossegaria enquanto você<br />

não viesse fazer esta avaliação.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, Márcio aduziu:<br />

- Não há mais nada a ser feito aqui. Quero ir para o Brasil; sinto falta de<br />

minha casa, de meus cachorros... Enfim, quero voltar.<br />

O médico assentiu com a cabeça, dirigin<strong>do</strong>-se a Isabela:<br />

- E verdade. Pelo menos por enquanto, nada há a ser feito aqui. Ele deve<br />

iniciar o tratamento no Brasil o mais breve possível.<br />

Isabela despediu-se <strong>do</strong> médico, indica<strong>do</strong> por seu professor, e voltaram para<br />

a casa em Nova Jersey. Isabela acomo<strong>do</strong>u os pais e quis saber:<br />

- Está certo de que não quer passar o Natal aqui? Faltam tão poucos dias...<br />

E Rafael? Ficará sozinho outra vez...<br />

- Quero ir para casa; não tenho ânimo algum para celebrar essas baboseiras<br />

de Natal. Se ainda estivesse com saúde me animaria a fazer compras, mas no<br />

esta<strong>do</strong> em que me encontro nada me entusiasma. Quero ir agora mesmo. Se<br />

Rafael de fato se importar, virá conosco.<br />

Sentan<strong>do</strong>-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> pai, Isabela acariciou-lhe as mãos:<br />

- Não é assim, pai. Sabe que Rafael tem seu trabalho, seus compromissos,<br />

não pode sair de uma hora para outra.<br />

O pai permaneceu cala<strong>do</strong> e Isabela ergueu-se:<br />

- Está bem, vou providenciar nossas passagens.<br />

A jovem ligou para o irmão e o informou da situação.<br />

- Pode deixar que providencio as passagens e as levo hoje à noite.<br />

275


Quan<strong>do</strong> os pais se recolheram para descansar, Isabela sentou-se diante da<br />

lareira acesa. Ainda que estivesse muito apreensiva com a situação <strong>do</strong> pai, a<br />

imagem de Peter não lhe saía da cabeça. Precisava revê-lo. Escreveu um bilhete<br />

para a mãe, explican<strong>do</strong> sua saída, e foi até o hospital. Aproximou-se <strong>do</strong> vidro<br />

que dava para a UTI e viu que ele não estava mais lá. Correu até a enfermeira<br />

de plantão, aflita.<br />

- Onde está Peter O'Neil, que ocupava o leito 12? Sou prima dele...<br />

A enfermeira procurou o registro no computa<strong>do</strong>r:<br />

- Deixe-me ver... Aqui. Foi transferi<strong>do</strong> para o quarto.<br />

- Está melhor, então...<br />

- Ele apresentou rápida melhora e pôde ser transferi<strong>do</strong> para o quarto de acompanhamento<br />

semi-intensivo.<br />

Isabela mostrou seu <strong>do</strong>cumento e indagou, tentan<strong>do</strong> controlar sua ansiedade:<br />

- Posso vê-lo?<br />

De posse <strong>do</strong> número <strong>do</strong> quarto, logo ela estava diante da porta. Respirou<br />

fun<strong>do</strong> e pensou: o que fazia ali, que lógica havia em visitar uma pessoa que<br />

não conhecia? Mas algo dentro dela era mais forte e a impulsionou; bateu e<br />

entrou. Encontrou Peter acorda<strong>do</strong>. Ele sorriu ao vê-la, e Isabela sentiu o corpo<br />

estremecer. Aquele sorriso lhe parecia tão familiar como se os <strong>do</strong>is se conhecessem<br />

de longa data. Seu coração disparou e suas mãos ficaram úmidas. Aproximou-se<br />

devagar e ele falou, em seu inglês níti<strong>do</strong>:<br />

- A moça <strong><strong>do</strong>s</strong> meus sonhos... Isabela respondeu com uma pergunta:<br />

- O que está dizen<strong>do</strong>?<br />

- Tenho sonha<strong>do</strong> com você, desde o acidente... Ou foi antes? Agora não me<br />

lembro.<br />

Isabela olhou para ele sem saber o que dizer.<br />

- Esteve com minha mãe? - Peter indagou. - Você a aju<strong>do</strong>u...<br />

- Como sabe?<br />

- Não posso explicar, apenas sei.<br />

- Eu estive com sua mãe e vi sua filha. Ambas estão bem. Levei os medicamentos<br />

para ela.<br />

Houve breve silêncio, quebra<strong>do</strong> por ela:<br />

- O que lhe falaram sobre o seu esta<strong>do</strong> de saúde?<br />

- Disseram que vou ficar bem e logo poderei ir para casa.<br />

Um médico entrou para a visita diária. Verificou as anotações <strong>do</strong> prontuário,<br />

depois olhou Isabela de cima a baixo.<br />

- Quem é você?<br />

Antes que ela pudesse responder, Peter falou:<br />

- É minha noiva, <strong>do</strong>utor. Não é bonita? O médico limitou-se a sorrir.<br />

276


Isabela sentiu-se paralisada por alguns instantes, sem saber se desmentia<br />

ou ficava quieta. Fitou Peter, depois o médico.<br />

- Como ele está, <strong>do</strong>utor?<br />

- Vem melhoran<strong>do</strong> a cada hora que passa. O fato é que sua recuperação é<br />

incrível.<br />

- Quais foram os exames?<br />

- Estou dizen<strong>do</strong> que ele está bem.<br />

- Gostaria que me informasse que exames realizaram.<br />

- Quer avaliar nossa conduta, senhora?<br />

Tiran<strong>do</strong> da bolsa seus <strong>do</strong>cumentos, ela mostrou um deles ao médico.<br />

- Eu sou médica também, e estou acompanhan<strong>do</strong> de perto a situação de...<br />

meu noivo.<br />

O médico, meio a contragosto, passou a relatar em detalhes os procedimentos<br />

a<strong>do</strong>ta<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ao final, Isabela se tranqüilizou e disse a Peter, depois que o<br />

médico saiu:<br />

- Você está surpreendentemente bem. Não há explicação lógica.<br />

- Você o sabatinou bastante...<br />

- Queria ter certeza de que você está bem. Peter fixou nela seus olhos de<br />

intenso azul:<br />

- Por que se interessa?<br />

- Não sei, mas aqui estou movida por uma força maior <strong>do</strong> que minha compreensão...<br />

Isabela retornou ao hospital na manhã seguinte; era o dia em que voltaria<br />

para o Brasil com os pais. Peter, senta<strong>do</strong>, tomava o desje-jum. Surpreendeu-se<br />

ao vê-la tão ce<strong>do</strong>.<br />

- Bom dia, Isabela. O que faz aqui a esta hora?<br />

- Estou deixan<strong>do</strong> o país hoje, Peter. Meu pai, como já lhe disse, está <strong>do</strong>ente<br />

e vai continuar a se tratar no Brasil, assim que chegarmos.<br />

Peter emudeceu por um momento, depois fitou a jovem e disse:<br />

- Se pudesse, eu viajaria com você para seu país.<br />

- Você nem me conhece...<br />

Ele tomou as mãos de Isabela, com suavidade.<br />

- Nem você me conhece... No entanto, está aqui. Apertan<strong>do</strong>-lhe as mãos<br />

entre as suas, prosseguiu:<br />

- Vamos nos falar por telefone, e quem sabe por um milagre consigamos<br />

nos ver outra vez...<br />

- Peter, isso tu<strong>do</strong> é loucura; nós não sabemos nada um <strong>do</strong> outro...<br />

277


- Eu sei o que sinto por você e percebo o que sente por mim. O que importam<br />

as convenções? É o coração que fala mais alto, Isabela, e ele não pode ser<br />

controla<strong>do</strong>... Melhor é nos entregarmos...<br />

Conversaram durante to<strong>do</strong> o horário de visitas. Ao se despedir e deixar o<br />

quarto, Isabela percorreu os corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> hospital pensan<strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> aquilo<br />

era uma loucura... Sua mente dizia que ela não poderia continuar em contato<br />

com Peter. Seu coração, ao contrário, sentia-se mais e mais atraí<strong>do</strong> por aquele<br />

homem, um completo estranho.<br />

CINQUENTA E TRÊS<br />

Do OUTRO LADO de Manhattan, Susan entrou na cobertura trazen<strong>do</strong> nas<br />

mãos felpuda toalha. Vestia elegante tailleur preto que lhe realçava ainda mais<br />

os cabelos ruivos e alongava sua fina silhueta. O barulho de seus saltos pontiagu<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

soava ritma<strong>do</strong> no piso de madeira que circundava a piscina coberta, emoldurada<br />

por enorme vidraça que proporcionava belíssima vista da Estátua<br />

da Liberdade. Aproximou-se da borda, agachou-se e aguar<strong>do</strong>u que Lawrence<br />

tirasse a cabeça da água para dar-lhe um reca<strong>do</strong>:<br />

- Tem compromisso em uma hora; precisa se apressar.<br />

Ele na<strong>do</strong>u mais duas voltas na piscinas, depois saiu calmamente; enxugouse,<br />

vestiu o roupão e sentou-se.<br />

- Vou tomar o café da manhã aqui. Peça para trazerem.<br />

- Vai se atrasar.<br />

- Você está muito preocupada. Afinal, que compromisso é esse que a faz<br />

tão tensa?<br />

- Não vá dizer que esqueceu.<br />

Morden<strong>do</strong> uma maçã e aprecian<strong>do</strong> o sabor, ele respondeu, depois de engolir:<br />

- Ainda preocupada com o pessoal da FDA 27 ?<br />

- Sabe o que eles querem, não sabe?<br />

- Ora, e daí?<br />

- Não estão dispostos a ceder outra vez.<br />

Depois de sorver uma xícara de café quente, ele disse, levantan<strong>do</strong>-se:<br />

27 A FDA (sigla que significa Foods and Drugs Administration) é uma agência <strong>do</strong> Departamento<br />

de Saúde <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> que tem por finalidade cuidar da saúde pública,<br />

garantin<strong>do</strong> a segurança e eficácia de medicamentos de uso humano e veterinário, produtos<br />

biológicos, dispositivos médicos, alimentos, cosméticos, produtos que emitem radiação e produtos<br />

<strong>do</strong> tabaco.<br />

278


- Está bem, você ganhou; vou me vestir. E, por favor, peça para servirem o<br />

meu café completo na sala de jantar. Em seguida, vamos para a reunião.<br />

Susan, mais <strong>do</strong> que depressa, providenciou o que o executivo solicitara.<br />

Enquanto arrumava a mesa com cuida<strong>do</strong>, pensava que trabalhava como assistente<br />

pessoal de Lawrence há cinco anos. Sua reflexão foi logo interrompida<br />

pela rui<strong><strong>do</strong>s</strong>a entrada dele, segui<strong>do</strong> de um rastro de sofisticada fragrância. Susan<br />

indagou, interessada:<br />

- Perfume novo?<br />

- Gostou?<br />

- É bom, porém acho um pouco forte.<br />

- E o terno que escolhi, que tal? Combina com a gravata? Essa foi você<br />

quem me deu.<br />

- Está elegante, mas o perfume chama muito a atenção. Ele sorriu e respondeu:<br />

- Você é sempre muito discreta, Susan, aprecio isso.<br />

- Não poderia ser diferente, ou você não suportaria conviver comigo...<br />

Lawrence sentou-se e convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vai me acompanhar?<br />

- Já tomei café, obrigada.<br />

Voltou a consultar o relógio e Lawrence a repreendeu:<br />

- Susan, pare com isso. Já é a quinta vez que olha para o relógio. Isso começa<br />

a me deixar ansioso. Está tu<strong>do</strong> certo, relaxe.<br />

- O assunto é delica<strong>do</strong>; deveríamos ser os primeiros a chegar... Lawrence,<br />

confiante, ergueu-se e corrigiu, enquanto limpava os<br />

lábios com um guardanapo:<br />

- Está enganada. É uma situação simples e já resolvida.<br />

- Como pode ter tanta certeza? Os pesquisa<strong>do</strong>res da FDA confirmaram que<br />

os principais elementos utiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> nos a<strong>do</strong>çantes comuns causam danos reais à<br />

saúde, especialmente a mental. Eu mesma li alguns <strong><strong>do</strong>s</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong>. Por isso, não<br />

coloco na boca mais uma gota desses venenos. A publicação desses estu<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

terá impacto imediato em todas as empresas que trabalham com alimentos dietéticos.<br />

Muitos deles, seus clientes, vão ficar furiosos. Como pretende solucionar<br />

essa difícil questão? Afinal, você aumenta sua fortuna fazen<strong>do</strong> lobby para<br />

eles junto aos órgãos públicos e ao governo.<br />

- Já disse que não se preocupe, tenho tu<strong>do</strong> sob controle. Foram até a cobertura<br />

<strong>do</strong> edifício e subiram no helicóptero que os levaria até Maryland, sede da<br />

FDA. Enquanto se dirigiam para a reunião, Lawrence dava concisas respostas<br />

à assistente, que por fim calou-se, já cansada de tanto pensar no assunto.<br />

279


Fora da sala, ela esperou que a reunião terminasse. Não conseguiu controlar-se<br />

e roeu as unhas. Quan<strong>do</strong> o chefe finalmente apareceu na porta, ten<strong>do</strong> ao<br />

la<strong>do</strong> um <strong><strong>do</strong>s</strong> integrantes <strong>do</strong> grupo, observou com atenção que conversavam em<br />

tom mais baixo; não obstante, pôde escutar algumas frases.<br />

- Com essa quantia, por quanto tempo pode assegurar que o assunto ficará<br />

esqueci<strong>do</strong> aqui dentro?<br />

- Olhe, mesmo com a soma vultosa que me oferece, mais os benefícios<br />

concedi<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos seus clientes, não posso garantir nada por muito tempo. A<br />

pressão <strong><strong>do</strong>s</strong> pesquisa<strong>do</strong>res é enorme.<br />

- Mas eles estão atenden<strong>do</strong> aos interesses de quem? Vamos, diga!<br />

- Não sei...<br />

- Ora, ora, Philip, não me venha com essa. Eles sempre defendem os interesses<br />

de alguém... Abra logo o jogo: de quem?<br />

Baixan<strong>do</strong> ainda mais a voz, Philip respondeu:<br />

- Um grande grupo fabricante de alimentos descobriu uma substância capaz<br />

de substituir os atuais princípios <strong><strong>do</strong>s</strong> a<strong>do</strong>çantes, causan<strong>do</strong> menos danos à<br />

saúde, de acor<strong>do</strong> com os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> efetua<strong><strong>do</strong>s</strong>. Num processo que você conhece<br />

bem, os dirigentes desse grupo estão determina<strong><strong>do</strong>s</strong> a tornar o novo produto<br />

uma fonte lucrativa no menor tempo possível. Já abriram o capital da empresa<br />

na bolsa de valores de Nova York e aguardam a confirmação e publicação <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

estu<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo FDA para verem suas ações explodirem.<br />

- Eu sabia! É claro. Mas o produto está aprova<strong>do</strong>?<br />

- Sim, está. Eles estão pressionan<strong>do</strong>, pagan<strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>res particulares,<br />

promoven<strong>do</strong> outros estu<strong><strong>do</strong>s</strong>, para nos confrontar. Se insistirmos por muito<br />

tempo, seremos desmoraliza<strong><strong>do</strong>s</strong> perante a opinião pública.<br />

Com sorriso irônico, Lawrence comentou:<br />

- E quem disse que a tal opinião pública tem alguma opinião própria? Você<br />

sabe tão bem quanto eu que eles pensam e acreditam naquilo que a mídia lhes<br />

exibe; em outras palavras, naquilo que outros, como nós, desejam que vejam e<br />

escutem. Olhe, Philip, tem de ser enérgico e impedir a divulgação das pesquisas<br />

oficiais. Dê a eles a quantia necessária. Pagaremos o triplo <strong>do</strong> que esse<br />

concorrente oferece... O quádruplo, mas quero que prorrogue pelo tempo que<br />

for preciso a omissão da publicação <strong><strong>do</strong>s</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

O outro falou, quase num sussurro:<br />

- Vou fazer tu<strong>do</strong> o estiver ao meu alcance.<br />

Dessa vez, Lawrence apoiou as mãos sobre os ombros de Philip e disse:<br />

- Para seu próprio bem, faça além <strong>do</strong> seu alcance.<br />

Passou pela assistente e foi direto para o eleva<strong>do</strong>r. Susan ergueu-se e correu<br />

atrás dele, curiosa.<br />

280


- O que foi?<br />

- Negócios. Qual é o meu próximo compromisso?<br />

-Você tem a inauguração de uma organização não-governamental no Brooklin.<br />

Fará um pequeno discurso de apoio, apenas uma página.<br />

Já dentro <strong>do</strong> helicóptero, ele quis saber:<br />

- Quanto tempo temos?<br />

- Trinta minutos entre o transporte aéreo e o terrestre.<br />

- Dê-me o texto e fale-me da instituição. E religiosa? Procuran<strong>do</strong> entre os<br />

papéis, ela leu algumas anotações e in-<br />

formou:<br />

- São espíritas.<br />

- Espíritas?<br />

- Isso mesmo.<br />

- Isso é uma religião?<br />

- Mais ou menos. Uma filosofia e uma religião.<br />

- São perigosos?<br />

- Não creio. Estão fazen<strong>do</strong> um trabalho com a comunidade carente <strong>do</strong> bairro.<br />

- Aqueles encrenqueiros asquerosos, sempre me dan<strong>do</strong> trabalho.<br />

- Foi por isso mesmo que pensei em levá-lo até eles, para ver se fortalece<br />

sua imagem junto à comunidade. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, são consumi<strong>do</strong>res de seus<br />

principais clientes. Conhecê-los de perto é importante.<br />

- Eu os conheço bem de perto, Susan, perto demais...<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

- Sabe que cresci no Brooklin...<br />

- Sei, você já me contou, mas não nesse distrito.<br />

- Conheço to<strong><strong>do</strong>s</strong> eles... São to<strong><strong>do</strong>s</strong> iguais: vagabun<strong><strong>do</strong>s</strong> e sem-vergonha.<br />

A assistente ofereceu-lhe água fresca.<br />

- O que aconteceu com você? Estava tão bem-humora<strong>do</strong>, e agora to<strong>do</strong> esse<br />

azedume...<br />

Lawrence fechou mais o semblante.<br />

- Philip me deu más notícias.<br />

- Eu sei, um novo concorrente de seus clientes.<br />

- Susan, esse assunto é delica<strong>do</strong> e não pode tornar-se público, nem de longe.<br />

- Fique tranqüilo. Sabe que sou discretíssima, especialmente com questões<br />

desse porte.<br />

- Se continuar a se esforçar, quem sabe não a tornarei minha sócia?<br />

- Não faria isso... Sempre disse que trabalha sozinho.<br />

- Você está a ponto de me fazer repensar esse paradigma.<br />

281


Desceram no heliponto mais próximo <strong>do</strong> lugar em que participariam <strong>do</strong><br />

evento e entraram em um carro que os aguardava. Logo em seguida, o motorista<br />

estacionou. Susan olhou atenta para fora, confirman<strong>do</strong> a localização.<br />

- Chegamos.<br />

Lawrence examinou o local, simples e pequeno, e ficou em dúvida.<br />

- Há algo que eu não deva falar?<br />

- Fale apenas o indispensável e seja simpático. Pergunte o que achar adequa<strong>do</strong><br />

e fale pouco. No final, ofereça o cheque que preparei; está atrás de seu<br />

discurso.<br />

Ele ia sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> carro, quan<strong>do</strong> a assistente o segurou:<br />

- Só mais uma coisa.<br />

Voltou a sentar-se ao la<strong>do</strong> dela, impaciente.<br />

- Emocione-se ao final <strong>do</strong> discurso, quan<strong>do</strong> for elogiar a instituição.<br />

- Emocionar-me?<br />

- Sim, às lágrimas.<br />

- Ora, Susan, não é para tanto...<br />

- Haverá jornalistas no evento.<br />

- Sem importância, estou certo.<br />

- Muitos deles são de veículos de comunicação expressivos. Você sabe<br />

como as notícias correm... Emocione-se, até sutis mas bem visíveis lágrimas, e<br />

deixe o resto comigo - apontou a câmara fotográfica que trazia.<br />

Lawrence fitou-a, hesitante, e ela empurrou-o para fora <strong>do</strong> carro, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Você é um verdadeiro artista. Use seu talento e represente.<br />

CINQUENTA E QUATRO<br />

Isabela saiu da sala de desembarque empurran<strong>do</strong> o carrinho cheio de malas.<br />

Dispensou o auxílio que a mãe ofereceu:<br />

- Pode deixar, mãe, acompanhe o pai.<br />

E tocan<strong>do</strong> o ombro <strong>do</strong> pai, olhou-o com carinho e perguntou:<br />

- Como está se sentin<strong>do</strong>? Quer que eu peça uma cadeira de rodas?<br />

- Nem pensar! Posso muito bem andar com minhas próprias pernas.<br />

- Está bem, não precisa ficar bravo. Só quero ter certeza de que está confortável.<br />

Chegaram finalmente em casa, no Alto de Pinheiros, bairro localiza<strong>do</strong> na<br />

zona oeste de São Paulo. Isabela aju<strong>do</strong>u a mãe com a bagagem e saiu logo<br />

após o almoço, enquanto os pais descansavam. Foi direto procurar pelo seu<br />

orienta<strong>do</strong>r na residência médica, levan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> os exames que o pai realizara.<br />

282


Depois de observar demoradamente cada um deles, o experiente professor colocou-os<br />

sobre a mesa.<br />

- É, Isabela, a situação é delicada e as orientações são corretas. Ele deve iniciar<br />

o tratamento o mais depressa possível.<br />

- Não consigo aceitar, <strong>do</strong>utor Ferraz.<br />

- Sei que é <strong>do</strong>loroso...<br />

- <strong>Além</strong> da quimioterapia, deve haver alternativas, algo que possa aliar a esse<br />

tratamento e que o ajude a superar a situação.<br />

- Talvez a psicoterapia ajude.<br />

Ela pensou um pouco antes de responder:<br />

- Sem dúvida, porém deve haver algo mais... Tem de haver... O médico nada<br />

disse e ela, olhan<strong>do</strong>-o fixamente nos olhos afirmou, tentan<strong>do</strong> justificar-se:<br />

- Não posso ficar de braços cruza<strong><strong>do</strong>s</strong>; preciso fazer algo para ajudar...<br />

E sem conseguir controlar a angústia, começou a chorar. Hélio Ferraz manteve-se<br />

cala<strong>do</strong> até que ela se acalmasse; então disse, compreensivo:<br />

- Sei que é muito difícil, mas precisa aceitar a situação. Limpan<strong>do</strong> as lágrimas<br />

que insistiam em descer-lhe pela face, ela<br />

comentou:<br />

- Preciso acreditar em algo além da medicina, <strong>do</strong>utor Ferraz, eu preciso. Os<br />

recursos de que dispomos são pobres diante das moléstias que enfrentamos.<br />

Não posso simplesmente observar uma <strong>do</strong>ença devorar meu pai... Preciso entender,<br />

fazer alguma coisa...<br />

Em seguida ergueu-se, e desculpou-se.<br />

- Preciso ir agora. Obrigada por seu tempo e sua atenção, e per<strong>do</strong>e-me pelo<br />

descontrole. Amanhã retomo o trabalho no hospital.<br />

- Fique tranqüila, eu compreen<strong>do</strong>.<br />

Despediu-se e saiu. Ao chegar ao piso térreo, olhou para o estacionamento<br />

onde deixara o carro, mas resolveu caminhar um pouco. An<strong>do</strong>u sem rumo,<br />

pensan<strong>do</strong> no que deveria fazer. Seu celular tocou. Era a mãe, preocupada com<br />

sua ausência. Isabela conversou rapidamente e pediu que não a esperassem<br />

para jantar. Queria ficar um pouco sozinha. Quan<strong>do</strong> desligou o aparelho, olhou<br />

para o outro la<strong>do</strong> da rua e viu pequena construção com uma placa na porta:<br />

Centro Espírita Bezerra de Menezes. Havia muitas pessoas entran<strong>do</strong> e ela aproximou-se,<br />

hesitante. Observou o lugar, depois se deteve nas pessoas que<br />

entravam; quan<strong>do</strong> deu por si, estava dentro da instituição, diante de uma senhora<br />

simpática, que lhe perguntou:<br />

- E a primeira vez que nos visita?<br />

- Sim... É a primeira vez.<br />

- Seja bem-vinda. Já conhece alguma coisa sobre a Doutrina Espírita?<br />

283


De imediato veio à mente de Isabela a experiência que vivera dias atrás<br />

com Peter.<br />

- Muito pouco - respondeu -, mas vivi uma experiência extraordinária outro<br />

dia.<br />

Com interesse, a senhora indagou:<br />

- È mesmo? Gostaria de partilhar comigo?<br />

- Não sei...<br />

- Não tem problema. Vou explicar como funcionam nossas atividades e, se<br />

quiser, pode assistir ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Evangelho que realizamos hoje. É aberto ao<br />

público.<br />

- Evangelho?<br />

- Isso mesmo. Hoje é um <strong><strong>do</strong>s</strong> dias em que nossa casa permanece aberta, receben<strong>do</strong><br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> que precisam de socorro. E nada melhor <strong>do</strong> que o Evangelho de<br />

Jesus para nos confortar, orientar e fortalecer em nossos desafios, não é mesmo?<br />

Isabela sentia-se desconfortável, ansiosa, com forte desejo de sair e voltar<br />

para casa. Ao mesmo tempo, o olhar daquela senhora a cativava. Ela sentia<br />

como se já se conhecessem de longa data. Sentiu imediata afinidade com aquela<br />

desconhecida, de maneira semelhante ao que acontecera com Peter. Olhan<strong>do</strong><br />

para ela, sentia vontade de compartilhar toda a sua vida, como se aquela mulher<br />

pudesse compreendê-la sem precisar dizer nada. E a anfitriã delicadamente<br />

insistiu:<br />

- Gostaria de participar de nosso Evangelho desta noite?<br />

- Sim.<br />

- Venha comigo, vou levá-la ao salão principal.<br />

Isabela acomo<strong>do</strong>u-se na cadeira indicada. Assim que a mulher se afastou,<br />

pensou: "O que é que estou fazen<strong>do</strong> aqui? Quero ir embora.".<br />

Já ia se levantan<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> várias pessoas ocuparam uma mesa na frente<br />

<strong>do</strong> salão e logo as atividades começaram. Envolvida pela suave atmosfera <strong>do</strong><br />

ambiente, Isabela esqueceu o tempo, os problemas, as angústias. Sentiu-se<br />

embalada por delicadas energias que lhe revigoravam as forças e, principalmente,<br />

a esperança. Alguns <strong><strong>do</strong>s</strong> comentários pareciam dirigi<strong><strong>do</strong>s</strong> a ela em particular.<br />

Seu coração tornou-se sereno e leve. Ao final, reencontrou a senhora que<br />

a recepcionara, sorriu e agradeceu:<br />

- Muito obrigada pela acolhida.<br />

- O que você achou?<br />

- Eu gostei. Agora me sinto muito melhor <strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> cheguei. Voltarei<br />

outras vezes.<br />

- Quan<strong>do</strong> quiser.<br />

284


- Então até a próxima.<br />

À medida que a jovem se afastava, Helena sentiu o coração bater mais forte<br />

e não teve dúvida de que aquela jovem fazia parte de sua vida. Certamente a<br />

conhecia de outras encarnações, pois sentiu imenso carinho e afinidade por ela.<br />

No dia seguinte, Márcio iniciou o tratamento de quimioterapia. Isabela<br />

passou a freqüentar a casa espírita regularmente. Lá, além de receber energias<br />

renova<strong>do</strong>ras, buscava respostas para o difícil momento pelo qual passava. A<br />

<strong>do</strong>ença <strong>do</strong> pai era sua principal preocupação, mas buscava respostas para muitas<br />

outras questões importantes em sua vida.<br />

Logo depois que o tratamento começou, escreveu para Peter contan<strong>do</strong> suas<br />

recentes experiências. Quan<strong>do</strong> comentou com a mãe que estava envian<strong>do</strong> uma<br />

carta para ele, Ana Lídia não apoiou a atitude:<br />

- Ora, Isabela, o que você tem a ver com esse homem, praticamente um<br />

mendigo, cheio de dificuldades? Minha filha, acho que os nossos problemas a<br />

estão deixan<strong>do</strong> confusa. Por favor, pense bem. Você mal conhece esse rapaz,<br />

ele é um estranho. Não faça isso. Escute sua mãe; jogue essa carta no lixo e<br />

esqueça tu<strong>do</strong>. Já chega essa história de freqüentar aquele lugar. Você sabe que<br />

eu e seu pai sempre a incentivamos a fazer suas próprias escolhas, o que não<br />

significa que a apoiemos em tu<strong>do</strong>. Considero seu súbito interesse pelo Espiritismo<br />

uma circunstância eventual, ligada à situação de seu pai. Enten<strong>do</strong> que<br />

deseje encontrar uma solução e sei que está fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que pode. Quanto a<br />

escrever para esse estranho... Isso é inadequa<strong>do</strong>, filha.<br />

Isabela sorveu a xícara de café e, colocan<strong>do</strong> a carta dentro da agenda, beijou<br />

a mãe e disse:<br />

- Preciso ir. Venho buscar o pai e almoço com vocês. Acho melhor ele comer<br />

alimentos leves, pois da última vez a reação foi rápida e intensa.<br />

Com o semblante profundamente entristeci<strong>do</strong>, Ana Lídia respondeu:<br />

- Ele não tem passa<strong>do</strong> nada bem, está mesmo pioran<strong>do</strong>. Será que esse tratamento<br />

faz mal a ele, ao invés de ajudá-lo?<br />

- Ele está no começo, precisa persistir um pouco mais. Por outro la<strong>do</strong>, mãe,<br />

seria muito importante que ele viesse comigo ao centro espírita.<br />

Totalmente contrária àquela sugestão, Ana Lídia refutou imediatamente:<br />

- Nem adianta falar nisso de novo. Ele não quer, não acredita e não vai.<br />

- Está bem, agora preciso ir.<br />

Isabela seguiu para suas funções como residente de pediatria <strong>do</strong> Hospital<br />

das Clínicas em São Paulo. Dedicada, esquecia de si mesma ao atender as crianças.<br />

Antes de sair para buscar o pai, olhou a agenda sobre a mesa e viu a<br />

ponta <strong>do</strong> envelope. Puxou a carta e lembrou-se <strong>do</strong> que a mãe lhe dissera. Recolocou<br />

o envelope na agenda e pensou que ela podia ter razão. Embora sonhasse<br />

285


com Peter quase todas as noites, talvez devesse esforçar-se por não pensar<br />

mais naquele incidente.<br />

Estava quase no eleva<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong>, num impulso incontrolável, voltou, tirou<br />

a carta da agenda e a entregou à assistente administrativa <strong>do</strong> seu setor.<br />

- Você coloca esta carta no correio para mim, por favor? Olhan<strong>do</strong> o endereço<br />

<strong>do</strong> envelope, a jovem assentiu:<br />

- Deixe comigo. Tenho outras correspondências a enviar.<br />

- Obrigada.<br />

Isabela contava com a companhia de <strong>do</strong>is amigos espirituais. Um deles<br />

comentou:<br />

- Ela teve grande receptividade à sua sugestão, Thomas.<br />

- De fato. Sua sensibilidade está a ponto de se expressar efetivamente. Devemos<br />

intensificar nosso trabalho. Ela precisa estar preparada para lidar com a<br />

eclosão da mediunidade.<br />

Duas semanas depois, Isabela se aprontava para sair em companhia <strong>do</strong> pai,<br />

quan<strong>do</strong> o carteiro entregou a correspondência. Ansiosa, vasculhou as cartas e<br />

logo viu entre elas uma com selo diferente. Pegou-a e constatou: era de Peter.<br />

Os <strong>do</strong>is passaram a se corresponder freqüentemente. Como ele não tinha computa<strong>do</strong>r<br />

em casa, trocavam cartas, que eram mais baratas <strong>do</strong> que as ligações<br />

telefônicas, e seu interesse mútuo se intensificou.<br />

Ao mesmo tempo, quanto mais ouvia as palestras na casa espírita e se interessava<br />

pelos livros, mais familiar lhe soava tu<strong>do</strong> o que aprendia, como se já<br />

trouxesse no próprio íntimo aqueles conhecimentos. Entrou em contato com as<br />

obras de André Luiz e logo identificou nelas não somente orientações relativas<br />

a inúmeros aspectos da vida espiritual, como também importantes esclarecimentos<br />

referentes à saúde <strong>do</strong> corpo. Devorou to<strong><strong>do</strong>s</strong> os livros <strong>do</strong> autor, reconhecen<strong>do</strong><br />

seu conteú<strong>do</strong> elucidações que poderiam auxiliar na questão da <strong>do</strong>ença<br />

<strong>do</strong> pai.<br />

Tu<strong>do</strong> o que aprendia partilhava com Peter, que, alimenta<strong>do</strong> por aquela inusitada<br />

amizade, experimentava gradual transformação em sua vida. A esperança<br />

retornava-lhe aos poucos. Logo enviou à amiga a notícia de que encontrara<br />

emprego em uma redação, já que era jornalista. Com a volta ao trabalho, deixou<br />

para trás a profunda depressão em que caíra depois que a esposa o aban<strong>do</strong>nara.<br />

Isabela ainda tentava levar Márcio à casa espírita, mas ele resistia. A jovem,<br />

então, procurou por outros recursos: medicina natural, medicina chinesa,<br />

acupuntura e mudanças radicais na alimentação. Em todas essas alternativas<br />

buscava o fortalecimento <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong> pai para que enfrentasse com êxito as<br />

286


sessões de quimioterapia. Mesmo assim, seu esta<strong>do</strong> de saúde deteriorava gradativamente.<br />

Naquela tarde, Isabela chegou ao centro espírita em profun<strong>do</strong> desânimo.<br />

Acomo<strong>do</strong>u-se na cadeira, sem conseguia captar o que o palestrante dizia. Sua<br />

mente estava distante, preocupada com o pai, e seu coração, triste e angustia<strong>do</strong>,<br />

não sentia as energias leves e curativas que se espalhavam pelo ambiente.<br />

Helena logo percebeu a angústia da moça e, como se já conhecesse os seus<br />

problemas, sentou-se ao seu la<strong>do</strong>, vibran<strong>do</strong> intenso amor por ela. Aos poucos<br />

Isabela se acalmou, e de repente viu ao seu la<strong>do</strong> um homem alto, trajan<strong>do</strong> túnica<br />

como se fosse um padre. Confundiu-o com um ser encarna<strong>do</strong> e pensou<br />

"Não vi esse homem entrar aqui. O que será que faz de pé ao meu la<strong>do</strong>? Está<br />

atrapalhan<strong>do</strong> os outros, distrain<strong>do</strong> a atenção <strong><strong>do</strong>s</strong> presentes.". Em seguida,<br />

Thomas respondeu, também através <strong>do</strong> pensamento: "Não estou atrapalhan<strong>do</strong>,<br />

pois apenas alguns podem ver-me.".<br />

Assustada com o diálogo mental, Isabela arregalou os olhos. Veio-lhe a idéia:<br />

"Como sabe o que estou pensan<strong>do</strong>?". Obteve nova resposta telepática:<br />

"Posso ler alguns de seus pensamentos. Fique calma, sou um amigo e estou<br />

aqui para ajudar você, seu pai, enfim, sua família.". Ela indagou: "Vai curar<br />

meu pai?". Mais uma vez o espírito respondeu: "Isso eu não posso afirmar".<br />

Isabela esticou-se na cadeira. Seu coração batia descompassa<strong>do</strong> como se<br />

fosse saltar-lhe pela boca. As mãos estavam úmidas de suor gela<strong>do</strong>. Ela começou<br />

a tremer e sentiu violenta vertigem. Helena percebeu-lhe o esta<strong>do</strong> e imediatamente<br />

segurou-a pelo braço:<br />

- Venha comigo, precisa tomar um pouco de ar.<br />

Foram para uma pequena sala onde Helena realizava atendimentos. As duas<br />

se acomodaram e a senhora serviu um pouco de água a Isabela.<br />

- Fique calma - aconselhou -, está tu<strong>do</strong> bem.<br />

A moça constatou, com espanto, que o homem as acompanhara até aquela<br />

sala. Retrucou, então:<br />

- Não está tu<strong>do</strong> bem. Há um homem aqui conosco...<br />

- Parece um padre franciscano.<br />

- Como sabe?<br />

- Eu o estou ven<strong>do</strong> também.<br />

- Você o vê?<br />

- Desde que você começou a freqüentar o centro, tem vin<strong>do</strong> em sua companhia.<br />

Já nos conhecemos, e ele me disse que é um amigo e está sempre perto<br />

para ajudá-la. Não precisa ter me<strong>do</strong>, Isabela.<br />

- Como posso não ter me<strong>do</strong>? Estou ven<strong>do</strong> um homem morto...<br />

287


- Não, você está ven<strong>do</strong> o espírito de um homem que já esteve na Terra, em<br />

condição idêntica à nossa, e que agora habita o mun<strong>do</strong> espiritual, uma outra<br />

dimensão de nosso planeta.<br />

Temerosa de encarar aquele homem, Isabela pediu:<br />

- Pergunte, por favor, quem é e o que quer.<br />

Antes mesmo que ela terminasse, Thomas procurou esclarecer:<br />

- Sou seu amigo, Isabela, e estou ao seu la<strong>do</strong> desde que nasceu, para apoiála.<br />

Deve preparar-se depressa para assumir as responsabilidades com as quais<br />

se comprometeu antes de reencarnar. Helena orientará, mas deve começar o<br />

trabalho de auxílio ao próximo o mais breve possível, para fortalecer-se no<br />

bem. O tempo é curto e há muito o que fazer. Seu trabalho deve principiar já.<br />

Isabela fitou aquele homem, <strong>do</strong>minada por profunda emoção, e balbuciou:<br />

- Eu o conheço de algum lugar. Sei que o conheço...<br />

- Sim, minha filha, somos companheiros de longa data. Estou a qui para<br />

ampará-la na execução de suas tarefas. Todavia, nosso trabalho não se limita a<br />

nós <strong>do</strong>is. Também eu recebo a colaboração de espíritos mais eleva<strong><strong>do</strong>s</strong> para<br />

cumprir meus compromissos com Jesus. E assim sucessivamente, em ações<br />

conjuntas. Dependemos sempre uns <strong><strong>do</strong>s</strong> outros para a construção <strong>do</strong> bem, a<br />

começar dentro de nós. Igualmente precisamos de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que estão encarna<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

na Terra para que, através desse intercâmbio salutar, possamos progredir e<br />

nos ajudar mutuamente, sob as bênçãos de Jesus.<br />

Helena ouvia aquela mensagem com o coração cheio de emoção. O espírito,<br />

então, lhe falou diretamente:<br />

- Querida irmã, deve continuar com suas tarefas de auxílio ao próximo.<br />

Prossiga, destemidamente. Você e Eliana devem ampliar o trabalho de atendimento.<br />

Ambas sabem disso. Disseminem os serviços da instituição entre os<br />

necessita<strong><strong>do</strong>s</strong>, nas regiões de maior penúria, nas periferias. Não importa que<br />

muitos se mostrem resistentes, a pretexto de que a ajuda aos carentes de toda<br />

sorte caracteriza assistencialismo. Apenas seguimos o exemplo de Jesus, que<br />

foi o maior assistencialista de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tempos. Levem o socorro material e o<br />

conforto espiritual. E, acima de tu<strong>do</strong>, levem o Evangelho de Jesus em seus<br />

atos.<br />

Ele silenciou por instantes e, como se recebesse comunica<strong>do</strong> a distância,<br />

disse:<br />

- Agora tenho deveres me aguardan<strong>do</strong>. Logo nos veremos de novo.<br />

Thomas se despediu e saiu, deixan<strong>do</strong> Helena e Isabela envolvidas em suaves<br />

energias.<br />

288


CINQUENTA E CINCO<br />

DURANTE BASTANTE TEMPO as duas permaneceram caladas, como se desejassem<br />

reter aquelas <strong>do</strong>ces emoções para sempre. Estavam ainda absortas, relembran<strong>do</strong><br />

a experiência, quan<strong>do</strong> Eliana, a presidente da casa espírita, abriu a<br />

porta. Ven<strong>do</strong>-as, indagou:<br />

- Está tu<strong>do</strong> bem?<br />

Como se despertasse de um sonho, Helena respondeu:<br />

- Sim... Claro, Eliana, está tu<strong>do</strong> bem.<br />

- Fiquei preocupada com vocês. Saíram subitamente e, como não retornaram,<br />

pensei ter havi<strong>do</strong> algum problema. To<strong><strong>do</strong>s</strong> já foram embora.<br />

- Nossa! O tempo passou e nem notei. De fato, Isabela não se sentia bem.<br />

- Sensibilidade afloran<strong>do</strong>?<br />

- Sim, abertura mediúnica. O mentor dela se apresentou e tivemos uma<br />

conversa instrutiva e proveitosa.<br />

- Eu o vi enquanto ela estava sentada na platéia. Isabela ficou surpresa:<br />

- A senhora também o vê?<br />

- Sim, minha filha; ele usava uma batina e tinha a aparência de padre franciscano.<br />

- Foi assim mesmo que o vi - a jovem concor<strong>do</strong>u. E Eliana prosseguiu:<br />

- Ele tem esta<strong>do</strong> conosco há algum tempo.<br />

- E muito interessante - Helena comentou. - Sinto como se o conhecesse<br />

há muito tempo; e o mesmo acontece com relação a Isabela.<br />

Eliana sorriu e considerou:<br />

- E possível que estejamos juntas há muitas encarnações, e agora mais uma<br />

vez reunidas no plano físico. Façamos bom uso de nosso tempo, nesta hora<br />

abençoada em que a Terra passa por estágio decisivo no seu desenvolvimento;<br />

é fundamental que aproveitemos esta oportunidade com sabe<strong>do</strong>ria.<br />

Interessada, Isabela inquiriu:<br />

- Do que a senhora está falan<strong>do</strong>?<br />

- Da transição da Terra. Nosso planeta atravessará largo perío<strong>do</strong> de turbulências<br />

e dificuldades extremas, que se traduzirão em calamidades, catástrofes,<br />

sofrimentos os mais diversos; isso porque está alcançan<strong>do</strong> o ápice de sua fase<br />

de planeta de expiações e provas para, ascenden<strong>do</strong> na escala <strong><strong>do</strong>s</strong> mun<strong><strong>do</strong>s</strong>, tornar-se<br />

um planeta de regeneração. Neste processo de transformação, é imperativo<br />

nos esforçarmos ao máximo para permanecer na Terra, pois aqueles que<br />

não despertarem para o bem, para a luz - para Deus, enfim -, terão de deixar o<br />

planeta, que mudará seu teor vibratório. Vemos que, nesse aspecto, o orbe terrestre<br />

está passan<strong>do</strong> por intensa modificação, que culminará em uma sintonia<br />

289


mais elevada, de amor, de harmonia, de paz. Entretanto, somente aqueles que<br />

puderem vibrar na mesma sintonia aqui ficarão, para trabalhar pelo bem maior:<br />

a implantação <strong>do</strong> reino divino sobre a Terra. Aqueles outros, que insistirem em<br />

viver longe <strong>do</strong> Pai e de seu amor, serão envia<strong><strong>do</strong>s</strong> então para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> mais atrasa<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

onde seguirão, em condição mais penosa, sua trajetória de evolução.<br />

Devemos valorizar cada momento de nossa vida servin<strong>do</strong> a Deus e a Jesus e,<br />

acima de tu<strong>do</strong>, trabalhan<strong>do</strong> em nós mesmos pela transformação interior para o<br />

bem.<br />

Isabela, que ouvia atenta, valeu-se de breve interrupção para indagar:<br />

- E como promover essa transformação interior? Como se faz isso:<br />

- Deixan<strong>do</strong> que o amor de Jesus nos envolva e pautan<strong>do</strong> pelo Evangelho<br />

nossos atos, nossa vida. Jesus nos trouxe, sobretu<strong>do</strong> pelo exemplo, to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />

ensinamentos de que necessitamos. Cabe-nos, agora, colocá-los em prática.<br />

Não basta declarar que professamos determinada religião. É preciso que vivamos<br />

seus ensinos, seus princípios, deixan<strong>do</strong> que iluminem nosso ser e nos<br />

transformem de fato. Como alertou Jesus, "nem to<strong>do</strong> aquele que me diz senhor,<br />

senhor, entrará nos reino <strong><strong>do</strong>s</strong> céus, mas sim aquele que faz a vontade de<br />

meu pai que está nos céus". E hora de acordarmos para essa verdade, de avaliarmos<br />

se não estamos louvan<strong>do</strong> o Mestre com os lábios e negan<strong>do</strong>-o com nossa<br />

vida, com nossos atos.<br />

Profundamente sensibilizada pelas palavras de Eliana, Isabela lembrou:<br />

- Aquele padre disse que preciso honrar responsabilidades que assumi antes<br />

de nascer... Que responsabilidades são essas?<br />

- Ainda que não possa afirmar de pronto, é possível que estejam relacionadas<br />

à sua mediunidade. Essa faculdade normalmente está associada a muito<br />

trabalho pelos semelhantes...<br />

- Sim, ele disse também que eu deveria começar a trabalhar pelos outros. O<br />

que poderia fazer aqui na instituição? Há algo em que meus conhecimentos<br />

médicos possam ajudar?<br />

- Qual é sua especialidade? - indagou Eliana.<br />

- Pediatria.<br />

A dirigente da casa sorriu.<br />

- Como você já deve ter ouvi<strong>do</strong> falarem, estamos prestes a concluir as obras<br />

de uma creche, que deverá receber muitas crianças menos favorecidas da<br />

região. Finalizada a construção, iniciaremos o processo de seleção <strong><strong>do</strong>s</strong> profissionais<br />

remunera<strong><strong>do</strong>s</strong> e voluntários que farão a creche funcionar de fato. Seria<br />

muito bom termos um médico para acompanhar o desenvolvimento e as necessidades<br />

de saúde das crianças. Se desejar, temos trabalho para você. Na realidade,<br />

estávamos aguardan<strong>do</strong> que esse profissional aparecesse... Já fizemos<br />

290


diversas entrevistas e temos quase to<strong><strong>do</strong>s</strong> os demais profissionais especializa<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

defini<strong><strong>do</strong>s</strong>. Porém há alguns - como é o caso de médicos, dentistas, psicólogos -<br />

que por enquanto não temos recursos para pagar... Isabela abriu largo sorriso e<br />

asseverou, decidida:<br />

- Pode contar comigo. Em seis meses terminarei minha residência e estarei<br />

totalmente apta para ajudar. Inclusive nesse meio-tempo posso colaborar, sem<br />

assumir o papel de pediatra responsável da instituição.<br />

- Vamos precisar de mais alguns meses até termos tu<strong>do</strong> em ordem para a<br />

inauguração e o início das atividades. Será o tempo necessário para que você<br />

esteja pronta. Enquanto isso, prepare-se também espiritualmente. Seria importante<br />

passar por um tratamento espiritual e, depois, esperar a orientação da<br />

espiritualidade que nos conduz, para principiar alguma outra tarefa, de caráter<br />

<strong>do</strong>utrinário. Como você vê, Isabela, se quiser trabalhar mesmo, não faltará<br />

oportunidade... Trabalho temos de sobra; o que nos falta são pessoas à disposição<br />

para servir. Muitos querem assumir cargos e funções; poucos são aqueles<br />

que se dispõem a servir seus semelhantes, atuan<strong>do</strong> onde é melhor e da maneira<br />

mais adequada para o trabalho como um to<strong>do</strong>.<br />

Eliana parecia feliz, no momento em que encerrou a conversa. - Precisamos<br />

ir agora. Poderemos contar com você, Isabela? Ou quer um tempo para<br />

refletir sobre o que ouviu hoje?<br />

- Podem contar comigo, quero trabalhar.<br />

Helena sorria, sentin<strong>do</strong> o coração pleno de alegria. As três saíram, e Eliana<br />

fechou o núcleo espírita. Isabela seguiu para casa rememoran<strong>do</strong> os detalhes <strong>do</strong><br />

que acabara de viver. Sentia profun<strong>do</strong> bem-estar brotar-lhe no íntimo. Assim<br />

que entrou no carro, seu celular tocou. Era a mãe, desesperada:<br />

- Onde você está? Seu pai está passan<strong>do</strong> muito mal, filha. Por favor, venha<br />

logo...<br />

- Em um minuto estarei aí.<br />

Ao chegou encontrou o pai em esta<strong>do</strong> lastimável. Levou-o para o hospital,<br />

onde foi imediatamente interna<strong>do</strong>. Seu organismo estava reagin<strong>do</strong> de forma<br />

violenta ao tratamento. Entrou no hospital desacorda<strong>do</strong>. Depois que ele foi<br />

medica<strong>do</strong> e apresentou pequena melhora, Lídia interpelou a filha:<br />

- Disseram-lhe alguma coisa sobre a situação real?<br />

- O mesmo que você já sabe, mãe. O organismo dele está fraco e o tratamento<br />

é muito forte.<br />

- E o que será dele e de nós, agora?<br />

- Não sei... Temos de confiar em Deus.<br />

291


- Muito me espanta uma médica como você, mulher independente e esclarecida,<br />

acreditar em ensinos místicos, achan<strong>do</strong> que isso poderá resolver sua<br />

vida...<br />

- Mãe, pelo pouco que conheço, sei que a Doutrina Espírita não tem nada<br />

de mística. Ela é científica, sim, e muito lógica.<br />

- É ridícula...<br />

- Você mal conhece...<br />

- Nem preciso. Não me interesso por religião alguma. São todas anestesiantes<br />

e alienantes.<br />

- Não a Doutrina Espírita, mãe. Ela é diferente, não aliena e sim conscientiza.<br />

Antes de tu<strong>do</strong> nos faz pensar. Seus postula<strong><strong>do</strong>s</strong> são de um bom-senso excepcional.<br />

Você devia conhecer um pouco, como professora de sociologia e<br />

filosofia...<br />

- Não, Isabela, chega. Não quero saber nada sobre isso...<br />

A jovem emudeceu, respeitan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r que percebia <strong>do</strong>minar a mãe naquele<br />

momento. Acima de qualquer raciocínio, ela sabia exatamente a experiência<br />

incrível que vivera. Vira Peter fora <strong>do</strong> corpo físico; portanto, não precisava ler<br />

ou ouvir alguém dizen<strong>do</strong> para acreditar. Sabia que existia um corpo etéreo<br />

semelhante ao corpo físico, e que esse ser tinha plena consciência de si mesmo.<br />

Ela podia ver o mun<strong>do</strong> espiritual, e a Doutrina Espírita lhe trouxera entendimento<br />

sobre essa faculdade.<br />

Depois de <strong>do</strong>is dias de acompanhamento intensivo, Márcio voltou para casa.<br />

Isabela, não obstante a oposição <strong><strong>do</strong>s</strong> pais, seguia estudan<strong>do</strong> os livros espíritas<br />

com afinco, e passou a freqüentar os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> noturnos, nos quais as obras<br />

de André Luiz eram esmiuçadas.<br />

Transcorri<strong><strong>do</strong>s</strong> quase seis meses, a moça estava prestes a finalizar sua residência<br />

e poderia atuar como pediatra formada. Esperava por isso com ansiedade<br />

e dedicava-se também ao trabalho da creche na companhia de Helena, da<br />

qual se tornara o braço direito. As duas fortaleciam-se reciprocamente e alimentavam<br />

profunda e sincera amizade. No entanto, o esta<strong>do</strong> de saúde <strong>do</strong> pai<br />

continuava a preocupá-la. Ele não apresentava melhora significativa; a <strong>do</strong>ença<br />

parecia estabilizada no patamar grave de seis meses antes.<br />

Aquela fora uma noite de estu<strong>do</strong> intenso, e as atividades no centro haviam<br />

termina<strong>do</strong> um pouco mais tarde <strong>do</strong> que o habitual. Isabela chegou em casa em<br />

silêncio, supon<strong>do</strong> que os pais já estivessem recolhi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ao abrir a porta, apreensiva,<br />

viu as luzes da casa acesas e escutou conversa na sala. Entrou e ficou<br />

surpresa: a mãe e o pai conversavam com um elegante homem loiro. Ela pensou<br />

ter reconheci<strong>do</strong> a voz, e quan<strong>do</strong> ele se virou para cumprimentá-la teve a<br />

certeza:<br />

292


- Boa noite, Isabela.<br />

Espantada, olhava para aquele homem cujos lin<strong><strong>do</strong>s</strong> e profun<strong><strong>do</strong>s</strong> olhos azuis<br />

mais pareciam um mar sereno. Sentiu o coração bater acelera<strong>do</strong>. Suas pernas<br />

amoleceram, e ela apoiou-se no braço <strong>do</strong> sofá para não desfalecer.<br />

- Peter, é você mesmo? - balbuciou.<br />

- Sim, sou eu - falou com seu inglês níti<strong>do</strong> e fácil de ser compreendi<strong>do</strong>.<br />

Dominada pela emoção e pela atração inexplicável que sentia por aquele<br />

homem, ela abriu largo sorriso.<br />

- O que está fazen<strong>do</strong> aqui?<br />

- Estou no Brasil a trabalho, mas não posso enganá-la. O trabalho foi apenas<br />

um pretexto que encontrei para poder vir até aqui. Eu precisava vê-la novamente.<br />

Espero que não se ofenda, nem se sinta invadida pela minha iniciativa.<br />

Caso minha presença a incomode, por favor, quero que me diga.<br />

- De maneira alguma! Estou surpresa, muito surpresa! Você não disse nada<br />

em suas cartas... Aliás, faz algum tempo que não escreve.<br />

- Eu sei. É que estava muito ocupa<strong>do</strong> com o novo trabalho e também com<br />

os preparativos para a viagem. Quis fazer esta surpresa.<br />

- Estou feliz que esteja aqui. Quanto tempo vai ficar?<br />

-Três dias. Tenho uma cobertura esportiva para fazer e logo vou retornar.<br />

- Esportes?<br />

- Embora não seja exatamente minha especialidade, foi a forma que encontrei<br />

de ganhar dinheiro. <strong>Além</strong> disso, trouxe um de meus livros para uma editora<br />

brasileira avaliar. Eles trabalham com biografias e tenho uma obra singela<br />

para editar.<br />

- Você escreveu um livro?<br />

- Trata-se da biografia de um atleta conheci<strong>do</strong> nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Isabela sorriu e ficou a admirar o belo rosto de Peter, seus traços ao mesmo<br />

tempo suaves e masculinos, seus cabelos <strong>do</strong>ura<strong><strong>do</strong>s</strong> muito brilhantes. Ela conteve<br />

o ímpeto de lançar-se em seus braços ali mesmo, diante <strong>do</strong> olhar <strong><strong>do</strong>s</strong> pais.<br />

Conversaram bastante, até que Márcio se retirou com a esposa. Isabela e Peter<br />

ficaram a sós, em longo e agradável diálogo. Já era madrugada quan<strong>do</strong> ele<br />

disse:<br />

- Infelizmente preciso ir. Não demora a amanhecer e tenho de estar às sete<br />

horas no estádio, para a cobertura <strong>do</strong> evento.<br />

Seguran<strong>do</strong> com ternura as mãos de Isabela, indagou:<br />

- A que horas podemos nos ver de novo?<br />

- Normalmente fico no hospital até as cinco da tarde, mas vou tentar trocar<br />

meus horários para termos mais tempo juntos. Quero aproveitar cada minuto<br />

em sua companhia...<br />

293


Isabela conduziu Peter até a porta. Com ternura no olhar, ele afagou seu<br />

rosto, seus cabelos, seus lábios, e então beijou-a com ar<strong>do</strong>r. Ela se deixou envolver<br />

pelo seu carinho e entregou-se ao longo e apaixona<strong>do</strong> beijo que trocaram.<br />

Quan<strong>do</strong> Peter saiu, Isabela fechou a porta e encostou-se nela sentin<strong>do</strong><br />

como se vivesse um sonho. Aquele homem, quase mendigo, que a abordara<br />

acabava de sair de sua casa, irreconhecível, lin<strong>do</strong> e elegante. Que transformação<br />

inacreditável!<br />

A jovem se deitou e <strong>do</strong>rmiu algumas horas. De manhã fez algumas ligações,<br />

procuran<strong>do</strong> por amigos que a substituíssem em <strong>do</strong>is dias de suas obrigações<br />

no hospital. Conseguiu, afinal, acertar a troca com <strong>do</strong>is amigos diferentes.<br />

Ficou satisfeita. Teria <strong>do</strong>is dias inteiros para estar com Peter. Logo se lembrou<br />

de suas atividades na casa espírita e desejou que ele fosse junto.<br />

À noite, os <strong>do</strong>is assistiram a uma palestra senta<strong><strong>do</strong>s</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>. Assim que<br />

Helena avistou a amiga, soube quem a acompanhava. Isabela estava radiante.<br />

Depois, os <strong>do</strong>is saíram para jantar e falaram sobre muitos assuntos. Quanto<br />

mais ficava perto de Peter, mais Isabela se convencia de que ele era o homem<br />

com quem queria passar o resto de sua vida. De igual mo<strong>do</strong>, era irresistível a<br />

atração que Peter sentia por ela. Chega<strong>do</strong> o dia da partida dele para os Esta<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>, prometeram um ao outro que não tardariam a achar um jeito de se<br />

reverem. Ao observá-lo cruzan<strong>do</strong> o portão de embarque e a alfândega, envolvida<br />

em profunda emoção, Isabela não teve dúvida: estava apaixonada.<br />

Naquela noite foi para casa dirigin<strong>do</strong> bem devagar, a relembrar com entusiasmo<br />

cada momento que vivera ao la<strong>do</strong> de Peter. Tinha vontade de sorrir e<br />

de chorar, alternadamente. A esperança lhe envolvia o coração. Parecia que<br />

seus mais profun<strong><strong>do</strong>s</strong> sonhos se tornariam realidade. Ansiara tanto por encontrar<br />

um amor verdadeiro para compartilhar a vida, construir um lar e ter filhos...<br />

Gostaria de ter muitos, embora soubesse que seria difícil satisfazer plenamente<br />

tal aspiração. Se lhe fosse possível teria cinco, seis filhos... Sua casa<br />

estaria sempre repleta de crianças corren<strong>do</strong> de um la<strong>do</strong> para outro.<br />

Fora o carinho pelas crianças que a fizera optar pela especialização em pediatria.<br />

Já a medicina a atraía desde que começara a estudar. Sempre dizia que<br />

desejava cuidar <strong><strong>do</strong>s</strong> outros. Ao crescer escolhera a medicina. Ela pouco namorara,<br />

pois, de algum mo<strong>do</strong>, sabia haver alguém à sua espera, em algum lugar.<br />

Quan<strong>do</strong> encostou o carro na garagem e desligou o motor, sentiu como se<br />

caísse de grande altura ou despertasse de um sonho bom. Seu coração ficou<br />

angustia<strong>do</strong> ao lembrar-se <strong>do</strong> pai e de seu problema de saúde agrava<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong><br />

entrou em casa, silenciosamente, a mãe a aguardava acordada. Assim que a viu<br />

reclamou, choran<strong>do</strong>:<br />

- Não se importa com ninguém além de você, não é?<br />

294


- Calma, mãe, o que foi?<br />

- Seu pai passou muito mal.<br />

Ela fez menção de ir até o quarto e a mãe a deteve.<br />

- Agora não adianta, ele já está melhor.<br />

Isabela soltou o corpo na poltrona e fechou os olhos, suspiran<strong>do</strong>.<br />

- Ele passou muito mal no fim da tarde, mas não quis que eu a chamasse.<br />

- E por que não?<br />

- Você está com a cabeça nas nuvens! Não enten<strong>do</strong> como pode ligar-se a<br />

alguém que sequer conhece... Seu pai não simpatizou nem um pouco com o tal<br />

Peter.<br />

- Pois saiba que é uma ótima pessoa.<br />

- Como pode saber, em <strong>do</strong>is, três dias de convivência? Não vê o que está<br />

fazen<strong>do</strong> com sua vida? Esse homem não serve para você!<br />

- O que está acontecen<strong>do</strong> com vocês? Como podem julgar alguém que não<br />

conhecem? Não sou tola, estou procuran<strong>do</strong> conhecê-lo com muita cautela. Seja<br />

como for, sinto por ele grande afinidade, como se convivêssemos há muitos<br />

anos.<br />

A jovem parou por instantes e olhou a mãe.<br />

- Não foi assim com você e meu pai? Você sempre me diz que foi amor à<br />

primeira vista...<br />

- É diferente.<br />

- Por quê?<br />

- Porque estudávamos juntos, nos víamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias, e tivemos muito<br />

tempo para nos conhecermos bem antes de começarmos a namorar...<br />

- Mãe, quan<strong>do</strong> temos esse sentimento de afinidade profunda com alguém,<br />

não é preciso muito tempo para percebermos que é a pessoa que procurávamos...<br />

Não quer que eu seja feliz?<br />

- É claro que quero - ela sorriu ao responder.<br />

- Então me apoie.<br />

Ana Lídia baixou a cabeça. Limpan<strong>do</strong> as lágrimas que lhe desciam pela face,<br />

murmurou:<br />

- Estou com tanto me<strong>do</strong>... assim como seu pai. Isabela abraçou-a.<br />

- Eu sei, mãe, também sinto me<strong>do</strong>... Amo vocês e desejo muito que to<strong>do</strong><br />

esse pesadelo termine... O que mais quero é ver meu pai cura<strong>do</strong>, voltan<strong>do</strong> às<br />

suas atividades... Mas o que podemos fazer? Vocês precisam encontrar alguma<br />

esperança...<br />

- Uma religião, você quer dizer?<br />

- Sim, mãe, uma religião, uma fé, algo maior <strong>do</strong> que nós. Qual é o problema?<br />

295


- Isso tu<strong>do</strong> é bobagem. Não creio em religião alguma... Não há nada depois<br />

da morte...<br />

- Mãe, isso é terrível! Acreditar nisso é que a faz sofrer tanto... Se deixasse<br />

que Jesus...<br />

Ana Lídia não lhe permitiu concluir.<br />

- Pare, por favor, filha. Não quero mais conversar sobre esse assunto. Fico<br />

feliz que você tenha encontra<strong>do</strong> uma forma de anestesiar suas <strong>do</strong>res...<br />

- Não, mãe, não estou anestesian<strong>do</strong> nada... Sinto <strong>do</strong>r, exatamente como<br />

antes, só que agora posso compreender por que sofremos... Se você ao menos<br />

me deixasse falar, se me escutasse... Você, uma mulher tão inteligente, deveria<br />

ler alguns <strong><strong>do</strong>s</strong> livros espíritas eu já li. Eles são elucidativos demais... E nos<br />

trazem reflexões que satisfazem ao mesmo tempo nossas necessidades emocionais<br />

e intelectuais - racionais, enfim.<br />

Tocan<strong>do</strong> o braço da filha, Ana Lídia respondeu:<br />

- Eu gostaria de acreditar, filha, porém não consigo...<br />

Ficaram ambas em silêncio, e pouco depois a mãe avisou:<br />

- Vou me deitar, estou muito cansada. Boa noite. Observan<strong>do</strong>-a afastar-se,<br />

Isabela falou baixinho:<br />

- Boa noite, mãe.<br />

CINQUENTA E SEIS<br />

DEPOIS DA PARTIDA de Peter, os <strong>do</strong>is passaram a conversar diariamente pelo<br />

computa<strong>do</strong>r, estreitan<strong>do</strong> aquele laço amoroso. Ao mesmo tempo em que<br />

fortalecia o relacionamento com ele, Isabela desenvolvia-se interiormente mediante<br />

o estu<strong>do</strong> da Doutrina Espírita. Amparada por Thomas, sentia despertar<br />

seu potencial mediúnico. Queria trabalhar para auxiliar seus irmãos, mas ainda<br />

não compreendia exatamente como poderia fazer isso.<br />

Em uma noite, encerradas as atividades de estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Evangelho, Eliana aproximou-se<br />

dela:<br />

- Isabela, nossos orienta<strong>do</strong>res espirituais pediram para convidá-la a fazer<br />

parte de uma tarefa de especial relevância dentro da casa espírita: o trabalho de<br />

<strong>do</strong>utrinação. Disseram-me que você está pronta para iniciar. Gostaria que viesse<br />

na próxima terça-feira conhecer de perto a natureza dessa atividade.<br />

A jovem aceitou prontamente.<br />

- Eu virei, é claro. Estou consciente de que tenho deveres a cumprir e me<br />

sinto apta. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, tenho visto com freqüência o padre franciscano - seu<br />

296


nome é Thomas - e ele me disse que devo começar a utilizar minhas aptidões<br />

mediúnicas em benefício das pessoas.<br />

- Ótimo, então espero você na próxima terça-feira.<br />

Isabela compareceu no dia combina<strong>do</strong> e iniciou sua contribuição através da<br />

mediunidade de psicofonia, dan<strong>do</strong> oportunidade a espíritos fora <strong>do</strong> corpo físico<br />

de se expressarem.<br />

Quan<strong>do</strong> a tarefa terminou, Helena estava curiosa e perguntou:<br />

- E então, como foi a experiência?<br />

- Fiquei um pouco assustada no começo; então vi Thomas e fiquei mais<br />

confiante. Aos poucos entreguei-me, e estou muito feliz. Sinto tanta paz como<br />

nunca havia experimenta<strong>do</strong>...<br />

- É porque está no caminho que traçou para sua própria vida. Fico muito<br />

contente por você.<br />

Com os olhos rasos de lágrimas, Isabela confidenciou:<br />

- Helena, você tem si<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que amiga... E minha orienta<strong>do</strong>ra, a pessoa<br />

para quem corro sempre que tenho dúvidas ou que as dificuldades ficam<br />

maiores... Sua amizade fortalece meu coração. Você é muito mais <strong>do</strong> que uma<br />

amiga... Minha ligação com você é mais forte <strong>do</strong> que a que tenho com minha<br />

mãe... Não é estranho? Acha que estou com algum problema?<br />

- Não, Isabela, essa afinidade que nos une é real e também a sinto. Você<br />

sabe que tenho três filhos, to<strong><strong>do</strong>s</strong> homens, e para mim você é a filha que não<br />

tive... Esse sentimento que você percebe é recíproco.<br />

- No entanto, às vezes é um pouco estranho... Não consigo entender bem<br />

minhas emoções e sensações...<br />

- Nessas horas, devemos usar os conhecimentos que já possuímos. A Doutrina<br />

Espírita nos esclarece quanto a tais simpatias espontâneas, e também sobre<br />

as antipatias. Nosso passa<strong>do</strong> está conosco, dentro de nós, a to<strong>do</strong> instante.<br />

Apesar <strong>do</strong> abençoa<strong>do</strong> esquecimento das experiências pregressas, que nos permite<br />

reconstruir a vida através das novas oportunidades <strong>do</strong> presente, aquilo<br />

que fomos ainda permanece em nosso inconsciente, e não raro determina as<br />

escolhas que fazemos, as decisões que tomamos e o destino que construímos.<br />

Por isso é tão essencial o despertar da consciência. Temos de caminhar despertos,<br />

perceben<strong>do</strong>-nos e perceben<strong>do</strong> o que se passa ao nosso re<strong>do</strong>r. Isabela sorriu<br />

e abraçou a amiga.<br />

- Ficaria aqui a noite toda ouvin<strong>do</strong> você...<br />

- Eu também, mas preciso ir. Meu filho está lá fora à minha espera.<br />

Depois de alguns meses participan<strong>do</strong> daquela tarefa, Isabela começou a receber<br />

mensagens de diversos espíritos endereçadas a familiares. Assumia, assim,<br />

a tarefa árdua de levar consolo e esperança aos corações desalenta<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

297


Logo estaria terminan<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de residência e poderia integrar-se a outras<br />

frentes de trabalho na saúde, junto das crianças.<br />

Outros tantos meses se passaram e a creche estava prestes a ser inaugurada.<br />

A alegria e a expectativa tomava conta <strong><strong>do</strong>s</strong> trabalha<strong>do</strong>res empenha<strong><strong>do</strong>s</strong> em colocar<br />

aquela bela tarefa em pleno funcionamento. Eliana tinha muitos planos<br />

para as crianças que ali seriam acolhidas. A instituição e a creche se localizavam<br />

na periferia de São Paulo, em região muito carente de recursos. Na maioria<br />

as crianças ficavam pelas ruas ou trancadas em casa, enquanto os pais buscavam<br />

o sustento em condições igualmente precárias. A creche era aguardada<br />

com ansiedade pela comunidade <strong>do</strong> bairro.<br />

Naquela tarde de sába<strong>do</strong>, os dirigentes da instituição realizavam importante<br />

reunião com o objetivo de definir os últimos detalhes para a abertura da creche.<br />

Em contraste com o entusiasmo geral, Mateus como sempre acontecia,<br />

opunha-se veladamente aos propósitos enobrece<strong>do</strong>res da instituição. Helena<br />

captou a contrariedade e até certa animosidade <strong>do</strong> companheiro de tarefas;<br />

fitou Eliana e, notan<strong>do</strong> que a dirigente também percebera a situação e se calara,<br />

a<strong>do</strong>tou idêntica conduta. Ao final da reunião, quan<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> já haviam saí<strong>do</strong>,<br />

interpelou-a:<br />

- Você notou a contrariedade gratuita em Mateus?<br />

- Sim, Helena, mas devemos ter paciência com ele. Mateus necessita muito<br />

<strong>do</strong> trabalho e das possibilidades que tem aqui conosco.<br />

- Alguma razão específica?<br />

- Tenho conversa<strong>do</strong> constantemente com meu orienta<strong>do</strong>r espiritual a respeito<br />

dele. Sempre traz problemas e insinuações descabidas são jogadas com<br />

sutileza durante nossas reuniões e, no mais das vezes, depois delas. Ainda assim,<br />

a recomendação é para que eu seja paciente e firme com ele. Por isso, não<br />

<strong>do</strong>u grandes oportunidades para que expanda sua atuação na casa. Por outro<br />

la<strong>do</strong>, é minha obrigação mantê-lo conosco. Ele precisa da luz que o conhecimento<br />

espírita pode proporcionar-lhe.<br />

Diante <strong>do</strong> sorriso de Helena, ela indagou:<br />

- O que foi?<br />

- Você sempre fala dele com carinho, como se fosse um filho... É interessante.<br />

- Dá para notar?<br />

- Sim, sempre.<br />

- De fato, sinto por ele um carinho maternal, que não sei de onde provém.<br />

- Provavelmente <strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong>...<br />

Houve entre elas longo silêncio, até que Eliana disse, séria:<br />

298


- Nosso tempo está acaban<strong>do</strong>, Helena. As oportunidades de renascer na<br />

Terra estão findan<strong>do</strong> para os que não se deixarem envolver pela luz divina.<br />

Sinto grande preocupação da espiritualidade que nos ampara com aqueles que<br />

aqui estão, quem sabe, em sua última reencarnação no planeta. Temos de nos<br />

unir cada vez mais e nos fortalecer mutuamente, caminhan<strong>do</strong> no bem, sempre<br />

e a to<strong>do</strong> o custo.<br />

As duas amigas conversaram mais um pouco e depois se despediram. Enquanto<br />

isso, Mateus, que levava para casa outros <strong>do</strong>is membros da instituição,<br />

comentava malicioso:<br />

- Eu acho que estamos toman<strong>do</strong> rumo equivoca<strong>do</strong>. Interpretan<strong>do</strong> a mudez<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros como autorização<br />

para continuar, aumentou a <strong><strong>do</strong>s</strong>e de veneno:<br />

- Aliás, nossa instituição está mesmo muito ultrapassada, precisan<strong>do</strong> de renovação!<br />

Afinal, tu<strong>do</strong> se modifica, evolui, não é mesmo?<br />

É um princípio básico da nossa <strong>do</strong>utrina. Tu<strong>do</strong> está em constante transformação.<br />

Após premeditada pausa, prosseguiu, em tom mais baixo:<br />

- Estou muito preocupa<strong>do</strong> com nossa casa e com a Eliana. Vejo-a muito<br />

cansada, estressada com tantas atividades. Não sei, não, mas me parece que<br />

está sob influência espiritual negativa... Acho que ela deveria ser encaminhada<br />

com urgência para um tratamento espiritual, pois sinto que não anda bem...<br />

Vocês não vêem como está exausta?<br />

- É, tenho percebi<strong>do</strong> que ela não está muito bem... - concor<strong>do</strong>u um deles.<br />

- Pois é... É natural, não? Com tanto trabalho... Acho que ela precisa descansar,<br />

tirar umas férias e se refazer. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, tenho li<strong>do</strong> muito sobre as<br />

mudanças feitas nos centros espíritas por to<strong>do</strong> o país. Deveríamos a<strong>do</strong>tar essas<br />

alterações em nossas tarefas, para adequá-las aos tempos modernos... Tornálas<br />

mais atraentes, para que mais pessoas venham e permaneçam conosco. Sonho<br />

ver nossa casa com o <strong>do</strong>bro, o triplo de pessoas que a freqüentam atualmente;<br />

imaginem todas essas pessoas contribuin<strong>do</strong> com a creche e as outras<br />

atividades... Ouçam o que estou dizen<strong>do</strong>: precisamos de renovação, de mudanças,<br />

de atualização. E, infelizmente, acho que a Eliana não está conseguin<strong>do</strong><br />

compreender o que acontece...<br />

O acompanhante que já falara mantinha a concordância com Mateus, enquanto<br />

a outra se limitava a escutar.<br />

Eliana administrava com tolerância as constantes investidas desequilibradas<br />

de Mateus, que nascera em um lar católico e, ao atingir a idade<br />

adulta, começara a freqüentar casas espíritas, onde invariavelmente criava confusões<br />

e dificuldades para os dirigentes e trabalha<strong>do</strong>res sinceros. Na verdade,<br />

299


ele sempre se voltava contra os dirigentes das instituições pelas quais passara,<br />

acusan<strong>do</strong>-os de autoritários e retrógra<strong><strong>do</strong>s</strong>, porque suas idéias que não eram<br />

acatadas. Passou, então, a fomentar tais idéias em surdina, ao invés de apresentá-las<br />

nas reuniões destinadas a essa finalidade.<br />

Ele deixou os <strong>do</strong>is companheiros em uma estação <strong>do</strong> metrô e foi para casa.<br />

Entrou no apartamento onde morava sozinho e preparou um prato de comida.<br />

Depois sentou-se diante da televisão, percorreu vários canais e, por fim, desligou<br />

o aparelho e foi para a cama. Tão logo a<strong>do</strong>rmeceu, desligou-se <strong>do</strong> corpo<br />

físico e foi recebi<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is espíritos que usavam pesa<strong>do</strong> capuz negro. Um<br />

deles falou:<br />

- Seu trabalho precisa ser concluí<strong>do</strong>. Tem de impedir que abram a creche.<br />

Faça o que for necessário, mas impeça a mulher de abrir a creche e aproveite<br />

para destruir aquela instituição, cujas atividades têm muitos beneficiários.<br />

Nossos maiores não estão nada satisfeitos; querem que você destrua a instituição,<br />

e depressa. Ela tem atrapalha<strong>do</strong> muitos da nossa equipe e retardan<strong>do</strong> nossos<br />

planos. Você está lá para destruí-la. Faça isso.<br />

- Estou fazen<strong>do</strong> a minha parte, são vocês que não cuidam da sua! Tu<strong>do</strong> o<br />

que tento dá erra<strong>do</strong>! Onde estão que não me ajudam? Não conseguirei sozinho...<br />

- Cale a boca! Nós estamos fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que podemos!<br />

- E eu também!<br />

- Pensa que não percebemos que você se enfraquece na presença da Eliana?<br />

- E claro que não!<br />

- É claro que sim! Parece um tonto perto dela... Ela <strong>do</strong>mina você, idiota!<br />

Agarran<strong>do</strong>-o com violência, Mateus o atirou no chão. Nesse instante o outro<br />

espírito o segurou:<br />

- Parem os <strong>do</strong>is com isso! Temos de planejar melhor o que faremos...<br />

O primeiro se levantou e, ajeitan<strong>do</strong> a pesada túnica, disse:<br />

- Se o nosso general aqui não se compenetrar <strong>do</strong> que deve fazer e passar<br />

para a próxima instituição a ser destruída, não caminharemos... É essa Eliana<br />

que nos atrapalha... Você deve atentar é contra a vida dela... Acabe com essa<br />

mulher de uma vez! O que o impede?<br />

- Ora, não banque você o idiota! Ela não está sozinha! Está sempre protegida.<br />

- Deve ter algum ponto vulnerável que não estamos ven<strong>do</strong>... Sentan<strong>do</strong>-se<br />

na cama ao la<strong>do</strong> de seu próprio corpo físico a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong> Mateus declarou:<br />

- Eu não encontro... Ela é uma mulher de caráter impecável! Totalmente<br />

dedicada a... Vocês sabem...<br />

300


Os três se calaram, sentin<strong>do</strong> nítida alteração na energia <strong>do</strong> ambiente. Um<br />

deles disse:<br />

- E melhor sairmos daqui... Parece que há luz se aproximan<strong>do</strong>... E você,<br />

Mateus, é bom acordar para não ser pego por eles...<br />

Saíram, e quan<strong>do</strong> Mateus deitou-se sobre seu corpo físico, no intuito de<br />

despertar, foi impedi<strong>do</strong> por intensa luminosidade que envolveu o ambiente. Do<br />

interior da luz surgiu a imagem de uma bela mulher que ele reconheceu, sem,<br />

no entanto, saber quem era.<br />

- Licínio, sei o que está tentan<strong>do</strong> fazer - ela falou. - Apesar de suas intenções,<br />

o divino senhor Jesus o ama. Ele quer o seu bem e permitiu que você<br />

viesse para o centro <strong>do</strong> Evangelho redivivo, na esperança de que a luz da Doutrina<br />

Espírita pudesse despertar seu coração endureci<strong>do</strong> por milênios de escolhas<br />

desastrosas.<br />

Mateus, que fora Licínio, tremia sem resposta. A presença amorosa de<br />

Constância - que presentemente, também encarnada, ocupava a presidência da<br />

instituição espírita que ele freqüentava -manifestava-se a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> a forma espiritual<br />

que tivera como Deborah, pois sabia que assim despertava nele sentimentos<br />

de remorso e dúvida. Ela prosseguiu:<br />

- Volte-se para Jesus. Não deixe escapar esta oportunidade. Jesus conhece<br />

seu coração, sabe de seus propósitos destrutivos, mas o ama incondicionalmente,<br />

tal como eu. Embora você não o recorde agora, nós <strong>do</strong>is viemos <strong>do</strong><br />

sistema de Capela, onde nossa ligação afetiva era muito grande. Viemos para a<br />

Terra a fim de aprender a amar e aceitar nossa gloriosa destinação. E você,<br />

meu queri<strong>do</strong>, ainda se nega a deixar os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, a mudar seu coração,<br />

a admitir que os ensinos de Jesus sejam o centro de sua vida... Onde quer parar?<br />

Em outro planeta primitivo? Sabe que a operação de exílio da Terra já<br />

começou, já falamos no assunto algumas vezes. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, tem escuta<strong>do</strong><br />

isso reiteradamente na casa espírita. Não está cansa<strong>do</strong> dessa caminhada sem<br />

senti<strong>do</strong> que empreende? Escolha Jesus, escolha o bem, a paz, o amor. Escolha<br />

o caminho da regeneração! Licínio, para você, como para milhões de irmãos<br />

nossos, esta é a última chance de reencarnar no planeta. Legiões de almas estão<br />

sen<strong>do</strong> transferidas <strong>do</strong> orbe da Terra para expiar seus débitos e aprender a<br />

viver pelo amor. Não desperdice esta sagrada oportunidade. O momento é por<br />

demais importante. Vamos fazer nosso trabalho de regeneração, e não tardará<br />

nosso regresso a Capela...<br />

Num esforço enorme, Mateus gritou:<br />

- Vá embora! Afaste-se de mim!<br />

Despertou, então, com seu próprio grito e sentou-se na cama, trêmulo. Levantou-se<br />

e foi até a cozinha tomar um copo de água. Abriu a janela da sala,<br />

301


observan<strong>do</strong> o tráfego incessante <strong><strong>do</strong>s</strong> carros madrugada adentro. Acendeu um<br />

cigarro, depois outro e mais outro. Com o coração descompassa<strong>do</strong> e interiormente<br />

abala<strong>do</strong>, decidiu tomar um copo de uísque. Tomou vários e, exausto,<br />

voltou para a cama; nem com isso conseguir <strong>do</strong>rmir. Constância, que se mantivera<br />

ao la<strong>do</strong> dele, orava com fervor e devoção por aquela criatura amada.<br />

Finalmente, quan<strong>do</strong> o dia amanheceu, Eliana acor<strong>do</strong>u conservan<strong>do</strong> vivas<br />

na memória as imagens de Mateus. Sabia que estivera em sua companhia durante<br />

a noite e lamentou a dureza <strong>do</strong> coração daquele irmão tão queri<strong>do</strong>.<br />

CINQUENTA E SETE<br />

LAWRENCE BALANÇAVA o copo para misturar o gelo e a bebida. Senta<strong>do</strong><br />

em cadeira confortável, escutava a conversa <strong>do</strong> grupo. Susan apareceu à porta<br />

e Bernard o olhou, indagan<strong>do</strong>:<br />

- Aquela não é sua assistente?<br />

Lawrence esticou ligeiramente o pescoço, procuran<strong>do</strong> identificar a pessoa<br />

de quem Bernard falava, e surpreendeu-se com a beleza da jovem num elegante<br />

traje preto, salpica<strong>do</strong> de pedras e strass que cintilavam. Ele ergueu o braço e<br />

a moça, que também o procurava, sau<strong>do</strong>u-o a distância. Depois, entregan<strong>do</strong> o<br />

casaco e a bolsa ao serviçal que a recebera à porta, entrou e foi direto ao encontro<br />

<strong>do</strong> chefe, que confirmou:<br />

- E minha assistente, sim. Essa jovem tem futuro... E competente.<br />

Com olhar malicioso, Bernard comentou:<br />

- Gostaria que prestasse alguns favores a mim...<br />

- Ela está interessada em uma carreira, Bernard, acima de qualquer outra<br />

coisa.<br />

- Por isso mesmo. Posso ajudá-la a crescer rapidamente.<br />

Os <strong>do</strong>is silenciaram quan<strong>do</strong> ela se aproximou. Lawrence levantou-se para<br />

recebê-la.<br />

- Boa noite, Susan.<br />

- Boa noite, Lawrence<br />

Num relance de olhos sobre o grupo, ela emen<strong>do</strong>u:<br />

- Senhores, boa noite.<br />

- Deixe-me apresentá-la a algumas das pessoas mais poderosas <strong><strong>do</strong>s</strong> Esta<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Susan sorriu, satisfeita. Pós-graduada por Harvard em relações internacionais,<br />

a<strong>do</strong>rava aquele ambiente de poder e competição. Foi cumprimentan<strong>do</strong><br />

um a um à medida que Lawrence os apresentava.<br />

302


- Doutor Simon, presidente da Saxo Farmacêutica.<br />

- Muito prazer, <strong>do</strong>utor, tenho ouvi<strong>do</strong> muito a seu respeito desde os tempos<br />

da faculdade. Sem dúvida é uma honra trabalhar para o senhor.<br />

Fitan<strong>do</strong> a jovem de alto a baixo, Simon limitou-se a responder:<br />

- Obriga<strong>do</strong>. Lawrence prosseguiu:<br />

- Sena<strong>do</strong>r Duncan, sena<strong>do</strong>r Oswald, sena<strong>do</strong>r Bryan, sena<strong>do</strong>ra Julian e juíza<br />

Elizabeth Brengen.<br />

A jovem, cheia de contentamento, tecia comentários pessoais a cada um<br />

que cumprimentava; demonstrava extraordinária memória sobre fatos relevantes<br />

da vida deles, o que lhe garantiu, de imediato, uma boa acolhida <strong>do</strong> seleto<br />

grupo. Por fim, Lawrence apresentou:<br />

- E este é Bernard Nutting, presidente da FDA.<br />

- Como vai?<br />

- Muito bem.<br />

Lawrence comentou baixinho com a jovem, enquanto se sentavam:<br />

- Você está especialmente atraente hoje.<br />

- Obrigada, chefe. - ela sorria ao agradecer. - Você pediu que eu caprichasse.<br />

- E você não me desapontou. Quanto custou esse vesti<strong>do</strong>?<br />

- Uma fortuna. Mas não se preocupe, coloquei na conta <strong>do</strong> escritório.<br />

Fitan<strong>do</strong>-a sério, Lawrence não teve tempo de responder. Simon deu seqüência<br />

ao assunto que conversavam antes da chegada de Susan:<br />

- O que você acha, Lawrence?<br />

- Se temos de realizar os testes em humanos, por que não nos países pobres?<br />

Assim, a miserável vida deles terá algum senti<strong>do</strong>.<br />

As gargalhadas foram quase em uníssono. Depois, Simon comentou, sorven<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>is goles de sua bebida:<br />

- Por isso não abro mão de trabalhar com você, Lawrence. E objetivo, direto<br />

e prático. Não usa meias palavras.<br />

- Eu não conheço meias palavras.<br />

- Desculpem se é estupidez - falou Susan -, mas os governos desses países<br />

pobres permitiram esse tipo de ação?<br />

Dessa vez foi o sena<strong>do</strong>r Duncan quem respondeu:<br />

- Os governos <strong><strong>do</strong>s</strong> países pobres estão muito mais preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> com a reeleição<br />

e com suas polpudas contas estrangeiras. Aceitam boas negociações -<br />

entenda-se altas somas - e autorizam nossas atividades sem maiores constrangimentos.<br />

Acresce que temos filiais em muitos desses países, o que nos facilita<br />

ainda mais o trabalho.<br />

Susan estava fascinada.<br />

303


- Gosto disso! Agora, e se a mídia desses países descobrir... Digo, se algum<br />

repórter bisbilhoteiro descobrir e tornar públicas nossas atividades?<br />

A juíza Elizabeth interveio:<br />

- Minha cara, você não está falan<strong>do</strong> sério.<br />

- Por quê?<br />

- A mídia está a nosso serviço praticamente no mun<strong>do</strong> inteiro.<br />

- É verdade, até mesmo aqui, em nosso país. O sena<strong>do</strong>r Bryan concor<strong>do</strong>u:<br />

- A mídia é nossa aliada mais ferrenha, levan<strong>do</strong> ao povo apenas aquilo que<br />

nos interessa mostrar. Ela, mais <strong>do</strong> que to<strong><strong>do</strong>s</strong>, está interessada na audiência, ou<br />

seja, no dinheiro.<br />

- Vejo que os senhores controlam tu<strong>do</strong>.<br />

- Exatamente, Susan - afirmou Lawrence. - Não exagerei ao dizer que você<br />

está diante de um <strong><strong>do</strong>s</strong> grupos mais poderosos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>...<br />

Desejan<strong>do</strong> apimentar ainda mais a conversa, por simples prazer e deleite<br />

próprio, Susan continuou:<br />

- E se aparecer algum idealista, no meio <strong><strong>do</strong>s</strong> profissionais da imprensa,<br />

que se interesse realmente pelas pessoas?<br />

- Minha cara, to<strong><strong>do</strong>s</strong> têm seu preço. As emissoras estão à venda, da mesma<br />

forma que as pessoas.<br />

- E se alguém fincar pé e não ceder? - ela insistiu.<br />

- Isso não acontece.<br />

- E se acontecer?<br />

Parecen<strong>do</strong> um tanto entediada, Julian falou:<br />

- Ora, dan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is ou três telefonemas, ou mesmo <strong>do</strong>is cliques no computa<strong>do</strong>r,<br />

armamos um belo circo, derruban<strong>do</strong> nosso opositor <strong>do</strong> picadeiro sem rede<br />

para segurá-lo. É muito simples...<br />

Pedin<strong>do</strong> mais bebida ao garçom, a jovem exibiu largo sorriso:<br />

- Apesar de trabalhar com Lawrence há algum tempo e ouvir falar de vocês<br />

diversas vezes, estou fascinada por conhecê-los pessoalmente.<br />

A conversa estendeu-se noite adentro. Mais tarde, falavam sobre a fabulosa<br />

e lucrativa indústria da <strong>do</strong>ença. Simon garantia:<br />

- Tenho certeza de que nossas ações continuarão crescen<strong>do</strong>. Vocês podem<br />

continuar compran<strong>do</strong>... Sei que to<strong><strong>do</strong>s</strong> já têm ações da Saxo... Comprem mais,<br />

pois vamos crescer muito e rapidamente.<br />

- Novos medicamentos?<br />

- Isso mesmo.<br />

Depois de muitos copos de bebida e <strong>do</strong> consumo de outros tipos de drogas,<br />

o grupo - que participava de uma festa privada e exclusiva da altíssima sociedade<br />

de Washington - estava completamente descontraí<strong>do</strong>. Susan perguntou:<br />

304


- E to<strong><strong>do</strong>s</strong> esses medicamentos novos a que se refere têm os maravilhosos<br />

efeitos colaterais?<br />

- Sem dúvida, to<strong><strong>do</strong>s</strong> eles. Manteremos nossos pacientes <strong>do</strong>entes, porém vivos,<br />

por muito tempo...<br />

- E quanto ao aparecimento de novas <strong>do</strong>enças? - indagou Julian.<br />

- Temos uma série delas em nosso portfolio, preparadas para serem lançadas<br />

ao público, seguin<strong>do</strong> cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>o planejamento. Por exemplo, a maravilhosa<br />

síndrome <strong>do</strong> pânico. O que acham?<br />

Depois de uma gargalhada geral, Simon comentou:<br />

- Essa já nos rende milhões, e vai render ainda mais.<br />

- Como fazem para induzir as pessoas com tanta facilidade? - a pergunta<br />

foi de Susan.<br />

- Ora, o povo está a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>, em profun<strong>do</strong> torpor. Caminha como ga<strong>do</strong>,<br />

ora para um la<strong>do</strong>, ora para outro... e ora para o mata<strong>do</strong>uro. Damos-lhe as celebridades<br />

e a televisão para que se distraia e continue a <strong>do</strong>rmir. Oferecemos-lhe<br />

o sonho da riqueza e <strong>do</strong> poder, <strong>do</strong> sucesso a to<strong>do</strong> custo, e ele o abraça como se<br />

fosse próprio. Não é complica<strong>do</strong>.<br />

Depois de curta pausa, o sena<strong>do</strong>r Oswald tomou a palavra.<br />

- O povo deve ter tão-só o necessário para que possa ser-nos útil. Deve trabalhar<br />

muito, sem ter tempo para mais nada. Pensar, jamais! A televisão ajuda<br />

a manter a mente <strong>do</strong> povo sob nosso controle. Assim também a alimentação.<br />

Enquanto as pessoas estiverem à procura <strong>do</strong> ouro, como da cenoura amarrada<br />

diante <strong>do</strong> burro, estarão sob nosso controle. Consumirão o que dissermos que<br />

devem consumir, vestirão o que dissermos que devem vestir, comerão o que<br />

dissermos que devem comer. E nos trarão os impostos, o dinheiro que queremos.<br />

Até mesmo para Susan, que apreciava os jogos de poder e o ambiente de<br />

riqueza e ostentação, aquela conversa se tornara opressiva. Ficou totalmente<br />

chocada pela absoluta falta de consideração com que aqueles homens falavam<br />

sobre os seres humanos em geral. Sabia que eles realmente pensavam daquela<br />

forma, e ainda assim os admirava. Ao final, quan<strong>do</strong> se despediu <strong>do</strong> grupo e foi<br />

levada por Lawrence até o eleva<strong>do</strong>r, ele quis saber:<br />

- Aproveitou bem a noite?<br />

- O melhor que pude.<br />

Olhan<strong>do</strong> a jovem da cabeça aos pés, o executivo comentou, desaponta<strong>do</strong>:<br />

- Pensei que fosse ficar mais entusiasmada. Afinal, era tu<strong>do</strong> o que você<br />

queria, não era?<br />

305


- Sem dúvida, Lawrence. Só posso agradecer-lhe por me proporcionar esse<br />

verdadeiro prazer... É que, tenho de confessar, fiquei espantada com o mo<strong>do</strong><br />

descara<strong>do</strong> como manipulam as pessoas. É impressionante.<br />

- Ora, você já sabia disso, não há novidade...<br />

- Eu sei, mas ouvi-los falar declaradamente e com entusiasmo aquilo que<br />

eu já sabia foi, digamos... chocante.<br />

- Ora, senhorita, o que esperava? Madre Tereza? Sorrin<strong>do</strong> insinuante, Susan<br />

respondeu:<br />

- Não seja bobo! Você me conhece... Abraçan<strong>do</strong>-o e beijan<strong>do</strong>-o no pescoço,<br />

ela perguntou:<br />

- Vem comigo para meu apartamento?<br />

- Hoje não, querida. Vou levar a sena<strong>do</strong>ra Julian para casa.<br />

- E o mari<strong>do</strong>?<br />

Lawrence apontou o mari<strong>do</strong> da sena<strong>do</strong>ra estira<strong>do</strong> em um sofá, num canto<br />

isola<strong>do</strong> da sala, inconsciente, entre os braços de duas mulheres seminuas.<br />

- Está muito ocupa<strong>do</strong>.<br />

- Então, espero por você mais tarde.<br />

- Não, hoje não. Amanhã nos vemos no escritório.<br />

- Então, até amanhã.<br />

Em um canto da sala, três entidades espirituais, que prestavam auxílio na<br />

casa espírita que Lawrence visitara, observavam o ambiente degradante e pesa<strong>do</strong>.<br />

Em agradecimento ao apoio financeiro que ele vinha dan<strong>do</strong> à instituição,<br />

aquelas entidades estavam a serviço de Jesus e acompanhavam o jovem que,<br />

antes de reencarnar, estivera por séculos subordina<strong>do</strong> a Núbio. Um deles comentou:<br />

- Como é possível que homens como esses tenham tamanho poder e influência<br />

sobre os demais? Por que Deus permite tal situação?<br />

- Todas as pessoas têm o livre-arbítrio e o direito de fazer suas escolhas.<br />

Dormem e se deixam <strong>do</strong>minar porque é mais fácil. Despertar é sempre penoso,<br />

trabalhoso e cansativo. Enganam-se e deixam-se enganar.<br />

- Quem são essas entidades perversas?<br />

- Estão sob as ordens de entidades espirituais que desejam deter o progresso<br />

da humanidade, impedir o homem de progredir.<br />

- E conseguem seu intento.<br />

- Atrasam, porém não impedem.<br />

- No entanto, causam tremen<strong><strong>do</strong>s</strong> entraves.<br />

- Sim, sem dúvida. São espíritos perversos que assim se portavam no plano<br />

espiritual e agora o fazem na Terra.<br />

306


- E por que Deus permite que retornem ao planeta, prejudican<strong>do</strong> tantas vidas?<br />

- Se não for pelo amor, será pela <strong>do</strong>r. Se o homem preferir despertar por<br />

meio <strong>do</strong> sofrimento, será respeita<strong>do</strong>, já que este faz parte de sua evolução. O<br />

Pai sempre nos convida pelo amor, mas seu chama<strong>do</strong> <strong>do</strong>ce e suave raramente é<br />

atendi<strong>do</strong>. Então vem a <strong>do</strong>r, que representa simplesmente a reação <strong>do</strong> Universo<br />

às ações contrárias à legislação divina. Sofremos porque transgredimos as leis<br />

de Deus. É imperioso o reajuste; enquanto não nos alinhamos ao Cria<strong>do</strong>r, sofremos.<br />

- E essas entidades? O que fazem na Terra?<br />

- Simon, Oswald e Julian não reencarnavam há muitos séculos. Por to<strong>do</strong><br />

esse tempo fugiram <strong>do</strong> corpo físico, atuan<strong>do</strong> espiritualmente sobre os homens<br />

para tê-los sob controle. Entretanto, ten<strong>do</strong> em vista o momento de transição<br />

planetária, foram constrangi<strong><strong>do</strong>s</strong> à reencarnação, como sua última oportunidade<br />

na Terra.<br />

- Eles não permanecerão no orbe terrestre?<br />

- É provável que não. Somente se conseguirem mudar; e, pelo que presenciamos<br />

hoje aqui, isso será muito difícil.<br />

O outro deplorou, num suspiro.<br />

- Realmente, só por milagre.<br />

- Os milagres são trazi<strong><strong>do</strong>s</strong>, muitas vezes, pelos braços <strong>do</strong> sofrimento. Observe<br />

com atenção o corpo de Simon.<br />

Depois de cuida<strong><strong>do</strong>s</strong>a varredura, o companheiro disse:<br />

- Percebe-se a deterioração em seu cérebro.<br />

- Em breve deixará a Terra, para não mais voltar.<br />

- Nunca mais?<br />

- Um dia regressará. Quan<strong>do</strong>, dependerá apenas dele.<br />

CINQUENTA E OITO<br />

ERA SÁBADO DE manhã e, no Brasil, Isabela almoçava. A empregada veio<br />

com uma caixa <strong>do</strong> correio nas mãos e avisou:<br />

- Dona Isabela, encomenda para a senhora. Erguen<strong>do</strong>-se em um salto, ela<br />

pegou a caixa.<br />

- Deixe-me ver. É de Peter!<br />

Curiosa, chacoalhou o embrulho suavemente e indagou para si mesma:<br />

- O que será isso?<br />

Terminou de almoçar rapidamente e foi até a sala de estar com o pacote<br />

nas mãos. Sentou-se, degustou uma xícara de café fresco e tirou o invólucro da<br />

307


embalagem. Havia um bilhete: "Querida, não abra até estarmos frente a frente<br />

no computa<strong>do</strong>r, hoje à noite. Por favor, é uma surpresa. Amo você, Peter".<br />

Embora a curiosidade a fustigasse, Isabela aguar<strong>do</strong>u até a noite. Nunca um<br />

entardecer lhe parecera tão demora<strong>do</strong>. Mais tarde, mal pôde engolir o jantar e<br />

correu até o seu notebook, para conectar-se ao namora<strong>do</strong>. Assim que conseguiu,<br />

lá estava ele. A jovem foi logo dizen<strong>do</strong>:<br />

- Recebi sua encomenda. O que está apronta<strong>do</strong>? Quase me matou de curiosidade.<br />

Isso não se faz. Nunca se pede a uma mulher para não abrir um presente<br />

que acaba de receber...<br />

- Vai valer o esforço. Pensei em muitas maneiras, e essa foi a melhor que<br />

encontrei...<br />

- Posso abrir agora?<br />

- Pode. Abra de um jeito que eu possa ver daqui.<br />

Isabela sentou-se bem diante da câmera digital e abriu a embalagem. Dentro<br />

dela havia uma pequena caixa azul com um lin<strong>do</strong> laço. O coração da moça<br />

começou a bater descompassa<strong>do</strong>, pois ela conhecia a tradição de se pedir alguém<br />

em casamento oferecen<strong>do</strong> um anel de brilhantes.<br />

- O que é isso?<br />

- Não consegui pensar em outra forma de pedir.<br />

Ela abriu a pequena caixa e lá estava o anel de brilhantes mais lin<strong>do</strong> que já<br />

vira. Um bilhetinho acompanhava o pacote: "Encontrei a mulher da minha<br />

vida. Aceita casar comigo?"<br />

Ela tirou o anel da caixa e exclamou:<br />

- Você me surpreendeu demais! Não podia imaginar...<br />

- E qual é sua resposta?<br />

Ela pensou por alguns instantes, hesitou um pouco, e finalmente, ceden<strong>do</strong><br />

à emoção que a invadia, colocou o anel no de<strong>do</strong> lentamente e mostrou-o ao<br />

noivo:<br />

- Aceito!<br />

Peter abriu um imenso sorriso e Isabela indagou:<br />

- O que tem em mente?<br />

- Vou para o Brasil levan<strong>do</strong> minha família e nos casamos aí, <strong>do</strong> jeito que<br />

você quiser. Você dirá como quer cada detalhe, e nós o faremos.<br />

Pensan<strong>do</strong> no alto custo de uma festa de casamento, Isabela silenciou. Peter,<br />

adivinhan<strong>do</strong>-lhe os pensamentos, disse:<br />

- Acabei de receber uma promoção. Passo a ter uma coluna mensal no jornal<br />

e fui convida<strong>do</strong> a assinar outra em uma revista. E quan<strong>do</strong> conseguir editar<br />

meu livro, sei que poderei construir uma reserva financeira adequada a uma<br />

nova família.<br />

308


- Li o livro. Você escreve muito bem.<br />

- Tu<strong>do</strong> isso me aconteceu depois de ter encontra<strong>do</strong> você, Isabe-la, e não<br />

quero perdê-la. Não quero perder mais nada em minha vida.<br />

- E como imagina nossa vida depois <strong>do</strong> casamento?<br />

- Minha sugestão é que você venha para cá, para morarmos em Nova York.<br />

Pode começar sua carreira médica aqui. Falta pouco para terminar a residência,<br />

não é?<br />

- Sim, mas essa é uma decisão muito séria. Não tinha pensa<strong>do</strong> em viver fora<br />

<strong>do</strong> Brasil, pelo menos agora.<br />

- Você nunca morou fora de seu país. Será uma experiência interessante.<br />

- Preciso de alguns dias para pensar como seriam essas mudanças, enfim,<br />

para refletir sobre tu<strong>do</strong> o que envolveria essa vida nova.<br />

- É claro, não quero pressionar. O melhor é pensar agora para tomar a decisão<br />

mais correta.<br />

Sentin<strong>do</strong>-se aliviada com a atitude de Peter, e muito feliz pela surpresa que<br />

ele lhe fizera, ela assegurou:<br />

- Tenha a certeza de que vou pensar com muito carinho, e muita vontade<br />

de estar ao seu la<strong>do</strong>.<br />

Conversaram até altas horas, e Isabela a<strong>do</strong>rmeceu com o anel no de<strong>do</strong>. Na<br />

manhã seguinte contou aos pais o inusita<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> de casamento de Peter. A<br />

mãe olhou o anel e comentou:<br />

- Nossa! Agora o rapaz me surpreendeu. Não é que ele sabe fazer as coisas?<br />

Por essa eu não esperava...<br />

- Nem eu, mãe.<br />

- Ele deve estar ganhan<strong>do</strong> bem, então.<br />

- Foi promovi<strong>do</strong>.<br />

- Mas faz menos de um ano que arrumou o trabalho.<br />

- Ele é ótimo jornalista. Estava perdi<strong>do</strong>, precisan<strong>do</strong> reencontrar o rumo de<br />

sua vida.<br />

Márcio sorriu da felicidade da filha e brincou:<br />

- E parece que o rumo dele é você, não é mesmo?<br />

- Você está muito feliz, não é? - comentou Ana Lídia.<br />

- Estou mãe...<br />

Depois, fitan<strong>do</strong> o pai, segurou suas mãos e emen<strong>do</strong>u:<br />

- Embora minha felicidade não seja completa. Seria se você já estivesse cura<strong>do</strong>.<br />

Márcio sorriu ligeiramente.<br />

- Você deve seguir com sua vida, procurar a felicidade e a realização, independentemente<br />

de mim...<br />

309


- Obrigada, pai, mas eu só vou ficar completamente feliz quan<strong>do</strong> você estiver<br />

melhoran<strong>do</strong>...<br />

A conversa continuou até o fim daquela manhã de <strong>do</strong>mingo. Nos dias que<br />

se seguiram, Isabela pensava sem parar em seu futuro, na decisão que deveria<br />

tomar. Muitas vezes sua cabeça ro<strong>do</strong>piava e ela até sentia vertigens. Desejava,<br />

de coração, tomar a melhor decisão e fazer as escolhas mais adequadas para<br />

sua vida. Sabia de sua responsabilidade no tocante à mediunidade e já havia<br />

compartilha<strong>do</strong> suas descobertas com Peter, que também passara a estudar a<br />

Doutrina Espírita. Ela orava e pedia que Jesus a orientasse sobre o que fazer,<br />

porém a decisão lhe parecia muito difícil. Sentia-se confusa e perdida, e não<br />

encontrava na mãe a amiga que lhe compreendesse as angústias. Resolveu então<br />

falar com sua melhor amiga.<br />

- Preciso conversar com você, Helena. Tenho de tomar algumas decisões e<br />

preciso de seu apoio, de sua lucidez.<br />

Com seu sorriso afetuoso, Helena respondeu:<br />

- Você sempre poderá contar comigo. Estamos aqui para nos ajudar uns<br />

aos outros. É árdua a tarefa de elevação espiritual que to<strong><strong>do</strong>s</strong> devemos abraçar<br />

na existência, mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde. Precisamos nos apoiar mutuamente,<br />

para que consigamos caminhar... Mas diga, qual é o motivo da sua ansiedade?<br />

- Daqui a duas semanas termino minha residência; estou fazen<strong>do</strong> os exames<br />

finais.<br />

- Isso é muito bom.<br />

- Meu pai, não obstante to<strong><strong>do</strong>s</strong> os esforços que temos feito, precisa fazer<br />

uma cirurgia delicada e prosseguir com o tratamento, pois seu esta<strong>do</strong> de saúde<br />

é gravíssimo. Por outro la<strong>do</strong>, meu romance com Peter está cada vez mais sério.<br />

- Vocês se encontraram novamente?<br />

- Não, mas nos comunicamos diariamente, desde sua última estada aqui.<br />

Conversamos até mais de uma vez ao dia, e falamos por horas pelo computa<strong>do</strong>r.<br />

- Vejo que a tecnologia está dan<strong>do</strong> um empurrãozinho nesse namoro...<br />

- É muito mais <strong>do</strong> que namoro. Mostran<strong>do</strong> o anel à amiga, Isabela disse:<br />

- Na verdade, ele me pediu em casamento. Foi completamente inespera<strong>do</strong>.<br />

E agora, Helena, estou confusa, sem saber o que fazer. Será esse o melhor caminho<br />

para minha vida? Deixar o Brasil e ir viver em Nova York?<br />

Helena fitou a jovem nos olhos com extremada ternura, depois ergueu-se e<br />

an<strong>do</strong>u pela sala. Enquanto isso, orava: que Jesus a ajudasse a ser útil à amiga,<br />

aconselhan<strong>do</strong>-a conforme a vontade divina. Depois, voltou a sentar-se.<br />

- Você vem desenvolven<strong>do</strong> um trabalho importante em nossa casa, e é óbvio<br />

que contamos com você. No entanto, temos de pensar na sua vida de mo<strong>do</strong><br />

310


mais amplo. Você foi chamada a servir a Jesus através da mediunidade, e esse<br />

é um elemento fundamental em sua existência terrena. <strong>Além</strong> disso, tem seus<br />

desafios pessoais, suas provas a vencer, no caminho da evolução; com relação<br />

a esses aspectos, no meu entender, o mais importante é manter-se firme em seu<br />

propósito de renovação espiritual a que os postula<strong><strong>do</strong>s</strong> espíritas nos convidam.<br />

Se o fará aqui ou em outro país, cabe a você conversar com Thomas e verificar<br />

qual a visão dele a respeito. O que ele lhe disse?<br />

- Não lhe perguntei ainda.<br />

- E por que não?<br />

- Não sei, é como se ele não fosse aprovar...<br />

- Então, quer pedir a opinião, mas tem me<strong>do</strong> de ouvir algo diferente de sua<br />

vontade? Isso mostra que no fun<strong>do</strong> já tomou sua decisão.<br />

Isabela assentiu com um movimento da cabeça e disse:<br />

- Acho que, como sempre, você está certa. No fun<strong>do</strong>, já tomei minha decisão;<br />

só tenho receio de ela ser errada, de eu estar aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> minhas responsabilidades<br />

espirituais em favor <strong>do</strong> desejo de constituir meu lar, minha própria<br />

família.<br />

- Nossa verdadeira família, Isabela, é toda a humanidade, e onde quer que<br />

estejamos podemos servir a Jesus, através <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos irmãos em humanidade.<br />

A paixão que nos atrai ao sexo oposto está a serviço <strong>do</strong> Universo, à medida<br />

que cumpre o papel de nos aproximar daqueles com quem, na maioria das vezes,<br />

já estávamos comprometi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Agora, permita-me dar-lhe um conselho:<br />

não tenha me<strong>do</strong> de seu mentor espiritual, e nunca deixe de escutá-lo. Ele está<br />

ao seu la<strong>do</strong> para ajudá-la. Quer o melhor para você e, a despeito das limitações<br />

da posição em que se situa, como espírito, enxerga mais claro <strong>do</strong> que nós. Ouvir-lhe<br />

os conselhos e orientações apenas a auxiliará.<br />

Emocionada, Isabela abraçou a amiga que tanto amava:<br />

- Acho que, mais <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong>, sinto deixar você, que é para mim como<br />

uma segunda mãe...<br />

- E você é como a filha que não tive. -Ah, Helena, sinto-me tão dividida...<br />

- Peça ajuda a Thomas; ele a orientará, estou certa.<br />

- Podemos fazer isso agora mesmo? Você me ajuda? Após pensar por instantes,<br />

a amiga propôs:<br />

- Posso ficar em oração, enquanto você busca sintonia com ele. Helena baixou<br />

a cabeça e permaneceu em prece. Isabela orou a<br />

Jesus para que iluminasse sua decisão e, a seguir, pediu a Thomas que se<br />

possível a ajudasse.<br />

Mantiveram-se em silêncio, mas ele não se manifestou. Decepcionada, Isabela<br />

ergueu os olhos rasos de lágrimas.<br />

311


- Acho que ele está bravo comigo. Por que não aparece?<br />

- Ele tem esta<strong>do</strong> ausente?<br />

- Ultimamente, mais <strong>do</strong> que antes.<br />

- Deve estar envolvi<strong>do</strong> em tarefas que não podem prescindir de sua presença.<br />

Tenha paciência. Peça e espere. Nem sempre eles podem nos atender no<br />

momento exato em que pedimos.<br />

- Está bem, vou aguardar - falou, já alegre e confiante. Perdida em reflexões,<br />

Isabela fez longa pausa; depois, voltan<strong>do</strong> a<br />

prestar atenção em Helena, indagou:<br />

- Como está a creche?<br />

- Prestes a ser inaugurada.<br />

- Quan<strong>do</strong>?<br />

- Em duas semanas. Você poderá fazer a avaliação das crianças?<br />

- Claro. Estou apta para isso.<br />

As duas escutaram a movimentação e as conversas abafadas indican<strong>do</strong> que<br />

as atividades da noite estavam para começar.<br />

Mais tarde, ao se deitar, Isabela refletiu bastante sobre a conversa que tivera<br />

com Helena e, por fim, orou a Deus pedin<strong>do</strong> que Thomas a ajudasse a fazer<br />

a melhor escolha. Logo que a jovem entrou em sono profun<strong>do</strong>, Thomas auxiliou<br />

seu corpo sutil a desprender-se <strong>do</strong> veículo denso. Isabela fitou-o um pouco<br />

ator<strong>do</strong>ada e sau<strong>do</strong>u, quase num lamento:<br />

- Queri<strong>do</strong> amigo, há quanto tempo não o vejo... Abraçan<strong>do</strong>-a com carinho,<br />

ele disse, emociona<strong>do</strong>:<br />

- Estou aqui, pronto para auxiliá-la no que me for possível.<br />

- Esteve ausente...<br />

- Não totalmente, querida. Tenho esta<strong>do</strong> diariamente com você; no entanto,<br />

a situação de Eliana vem requeren<strong>do</strong> nossa presença. Essa dedicada trabalha<strong>do</strong>ra<br />

de Jesus encontra-se na linha de ataque de muitos espíritos das trevas, que<br />

não querem o avanço <strong>do</strong> bem sobre a Terra. Visto que é uma trabalha<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><br />

bem, da luz, ela se tornou alvo constante das forças <strong>do</strong> mal. Em nosso plano,<br />

tivemos de mobilizar grande contingente de trabalha<strong>do</strong>res para assisti-la.<br />

Fazen<strong>do</strong> breve pausa, Thomas afagou com extrema ternura os cabelos de<br />

Isabela; depois continuou:<br />

- Sei que deseja minha opinião nas decisões que precisa tomar.<br />

- Estou muito angustiada. O que devo fazer?<br />

- O que diz seu coração?<br />

Isabela fitou os olhos <strong>do</strong> amigo e protetor e, como se olhasse para dentro<br />

de si mesma, falou:<br />

312


- Desejo casar-me com Peter e viver com ele, seja no Brasil ou nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- E seus pais?<br />

- Meu pai precisa de tratamento e poderá fazê-lo com melhores chances<br />

por lá.<br />

- Quer levá-los?<br />

- Eles querem ir também.<br />

- Então, qual é o problema? Que dúvida ainda lhe resta?<br />

- Essa é a coisa certa a fazer? E o meu trabalho na casa espírita?<br />

- Minha querida menina, já percebeu sua notável fluência no idioma inglês?<br />

- Sim, desde que tomei contato com o idioma, tenho a maior facilidade...<br />

Meus pais também...<br />

- Pois, de fato, sua tarefa está lá e não aqui.<br />

Revelan<strong>do</strong> espanto, Isabela olhou interessada para Thomas, que prosseguiu:<br />

- Sua última romagem terrena foi nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>, por isso a língua e a<br />

cultura lhe são tão familiares. Com o objetivo de se aprimorar e, acima de tu<strong>do</strong>,<br />

para bem desempenhar a tarefa de auxílio aos irmãos americanos, esse<br />

grupo reencarnou no Brasil, onde teve contato com a Doutrina Espírita, a fim<br />

de compreender melhor os ensinos <strong>do</strong> Mestre Jesus. Fique tranqüila, Isabela.<br />

Você pode aceitar com alegria o que seu coração lhe diz. Pode viver com Peter<br />

nos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>, porque aquela pátria necessita demais <strong>do</strong> conhecimento<br />

real de Jesus e de seus ensinos fraternos. Os norte-americanos, de mo<strong>do</strong> geral,<br />

afastaram-se <strong><strong>do</strong>s</strong> princípios cristãos, deixan<strong>do</strong> que o orgulho e o egoísmo os<br />

<strong>do</strong>minassem. O apego às riquezas e aos interesses materiais foi toman<strong>do</strong> conta<br />

da cultura americana e se fez senhor absoluto da nação. Atualmente, eles espalham<br />

materialismo, egoísmo e individualismo pelo mun<strong>do</strong>, acarretan<strong>do</strong> responsabilidades<br />

e débitos cujo ressarcimento lhes será muito penoso. Precisam<br />

entender o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor e da fraternidade, bem como aceitar a realidade <strong>do</strong><br />

espírito e sua supremacia sobre a matéria.<br />

- Como foi que essa nação, nascida sob a égide <strong><strong>do</strong>s</strong> protestantes fugi<strong><strong>do</strong>s</strong> da<br />

Europa - que basearam a própria colonização <strong>do</strong> país em seu amor ao Evangelho<br />

-, distanciou-se tanto de seus verdadeiros princípios?<br />

- Esse é o grande perigo <strong>do</strong> culto exterior. Se não cultuamos a Deus com o<br />

coração e a razão, se aceitamos viver de aparências, se nos contentamos em<br />

repetir hábitos que nos são impingi<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos superiores religiosos, sem viver a<br />

genuína ligação com o Pai e com Jesus, aos poucos nos distanciamos da verdade.<br />

Quan<strong>do</strong> nos damos conta, já criamos novos paradigmas, muito diferentes<br />

313


daqueles que Jesus nos transmitiu, mas que nos satisfazem o orgulho e a vaidade,<br />

servin<strong>do</strong> muito bem aos interesses imediatistas que tanto nos preenchem<br />

os senti<strong><strong>do</strong>s</strong> quanto deixam um buraco em nossa alma,<br />

-É triste...<br />

- Sim, e os espíritos superiores estão preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> com esse povo que, tão<br />

rico de recursos, progressivamente se distancia da verdade.<br />

- Muitos estudiosos admitem a existência <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos. Tenho li<strong>do</strong> interessantes<br />

trabalhos de pesquisa, inclusive realiza<strong><strong>do</strong>s</strong> com médiuns...<br />

- Sem dúvida, eles utilizam médiuns em diversas atividades -por exemplo,<br />

para subsidiar ações de órgãos <strong>do</strong> governo. Cientistas efetuam muitas pesquisas<br />

e descobertas, mas aqueles que estão no poder mantêm essas questões ocultas<br />

da população comum. Sabem que o contato com a verdade liberta as<br />

consciências e não desejam que o povo seja livre e enxergue com clareza o<br />

quanto é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos interesses econômicos que governam a nação americana<br />

e, por conseguinte, exercem notável influência sobre o mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>.<br />

Isabela baixou os olhos cheios de lágrimas. Thomas ergueu seu rosto suavemente<br />

e disse:<br />

- Eles precisam de almas corajosas que, mais <strong>do</strong> que falar <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinos de<br />

Jesus, estejam dispostas a vivê-los na prática. Precisam, <strong>do</strong> amor, da fraternidade<br />

e da realidade que os conhecimentos espíritas nos descortinam. Você<br />

pode ajudá-los, se conservar o firme propósito de pôr sua mediunidade a serviço<br />

<strong>do</strong> próximo, com Jesus.<br />

O companheiro espiritual abraçou a jovem com extrema ternura, ao recomendar:<br />

- Vá, querida, assuma as tarefas que se propôs antes de voltar à Terra. E<br />

não tenha me<strong>do</strong>, estarei sempre ao seu la<strong>do</strong>.<br />

Isabela fixou os olhos nos de Thomas e disse:<br />

- Eu sei quem você é... Quero dizer, sei que vivemos juntos experiências<br />

anteriores. Às vezes, quan<strong>do</strong> temos essas conversas durante o sono, ao despertar<br />

me vêm à mente muitas imagens nas quais vejo você. Surge de maneiras<br />

diversas, com várias aparências; contu<strong>do</strong>, são os seus olhos que encontro nesses<br />

homens diferentes de outras épocas. Já estivemos juntos, não é?<br />

- Somos um grupo de espíritos liga<strong><strong>do</strong>s</strong> por laços afetivos e por débitos <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong>.<br />

Ele silenciou e Isabela agradeceu:<br />

- Muito obrigada pelo seu carinho, por me ouvir e cuidar de mim em to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

os momentos.<br />

Thomas a abraçou outra vez, em eloqüente expressão afeto.<br />

- Tenho só um pedi<strong>do</strong> a fazer - disse.<br />

314


- Farei qualquer coisa que me pedir.<br />

- Eliana e Helena vão precisar de muito apoio, ao iniciarem as atividades<br />

da creche. Você poderia ficar ao menos mais alguns meses no Brasil?<br />

Sem necessidade de pensar, Isabela respondeu:<br />

- E claro. Quanto tempo acha que seria adequa<strong>do</strong>?<br />

- O ideal seria ao menos quatro meses.<br />

- Vou utilizar esse tempo para fazer com calma to<strong><strong>do</strong>s</strong> os preparativos da<br />

minha mudança. A única preocupação é meu pai.<br />

Thomas escolheu bem as palavras com que procurou esclarecer:<br />

- O caso de seu pai é bastante delica<strong>do</strong>. Como disse, somos um grupo de<br />

espíritos que vêm trabalhan<strong>do</strong>, encarnação após encarnação, no senti<strong>do</strong> de se<br />

libertar de débitos e defeitos, para ascender espiritualmente, rumo à perfeição.<br />

Nossas almas anseiam pelo progresso e pelo amadurecimento, pela elevação e<br />

pela pureza, porém ainda estamos presos a dívidas contraídas perante a lei divina.<br />

Esse é, também, o caso de Márcio. Ele enfrenta grande luta para per<strong>do</strong>ar...<br />

- É a mim que ele não consegue per<strong>do</strong>ar, não é? Eu sei... Sinto que tenho<br />

um débito com ele, mesmo sem ter feito nada que o agredisse na presente encarnação.<br />

Sempre me senti assim com referência ao meu pai...<br />

- Ele não consegue per<strong>do</strong>ar a você nem a... Peter.<br />

- Peter?<br />

- Sim. Acho que a dificuldade maior ainda é com Peter; a você ele já não<br />

odeia, ao passo que em relação a Peter persiste muito ressentimento. Essa é<br />

uma das razões da <strong>do</strong>ença que lhe corrói o corpo físico. Ele traz mágoas profundas,<br />

arraigadas em seu perispírito. Márcio precisa per<strong>do</strong>ar, mas reluta em<br />

conhecer o caminho que poderá conduzir à libertação definitiva de suas mazelas<br />

interiores. Esconde-se atrás da máscara <strong>do</strong> materialismo, para não ter de<br />

lidar com seus problemas espirituais.<br />

- E por que existe esse ressentimento to<strong>do</strong>? O que fizemos a ele?<br />

- O esquecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> é uma grande bênção. É somente quan<strong>do</strong> estamos<br />

prontos para enfrentar os erros que cometemos, sem nos afundar na culpa<br />

e no remorso, que ele se ergue de nosso subconsciente. Por ora, é suficiente<br />

saber que vocês três já viveram juntos em Roma e ocuparam altas posições.<br />

Perderam-se na ambição pelo poder, e você e Peter acabaram por adquirir débitos<br />

com Márcio. Ele, por sua vez, endureci<strong>do</strong> no orgulho feri<strong>do</strong> de quem<br />

perdeu o poder tão deseja<strong>do</strong>, não consegue per<strong>do</strong>ar...<br />

- Por isso ele tem tanta dificuldade para aceitar o Peter... Voltan<strong>do</strong> para<br />

Thomas os olhos úmi<strong><strong>do</strong>s</strong>, ela indagou:<br />

- E ele poderá ficar cura<strong>do</strong>?<br />

315


- A <strong>do</strong>ença é o emissário divino que o alerta quanto à necessidade de fazer<br />

mudanças em seu interior. Infelizmente, ele continua relutan<strong>do</strong>...<br />

- Então o tratamento será inútil?<br />

- Lutar pela vida nunca é inútil, Isabela. Leve-o para tratar-se, sem se preocupar<br />

se esses três ou quatro meses a mais aqui no Brasil seriam determinantes<br />

para sua cura; isso posso assegurar que não.<br />

Com incontida tristeza, Isabela balbuciou:<br />

- Estou cansada...<br />

- Agora precisa repousar.<br />

Thomas auxiliou a jovem a recolocar-se sobre seu corpo denso e logo ela<br />

a<strong>do</strong>rmeceu mais profundamente. Ao despertar, na manhã seguinte, trazia vivas<br />

na memória as impressões de seu encontro. Lembrava-se de trechos <strong>do</strong> diálogo<br />

e das emoções que sentira. Procurou fixar o máximo que pôde daquela experiência,<br />

consciente de que não se tratara de simples sonho. Depois, levantou-se<br />

com calma e se preparou para anunciar à família a sua decisão.<br />

Apesar de não aprovar de to<strong>do</strong> a deliberação da filha, Márcio sentia-se enfraqueci<strong>do</strong><br />

pela <strong>do</strong>ença, e o que desejava de fato era buscar a cura naquele país<br />

mais desenvolvi<strong>do</strong>. <strong>Além</strong> disso, a idéia de estabelecer residência definitiva nos<br />

Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> lhe agradava sobremaneira. Pouco depois, Isabela comunicou<br />

a decisão ao noivo, que recebeu a notícia com grande entusiasmo.<br />

Começaram os preparativos para o casamento e para a mudança de residência<br />

de Isabela e da família. Logo informaram Rafael, que contribuiu com a<br />

sua parte para que os planos se concretizassem. Márcio prosseguiu no tratamento,<br />

mas nada o fazia melhorar.<br />

CINQUENTA E NOVE<br />

ELIANA ATENDIA a uma mãe, no espaço ilumina<strong>do</strong> da creche que se preparava<br />

para receber os bebês e as crianças. Explicava, amorosa:<br />

- É preciso que você esteja trabalhan<strong>do</strong>, minha filha. A creche destina-se,<br />

fundamentalmente, àquelas mães que precisam trabalhar e não têm com quem<br />

deixar os pequenos.<br />

- É que eu preciso arrumar emprego, <strong>do</strong>na - insistia a mulher, visivelmente<br />

contrariada. - Ainda não tenho, mas vou procurar trabalho.<br />

- Vamos fazer o seguinte: seu nome ficará em nossa lista de espera; assim<br />

que atendermos as mães já empregadas, se tivermos vaga, vamos procurar você.<br />

Iracema ergueu-se indignada:<br />

316


- Vão se arrepender... Eu sou da comunidade, e quero deixar meu filho aqui.<br />

Vocês vão ver só! Não podem fazer isso comigo. O pai deles vai dar uma<br />

lição em vocês... Garantiram que eu encontraria vaga para meus três filhos,<br />

principalmente o bebê... E agora você vem dizen<strong>do</strong> que não posso? Você é que<br />

não deve ter i<strong>do</strong> com a minha cara e não quer receber meus filhos.<br />

Sem pausa, e aos gritos, a mulher prosseguiu:<br />

- Qual é o problema? Acham que as outras crianças são melhores <strong>do</strong> que as<br />

minhas? É isso? Fale logo!<br />

Calma, porém firme, Eliana pediu:<br />

- Por favor, acalme-se. Não é nada disso. Você não está compreenden<strong>do</strong>.<br />

- Claro que estou.<br />

Iracema, fortemente influenciada por espíritos das trevas que desejavam<br />

destruir Eliana, perguntou:<br />

- Está me chaman<strong>do</strong> de burra também?<br />

No instante em que ia responder, Eliana sentiu a influência sob a qual se<br />

encontrava a jovem mãe e, seguin<strong>do</strong> orientação espiritual que lhe brotava no<br />

âmago, através da intuição, disse:<br />

- Olhe, Iracema, acho melhor você retornar em outro dia, quan<strong>do</strong> estiver<br />

mais calma. Nossas portas estão abertas para você e seus filhos. Traga-os<br />

quan<strong>do</strong> quiser...<br />

A jovem não a deixou concluir. Ergueu-se, furiosa, e gritou ainda mais alto:<br />

- Meus filhos são bons demais para vocês, porcos imun<strong><strong>do</strong>s</strong>! Eles não vão<br />

colocar os pés no lixo que é esta instituição miserável.<br />

Levantou-se, pôs a bolsa no ombros e, já perto da porta, virou-se para Eliana<br />

e ameaçou, entre dentes:<br />

- Vocês me enganaram... Vocês me pagam... Aquele Mateus também vai<br />

se ver comigo.<br />

Saiu gritan<strong>do</strong> ofensas e palavrões pelo corre<strong>do</strong>r, até alcançar o pequeno<br />

saguão da recepção. Helena entrava naquele instante e cruzou com a mulher<br />

que saía esbravejan<strong>do</strong>. Observou-a e entrou, preocupada com Eliana. Esta<br />

permanecia sentada, tentan<strong>do</strong> compreender o que se passara. Ao ouvir a menção<br />

<strong>do</strong> nome de Mateus, sentiu de imediato que havia algo mais naquela informação.<br />

Algo deplorável. Assim que a viu, Helena indagou:<br />

- Você está bem?<br />

- Acho que estou.<br />

- O que foi que aconteceu? Na entrada vi uma moça que não parava de<br />

gritar... Quem era? O que ela queria?<br />

- Era Iracema, mora<strong>do</strong>ra da comunidade. Teve essa reação quan<strong>do</strong> informei<br />

que estamos dan<strong>do</strong> preferência, neste momento, às mães que já trabalham.<br />

317


- Ela não tem serviço fora de casa?<br />

- Não. Disse que vai arranjar, mas queria que os filhos ficassem aqui desde já.<br />

- Que reação agressiva, meu Deus! Já presenciei atitudes hostis de outros<br />

mora<strong>do</strong>res da comunidade, que saíram daqui ofendi<strong><strong>do</strong>s</strong>, mas tal extremo nunca<br />

tinha visto.<br />

- Nem eu. Estou surpresa e intrigada.<br />

- Intrigada?<br />

- Sim. A moça mencionou o nome de Mateus e disse que alguém aqui lhe<br />

garantiu que poderia trazer os filhos; que a instituição os receberia, por terem o<br />

perfil adequa<strong>do</strong>.<br />

- Quer dizer que Mateus deu falsas esperanças à moça?<br />

- Não sei se foi ele.<br />

- Ora, se ela mencionou seu nome... Quem mais seria? As duas ficaram a<br />

refletir, até que Helena questionou:<br />

- Mateus costuma visitar a comunidade, Eliana? Ele participa da sopa ou<br />

de alguma outra atividade assistencial?<br />

- No início participava, depois parou. Tem compareci<strong>do</strong> apenas às tarefas<br />

<strong>do</strong>utrinárias; há muito deixou de la<strong>do</strong> as beneficentes.<br />

- Será que ele conhece alguém da re<strong>do</strong>ndeza?<br />

- Não faço a menor idéia, Helena.<br />

- Essa história está soan<strong>do</strong> muito estranha. Sinto um mal-estar, não sei por<br />

quê...<br />

- Eu também. Basta mencionar o nome de nosso irmão para que um sinistro<br />

arrepio percorra meu corpo. Precisamos ter cautela, Helena. Essa jovem me<br />

pegou meio despreparada para esse tipo de problema.<br />

- Você está certa. Re<strong>do</strong>bremos a oração e a vigilância. Há algo esquisito no ar.<br />

As duas se calaram e retomaram as respectivas tarefas. Helena foi até a recepção<br />

para chamar a próxima mãe a ser atendida e encontrou o espaço vazio.<br />

As duas mães que à sua chegada esperavam haviam i<strong>do</strong> embora. Ela retornou e<br />

ambas deram continuidade às providências para a inauguração da instituição,<br />

que aconteceria dali a duas semanas.<br />

Na manhã seguinte, ao chegar à instituição, Eliana deparou com a porta da<br />

frente arrombada. Entrou, preocupada, e verificou que tu<strong>do</strong> se mantinha em<br />

ordem. Seu coração, entretanto, estava pesaroso. Captava formas-pensamento<br />

e energias densas endereçadas a ela como raios a cortar o céu. Orava incessantemente,<br />

pedin<strong>do</strong> a proteção <strong>do</strong> Mestre.<br />

Prosseguiu com o trabalho de atendimento às mães, notan<strong>do</strong> que a procura<br />

caíra drasticamente. Ao partilhar sua inquietação com Helena, a companheira e<br />

amiga estimulou-a a fazer um boletim de ocorrência sobre o arrombamento.<br />

318


- Acha mesmo que é necessário?<br />

- Para mim, é o melhor a fazer. Você não pode deixar passar assim... Afinal,<br />

não sabemos o que de fato está ocorren<strong>do</strong>, não é?<br />

- Não gostaria de fazer isso...<br />

- Eu sei, mas é preciso, Eliana. Devemos ir agora, no horário <strong>do</strong> almoço.<br />

As duas foram até a delegacia, onde o delega<strong>do</strong> as recebeu pessoalmente.<br />

Miran<strong>do</strong> Eliana de alto a baixo, indagou com frio desdém:<br />

- O que querem?<br />

Eliana comunicou a questão da porta arrombada, sem obter <strong>do</strong> delega<strong>do</strong> a<br />

mínima atenção. Ao contrário, antes que finalizasse, ele a interrompeu:<br />

- Esse arrombamento deve ser tramóia sua mesmo!<br />

Eliana ficou muda diante da acusação. Helena levantou-se e interveio, indignada:<br />

- O quê?! Que absur<strong>do</strong> é esse?<br />

- Está queren<strong>do</strong> também o dinheiro <strong>do</strong> seguro, não é? Essa tal creche não<br />

tem seguro?<br />

- Tem, e daí?<br />

- Nem crianças existem lá, e já tem seguro.<br />

- Senhor, está haven<strong>do</strong> algum engano. A nossa instituição atua no bairro há<br />

mais de quinze anos, prestan<strong>do</strong> serviços à comunidade. Nunca houve qualquer<br />

problema, o senhor deve saber <strong>do</strong> histórico.<br />

- Não conheço o bairro. Assumi a delegacia há pouco mais de um ano e tenho<br />

ouvi<strong>do</strong> muitas histórias sobre vocês. Especialmente você, <strong>do</strong>na Eliana, sua<br />

macumbeira desvairada. Para que quer crianças agora? O que pretende fazer<br />

com elas?<br />

Helena ia intervir novamente, quan<strong>do</strong> Eliana a impediu. Sem perder a serenidade<br />

nem desviar os olhos <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> delega<strong>do</strong>, falou com firme autoridade<br />

moral:<br />

- Desculpe-me, senhor, mas pode registrar a ocorrência? Incapaz de sustentar-lhe<br />

o olhar, o delega<strong>do</strong> respondeu:<br />

- Vou chamar um escrevente. Ele fará o boletim.<br />

Eliana continuou a fitá-lo, destemida. O celular <strong>do</strong> delega<strong>do</strong> tocou e, quan<strong>do</strong><br />

ele se afastou para atendê-lo, Helena comentou:<br />

- Eliana, esse homem a ofendeu...<br />

- Deixe, Helena, não nos detenhamos nas sombras. Há muita sombra aqui.<br />

Se temos de fazer o <strong>do</strong>cumento, façamos. Eu não quero mais distrações.<br />

Como o escrivão não apareceu, Eliana ergueu-se e foi até ele:<br />

- Por favor, meu filho, estou muito cansada. Pode me atender? Com visível<br />

má vontade, o rapaz preencheu o <strong>do</strong>cumento.<br />

319


Quan<strong>do</strong> estavam sain<strong>do</strong>, o delega<strong>do</strong> disse em tom de ameaça:<br />

- Vou até a instituição. Quero fazer uma vistoria por lá. Helena olhou para<br />

Eliana e esta disse:<br />

- Fique à vontade.<br />

- Não preciso de sua autorização. Tenho um manda<strong>do</strong> - informou, tiran<strong>do</strong><br />

um papel <strong>do</strong> bolso.<br />

Incrédula, Helena questionou:<br />

- Por quê?<br />

- Saberá quan<strong>do</strong> acharmos o que estamos procuran<strong>do</strong>.<br />

Junto com um policial, ele efetuou minuciosa busca na instituição e nada<br />

foi encontra<strong>do</strong>. Preparavam-se para sair quan<strong>do</strong> o delega<strong>do</strong> olhou para a área<br />

externa e perguntou:<br />

- O que há lá em cima?<br />

- Nada, essa escada leva ao teto, onde há um alçapão para o telha<strong>do</strong>. Temos<br />

intenção de continuar nossa construção no futuro, e deixamos a escada<br />

pronta. Lá em cima, por enquanto, há apenas a caixa d'água.<br />

Fortemente intuí<strong>do</strong> por entidades espirituais enfermiças, ligadas ao mal, ele<br />

resolveu:<br />

- Vou subir.<br />

Helena ia falar, porém Eliana e impediu:<br />

- Deixe, Helena.<br />

Não demorou para que o delega<strong>do</strong> gritasse lá <strong>do</strong> alto:<br />

- Everal<strong>do</strong>, ajude aqui.<br />

As amigas se entreolharam, espantadas.<br />

- O que pode ser? - disse Helena<br />

- Não sei.<br />

Eliana, tomada de repentina angústia, orava insistentemente pela proteção<br />

de Jesus. Logo o policial desceu, trazen<strong>do</strong> duas sacolas de feira cheias de produtos<br />

eletrônicos e outros objetos. Em seguida vinha o delega<strong>do</strong>, com outras<br />

duas sacolas. Jogou tu<strong>do</strong> aos pés de Eliana e indagou:<br />

- O que é isso?<br />

- Eu não sei.<br />

- Sabe, sim senhora. E uma carga de produtos eletrônicos que foi roubada<br />

anteontem aqui mesmo, no bairro.<br />

- Senhor, eu nunca vi essas sacolas. Isso não pertence a mim nem a ninguém<br />

de nossa instituição.<br />

- E o que veremos.<br />

Viran<strong>do</strong>-se para o policial, o delega<strong>do</strong> ordenou:<br />

- Prenda.<br />

320


- As duas?<br />

- Não, somente a <strong>do</strong>na.<br />

- Se vai levá-la, terá de me levar também... - declarou Helena. Eliana cortou<br />

a discussão:<br />

- Helena, preciso de sua ajuda; procure o Roberto ou o André. Ambos são<br />

advoga<strong><strong>do</strong>s</strong> e poderão ajudar.<br />

- Mas...<br />

- Não faça nada, por favor. Deixe que me levem... Por favor, vá agora.<br />

Helena respeitou a orientação e saiu. Em pé, na calçada, três entidades espirituais<br />

se divertiam ao ver Eliana, algemada, ser levada para a delegacia.<br />

Uma delas disse:<br />

- Agora eu quero ver onde vai ficar a fé dessa mulher... Ela vai passar a<br />

noite no xilindró....<br />

E gargalhavam prazerosamente. Eliana escutava a conversa <strong><strong>do</strong>s</strong> três, graças<br />

à permissão de seu orienta<strong>do</strong>r espiritual. Este, senta<strong>do</strong> ao seu la<strong>do</strong> no carro,<br />

tranqüilizou-a:<br />

- Não tenha me<strong>do</strong>. André vai ajudá-la e nada acontecerá. Mentalmente ela<br />

argumentou:<br />

- E as sacolas? São prova irrefutável.<br />

- Apresentaremos os verdadeiros culpa<strong><strong>do</strong>s</strong>, mantenha-se firme.<br />

Amparada pelas energias revigorantes de seu mentor espiritual, Eliana permaneceu<br />

serena e confiante.<br />

Ao adentrar a delegacia, havia um tumulto instala<strong>do</strong>. Dois jovens gritavam,<br />

acusan<strong>do</strong>-se mutuamente. O delega<strong>do</strong> foi saber <strong>do</strong> que se tratava e os levou<br />

para sua sala. Lá ficaram por longo tempo, enquanto Eliana, sentada, aguardava.<br />

Depois de quase duas horas, ele voltou sério e disse:<br />

- Pode ir embora.<br />

No momento em que ela se levantou, fitan<strong>do</strong>-o para confirmar a liberação,<br />

André entrava na delegacia com Helena. Foi até Eliana e orientou:<br />

- Não diga nada.<br />

O delega<strong>do</strong>, adivinhan<strong>do</strong> nele o advoga<strong>do</strong>, disse:<br />

- Ela pode ir. Não há mais qualquer acusação. Helena não se conteve:<br />

- Como assim? E as sacolas?<br />

O delega<strong>do</strong> apontou os <strong>do</strong>is jovens algema<strong><strong>do</strong>s</strong> e bêba<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- São <strong>do</strong>is estúpi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Foram eles que colocaram lá as sacolas a man<strong>do</strong> de<br />

Clayson, um traficante perigoso, que comanda o crime na comunidade.<br />

- Mas por quê? Eliana logo disse:<br />

- Iracema...<br />

O delega<strong>do</strong> cocou a cabeça e disse:<br />

321


- Eles são ajudantes <strong>do</strong> Clayson e muito perigosos. Nunca os vi bêba<strong><strong>do</strong>s</strong> e<br />

tão sem lucidez como agora. Parece que foram hipnotiza<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Posso ir, <strong>do</strong>utor? - Eliana perguntou.<br />

Evitan<strong>do</strong> seu olhar, o delega<strong>do</strong> deu a autorização. Ela deixou a delegacia<br />

em companhia <strong><strong>do</strong>s</strong> amigos.<br />

- Muito obrigada por vir me socorrer, André.<br />

- O que é isso? Como poderia ter feito outra coisa? Que arapuca armaram<br />

para você, minha irmã?! Estou impressiona<strong>do</strong>...<br />

- É, André, por isso temos de orar e vigiar o tempo to<strong>do</strong>... Helena comentou,<br />

já dentro <strong>do</strong> carro:<br />

- O que não compreen<strong>do</strong> é o porquê disso.<br />

Eliana calou-se e meditou por to<strong>do</strong> o trajeto de volta. Naquela noite, assim<br />

que entrou na casa espírita, procurou por Mateus. Ele não aparecera.<br />

Chegou finalmente o dia da inauguração da creche. Com singela solenidade,<br />

o subprefeito da região deu por inaugurada a casa que receberia as crianças<br />

da comunidade. Os desafios eram grandes e Eliana se dedicava por inteiro,<br />

atenden<strong>do</strong> as crianças pessoalmente. Desejava conhecer cada uma delas.<br />

Decorri<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is meses, Eliana conversava com Isabela sobre as atividades,<br />

quan<strong>do</strong> uma senhora entrou com três crianças, uma delas um bebê de colo,<br />

pedin<strong>do</strong> ajuda.<br />

- O que houve? -indagou a dirigente. Choran<strong>do</strong>, aflita, a mulher explicou:<br />

- Houve um tiroteio lá em cima e balearam o pai deles. A mãe ficou totalmente<br />

descontrolada. Poderiam ajudar as crianças?<br />

Toman<strong>do</strong> imediatamente nos braços a criança menor, Eliana respondeu:<br />

- Claro.<br />

E logo conduziu as outras duas, assustadas, a um grupo de crianças que<br />

brincava no pátio interno, retornan<strong>do</strong> em seguida:<br />

- Agora sente-se e me explique: quem são os pais das crianças? A mulher<br />

baixou a cabeça e suspirou, sem responder. Eliana<br />

insistiu:<br />

- Preciso saber quem são as crianças. Fale, por favor. A outra hesitou um<br />

pouco, depois lamentou:<br />

- Quan<strong>do</strong> souber quem são os pais, a senhora não vai mais querer cuidar<br />

deles...<br />

Eliana procurou acalmá-la, garantin<strong>do</strong>:<br />

- Não se preocupe, isso não vai acontecer, até porque as crianças não têm<br />

culpa das imprudências <strong><strong>do</strong>s</strong> pais. Pode dizer.<br />

- A mãe deles é a Iracema e o pai... bem... é o Clayson, que controla o tráfico<br />

de drogas no bairro...<br />

322


Eliana encostou-se na cadeira e exclamou:<br />

- Meu Deus!<br />

- Viu só? Não disse que a senhora não ia mais querer saber deles?...<br />

- Não é isso, minha filha, fique tranqüila. As crianças podem ficar, vamos<br />

cuidar delas, sim. Estou impressionada é com a forma como os acontecimentos<br />

vão se des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>...<br />

Eliana emudeceu por alguns instantes, depois indagou:<br />

- Onde está Iracema?<br />

- Está na casa dela, totalmente bêbada. Assim que o mari<strong>do</strong> foi balea<strong>do</strong> e<br />

leva<strong>do</strong> pela polícia, ela começou a quebrar tu<strong>do</strong> o que tinha dentro de casa;<br />

jogou a televisão porta afora, se descontrolou, coitada... As crianças ficaram<br />

apavoradas; a gente escutava a gritaria e o choro delas. Depois, a mãe saiu<br />

como louca a gritar pelas ruas, queren<strong>do</strong> ir atrás da viatura que levou o Clayson.<br />

Eu e mais três vizinhas ficamos cuidan<strong>do</strong> das crianças; quan<strong>do</strong> ela voltou,<br />

estava completamente bêbada e... acho que drogada também. Nem notou que<br />

as crianças estavam lá, ven<strong>do</strong> a mãe daquele jeito. Então, achei melhor trazelas<br />

para cá.<br />

- Quer dizer que Iracema nem sabe que estão aqui?<br />

- Não. Ela está <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />

- Acho melhor avisarmos ao conselho tutelar o que está haven<strong>do</strong>.<br />

- Não, não pode fazer isso. Ela vai ficar furiosa com a gente!<br />

- Entenda a nossa situação. Se não avisarmos o conselho, ela poderá vir<br />

aqui e nos acusar de ter rapta<strong>do</strong> as crianças. Sabe que já tivemos problemas<br />

por causa dela...<br />

- E, eu sei.<br />

- Pois então. Vou ligar para a vara da infância e informar o que está ocorren<strong>do</strong>.<br />

Podemos ficar com as crianças aqui, desde que eles saibam.<br />

Depois de algumas horas, uma assistente social entrava na instituição e Eliana<br />

a colocava a par de to<strong>do</strong> o caso. A moça foi até a casa de Iracema, que<br />

ainda <strong>do</strong>rmia, totalmente <strong>do</strong>pada. Voltan<strong>do</strong> à instituição, a assistente disse:<br />

- Seria melhor levarmos as crianças para um abrigo, pois aqui não terão<br />

onde passar a noite.<br />

Eliana refletiu um pouco e perguntou:<br />

- E se eu as levasse para <strong>do</strong>rmir em minha casa e as trouxesse para a instituição<br />

durante o dia?<br />

- Não sei, acho o procedimento fora <strong><strong>do</strong>s</strong> padrões...<br />

- A mãe está perturbada, ignoran<strong>do</strong> a situação <strong>do</strong> pai das crianças. Talvez<br />

com isso consiga se acalmar e se reequilibrar. Ten<strong>do</strong> as crianças por perto,<br />

seria mais fácil.<br />

323


- A senhora está disposta a levá-las para sua casa?<br />

- Poderiam passar algumas noites lá. Tenho bastante espaço... A moça sentou-se<br />

ao la<strong>do</strong> de Eliana e disse:<br />

- Aprecio sua dedicação, porém não me parece a melhor solução. Vou providenciar-lhes<br />

um abrigo para a noite. Durante o dia, se a senhora tiver como<br />

mandar buscá-las, poderão ficar na creche, mais perto da mãe.<br />

- Está certo. Você é quem sabe.<br />

- Creia-me, será melhor assim.<br />

Eliana não insistiu. A assistente social levou as crianças, garantin<strong>do</strong> que as<br />

traria novamente no dia seguinte. Ao final <strong>do</strong> dia de trabalho, depois que todas<br />

as crianças deixaram a creche, ela foi, em companhia de Helena, até a casa de<br />

Iracema. Bateram na porta, sem obter resposta. Helena fitou a amiga e perguntou:<br />

- Tem certeza de que quer fazer isso?<br />

- Quero ajudá-la.<br />

Eliana bateu e chamou, sem sucesso. Abriu a porta, que estava destrancada,<br />

e entrou; encontrou Iracema deitada na cama, ainda <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>. Após tomar-lhe<br />

a pulsação, foi até o fogão. Havia trazi<strong>do</strong> legumes frescos e preparou<br />

um sopa suculenta e substanciosa para quan<strong>do</strong> a jovem despertasse. Queria<br />

contar-lhe sobre a crianças pessoalmente. Quan<strong>do</strong> a sopa estava quase pronta,<br />

Iracema apareceu na cozinha, cambaleante. Deparou com as duas estranhas em<br />

casa e, olhan<strong>do</strong>-as com desprezo, indagou aos berros:<br />

- O que estão fazen<strong>do</strong> aqui? Calma, Eliana procurou explicar:<br />

- Sente-se. Preparamos uma sopa para você, venha. Precisa se alimentar.<br />

- Quem pensa que é? Minha mãe? Não quero nada seu... Não quis fazer<br />

nada quan<strong>do</strong> eu pedi... Aí ficou prejudicada, não foi?<br />

Caiu em copioso pranto, para logo em seguida dar sonoras gargalhadas.<br />

Helena e Eliana se entreolharam e esta falou:<br />

- Bem, já vamos in<strong>do</strong>. Se precisar de alguma coisa, Iracema, sabe onde me<br />

encontrar. Quero ajudá-la.<br />

As duas saíram, e logo Iracema assomou à porta, gritan<strong>do</strong>:<br />

- Não preciso de vocês! Sei que não valem nada... São umas interesseiras.<br />

O Mateus me contou tu<strong>do</strong>. Vocês só querem usar as pessoas pobres daqui para<br />

tirar dinheiro <strong>do</strong> governo... Não quero nada com vocês...<br />

Ao entrarem no carro, Helena falou, enquanto atava o cinto de segurança:<br />

- Então Mateus an<strong>do</strong>u espalhan<strong>do</strong> calúnias a nosso respeito.<br />

- Tem o telefone dele? - Eliana falou num suspiro.<br />

- Tenho, está aqui na minha agenda.<br />

- Depois de levá-la em casa, vou ver Mateus.<br />

324


- Quer que eu vá com você? Sorrin<strong>do</strong>, Eliana respondeu:<br />

- Não precisa, Helena, já são quase dez horas. Você tem sua família.<br />

- Prefiro ir com você.<br />

Eliana calou-se, aceitan<strong>do</strong>, com prudência, a oferta da amiga. Foram direto<br />

para a casa de Mateus. Ela estacionou o carro e ligou.<br />

- Mateus, como está? - disse quan<strong>do</strong> ele atendeu.<br />

- Oi, Eliana.<br />

- Pode falar, ou está ocupa<strong>do</strong>?<br />

- Estou meio ocupa<strong>do</strong>... Aliás, de saída.<br />

- Não vou demorar.<br />

Diante <strong>do</strong> silêncio <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha, ela prosseguiu:<br />

- Podemos conversar um pouco agora?<br />

- Fale.<br />

- Não por telefone. Estou aqui em frente ao seu prédio. Posso subir?<br />

Ele hesitou e Eliana afirmou, já atravessan<strong>do</strong> a rua com Helena em direção<br />

à portaria:<br />

- Estou subin<strong>do</strong>. É bem rápi<strong>do</strong>.<br />

Em alguns instantes, ela tocou a campainha e a porta foi aberta.<br />

- Boa noite, Mateus.<br />

- Boa noite, Eliana; boa noite, Helena. Entrem.<br />

- E uma visita curta. Indican<strong>do</strong>-lhes o sofá, ele perguntou:<br />

- O que aconteceu? Eliana, séria, disse:<br />

- Estou preocupada com você. Há mais de <strong>do</strong>is meses não aparece no centro,<br />

ficamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Tenho trabalha<strong>do</strong> muito. Estou prestes a ser promovi<strong>do</strong>; além <strong>do</strong> mais,<br />

vou fazer uma viagem de negócios, visitan<strong>do</strong> alguns clientes no sul <strong>do</strong> Brasil.<br />

Está difícil conciliar tu<strong>do</strong>.<br />

- Enten<strong>do</strong>. E quan<strong>do</strong> voltará?<br />

- A viagem vai durar umas duas semanas.<br />

Influenciada por seu protetor e por outros amigos espirituais que a apoiavam,<br />

ela esclareceu:<br />

- Não, Mateus. Quero saber quan<strong>do</strong> vai retornar dessa viagem que empreendeu<br />

para se afastar cada vez mais <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r.<br />

Helena, em oração, mantinha a cabeça baixa. De imediato Mateus ficou<br />

sem cor e sentiu as pernas tremerem. Estranho sentimento apossou-se dele, que<br />

resmungou:<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>? Parece maluca.<br />

Agora completamente envolvida pelo protetor, ela redarguiu:<br />

325


- Você sabe <strong>do</strong> que estou falan<strong>do</strong>. Ainda há tempo de voltar atrás em suas<br />

ações, mas em breve ele se esgotará. Por que adiar mais?<br />

Atemoriza<strong>do</strong>, Mateus disfarçou:<br />

- Já disse que não sei <strong>do</strong> que está falan<strong>do</strong>. E agora preciso sair, tenho um<br />

compromisso importante... Um jantar de negócios.<br />

Pousan<strong>do</strong> no rapaz seus profun<strong><strong>do</strong>s</strong> olhos negros, Eliana ergueu-se e, com<br />

extremada ternura, tocou-lhe as mãos:<br />

- Até quan<strong>do</strong> vai fugir <strong>do</strong> bem?<br />

- O que quer dizer com isso?<br />

- Sei que nos tem calunia<strong>do</strong>.<br />

- Isso é mentira.<br />

- Não estou aqui para acusá-lo, Mateus, e sim para pedir que reflita sobre o<br />

que tem aprendi<strong>do</strong>, pelos preciosos ensinos de Jesus. Eles são vida para nossa<br />

alma <strong>do</strong>ente. Precisamos desse alimento espiritual para ser cura<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Mateus desconversou:<br />

- Preciso ir.<br />

As duas se levantaram e Eliana falou:<br />

- Está bem, já vamos embora. Mas prometa que vai ao menos pensar no<br />

que lhe pedi.<br />

Ele apenas balançou a cabeça afirmativamente, enquanto as acompanhava<br />

até a porta. Assim que elas saíram, sentou-se no sofá sentin<strong>do</strong> o coração acelera<strong>do</strong>.<br />

Estava confuso. Aquela mulher tinha o poder de mexer com suas emoções<br />

mais secretas e fazia despertar o melhor que havia dentro dele. Identifican<strong>do</strong><br />

o conflito interior de Mateus, as duas entidades espirituais que o assediavam<br />

sugeriram:<br />

- Você não vai dar ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> a essa beata, não é? Não percebe que é uma<br />

louca? E <strong>do</strong>ida varrida. Esqueça essa mulher de uma vez por todas.<br />

E sentan<strong>do</strong>-se na poltrona ao la<strong>do</strong> de Mateus, que registrava aquelas palavras<br />

como se fossem seus próprios pensamentos, comentou com o outro espírito,<br />

que se mantinha em pé:<br />

- Ele foi incapaz de acabar com ela. Era para fazer algo que a comprometesse,<br />

que realmente a exterminasse... Não conseguiu, não teve coragem. Esse<br />

é um frouxo mesmo. E melhor que não volte àquele lugar. Nunca mais.<br />

- E isso mesmo. Lá ele não pisa mais.<br />

- Se voltar, é bem capaz de bandear-se para o outro la<strong>do</strong>, tal a fraqueza que<br />

demonstrou aqui.<br />

- Será?<br />

- Não duvi<strong>do</strong>, não.<br />

- Eles não são tão poderosos... Licínio é <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos há muitos milênios.<br />

326


- Só que aquela mulher também não desiste dele...<br />

- É, isso é verdade.<br />

- Apesar de concordar que eles não têm tanto poder assim, de qualquer<br />

mo<strong>do</strong> acho bom que ele não vá mais lá, para garantir. Vamos providenciar a<br />

promoção e a transferência dele para outra cidade. Poderá ser útil em outro<br />

centro espírita; afinal, já desestruturou uns três ou quatro, não foi?<br />

- Um deles fechou as portas de vez.<br />

- Então, ele ainda pode ser de grande utilidade para nós. Aqui não conseguiu<br />

porque ela é a dirigente. Certamente em outra parte fará bons estragos.<br />

- Então vamos. Temos muito trabalho a fazer.<br />

Deixan<strong>do</strong> Mateus pensativo e exausto, saíram as duas entidades a tramar<br />

como fariam para que ele, de novo a serviço <strong><strong>do</strong>s</strong> seus propósitos, fosse bemsucedi<strong>do</strong>.<br />

SESSENTA<br />

ERA o INÍCIO DA primavera de 1999. A <strong>do</strong>ce fragrância que se desprendia<br />

das flores invadia to<strong><strong>do</strong>s</strong> os ambientes. A linda chácara alugada por Isabela e<br />

Peter estava enfeitada de flores por to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>. Bem nos moldes americanos,<br />

tinha si<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong> para a cerimônia um palanque de madeira, envolto<br />

por <strong>do</strong>is círculos <strong>do</strong> mesmo material e treliças de bambu cobertas de rosas,<br />

copos-de-leite e lírios. Os lírios exalavam perfume suave e envolvente. O pequeno<br />

palanque ficava na parte central <strong>do</strong> pátio grama<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> jardins da casa,<br />

onde cadeiras dispostas sobre a grama acomodariam os convida<strong><strong>do</strong>s</strong>. Entre as<br />

cadeiras, rosas e lírios embelezavam o trajeto que os noivos fariam até o altar,<br />

lindamente decora<strong>do</strong>. A curta distância estavam as mesas sob guarda-sóis que<br />

após a celebração receberiam os convida<strong><strong>do</strong>s</strong> para o almoço.<br />

Eram pouco mais de nove horas e as fileiras de cadeiras estavam totalmente<br />

ocupadas. Alegre expectativa pairava no ar. Perto das 9hl5 o juiz de paz<br />

tomou seu lugar no altar. Depois, Jennifer, a filha de Peter, apareceu vestida de<br />

dama de honra, ten<strong>do</strong> nas mãos uma pequena caixa com as alianças; ao som de<br />

música clássica, foi até o altar. Logo em seguida, Peter surgiu ao la<strong>do</strong> da mãe,<br />

caminhan<strong>do</strong> também para o altar. Fez-se silêncio. Dentro da casa, Isabela se<br />

olhava no espelho pela última vez. Ajeitou o cabelo, arrumou o batom no canto<br />

da boca e, fitan<strong>do</strong> o pai, convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos?<br />

- Sim.<br />

Márcio sentia-se incapaz de participar <strong>do</strong> contentamento de Isabela. Apesar<br />

de reconhecer que era uma boa filha e que merecia ser feliz, não conseguia<br />

327


alegrar-se com ela. Já Ana Lídia, emocionada, contemplava pai e filha prontos<br />

para seguirem até o altar, satisfeita pela presença de Márcio naquela ocasião<br />

importante, ainda que em condições de saúde tão lastimáveis. Quanto a Isabela,<br />

não obstante entristecida por ver o pai naquela situação, estava profundamente<br />

feliz. Mesmo sem ter alimenta<strong>do</strong> durante a a<strong>do</strong>lescência o projeto de<br />

casamento, como muitas de suas amigas, naquele momento sentia como se<br />

fosse o que mais desejava na vida. Sentia como se realizasse antigo sonho e<br />

acalentava, no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> coração, o desejo de ter filhos assim que fosse possível.<br />

Seguran<strong>do</strong> com força o braço <strong>do</strong> pai, pediu que abrissem a porta e, bela e<br />

radiante, caminhou pelo corre<strong>do</strong>r entre as cadeiras na direção de Peter. Seu<br />

coração batia descompassa<strong>do</strong>, e a custo continha a emoção. Lágrimas brotavam<br />

de seus olhos e desciam pela face, enquanto ela sorria feliz. Não podia<br />

tirar os olhos de Peter. Estava lin<strong>do</strong> e, ao aproximar-se dele, pensou que seu<br />

coração fosse explodir. O noivo tomou-lhe a mão e beijou-a com carinho. Depois<br />

cumprimentou o sogro, que não mostrava nenhuma empolgação, e conduziu-a<br />

ao altar. Amigos mais próximos, entre eles Helena e o mari<strong>do</strong>, foram os<br />

padrinhos. A cerimônia, rápida e simples, foi abrilhantada pela presença de<br />

oito músicos que interpretaram com esmero e perfeição as obras selecionadas.<br />

Eram sete instrumentistas - com flauta, <strong>do</strong>is violinos, harpa, trompete, violoncelo<br />

e piano -, além de uma cantora. De tão bonita, a singela celebração arrancou<br />

suspiros <strong><strong>do</strong>s</strong> convida<strong><strong>do</strong>s</strong> mais emotivos.<br />

Durante o almoço, Isabela cumprimentou um a um e apresentou o mari<strong>do</strong><br />

àqueles que ainda não o conheciam. Mais tarde, sentou-se à mesa ocupada<br />

pelos amigos da casa espírita, onde também estavam Eliana e Helena. Esta, ao<br />

receber da noiva um terno e emociona<strong>do</strong> abraço, comentou:<br />

- Não me lembro de ter visto uma noiva tão alegre! Estou muito contente<br />

por você, querida, e rogo a Deus que abençoe esta união.<br />

Isabela deixou-se envolver pelo abraço afetuoso, sentin<strong>do</strong>-se inteiramente<br />

feliz. Depois de breve silêncio, Helena indagou:<br />

- Seu irmão conseguiu vir para o casamento? Isabela sorriu desconsertada:<br />

- Não, ele acabou não vin<strong>do</strong>. Disse que tinha compromissos inadiáveis,<br />

mas eu não acredito.<br />

- Por que não? Vocês são amigos, não são?<br />

- Rafael e eu sempre fomos amigos, mesmo ten<strong>do</strong> nossas diferenças. No<br />

entanto, depois que ele se mu<strong>do</strong>u para os Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong> ficou mais fecha<strong>do</strong>,<br />

mais individualista, até mais egoísta. Não se sacrifica por ninguém e, da maneira<br />

como venera aquele país, vir para o Brasil, ainda que fosse para o meu<br />

casamento, certamente seria um sacrifício para ele.<br />

328


Helena, quase arrependida por ter feito a pergunta, disse:<br />

- Per<strong>do</strong>e-me, Isabela, não devia ter toca<strong>do</strong> nesse assunto...<br />

- Não se preocupe. Eu lhe falei tanto <strong>do</strong> meu desejo de que ele viesse, e <strong>do</strong><br />

meu receio de que não pudesse estar aqui, que é natural você querer saber.<br />

Minha amiga, jamais me ofenderia ou magoaria, mesmo que quisesse.<br />

Depois disso, reafirmou seu imenso carinho:<br />

- Sabe que a amo como minha mãe, Helena.<br />

- E você também sabe que eu a amo como a uma filha. Fin<strong>do</strong> rápi<strong>do</strong> silêncio<br />

em que acalmaram a comoção, Helena<br />

perguntou:<br />

- E quan<strong>do</strong> partem?<br />

- Em duas semanas.<br />

- Como se sente?<br />

- Ansiosa e assustada, porém entusiasmada.<br />

Isabela continuava a trocar impressões e falar sobre seus planos com amigos,<br />

quan<strong>do</strong> Peter a interrompeu, convidan<strong>do</strong> a esposa para a dança <strong><strong>do</strong>s</strong> noivos.<br />

A festa estendeu-se até a noite.<br />

Na semana seguinte, ao término das atividades da casa espírita, Isabela saiu<br />

com alguns <strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros para um jantar de despedida. Peter a acompanhava,<br />

atencioso. Ela confidenciou a Helena e Eliana:<br />

- Agora que o momento de partir se aproxima, estou fican<strong>do</strong> apreensiva. E<br />

se não me adaptar na casa espírita em Nova York, o que farei?<br />

- Você está com os da<strong><strong>do</strong>s</strong> daqueles amigos que lhe indiquei? -perguntou<br />

Eliana.<br />

À resposta positiva, ela sorriu e assegurou:<br />

- Não se preocupe, são pessoas sérias e dedicadas ao estu<strong>do</strong> da Doutrina<br />

Espírita. Estão desenvolven<strong>do</strong> um trabalho muito bom, inclusive no atendimento<br />

às pessoas mais necessitadas. São fiéis aos ensinos espíritas codifica<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por Allan Kardec; além <strong>do</strong> mais, imprimiram às suas atividades características<br />

similares às da nossa instituição. Não tenho dúvida de que se sentirá em casa.<br />

Ansiosa, Isabela quis confirmação:<br />

- Tem certeza mesmo, Eliana?<br />

- Absoluta. Fique tranqüila, tu<strong>do</strong> correrá bem. Já lhes falei sobre você e eles<br />

a aguardam, com tarefa reservada e tu<strong>do</strong> o mais. Seu trabalho continuará<br />

por lá, onde será muito útil.<br />

Isabela sorriu, enfim serena. Solicitada por outros companheiros, Eliana<br />

levantou-se. Isabela acompanhou-a com os olhos, depois dirigiu-se a Helena:<br />

- Ela é uma pessoa muito especial.<br />

- Sim, de fato é.<br />

329


- E continua visitan<strong>do</strong> aquela moça, mãe das crianças?<br />

- Continua.<br />

- E a moça? Como é mesmo o nome dela?<br />

- Iracema. Está ceden<strong>do</strong>, aos poucos. Já não nos expulsa da casa...<br />

- Eliana nunca desistiu dela... Que perseverança admirável!<br />

- Desde as primeiras visitas, nossa amiga disse que não desistiria; que veria<br />

Iracema assumir seu papel de mãe, cuidan<strong>do</strong> das crianças; que acreditava na<br />

sua condição de se tornar uma pessoa melhor. Confesso que nas duas primeiras<br />

semanas até eu duvidei das possibilidades da moça, mas agora, depois de mais<br />

de um mês de visitas, constato que Eliana tinha razão. Ela estava in<strong>do</strong> além <strong>do</strong><br />

que nós conseguimos ver... E ainda bem que não desistiu.<br />

Prosseguiram em animada conversa. Mais tarde, ao despedir-se <strong><strong>do</strong>s</strong> amigos,<br />

Isabela abraçou um por um carinhosamente e agradeceu pela dedicação<br />

com que fora tratada no núcleo espírita. Na vez de Helena, desatou o pranto,<br />

com grande dificuldade de separar-se dela. Por fim, acalmou-se e disse:<br />

- Vou sentir muito, muito a sua falta.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas e arruman<strong>do</strong>-lhe os cabelos desalinha<strong><strong>do</strong>s</strong>, a amiga<br />

assegurou:<br />

- Estaremos próximas pelo coração; nossas almas se encontrarão durante o<br />

sono e... bem, seu eu puder, preten<strong>do</strong> visitá-la também com o corpo físico.<br />

- Quan<strong>do</strong>?<br />

- Isso ainda não sei, mas garanto que vou perturbá-la...<br />

- Será sempre bem-vinda, Helena.<br />

Na semana seguinte, Isabela acomo<strong>do</strong>u-se na poltrona <strong>do</strong> avião, ao la<strong>do</strong> de<br />

Peter, partin<strong>do</strong> para a nova vida. Enquanto olhava as casas se afastarem de seu<br />

campo de visão, diminuin<strong>do</strong> de tamanho à medida que a aeronave subia, sentia-se<br />

apreensiva, porém feliz. Seu coração estava cheio de esperanças e ela<br />

sabia que não deixava nada para trás. Suas responsabilidades a esperavam no<br />

país que a receberia como cidadã americana.<br />

Ao chegar à casa que Peter e ela haviam escolhi<strong>do</strong> juntos pela internet, ela<br />

ficou satisfeita. Era maravilhosa e em pouco tempo estavam perfeitamente<br />

instala<strong><strong>do</strong>s</strong>. Isabela, apesar de ter nasci<strong>do</strong> no Brasil, não precisou de mais de<br />

duas semanas para se adaptar à rotina e às maneiras <strong>do</strong> povo americano, quanto<br />

aos hábitos mais básicos. Era como se tivesse passa<strong>do</strong> a vida inteira naquele<br />

país.<br />

Logo que chegaram, Márcio começou a se tratar, e <strong>do</strong>is meses depois passou<br />

por delicada cirurgia, na esperança de cura da <strong>do</strong>ença. Como os pais moravam<br />

na mesma rua, duas casas abaixo da sua, Isabela acompanhava diaria-<br />

330


mente o tratamento de Márcio. Com desvelo buscava minimizar, em tu<strong>do</strong> o<br />

que podia, a <strong>do</strong>r e o desconforto <strong>do</strong> pai.<br />

Um mês após sua chegada ela iniciou o trabalho em uma clínica pediátrica,<br />

apresentada pelo seu professor e orienta<strong>do</strong>r da residência, e não teve dificuldade<br />

em adaptar-se. Isabela era excelente profissional e médica humana e dedicada.<br />

Visitou a casa espírita indicada por Eliana e, tal qual a amiga lhe falara,<br />

sentiu-se plenamente acolhida. Recebida com muito carinho por Regina e Osmar,<br />

logo se integrou nas tarefas mediúnicas e também no atendimento às crianças<br />

menos favorecidas <strong>do</strong> bairro.<br />

Em seis meses, Isabela havia assumi<strong>do</strong> por completo a nova vida, satisfeita<br />

com os resulta<strong><strong>do</strong>s</strong> que obtinha tão depressa. Peter estava igualmente surpreendi<strong>do</strong><br />

com a rápida adaptação da esposa. O relacionamento entre eles era amoroso<br />

e sincero; quanto mais conviviam, mais sentiam o amor crescer. Em uma<br />

noite, senta<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> da esposa diante da lareira acesa, Peter comentou:<br />

- Você está in<strong>do</strong> muito bem. Excedeu em muito as minhas expectativas.<br />

Sorrin<strong>do</strong>, Isabela aninhou-se em seus braços e admitiu:<br />

- Acho que até eu estou surpresa, sabe? Sinto como se tivesse nasci<strong>do</strong> e<br />

cresci<strong>do</strong> neste país. Tu<strong>do</strong> me é tão familiar... Os costumes, a alimentação, tu<strong>do</strong>,<br />

enfim.<br />

Ficaram algum tempo cala<strong><strong>do</strong>s</strong>, e então ela disse:<br />

- Sinto falta apenas de uma pessoa.<br />

- Helena.<br />

- Ela mesma. Peter, como sinto a falta dela...<br />

- Vocês têm conversa<strong>do</strong> regularmente?<br />

- Sim, ao menos duas vezes por semana nos falamos. Só que para mim não<br />

é suficiente... Sinto falta de vê-la pessoalmente, de nossas longas conversas...<br />

- Quan<strong>do</strong> virá nos visitar?<br />

- Não sabe ainda, depende das férias <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Acho que no final <strong>do</strong> próximo<br />

ano. Até lá...<br />

Peter abraçou a esposa e disse:<br />

- Até lá, use o telefone o quanto quiser...<br />

- Não posso, é muito caro...<br />

- Pode e deve. Nós podemos pagar.<br />

- Mas, Peter...<br />

- Isabela, tenho uma novidade para você. Ajeitan<strong>do</strong>-se na poltrona, ela olhou<br />

ansiosa para o mari<strong>do</strong>:<br />

- Fale logo!<br />

- A terceira edição <strong>do</strong> meu livro já está esgotada.<br />

- Verdade? E quantos exemplares fizeram dessa vez?<br />

331


- Duzentos mil.<br />

- Você já vendeu duzentos mil exemplares <strong>do</strong> relato da sua experiência -<br />

como você diz, sobrenatural - de sair <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poço? Peter!<br />

- Agora querem que eu escreva outro.<br />

- Outro? Sobre o quê?<br />

- Eles acham que tenho habilidade para desenvolver livros de auto ajuda, já<br />

que esse vendeu tão bem...<br />

- Acontece, Peter, que uma coisa é contar sua experiência, verídica, e compartilhar<br />

com as pessoas a maneira como superou seus obstáculos; outra, bem<br />

diferente, é falar sobre algo que você não <strong>do</strong>mina.<br />

Peter ficou em silêncio, e Isabela indagou:<br />

- Você aceitou?<br />

- Estou pensan<strong>do</strong>.<br />

Isabela também se calou. Então viu Thomas no canto da sala e ele aconselhou:<br />

- Diga a Peter que, antes de escrever qualquer outro livro, estude a fun<strong>do</strong> a<br />

Doutrina Espírita; encontran<strong>do</strong> nela os tesouros liberta<strong>do</strong>res das consciências,<br />

que conte ao povo americano suas experiências à luz <strong><strong>do</strong>s</strong> princípios espíritas.<br />

Isabela repetiu o conselho para o mari<strong>do</strong>. Como não teve resposta, antes de<br />

se deitar naquela noite ela pediu:<br />

- Por favor, pense com muito carinho no conselho de Thomas. Ele nos quer<br />

muito bem, e se assim recomenda é porque isso deve ser o melhor para você,<br />

queri<strong>do</strong>, mesmo que por ora não compreendamos.<br />

- E que já tinha aventa<strong>do</strong> algumas possibilidades... Imperceptivelmente envolvida<br />

pelo pensamento <strong>do</strong> amigo espiritual, Isabela ponderou:<br />

- Peter, sem dúvida os livros de auto ajuda podem ser úteis; entretanto, tivemos<br />

uma experiência contundente, que se esclareceu através <strong>do</strong> conhecimento<br />

espírita. Não podemos negar isso, é parte de nossa história. Não tenha<br />

pressa, queri<strong>do</strong>, espere para escrever. Estou certa de que encontrará, à luz <strong>do</strong><br />

Espiritismo, o melhor caminho a percorrer com seus livros. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, e se<br />

você tiver mediunidade de psicografia?<br />

- O quê?<br />

- E isso mesmo. Pode ser que tenha alguma tarefa com a psicografia, escreven<strong>do</strong><br />

livros dita<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos espíritos.<br />

- Não tinha pensa<strong>do</strong> nisso.<br />

Acomodan<strong>do</strong>-se na cama, Isabela disse, sonolenta, ainda influenciada por<br />

Thomas:<br />

332


- Nada acontece por acaso. Existem propósitos superiores que regem nosso<br />

destino na Terra. Tenha calma e ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> de ouvir. Seus desejos, à luz <strong><strong>do</strong>s</strong> propósitos<br />

superiores, serão bem encaminha<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

Peter ficou pensativo, sem conseguir conciliar o sono, ao passo que Isabela<br />

logo a<strong>do</strong>rmeceu, serena e feliz.<br />

SESSENTA E UM<br />

EM NOVA YORK , Isabela e Peter passaram a freqüentar o núcleo espírita no<br />

bairro <strong>do</strong> Brooklin. À medida que se aprofundavam no estu<strong>do</strong> e nas tarefas de<br />

auxílio material e espiritual aos necessita<strong><strong>do</strong>s</strong>, ampliavam sua experiência e<br />

desenvolviam maior compreensão <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da Doutrina Espírita. Isabela<br />

colocou sua mediunidade a serviço de Jesus, como veículo <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos que<br />

precisavam de esclarecimento e também daqueles que orientavam a instituição.<br />

Entregou igualmente suas mãos e sua capacidade profissional à difusão <strong>do</strong><br />

bem, atenden<strong>do</strong> gratuitamente crianças e a<strong>do</strong>lescentes como médica pediatra.<br />

Peter também estudava; contu<strong>do</strong>, não conseguia dedicar-se aos semelhantes<br />

com o mesmo desprendimento da esposa. Trazia questionamentos e dúvidas<br />

veladas que ainda o atormentavam.<br />

Naquele sába<strong>do</strong> fazia <strong>do</strong>is anos que haviam estabeleci<strong>do</strong> residência no país.<br />

Isabela estava bastante cansada e se arrumava para levar Márcio ao tratamento,<br />

quan<strong>do</strong> telefonaram da instituição pedin<strong>do</strong> sua presença: um bebê requeria<br />

auxilio urgente. Ao desligar, sentou-se no sofá, recostou a cabeça e pensou<br />

por alguns segun<strong><strong>do</strong>s</strong>; depois chamou o irmão pelo telefone:<br />

- Rafael, estou precisan<strong>do</strong> de sua ajuda.<br />

- Pode falar.<br />

- Preciso que hoje leve o pai para o tratamento. Tenho uma emergência.<br />

- Na clinica? Eles não têm médico de plantão?<br />

- Não é na clínica, é no núcleo.<br />

- Ora, Isabela, tenha dó! Vai deixar de levar o pai para atender uns pobres<br />

fedi<strong><strong>do</strong>s</strong>?<br />

Isabela respirou fun<strong>do</strong> e questionou:<br />

- Rafael, o que está acontecen<strong>do</strong> com você?<br />

- Nada, por quê?<br />

- A cada dia eu o reconheço menos.<br />

- Não sei por que motivo.<br />

- O pai se trata há quase <strong>do</strong>is anos, e você não o acompanhou uma única<br />

vez.<br />

- Não gosto de hospitais, você sabe. Faço outras coisas...<br />

333


- Que coisas? Você não colabora em nada.<br />

- Eles não precisam de nada, têm tu<strong>do</strong>...<br />

- Precisam de sua presença, de seu carinho, de sua atenção. É incapaz de<br />

enxergar?<br />

- Isabela, eu tenho pouco tempo... Trabalho muito, estu<strong>do</strong>, tenho vários<br />

compromissos. Minha vida é ocupada demais.<br />

- Só não tem tempo para seus pais, para sua família... Não me importo em<br />

levá-lo para se tratar; a bem da verdade, faço questão de acompanhar isso pessoalmente.<br />

- Eu sei, por isso mesmo não interfiro.<br />

- Só que hoje estou pedin<strong>do</strong> sua ajuda; não posso levá-lo e ele tem de estar<br />

lá em 45 minutos. Por favor, Rafael, preciso de você.<br />

Após breve silêncio <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha, o irmão respondeu:<br />

- Não posso, Isabela. Contrate uma enfermeira; assim, quan<strong>do</strong> você não<br />

puder ir, ele terá a assistência necessária.<br />

Dessa vez a pausa foi de Isabela, que por fim perguntou:<br />

- Por que está tão distante, Rafael, deixan<strong>do</strong> a vida passar sem aproveitá-la?<br />

- Mas é justamente isso que estou tentan<strong>do</strong> fazer: aproveitar a vida ao máximo.<br />

Isabela escutou ao fun<strong>do</strong> a voz de Paola, a namorada <strong>do</strong> irmão. Ele interrompeu<br />

a conversa e depois retornou:<br />

- Preciso desligar. Tenho um compromisso importante agora.<br />

- Tu<strong>do</strong> bem, Rafael, em outra hora nos falamos.<br />

Ela bateu o fone, sentin<strong>do</strong> o impulso de raiva sufocá-la. O que fazer? Sentou-se,<br />

respirou lentamente e por algum tempo buscou o reequilíbrio; ligou<br />

então para o hospital, conversan<strong>do</strong> com o responsável pela área em que Márcio<br />

era assisti<strong>do</strong>. Logo depois lhe telefonou e informou:<br />

- Pai, o seu horário de hoje foi remarca<strong>do</strong> para o final <strong>do</strong> dia. Passo por aí<br />

cerca de 4h30, está bem?<br />

Sem maiores problemas, alcançou o ambulatório da instituição e recebeu o<br />

bebê que lhe requisitava atendimento.<br />

Transcorridas duas semanas, ao levantar-se de manhã, sentiu súbita vertigem<br />

e quase desmaiou. Peter a acudiu, preocupa<strong>do</strong>, sentan<strong>do</strong>-a de volta na<br />

cama.<br />

- Você está bem? O que foi? Isabela murmurou, ainda ator<strong>do</strong>ada:<br />

- Quase perdi os senti<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Você tem trabalha<strong>do</strong> demais, querida, deve descansar. Recostada nos travesseiros,<br />

ela suspirou e respondeu:<br />

- Já passou, foi só um mal-estar.<br />

334


- Quero que procure um colega e faça um check-up.<br />

- Não há necessidade, queri<strong>do</strong>, estou bem. Peter insistiu, sério, fitan<strong>do</strong>-a<br />

nos olhos:<br />

- Prometa que vai falar com um clínico geral.<br />

Isabela conhecia bem aquele olhar: quan<strong>do</strong> queria muito alguma coisa, a<br />

seriedade e o ar compenetra<strong>do</strong> que o mari<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tava significavam que nada o<br />

demoveria de sua intenção. Sem alternativa, aquiesceu:<br />

- Está certo, eu vou.<br />

- Ótimo.<br />

Satisfeito com a resposta, ele se aprontou e saiu para o trabalho; Isabela ficou<br />

um pouco mais na cama, refletin<strong>do</strong> a respeito <strong>do</strong> que sentira e <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong><br />

de Peter. Procuraria um médico; afinal, já fazia tempo que não se consultava.<br />

Na semana seguinte Isabela chegou mais ce<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho e preparou para<br />

o companheiro um jantar especial, com suas iguarias favoritas. Quan<strong>do</strong> ele<br />

chegou, ficou surpreso e feliz. Ao final da refeição, saboreada à luz de velas,<br />

Isabela aninhou-se em seu ombro e ouviu o elogio:<br />

- O jantar estava maravilhoso, a<strong>do</strong>rei.<br />

- Que bom!<br />

Fez-se aquele silêncio típico da intimidade, até que Peter perguntou:<br />

- Você foi ver o médico, Isabela?<br />

Fitan<strong>do</strong> o rosto <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> ilumina<strong>do</strong> pelas velas, a jovem sentiu que já vivera<br />

aquele momento. Acariciou o rosto de Peter e disse:<br />

- Tenho a nítida sensação de que já vivemos isto antes, eu e você assim<br />

senta<strong><strong>do</strong>s</strong>, com a luz bruxuleante da vela iluminan<strong>do</strong> seus olhos... Seus lin<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

olhos, Peter. Que coisa estranha...<br />

Ele sorriu, sem dizer nada. Isabela pegou um papel <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> que estava sob<br />

a toalha da mesa e entregou-o ao mari<strong>do</strong>:<br />

- A família vai crescer...<br />

Peter pegou o papel e leu o resulta<strong>do</strong> positivo <strong>do</strong> teste de gravidez. Levantou-se,<br />

pegou a esposa no colo e girou-a duas vezes, beijan<strong>do</strong>-lhe o rosto. Ela<br />

pediu:<br />

- Cuida<strong>do</strong>, agora não estou mais sozinha!<br />

Peter a acomo<strong>do</strong>u na cadeira e ajoelhou-se, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Desculpe, é que você me fez tão feliz...<br />

De repente Isabela ficou séria, Peter indagou:<br />

- O que foi? Qual o problema?<br />

- Estou preocupada com Jennifer. Será que ela vai aceitar o bebê?<br />

- Por que não, querida, se a recebeu tão bem?<br />

335


- Eu sei, ela é uma jovenzinha meiga e somos muito amigas. Mas será que<br />

não vai ter ciúme <strong>do</strong> irmão?<br />

Peter pensou por alguns segun<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

-Talvez um pouco, no início, porém vai acabar feliz por ter um irmão ou<br />

uma irmã.<br />

Comemoraram com muita alegria e logo partilharam a novidade com toda<br />

a família. Entretanto, nas semanas que se seguiram, um temor crescente apossou-se<br />

de Isabela. Ela receava pela saúde da criança, com a idéia fixa de que o<br />

bebê poderia ter problemas. Certa noite, acor<strong>do</strong>u gritan<strong>do</strong> e suan<strong>do</strong> frio. Peter<br />

a socorreu:<br />

- Calma, querida, está tu<strong>do</strong> bem. Foi só um sonho.<br />

- Um sonho terrível e tão real... Abraçan<strong>do</strong>-a, o mari<strong>do</strong> a confortava, repetin<strong>do</strong>:<br />

- Calma, não passou de um sonho.<br />

- Foi horrível, Peter. Eu via um bebê deforma<strong>do</strong> em meus braços, que depois<br />

era uma criança e por fim um jovem.<br />

Peter sentiu forte arrepio percorrer-lhe o corpo, como se também já tivesse<br />

visto aquela cena que a esposa descrevia. A muito custo conseguiu serená-la e,<br />

depois que finalmente a viu a<strong>do</strong>rmecer, ele não conseguia conciliar o sono,<br />

pensan<strong>do</strong>: Será que teriam um bebê <strong>do</strong>ente, mesmo? Seria aquilo um aviso?<br />

O sonho se repetiu por várias noites, até que Isabela pediu auxílio a Regina.<br />

Após três semanas de tratamento espiritual realiza<strong>do</strong> no núcleo espírita, o<br />

temor começou a diminuir, aquele sonho foi rarean<strong>do</strong> até desaparecer e houve<br />

sensível melhora em seu esta<strong>do</strong> geral. O restante da gestação transcorreu com<br />

tranqüilidade e o bebê, uma menina, nasceu forte e saudável, enchen<strong>do</strong> toda a<br />

família de satisfação. Ana Lídia, normalmente abatida com a luta pela vida que<br />

ela e Márcio empreendiam, sorriu contente como não fazia há anos. Ver aquele<br />

bebê no berçário <strong>do</strong> hospital, cheio de vida e saúde, trazia-lhe tanta esperança,<br />

tanta fé que sentiu o coração leve pela primeira vez, desde que soubera da <strong>do</strong>ença<br />

<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Já Márcio, embora sentisse carinho pela neta, não conseguia<br />

alívio para uma só das <strong>do</strong>res que suportava na alma. Seu coração era como um<br />

baú carrega<strong>do</strong> de pedras. Seus olhos estavam cada vez mais opacos, e ele piorava<br />

dia a dia.<br />

Ao tomar Juliana nos braços, Isabela chorou de alegria. Com profun<strong>do</strong> sentimento<br />

de realização, orou agradecen<strong>do</strong> a Deus pela oportunidade de ser mãe<br />

de uma criança linda e sã. Estava emocionada e feliz como nunca.<br />

Os meses se sucediam rápi<strong><strong>do</strong>s</strong>. Isabela dedicava-se à filha e aos poucos retornava<br />

às suas responsabilidades. Peter publicou mais um livro, dessa vez a<br />

biografia de um atleta. Como jornalista esportivo, continuava trabalhan<strong>do</strong> e<br />

336


crescen<strong>do</strong> no campo profissional. A situação financeira e social <strong>do</strong> casal não<br />

parava de melhorar.<br />

A pequena Juliana ensaiava os primeiros passos pelo jardim, quan<strong>do</strong> Peter<br />

apareceu à porta com o telefone nas mãos e o semblante preocupa<strong>do</strong>. Isabela<br />

sorria, acompanhan<strong>do</strong> o andar titubeante da filha, e não notou o olhar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>,<br />

que informou:<br />

- É sua mãe, Isabela.<br />

Fascinada pelos progressos da menina, respondeu distraída: -Já vou...<br />

- É melhor atender logo. - o mari<strong>do</strong> insistiu. - Seu pai não está bem.<br />

Isabela empalideceu e de imediato sentiu as pernas bambas. Levantou-se<br />

da grama e correu até o telefone.<br />

- Oi, mãe, o que houve?<br />

Ana Lídia chorava, quase impossibilitada de falar:<br />

- Ele está péssimo...<br />

- Vou para aí agora mesmo.<br />

- Não, vá direto para o hospital. Já estamos na ambulância, in<strong>do</strong> para lá.<br />

Seu pai está inconsciente, Isa...<br />

- Fique calma, estou in<strong>do</strong> já.<br />

Isabela desligou o telefone e consultou o mari<strong>do</strong>:<br />

- Acha que sua mãe poderia ficar com Juliana?<br />

- Claro, vou falar com ela.<br />

A jovem subiu as escadas corren<strong>do</strong> e em poucos minutos estava pronta, recomendan<strong>do</strong><br />

à sogra:<br />

- Ela deve tomar banho às seis e jantar às sete. Dorothy sorriu:<br />

- Pode ficar tranqüila, Isa, sei da rotina de Juliana; vou fazer tu<strong>do</strong> como<br />

ela está habituada.<br />

Aproximou-se com a neta no colo e beijou a testa da nora.<br />

- Vá em paz, minha filha, vá cuidar de seu pai. Nós ficaremos bem.<br />

Isabela acariciou a cabeça da filha, agradecen<strong>do</strong> à sogra, e o casal saiu. Ela<br />

ia com o coração aperta<strong>do</strong>. Sabia que o pai não resistiria por muito tempo na<br />

condição em que se encontrava. Unicamente um milagre poderia salvá-lo. Pedia<br />

a Deus que o ajudasse. Seu coração estava amargura<strong>do</strong>, pois passara mais<br />

de quatro anos lutan<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>ença e oran<strong>do</strong> por ele, sem ver qualquer melhora.<br />

Desejava ajudá-lo de todas as maneiras possíveis, sentia-se quase na<br />

obrigação de curá-lo, como se fosse responsável por sua <strong>do</strong>ença.<br />

Chegaram ao hospital e logo encontraram Ana Lídia na sala de espera da<br />

UTI. Ela disse, abraçan<strong>do</strong> a filha:<br />

- Seu pai está desacorda<strong>do</strong>. Foi entuba<strong>do</strong> e seda<strong>do</strong>. Dizem que o remédio<br />

evitará que sinta <strong>do</strong>res...<br />

337


Finda breve pausa, entregou-se a pranto convulsivo nos ombros da filha,<br />

que lhe acariciava os cabelos, já embranqueci<strong><strong>do</strong>s</strong>, e pedia:<br />

- Calma, mãe... Venha, sente-se.<br />

Acomodan<strong>do</strong>-a no sofá, pediu a Peter que trouxesse um remédio para acalmá-la.<br />

Ana Lídia impediu-o:<br />

- Não precisa, Peter, eles já me deram.<br />

Isabela abraçou a mãe e ali permaneceram até o amanhecer, quan<strong>do</strong> o médico<br />

veio com informações.<br />

- Ele está um pouco melhor. Conseguimos estancar a hemorragia interna e<br />

agora a situação é estável. No entanto, é muito grave.<br />

- Fizeram os exames to<strong><strong>do</strong>s</strong>, <strong>do</strong>utor? - Isabela indagou.<br />

- Sim, e infelizmente as notícias não são boas. Está completamente alastra<strong>do</strong>.<br />

Ele tem pouco tempo...<br />

Ana Lídia chorava baixinho. Quan<strong>do</strong> o médico terminou, Isabela quis saber:<br />

- Ele poderá ir para casa?<br />

- Por enquanto não. Vamos tentar alguns medicamentos. Faremos tu<strong>do</strong> o<br />

que for possível.<br />

Isabela e a mãe permaneceram abraçadas, em silêncio. Depois de algum<br />

tempo, Ana Lídia pediu:<br />

- Quero vê-lo, ficar perto dele. Será que posso, filha? Isabela olhou para o<br />

mari<strong>do</strong>, que imediatamente anunciou:<br />

- Vou ver.<br />

Depois de algumas negociações de Peter com a administração <strong>do</strong> hospital,<br />

colocaram Márcio em um quarto de UTI onde poderia ficar parcialmente acompanha<strong>do</strong>.<br />

Ana sentou-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e disse à filha:<br />

- Quero ficar aqui com ele. Paciente e dedicada, Isabela respondeu:<br />

- Vou providenciar tu<strong>do</strong> de que precisa para ficar bem acomodada... Pode<br />

ser uma longa espera...<br />

Ana Lídia falou com os olhos distantes:<br />

- Não faz mal, ficarei o tempo que for necessário...<br />

No plano espiritual, Márcio permanecia em repouso, acima de seu corpo<br />

denso, sob forte torpor. Thomas e uma equipe de espíritos que atuavam na área<br />

da saúde aplicavam-lhe passes em to<strong>do</strong> o corpo perispiritual. Uma senhora<br />

comentou:<br />

- Ele não apresenta nenhuma alteração vibracional. E como se não absorvesse<br />

nossa transfusão de energia...<br />

- Sim, está rejeitan<strong>do</strong> toda a ajuda, e isso há bastante tempo. Não consegue<br />

per<strong>do</strong>ar. O sentimento de autocomiseração está cristaliza<strong>do</strong> em suas mais pro-<br />

338


fundas camadas mentais, e tem si<strong>do</strong> incapaz de desvencilhar-se delas. Tem ao<br />

la<strong>do</strong> o pai e a madrasta de outrora, que a seu ver lhe tiraram a oportunidade<br />

iminente de tornar-se um grande impera<strong>do</strong>r. O rancor o acompanha e, embora<br />

tenha aceita<strong>do</strong> ajuda, sua alma continua fechada. Na presente encarnação, o<br />

conhecimento da Doutrina Espírita o teria auxilia<strong>do</strong> na compreensão de seus<br />

sentimentos, de suas dificuldades, enfim, de si próprio e da vida. Entretanto,<br />

ele não quis contato algum com essas verdades espirituais. Mesmo assim, vem<br />

receben<strong>do</strong> nosso amparo a distância. A <strong>do</strong>ença, engendrada por ele em sua<br />

recusa de perdão, o corrói.<br />

- Nem toda a dedicação de Isabela o pode levar a nutrir carinho por ela?<br />

- A filha conseguiu cativar-lhe alguns bons sentimentos, porém ainda são<br />

incipientes...<br />

- É uma pena... Ele poderia ter aproveita<strong>do</strong> muito esta experiência na Terra...<br />

- Sim, poderia estar em condições muito melhores <strong>do</strong> que as que apresenta.<br />

- Nem a <strong>do</strong>ença ele teria?<br />

- Devi<strong>do</strong> ao enraizamento das mágoas, talvez não ficasse livre da <strong>do</strong>ença,<br />

mas certamente sua evolução teria si<strong>do</strong> diferente.<br />

- Poderia até estar cura<strong>do</strong>?<br />

- Provavelmente...<br />

O grupo espiritual prosseguiu com o atendimento a Márcio, bem como a<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong> os familiares.<br />

SESSENTA E DOIS<br />

No HOSPITAL, Simon caminhava de um la<strong>do</strong> para outro, irrita<strong>do</strong> pela demora.<br />

O assistente pedia:<br />

- Por favor, acalme-se, senhor.<br />

O presidente da poderosa empresa farmacêutica berrou sem dó:<br />

- Cale-se! Não está ajudan<strong>do</strong> em nada.<br />

- É que pode piorar seu esta<strong>do</strong>... - gaguejou o outro, assusta<strong>do</strong>.<br />

- Ficar aqui esperan<strong>do</strong> é que pode piorar meu esta<strong>do</strong>... Vá chamar o médico<br />

já.<br />

- Fiz isso umas quinze vezes... Ele está finalizan<strong>do</strong> um atendimento de emergência<br />

e logo virá.<br />

- Pois vá chamá-lo de novo. Quero ser atendi<strong>do</strong> imediatamente...<br />

Simon foi interrompi<strong>do</strong> pela entrada <strong>do</strong> médico. O homem de mais de sessenta<br />

anos tinha o ar cansa<strong>do</strong>, apesar de extremamente bem cuida<strong>do</strong>. Estava<br />

abati<strong>do</strong>. Entrou, fechou a porta e disse:<br />

339


- Estou com to<strong><strong>do</strong>s</strong> os exames e infelizmente não tenho boas notícias, senhor<br />

Simon.<br />

- O que quer dizer? Fale logo.<br />

- Vou ser muito direto: há uma <strong>do</strong>ença degenerativa atacan<strong>do</strong> seu cérebro e<br />

seu sistema nervoso central. Ela está destruin<strong>do</strong> seus neurônios, como se os<br />

devorasse.<br />

Sério, Simon o fitou.<br />

- Quais os tratamentos disponíveis?<br />

- O senhor produz muitos medicamentos para essa <strong>do</strong>ença; entretanto, to<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

são paliativos, não interromperão o avanço da <strong>do</strong>ença.<br />

- Como pode saber?<br />

- Não posso, a não ser pelos muitos casos que tenho acompanha<strong>do</strong>...<br />

- Ora, <strong>do</strong>utor, não me compare com seus outros pacientes. Tenho recursos<br />

suficientes para investir em tu<strong>do</strong> o que for viável para reverter o quadro.<br />

- Podemos tentar diversas medicações, mas, ao que sei, todas serão paliativas.<br />

A <strong>do</strong>ença não pode ser detida, não há tratamento disponível...<br />

- Não há para você. Para mim, haverá. Vou acionar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cientistas de<br />

minhas empresas para que se dediquem a experiências nesta área. Não é possível<br />

que com to<strong><strong>do</strong>s</strong> os recursos que possuo não consiga algo que me ajude.<br />

O médico encarou o poderoso empresário e respondeu:<br />

- Espero que tenha êxito na busca da cura. E, se obtiver progressos, por favor<br />

nos deixe saber, porque temos diversos pacientes que aceitarão fazer testes<br />

gratuitamente.<br />

- Mais alguma coisa, <strong>do</strong>utor?<br />

- Aqui está o medicamento que precisa tomar de imediato, para aliviar as<br />

<strong>do</strong>res de cabeça. E estes outros são para tentar impedir o avanço da <strong>do</strong>ença;<br />

contêm a melhor substância disponível até agora.<br />

- Disse bem, <strong>do</strong>utor, até agora. Algo mais?<br />

- Precisa retornar em duas semanas, para novos exames. Simon se vestiu e<br />

despediu-se <strong>do</strong> médico, exigin<strong>do</strong>:<br />

- Quero os exames, <strong>do</strong>utor. Preten<strong>do</strong> levá-los a outro especialista.<br />

- Não posso entregá-los em suas mãos, mas terei prazer em enviá-los ao<br />

seu novo médico, tão logo o senhor me comunique seu nome.<br />

- Pois muito bem. Logo terá notícias minhas.<br />

Três dias depois, Simon estava senta<strong>do</strong> diante de um especialista que, depois<br />

de verificar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os exames - que tinham si<strong>do</strong> refeitos -, informou:<br />

- É, não há dúvida, Simon, é Alzheimer.<br />

- Não, <strong>do</strong>utor, não pode ser.<br />

- Infelizmente é.<br />

340


- Tem de repetir os exames outra vez... Tem de haver algum mo<strong>do</strong> de reverter<br />

a <strong>do</strong>ença.<br />

- Não existe forma de parar a degeneração celular. O que se pode fazer é<br />

atrasar-lhe os avanços, retardar um pouco seus efeitos. Você pode desenvolver<br />

uma rotina de exercícios diários para ajudar seu cérebro a funcionar melhor e,<br />

assim, contribuir para deter o avanço - acelera<strong>do</strong> no seu caso - dessa <strong>do</strong>ença<br />

impie<strong><strong>do</strong>s</strong>a.<br />

O outro pensou por alguns instantes, depois indagou:<br />

- Qual é a possível evolução da <strong>do</strong>ença? Quais suas fases? Ou seja, passarei<br />

pelo quê?<br />

- O final pode ser a demência completa.<br />

- Demência?<br />

- Sim, a perda total da capacidade de discernimento. Fez-se demora<strong>do</strong> silêncio,<br />

quebra<strong>do</strong> por Simon:<br />

- Quanto tempo?<br />

- É difícil precisar. O certo é que logo precisará de alguém para acompanhá-lo,<br />

em todas as situações. E vamos monitorar a evolução bem de perto.<br />

Simon deixou o consultório <strong>do</strong> maior especialista <strong>do</strong> país naquela <strong>do</strong>ença e<br />

foi direto para casa. Fechou-se em seu quarto e, senta<strong>do</strong> em uma poltrona confortável,<br />

pensava em como poderia impedir que a <strong>do</strong>ença o devorasse. Depois,<br />

apavora<strong>do</strong> com a perspectiva de perder o controle de si mesmo e de sua vida,<br />

pôs-se a quebrar vasos, peças de decoração, móveis e até quadros. Em um crise<br />

de desespero, lançou várias estátuas na piscina, assustan<strong>do</strong> os serviçais e a<br />

esposa - vinte anos mais jovem -, que, entran<strong>do</strong> no quarto, indagou sem muito<br />

interesse:<br />

- O que foi, Simon?<br />

- Saia, Anne, vá para o shopping e me deixe em paz.<br />

- Calma, queri<strong>do</strong>, você vai ficar bem. Ele se pôs a gritar, descontrola<strong>do</strong>:<br />

- Fique quieta, você não sabe de nada! Saia daqui! Afastan<strong>do</strong>-se da porta, a<br />

jovem disse:<br />

- Tu<strong>do</strong> bem, se prefere ficar sozinho... Tu<strong>do</strong> bem.<br />

Assim que ela saiu, ele arremessou uma pesada estatueta, que amassou a<br />

porta e a maçaneta. Mirou seu reflexo no espelho, que quebrou com um cinzeiro<br />

maciço, gritan<strong>do</strong>:<br />

- Não quero enlouquecer! Quero ter total controle sobre mim... Sobre minha<br />

vida, sobre meus negócios.<br />

Seus bra<strong><strong>do</strong>s</strong> eram ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong> por to<strong><strong>do</strong>s</strong> os cantos da mansão. Logo a notícia<br />

se espalhou e os acionistas deliberaram afastá-lo da presidência de sua própria<br />

empresa, temen<strong>do</strong> que a destruísse. Não demorou e ele já não conseguia agen-<br />

341


dar compromissos com os influentes políticos e personalidades com quem costumava<br />

conviver e engendrar planos e ações. Ficou só, com seus emprega<strong><strong>do</strong>s</strong> e<br />

sua <strong>do</strong>ença, que o consumia rapidamente. A loucura o <strong>do</strong>minou em pouco<br />

tempo. Quan<strong>do</strong> os paramédicos foram buscá-lo para a internação, a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

assistente, o médico que o acompanhava comentou:<br />

- Não me lembro de ter presencia<strong>do</strong> uma evolução tão acelerada dessa <strong>do</strong>ença.<br />

Normalmente ela vai corroen<strong>do</strong> a pessoa aos poucos; no caso <strong>do</strong> senhor<br />

Simon, em menos de seis meses o levou à completa loucura. Ele deverá permanecer<br />

na instituição até o fim da vida.<br />

- Não há nada mais a ser feito?<br />

- Vamos assegurar que tenha o melhor atendimento, a melhor qualidade de<br />

vida possível. Ele fará to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tipos de exercícios disponíveis, deven<strong>do</strong> permanecer<br />

sob cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> ininterruptos, para garantir sua integridade e a daqueles<br />

que o cercam. É um paciente potencialmente perigoso.<br />

Deita<strong>do</strong> na cama da instituição que o abrigava, com os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

Simon fitava as figuras que transitavam ao re<strong>do</strong>r de sua cama. Podia ver os<br />

espíritos que ali se encontravam. Um deles sentou-se em sua cama e falou:<br />

- Ei, chefe, pegaram você!<br />

Ainda com os olhos imóveis e arregala<strong><strong>do</strong>s</strong>, Simon, sem compreender o que<br />

ouvia, prestava atenção na figura assusta<strong>do</strong>ra sentada à sua frente. A entidade<br />

prosseguia:<br />

- Precisamos de suas orientações. O que vamos fazer agora? Seria melhor<br />

você retornar logo... Precisa fazer algo, Núbio; desse jeito não poderá dar continuidade<br />

ao seu trabalho.<br />

Apesar de saber que conhecia aquelas pessoas, Simon não tinha condição<br />

de reagir. Não conseguia falar nem <strong>do</strong>rmir. Ao contrário, sentia-se prisioneiro<br />

<strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Mais tarde, quan<strong>do</strong> enfim a<strong>do</strong>rmeceu, seu corpo espiritual desprendeu-se<br />

<strong>do</strong> corpo físico e ele, ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>, sentou-se na cama. Olhan<strong>do</strong> em torno,<br />

comentou:<br />

- Não enten<strong>do</strong> o que se passa...<br />

- Olá, Núbio, não nos reconhece?<br />

- Não sei direito.<br />

- O que está haven<strong>do</strong> com você? Essa porcaria de corpo está atrapalhan<strong>do</strong><br />

sua mente...<br />

- Estou entorpeci<strong>do</strong> demais, são os remédios que me dão...<br />

- Deve ser isso mesmo. Nunca o vimos fragiliza<strong>do</strong> assim.<br />

- São os remédios, os remédios...<br />

- Como foi que fizeram isso? Destruíram sua máquina, chefe. São aqueles<br />

que andam na luz...<br />

342


Outro espírito interferiu:<br />

- Eles não sossegam... E nós também não. Ainda mais agora, que a Terra<br />

está entregue a nós... Vamos <strong>do</strong>miná-la por completo...<br />

Depois virou-se para Simon e comentou:<br />

- E aí, o que iremos fazer? Você precisa sair logo desse corpo inútil. Vamos<br />

acabar com isso agora mesmo.<br />

- E como pretendem fazer isso? - Simon perguntou, ainda entorpeci<strong>do</strong>.<br />

- Neste lugar, vai ser fácil achar um <strong>do</strong>i<strong>do</strong> que faça uma besteira. Daremos<br />

um jeito. Você não pode continuar preso como um louco a um corpo inútil. É<br />

melhor retornar logo para cá.<br />

Dois dias depois, um <strong><strong>do</strong>s</strong> internos, envolvi<strong>do</strong> pelos comparsas de Núbio,<br />

roubou uma ampola de um medicamento para o coração que, em combinação<br />

com os remédios que Simon tomava, provocaria reação fatal. Não foi difícil<br />

para o interno aplicá-lo no paciente, durante o perío<strong>do</strong> em que tomavam sol no<br />

pátio. Simon entrou em coma e ficou poucas horas no hospital, logo deixan<strong>do</strong><br />

o corpo denso.<br />

Ao livrar-se <strong>do</strong> envoltório físico, Núbio disse, ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>:<br />

- Finalmente livre.<br />

Um <strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros o cumprimentou:<br />

- Parabéns! Apesar de retornar antes <strong>do</strong> tempo, cumpriu nossos objetivos,<br />

crian<strong>do</strong> <strong>do</strong>entes e <strong>do</strong>enças, enfraquecen<strong>do</strong> muitas pessoas e entorpecen<strong>do</strong> outras.<br />

Os seres humanos estão cada vez mais débeis, desprovi<strong><strong>do</strong>s</strong> da energia<br />

necessária para lutar contra as nossas investidas. A Terra padecerá em nossas<br />

mãos... Agora, vamos depressa.<br />

- Calma, preciso refazer-me. Quero ficar um pouco mais por aqui, antes de<br />

voltar.<br />

- Não é seguro, Núbio.<br />

Soltan<strong>do</strong> uma gargalhada estron<strong><strong>do</strong>s</strong>a, Núbio indagou:<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>? Como, não é seguro?<br />

- Temos informações de que muitos vêm sen<strong>do</strong> aprisiona<strong><strong>do</strong>s</strong> e leva<strong><strong>do</strong>s</strong> da<br />

Terra. Temos de nos esconder, venha.<br />

- Aprisiona<strong><strong>do</strong>s</strong>?<br />

- Seres de luz têm captura<strong>do</strong> boa parte <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos... Muitos estão desaparecen<strong>do</strong>...<br />

Simplesmente, estão sumin<strong>do</strong>. Agora vamos, devemos ir.<br />

Sem responder, Núbio aquiesceu e partiram depressa para as profundezas<br />

espirituais <strong>do</strong> planeta. Esgueiravam-se pela escuridão, quan<strong>do</strong>, de súbito, depararam<br />

com grande tumulto e espíritos corren<strong>do</strong> para to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>. Viram ao<br />

longe uma figura enorme que paralisava os fugitivos e depois os prendia em<br />

343


aceletes que os mantinham imobiliza<strong><strong>do</strong>s</strong>. Antes que o grupo pudesse escapar,<br />

o espírito de luz aproximou-se e disse:<br />

- Núbio, é chegada a hora da partida. Ele gritou desespera<strong>do</strong>:<br />

- O que está fazen<strong>do</strong>? Quem é você?<br />

- Seu tempo no planeta Terra terminou.<br />

- Não pode fazer isso! Não tem poder para me manter prisioneiro.<br />

- O tempo de vocês também acabou, meus irmãos. Agora, pela misericórdia<br />

de Deus, serão transferi<strong><strong>do</strong>s</strong> para um planeta primitivo.<br />

- Não tem autoridade para nos prender!<br />

Eles gritavam, já imobiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> e com os braceletes nos pulsos. Impedi<strong>do</strong> de<br />

se mover, Núbio gritava:<br />

- Que Deus perverso é esse, que nos condena?<br />

- Deus é imensamente bom, pois concederá nova oportunidade a to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Não quero outra oportunidade... Não!<br />

- Resistir é inútil. É chega<strong>do</strong> o momento em que devem deixar o planeta<br />

Terra e seguir seu caminho de expiação. Não podem mais criar obstáculos ao<br />

progresso.<br />

- Não é justo! Deus não é justo!<br />

- A justiça divina é tão compassiva que foi permiti<strong>do</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong> vocês descer<br />

para a encarnação com a última e valiosa chance de transformação. Mesmo em<br />

face da quase impossibilidade de a aproveitarem, e consideradas as inúmeras<br />

dificuldades que poderiam criar, receberam essa chance. Agora, o prazo expirou.<br />

E hora de partir.<br />

Logo um enorme grupo de espíritos foi conduzi<strong>do</strong> por outros trabalha<strong>do</strong>res<br />

da luz, que cumpriam determinações de Jesus em conjunto com elevadas inteligências<br />

<strong>do</strong> Universo. Aquelas almas, recalci-trantes no mal, partiriam da Terra<br />

para um planeta menos evoluí<strong>do</strong>, que seria para eles como uma prisão, pelos<br />

problemas e rudes impedimentos que enfrentariam. Dores, sofrimentos e lutas<br />

aguardavam essas almas, para que através deles pudessem harmonizar-se com<br />

as leis divinas, construin<strong>do</strong> para si próprias um novo destino.<br />

SESSENTA E TRÊS<br />

ISABELA CHEGOU EM casa cabisbaixa e logo encontrou Dorothy descen<strong>do</strong><br />

as escadas.<br />

- Como estão as coisas por aqui? - perguntou com ligeiro sorriso.<br />

A sogra alcançou o piso térreo.<br />

- Foi tu<strong>do</strong> tranqüilo, querida. E seu pai, como está?<br />

344


- Mal, muito mal.<br />

Tocan<strong>do</strong> o ombro da jovem, Dorothy disse:<br />

- Você precisa descansar. Onde está Peter?<br />

- Já está entran<strong>do</strong>.<br />

- Vá repousar, filha.<br />

- Logo mais. Hoje é dia de nosso Evangelho no Lar e não quero atrasarme.<br />

Vem conosco?<br />

- É claro.<br />

Isabela foi até a cozinha, de onde trouxe uma jarra de água que depositou<br />

na mesa de centro da sala. Depois pegou um exemplar de O Evangelho segun<strong>do</strong><br />

o Espiritismo e colocou-o ao la<strong>do</strong> da jarra. Sentou-se e respirou fun<strong>do</strong>.<br />

Desde que conseguira persuadir Peter a acompanhá-la ao núcleo espírita, também<br />

implantara em seu lar a rotina semanal de estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Evangelho. Vez por<br />

outra a sogra participava das orações, e quase sempre Peter também estava<br />

presente. Como ele demorou a entrar e a hora avançava, ela se levantou e foi<br />

até a garagem.<br />

- Peter, vamos?<br />

Encontrou o mari<strong>do</strong> senta<strong>do</strong> em seu escritório, que ficava ao fun<strong>do</strong> da garagem.<br />

- O que está fazen<strong>do</strong>?<br />

- Reven<strong>do</strong> algumas anotações.<br />

- Anotações?<br />

- Isso mesmo.<br />

- Está na hora, Peter.<br />

- Do quê?<br />

- De nosso culto <strong>do</strong> Evangelho.<br />

- Faça sem mim, por favor; estou queren<strong>do</strong> terminar isto... Sorrin<strong>do</strong> com<br />

calma, ela pediu:<br />

- Estou muito triste hoje, Peter... Por favor, fique ao meu la<strong>do</strong>. Ele olhou<br />

para a esposa, ainda remexen<strong>do</strong> em seus papéis; depois fechou tu<strong>do</strong> e se levantou.<br />

- Está bem, vamos lá.<br />

Entraram. Ao final, Isabela, de cabeça baixa, pôde sentir a presença de<br />

Thomas na sala. Ele chegou perto dela e orientou: "Deve permanecer firme em<br />

suas atividades e re<strong>do</strong>brar suas orações diariamente. Não desanime, mesmo<br />

que muitos obstáculos apareçam em seu caminho. Persevere. Haverá momentos<br />

difíceis".<br />

345


Isabela mantinha-se cabisbaixa, escutan<strong>do</strong> o espírito amigo com os ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

da alma. Ela indagou, em pensamento: "E meu pai?". Ouviu a temida resposta:<br />

"Prepare-se, pois logo ele deixará o corpo físico".<br />

O coração da jovem disparou, e grossas lágrimas logo lhe desciam pela face.<br />

Sentia angústia e tristeza, quan<strong>do</strong> Thomas aconselhou: "Sua tarefa em relação<br />

a Márcio está terminada.<br />

Ainda em pensamento, ela respondeu: "Sinto que falhei com ele, sinto-me<br />

culpada de algum mo<strong>do</strong>". De novo o companheiro espiritual esclareceu: "Sim,<br />

eu sei; são os resquícios <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> cuja cobrança ainda persiste. Mas tenha a<br />

certeza de que sua dedicação sincera e fiel teve papel significativo na vida de<br />

seu pai. Estaremos ao seu la<strong>do</strong> e ao la<strong>do</strong> dele".<br />

Com o coração suavemente conforta<strong>do</strong>, ela limpou as lágrimas e ergueu a<br />

cabeça. Peter a fitava.<br />

- O que foi? - indagou.<br />

- Thomas está aqui, dan<strong>do</strong> algumas orientações.<br />

- Que orientações?<br />

No instante em que Isabela ia responder, o telefone tocou. Antes que Peter<br />

atendesse, ela disse:<br />

- Meu pai se foi.<br />

- O quê? - falou a sogra, assustada.<br />

Peter colocou o fone na base e virou-se; quase não conseguia olhar para a<br />

esposa.<br />

- Ele se foi, não é?<br />

Peter, sem poder falar, balançou a cabeça afirmativamente. Isabela segurou<br />

a cabeça entre as mãos e chorou muito. O mari<strong>do</strong> sentou-se junto dela e, abraçan<strong>do</strong>-a<br />

forte, ficou em solidário silêncio.<br />

- Quem ligou, minha mãe? - ela perguntou um pouco mais calma.<br />

- Não, foi Rafael. Ligaram para ele, supon<strong>do</strong> que ainda não tivéssemos<br />

chega<strong>do</strong>. Até agora sua mãe não sabe.<br />

Isabela ergueu-se a custo e disse:<br />

- Vamos para lá.<br />

Peter olhou para a mãe e ia falar, quan<strong>do</strong> ela se antecipou.<br />

- Vá, filho. Cuidarei de Juliana e de Jennifer, não se preocupe. As duas estão<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> tranqüilas.<br />

- Obriga<strong>do</strong>, mãe. - Peter beijou-lhe a testa ao agradecer.<br />

Os dias subsequentes foram longos e <strong>do</strong>lorosos. Diversas questões tinham<br />

de ser resolvidas, havia muitas providências a serem tomadas. Duas semanas<br />

depois, Isabela tomava café da manhã com a mãe, quan<strong>do</strong> esta comunicou:<br />

- Isa, vou voltar para o Brasil.<br />

346


- O quê?<br />

- Vou regressar, não tenho mais nada para fazer neste país...<br />

- Mãe, eu e Rafael estamos aqui... Sua neta está aqui.<br />

- Sinto falta das minhas irmãs, das minhas amigas, da minha vida. Esta casa<br />

e este lugar não me trazem boas lembranças... Não quero ficar.<br />

Embora Isabela tentasse argumentar, a mãe foi firme:<br />

- Estou decidida. Voltarei assim que resolvermos as questões legais e burocráticas<br />

deixadas por Márcio. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais, seu pai me pediu que levasse<br />

suas cinzas e as jogasse no mar, perto de nossa casa na praia.<br />

Ainda inconformada, Isabela indagou:<br />

- O que posso fazer para que mude de idéia, mãe?<br />

- Nada. Virei visitá-la, eu prometo. Não quero que fique triste com minha<br />

decisão, ou que me ache egoísta. Sei que você também está sofren<strong>do</strong>, que se<br />

dedicou muito ao seu pai e a mim; contu<strong>do</strong>, sinto-me sufocada neste lugar,<br />

neste momento. Talvez no futuro eu consiga viver aqui novamente; agora, porém,<br />

preciso voltar para casa.<br />

- Está bem, mãe, se quer assim.<br />

Dois meses depois, Ana Lídia regressou ao Brasil, deixan<strong>do</strong> em Isabela<br />

uma forte sensação de solidão. Ao despedir-se da mãe, ven<strong>do</strong>-a sumir no corre<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> aeroporto, sentiu-se aban<strong>do</strong>nada e fraca.<br />

Daí para a frente, apesar da tristeza que não podia evitar, lembrava-se da<br />

advertência de Thomas e buscava ânimo na oração, não se descuidan<strong>do</strong> de<br />

suas tarefas e responsabilidades.<br />

Nas semanas que se seguiram, Isabela notou Peter distraí<strong>do</strong> e ausente. No<br />

início atribuiu o seu aparente desligamento às solicitações <strong>do</strong> trabalho, mas<br />

depois veio a preocupação. Naquela noite, quan<strong>do</strong> ficaram a sós após o jantar,<br />

sentou-se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e perguntou:<br />

- O que está acontecen<strong>do</strong> com você, queri<strong>do</strong>?<br />

- Como assim?<br />

- Está distante há semanas. O que há?<br />

- Nada.<br />

- Conheço você e sei que algo está ocorren<strong>do</strong>. O que é? Baixan<strong>do</strong> a cabeça,<br />

ele considerou:<br />

- Não consigo esconder nada de você, não é?<br />

- Não, nada.<br />

Então Peter ajeitou-se na poltrona e contou:<br />

- Estou terminan<strong>do</strong> de escrever outro livro e a editora já está à espera para<br />

publicá-lo.<br />

- Sobre o quê?<br />

347


- Sobre a depressão. Havia tempo que eu desejava escrever mais sobre esse<br />

assunto, você sabe.<br />

- Sim, eu sei.<br />

- Pois preparei um manuscrito com as idéias principais e o encaminhei ao<br />

meu editor. Ele gostou e me pediu que desenvolvesse o texto. Está quase pronto.<br />

- Sei que sua intenção é ajudar outras pessoas que passam pela mesma situação.<br />

Ainda assim, não acha que está se precipitan<strong>do</strong>, queri<strong>do</strong>?<br />

- Por quê?<br />

- Você recebeu uma orientação bem clara no senti<strong>do</strong> de que precisava preparar-se<br />

e depois escreveria.<br />

- Olhe, Isabela, eu sabia que me diria isso. Disseram-me isso há muito<br />

tempo e até agora nada aconteceu. Enviei o manuscrito, sem ter grande expectativa,<br />

e eles logo se interessaram pelo meu livro. Acho que isso é um bom<br />

sinal, mostra que devo editá-lo, que estou no caminho certo. <strong>Além</strong> <strong>do</strong> mais,<br />

Isa, não vejo mal algum no que estou fazen<strong>do</strong>. Como você mesma disse, esse<br />

livro tem o objetivo de ajudar as pessoas, nada mais que isso.<br />

Isabela refletiu por instantes e, intuída por Thomas, que acompanhava a<br />

conversa, reiterou:<br />

- Queri<strong>do</strong>, deveria esperar um pouco. Você tem uma tarefa a cumprir e<br />

precisa primeiro preparar-se, para que possa exercê-la com sucesso.<br />

- Isso é bobagem, Isa. Vou publicar o livro. Aliás, já mandei metade <strong>do</strong><br />

texto para a editora; estão até trabalhan<strong>do</strong> na capa.<br />

Isabela ficou preocupada. Séria, pediu outra vez:<br />

- Peter, espere um pouco mais... Ele se levantou e foi peremptório:<br />

- Vou publicar o livro. Não há nada de mal nisso. Já estou decidi<strong>do</strong>.<br />

- Acho que está cometen<strong>do</strong> um equívoco.<br />

Quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong> ia responder, Juliana chorou alto no quarto e Isabela subiu<br />

para atender a filha. Acercou-se <strong>do</strong> berço e pegou a menina no colo, tentan<strong>do</strong><br />

acalmá-la. Juliana não parava de chorar, parecia assustada.<br />

- O que foi, filha? Calma, está tu<strong>do</strong> bem.<br />

Não adiantou, a menina continuou choran<strong>do</strong>. Só quan<strong>do</strong> Isabela a aconchegou<br />

ao peito, cantan<strong>do</strong> baixinho canções de ninar, foi que a pequena se<br />

acalmou e, por fim, voltou a a<strong>do</strong>rmecer. No momento em que reacomodava a<br />

filha no berço, Dorothy apareceu na porta.<br />

- Quer ajuda?<br />

- Acho que teve um pesadelo. Obrigada, volte para a cama; ela já sossegou.<br />

Isabela foi para seu quarto e encontrou o mari<strong>do</strong> já <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> a sono solto.<br />

Olhou-o com ternura e falou baixinho:<br />

- Peter, Peter, por que tanta pressa?<br />

348


Três meses depois, o livro foi lança<strong>do</strong> e o sucesso foi imediato. Em oito<br />

meses, estava no ranking <strong><strong>do</strong>s</strong> vinte mais vendi<strong><strong>do</strong>s</strong> nas livrarias. Peter passou a<br />

receber inúmeros convites para noites de autógrafos e palestras, para falar <strong>do</strong><br />

livro e de suas experiências. Diversos compromissos o solicitavam após o trabalho<br />

na redação, e já não lhe sobrava tempo para nada. Não demorou muito a<br />

deixar de freqüentar o núcleo espírita. Isabela o acompanhava em vários eventos,<br />

nos quais fazia questão de ter a esposa a seu la<strong>do</strong>. De fato, ela era personagem<br />

importante de seu best-seller, onde mais uma vez apontava a esposa<br />

como a responsável por sua recuperação e melhora, mostran<strong>do</strong> o amor que os<br />

unia como alavanca de cura.<br />

Quanto a Isabela, tinha de se des<strong>do</strong>brar para continuar cumprin<strong>do</strong> to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />

próprios compromissos: as responsabilidades <strong>do</strong> lar, o trabalho no consultório,<br />

o atendimento gratuito e também as tarefas na casa espírita. Em poucos meses,<br />

estava esgotada.<br />

Logo Peter foi convida<strong>do</strong> pela editora a escrever um novo livro. Dessa vez<br />

o orientaram sobre o conteú<strong>do</strong> da obra, muito impressiona<strong><strong>do</strong>s</strong> com sua habilidade<br />

no uso das palavras, seus conhecimentos de história e seu carisma perante<br />

os leitores e a mídia em geral. O sucesso de Peter era crescente.<br />

Certa noite, quan<strong>do</strong> Isabela o chamou para o Evangelho no Lar, ele se desculpou,<br />

pronto para <strong>do</strong>rmir:<br />

- Hoje não vou acompanhá-la, querida. Tenho de começar a escrever amanhã<br />

bem ce<strong>do</strong>, e estou exausto. Faça por nós <strong>do</strong>is, está bem?<br />

Dali em diante, Isabela passou a fazer o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Evangelho sozinha, sem<br />

contar com o mari<strong>do</strong>, que sempre alegava estar cansa<strong>do</strong> ou ocupa<strong>do</strong>. Ainda<br />

que carente da sua presença, ela se esforçava por manter firme dentro de sua<br />

casa essa atividade relevante.<br />

Peter lançou o terceiro livro, que conquistou sucesso similar ao <strong><strong>do</strong>s</strong> demais.<br />

As vendagens progressivas trouxeram para a vida <strong>do</strong> casal situação financeira<br />

muito confortável, e ele resolveu mudar-se com a família para uma<br />

casa melhor, em bairro mais sofistica<strong>do</strong>. Continuava creditan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que<br />

obtinha ao apoio da esposa, e o fazia publicamente. Isabela, requisitada pelo<br />

mari<strong>do</strong>, passou a acompanhá-lo com maior freqüência. Aos poucos, pressionada<br />

pelo acúmulo desses deveres sociais, ausentava-se mais e mais das tarefas<br />

na instituição que auxiliava. A avalanche de compromissos em que se via envolvida<br />

a consumia e sentia-se exaurida.<br />

Foi nesse ponto que em determinada noite acor<strong>do</strong>u gritan<strong>do</strong>, apavorada.<br />

Sentou-se na cama e viu Peter, que procurava acalmá-la:<br />

- Foi somente um sonho, querida.<br />

- Peter, foi horrível. Não parecia um sonho, era real. Estou muito angustiada.<br />

349


- Foi um sonho, só isso - ele insistia.<br />

- Não, Peter; algo muito ruim está para acontecer. Sei disso. Visto que se<br />

afastara por completo <strong><strong>do</strong>s</strong> princípios espíritas, fixan<strong>do</strong>-se em estu<strong><strong>do</strong>s</strong> científicos,<br />

ele refutou:<br />

- Isabela, você está apenas cansada. Afaste essas impressões <strong>do</strong> pensamento,<br />

está tu<strong>do</strong> certo.<br />

Isabela deitou-se, murmuran<strong>do</strong>:<br />

- Alguma coisa terrível está para acontecer...<br />

Na manhã seguinte, nem bem o sol raiara e Isabela estava acordada. Desceu<br />

e preparou um café, sentan<strong>do</strong>-se na poltrona da sala, que dava para o jardim<br />

da frente da casa. Observou o céu, ainda escuro, e atenta ouviu o canto<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> primeiros pássaros que despertavam junto com o dia. Gradativamente, o<br />

céu ia adquirin<strong>do</strong> uma tonalidade azul intensa. Era início de outono e as folhas<br />

começavam a desprender-se das árvores. Isabela contemplou a linda árvore<br />

que ficava na entrada da casa, e suas folhas avermelhadas que mudavam o cenário<br />

da rua. Olhou para o alto num misto de angústia e humildade, sentin<strong><strong>do</strong>s</strong>e<br />

fraca e assustada. Sentia como se suas forças se esvaíssem lentamente. A<br />

imagem que vira em sonho assaltava-lhe a mente, a to<strong>do</strong> instante, e ela a afastava<br />

com insistência. Não queria pensar naquilo. Terminou o café e voltou à<br />

cozinha para preparar o desjejum da família. A empregada que a ajudava, vinda<br />

<strong>do</strong> Brasil, apareceu na cozinha e surpreendeu-se.<br />

- Dona Isabela, a senhora está bem?<br />

- Estou, sim - respondeu com ligeiro sorriso.<br />

- Acordada assim tão ce<strong>do</strong>...<br />

- Perdi o sono.<br />

- Volte para a cama, <strong>do</strong>na Isabela, eu preparo o café...<br />

- Tenho de fazer alguma coisa para me distrair até que eles acordem... Deixe<br />

que eu aju<strong>do</strong>.<br />

To<strong><strong>do</strong>s</strong> despertaram quase ao mesmo tempo. Dorothy desceu de mãos dadas<br />

com Juliana, que queria a mãe. Depois foi a vez de Jennifer, já com o material<br />

da escola, pronta para sair. Logo em seguida veio Peter, to<strong>do</strong> arruma<strong>do</strong>.<br />

- Vai sair tão ce<strong>do</strong>? - indagou a esposa.<br />

- Esqueci de falar com você, mas temos uma entrevista em um programa<br />

de rádio.<br />

Isabela, que preparava a mamadeira da filha, respondeu depois de refletir<br />

por instantes:<br />

- Acho que hoje você irá sozinho. Estou indisposta... Nem para a clínica<br />

vou agora de manhã.<br />

- O que você tem, filha? - perguntou a sogra.<br />

350


- Nada, apenas me sinto indisposta. Vou trabalhar somente na parte da tarde.<br />

Peter levantou-se e beijou-a na testa.<br />

- Então paciência, vou sozinho; não me esperem para o almoço.<br />

- Onde é a entrevista? - Isabela perguntou quan<strong>do</strong> ele já estava sain<strong>do</strong>.<br />

- Em um estúdio.<br />

- Onde fica?<br />

- No World Trade Center.<br />

Imediatamente Isabela se ergueu e transferiu a filha para os braços da sogra.<br />

- Espere, vou com você - falou decidida.<br />

- Está bem, mas não demore. Patrick estará aguardan<strong>do</strong> para definirmos o<br />

tom a ser da<strong>do</strong> a essa entrevista.<br />

Subin<strong>do</strong> a escada, Isabela disse:<br />

- Fique tranqüilo, serei rápida.<br />

Peter ligou para o editor e avisou que logo estariam no prédio.<br />

Assim que chegou ao quarto, Isabela teve violenta tontura e desmaiou, cain<strong>do</strong><br />

no chão. Quan<strong>do</strong> despertou, estava deitada em sua cama, com forte <strong>do</strong>r na<br />

cabeça. Ainda ator<strong>do</strong>ada, olhou para o mari<strong>do</strong>, que em pé falava ao telefone.<br />

- O que houve? - balbuciou.<br />

Peter desligou o telefone e sentou-se ao seu la<strong>do</strong> na cama, perguntan<strong>do</strong>:<br />

- Como se sente?<br />

- Um pouco tonta. O que houve?<br />

- Não sei. Você demorou a descer e não respondia aos meus chama<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Subi para ver o que acontecia e a encontrei deitada no chão, machucada. Acho<br />

que bateu a cabeça na fivela de seu sapato ou em algum canto...<br />

Segurou a mão da esposa e acrescentou:<br />

- Ficamos assusta<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Perdeu seu compromisso?<br />

Peter olhou para a mãe e ficou cala<strong>do</strong>. Isabela indagou:<br />

- O que foi?<br />

Ele a encarava sem saber como lhe contar o que se passava. Ela, notan<strong>do</strong> o<br />

temor em seu olhar, insistiu:<br />

- O que foi, Peter?<br />

Visivelmente transtorna<strong>do</strong>, sentou-se ao la<strong>do</strong> da esposa:<br />

- O que foi mesmo que sonhou essa noite?<br />

- Não quero falar sobre isso agora. Por que pergunta?<br />

Peter pegou o controle remoto e, sem palavras, ligou a televisão, que transmitia<br />

notícias <strong>do</strong> avião que se chocara contra uma das torres <strong>do</strong> World Trade<br />

Center. Isabela, tentan<strong>do</strong> compreender, encolheu-se na cama, assustada.<br />

351


- O que é isso? Um avião bateu nas torres gêmeas?! Peter, você já tentou<br />

falar com Rafael? Ele trabalha lá...<br />

- Eu sei, querida... Tentei falar, porém o celular dele não responde.<br />

Sentin<strong>do</strong> nova tontura a turvar-lhe a vista, Isabela respirou fun<strong>do</strong>.<br />

- Não foi um acidente, não é?<br />

- Parece que não...<br />

Isabela olhava, incrédula, o prédio em chamas. Depois fitou o mari<strong>do</strong> e<br />

disse, entre lágrimas:<br />

- Rafael estava lá, eu sei, eu sinto...<br />

- Talvez não; pelo horário, o prédio ainda estava meio vazio... Muitas pessoas<br />

não haviam chega<strong>do</strong> para trabalhar...<br />

- Rafael chega ce<strong>do</strong>, muito ce<strong>do</strong>... Ele estava no prédio. Isabela tremia, angustiada.<br />

Peter ponderou:<br />

- Não podemos tirar conclusões, temos de esperar... Enquanto conversavam,<br />

outro avião atingiu a segunda torre <strong>do</strong><br />

WTC e os <strong>do</strong>is prédios desabaram. Assombrada, Isabela contou:<br />

- Peter, eu sonhei com as torres em chamas...<br />

- Então, sonhou com o atenta<strong>do</strong> - seu olhar era de desespero.<br />

- Atenta<strong>do</strong>?<br />

- Só pode ser um atenta<strong>do</strong> terrorista. Dois aviões não erram dessa forma.<br />

- Meu Deus! Meu Deus! - era o máximo que Isabela conseguia dizer.<br />

Dorothy olhava para a televisão e para a nora, com espanto. Depois, virouse<br />

para o filho:<br />

- Se não fosse o providencial desmaio de Isa, vocês também estariam lá...<br />

Foi então que Isabela se compenetrou <strong>do</strong> que acontecera:<br />

- Quanto tempo fiquei desacordada?<br />

- Quase uma hora.<br />

- Não é possível!<br />

Acompanhan<strong>do</strong> os fatos pela televisão, ela repetia:<br />

- Não é possível! Que coisa horrível!<br />

O telefone tocou e Peter atendeu. Conversou rapidamente e desligou, informan<strong>do</strong>:<br />

- Era Patrick, que acabou não in<strong>do</strong> também. Ligou, emociona<strong>do</strong>, para agradecer.<br />

Isabela assistia horrorizada as cenas chocantes que repisavam a to<strong>do</strong> instante<br />

o momento <strong>do</strong> impacto das aeronaves nos prédios. E tentava contato com<br />

o irmão. Tentou o dia inteiro, sem sucesso. Somente no final da tarde Paola, a<br />

namorada de Rafael, ligou para confirmar suas mais <strong>do</strong>lorosas expectativas.<br />

Falara com o namora<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> dia, pouco antes de os aviões destruírem<br />

352


os prédios, e ele estava lá, em seu escritório, no topo de uma das torres. Ao<br />

desligar o telefone, Isabela chorava copiosamente. Peter buscou serená-la:<br />

- Devemos ter calma, esperar. Pode ser que ele tenha saí<strong>do</strong> por alguma razão...<br />

Enquanto não tivermos certeza...<br />

- Eu tenho certeza, Peter. Meu irmão estava lá, sei disso. Nos braços <strong>do</strong><br />

mari<strong>do</strong>, ela chorou desconsolada.<br />

Os dias se passaram e a cidade, transtornada, precisou de muito tempo para<br />

retomar seu cotidiano. Rafael nunca foi encontra<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> da<strong>do</strong> como um <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

desapareci<strong><strong>do</strong>s</strong> no terrível ataque. Isabela sofreu muito a perda <strong>do</strong> irmão e viajou<br />

para o Brasil, junto com a filha, para ficar algum tempo perto da mãe. Ana<br />

Lídia, profundamente abalada, lamentava, em depressão:<br />

- Nada disso é justo. Não é. Deus não existe, Isabela.<br />

- Mãe, não diga isso.<br />

- É verdade. Se existisse, como permitiria tanto sofrimento? Fale!<br />

Isabela, muito triste, baixou a cabeça e só respondeu depois de alguns instantes:<br />

- Há muitas coisas que não compreen<strong>do</strong>, mãe, mas sei que Deus é amor e<br />

perfeição. Se houve erro, não foi de Deus, e sim nosso.<br />

- Ora, Isabela, pare com esse fanatismo. Não vê que isso a está destruin<strong>do</strong>?<br />

Você parece lunática! Perdeu seu pai, agora o seu irmão num atenta<strong>do</strong> terrorista<br />

e quase perdeu a própria vida! Não percebe?! Não é possível que ainda venha<br />

falar de Deus...<br />

- Mãe, se eu perder a fé em Deus, não me sobrará mais nada na vida. Ele é<br />

minha única esperança.<br />

- Esperança de quê?<br />

- De dias melhores, mãe.<br />

- Como esperar dias melhores?<br />

- Talvez em outro plano, ou quem sabe aqui mesmo na Terra, quan<strong>do</strong> ela<br />

finalmente modificar sua vibração e for um planeta onde reine o amor...<br />

- Lá vem você com suas fantasias... Eu não quero escutar. Isabela calou-se,<br />

em respeito ao sofrimento da mãe.<br />

SESSENTA E QUATRO<br />

DEPOIS DE VÁRIOS DIAS de atenção exclusiva à mãe, Isabela foi ao núcleo<br />

espírita que freqüentara até se mudar para os Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>. Helena a aguardava,<br />

ansiosa, sabe<strong>do</strong>ra <strong><strong>do</strong>s</strong> momentos difíceis pelos quais passava. Ao vê-la<br />

chegar, abraçou-a com carinho por longo tempo. Isabela chorou como criança<br />

353


no ombro daquela que considerava como mãe. Helena afagava-lhe os cabelos,<br />

dizen<strong>do</strong>:<br />

- Chore, Isabela, coloque para fora tu<strong>do</strong> o que sente.<br />

Isabela não conseguia falar. Era imensa a <strong>do</strong>r que lhe invadia o ser. Igualmente<br />

em silêncio, a amiga a amparava com ternura e mentalmente orava para<br />

que Deus confortasse e fortalecesse aquela a quem, por seu la<strong>do</strong>, via como<br />

filha. Quan<strong>do</strong> percebeu que ela se acalmara, lembrou:<br />

- Deus não nos desampara, Isabela.<br />

- Eu sei, mas tem si<strong>do</strong> muito difícil... Minha vida está um caos... Eu queria<br />

que tu<strong>do</strong> fosse diferente. Esforcei-me para trilhar o caminho <strong>do</strong> bem, e agora<br />

me sinto sem ânimo para prosseguir.<br />

Abraçan<strong>do</strong>-a novamente, Helena aconselhou:<br />

- Você precisa descansar um pouco, para poder restabelecer suas energias.<br />

Isabela admitiu, limpan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Eu gostaria, se tivesse tempo. As situações parecem engolir-me e não<br />

consigo me equilibrar.<br />

- A fase que estamos viven<strong>do</strong> é mesmo complexa. <strong>Além</strong> de nossos problemas<br />

pessoais, a Terra passa por um grave momento.<br />

- E, eu sei.<br />

- Mais <strong>do</strong> que nunca, precisamos perseverar naquilo que aprendemos.<br />

- Estou sem forças.<br />

Sem dizer nada, Helena fitou-a nos olhos e tornou a abraçá-la. As duas permaneceram<br />

por muito tempo conversan<strong>do</strong> e depois, juntas, participaram das<br />

atividades da noite. Ao final, foi Eliana quem abraçou Isabela, comovida.<br />

- Estava com saudade de você, Isabela.<br />

Em seguida, ciente das perdas que a família sofrerá, indagou, séria:<br />

- Como está sua mãe?<br />

- Muito mal.<br />

- Eu imagino.<br />

- Ela não tem nenhuma crença a que possa apegar-se. Meus pais jamais<br />

quiseram aceitar religião alguma. Agora, minha mãe está profundamente deprimida,<br />

sem forças para reagir. Estou muito preocupada.<br />

Eliana, cheia de compaixão, comentou:<br />

- Posso imaginar o sofrimento pelo qual ela passa. Seria bom se ao menos<br />

se apoiasse em um tratamento com um psicólogo de confiança, já que não aceita<br />

o amparo religioso.<br />

- Ela está fazen<strong>do</strong> terapia, porém não vejo melhora.<br />

- Às vezes isso demora, realmente.<br />

Desejan<strong>do</strong> mudar o assunto em foco, Isabela quis saber da instituição:<br />

354


- E por aqui, tu<strong>do</strong> bem? Como vai a creche?<br />

- Continuamos lutan<strong>do</strong> muito. A situação de pobreza da comunidade está<br />

bastante agravada. Temos nos empenha<strong>do</strong> em atender as necessidades das famílias,<br />

mas é comum depararmos com problemas que vão muito além de nossas<br />

possibilidades. Nesses casos, oramos mais e prosseguimos fazen<strong>do</strong> o nosso<br />

melhor, que para eles é tão pouco...<br />

- Você se esforça tanto, Eliana... Deve ter ao menos algum resulta<strong>do</strong> positivo.<br />

- A assistência às crianças representa um laborioso cultivo; semeamos naqueles<br />

corações to<strong>do</strong> o bem que podemos para que um dia, com as bênçãos de<br />

Deus, essas sementes germinem. É um trabalho de longo prazo. Já com as famílias,<br />

junto às quais é fundamental atuar, buscamos colaborar na solução <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

problemas mais graves, porém sem lograr muito êxito. As situações são de<br />

extrema carência e deplorável violência.<br />

- Que tristeza... Se não existisse tanta corrupção, certamente haveria mais<br />

recursos para o povo.<br />

- Sem dúvida.<br />

- Nosso povo sofre demais...<br />

Manten<strong>do</strong> fixos em Isabela seus profun<strong><strong>do</strong>s</strong> olhos negros, Eliana falou com<br />

ternura e compreensão:<br />

- No entanto, não podemos ignorar que to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós colhemos os frutos <strong>do</strong><br />

que plantamos no passa<strong>do</strong>. Muitos de nossos irmãos que hoje sofrem sérias<br />

privações já usufruíram largo poderio e também usurparam aquilo que não lhes<br />

pertencia. Por isso procuramos, acima de tu<strong>do</strong>, semear o bem e os conhecimentos<br />

espirituais, para que cada um possa agir na vida valorizan<strong>do</strong> o que tem<br />

e a posição em que está como bênção de Deus para a necessária renovação. É<br />

preciso compreendermos que nós colhemos o que plantamos, sempre.<br />

Pensan<strong>do</strong> em sua vida e na etapa que atravessava, Isabela considerou, com<br />

os olhos mareja<strong><strong>do</strong>s</strong>:<br />

- Só que é tão difícil compreender, quan<strong>do</strong> estamos em meio à <strong>do</strong>r e ao sofrimento...<br />

Eliana abraçou-a com carinho.<br />

- Deus está sempre conosco, ajudan<strong>do</strong>-nos a vencer cada obstáculo.<br />

Isabela permaneceu mais alguns dias na companhia <strong><strong>do</strong>s</strong> amigos e da mãe,<br />

que por fim convenceu a voltar com ela os Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ao argumento de<br />

que precisavam uma da outra, Ana Lídia acabou ceden<strong>do</strong>.<br />

De regresso, encontrou Peter ainda mais envolvi<strong>do</strong> com a literatura, pronto<br />

para editar outra obra. Seu carisma logo o tornou um palestrante requisita<strong>do</strong>, e<br />

ele terminou por dedicar-se unicamente aos livros e à sua divulgação.<br />

355


No primeiro livro narrara as dificuldades com que se defrontara e a forma<br />

como o amor o ajudara a reerguer-se. Nele, partilhara suas experiências legítimas<br />

e, de fato, dera sua contribuição aos leitores que porventura tivessem problemas<br />

semelhantes. Entretanto, nas obras seguintes, sem profundidade, recorrera<br />

a pensa<strong>do</strong>res que não conhecia tão bem e começara a sofrer a influência<br />

de espíritos que o assediavam, há muito tempo, desejan<strong>do</strong> seu fracasso.<br />

Agora, envolvi<strong>do</strong> pelo êxito e ignoran<strong>do</strong> os sinais de alerta recebi<strong><strong>do</strong>s</strong> através<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong> que realizara, Peter dava ensejo a maior interferência desses<br />

adversários espirituais, e sutilmente o conteú<strong>do</strong> de seus livros ia fican<strong>do</strong> sujeito<br />

à ingerência mental de tais entidades. Não obstante, o novo lançamento,<br />

mais uma vez, teve excelente acolhida <strong>do</strong> público e logo figurava na lista <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

mais vendi<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, Peter distanciava-se mais e mais de suas responsabilidades e<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> compromissos que assumira antes de retornar ao corpo físico.<br />

Já Isabela, pela necessidade de atender aos afazeres <strong>do</strong>mésticos, à profissão<br />

e aos cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> com a mãe, decidiu que se afastaria momentaneamente <strong>do</strong><br />

núcleo espírita e das tarefas de auxílio aos carentes. Voltaria quan<strong>do</strong> conseguisse<br />

reorganizar a vida. Todavia, à medida que o tempo corria, ela sentia<br />

maior dificuldade para conciliar todas as suas atividades. Sentia-se cansada e<br />

fraca e, embora se esforçasse ao máximo para dar o melhor de si, começava a<br />

sentir-se fracassada em muitas de suas iniciativas. A mãe não melhorava, e<br />

Peter mais se afastava dela e da família.<br />

Em uma das freqüentes noites em que ficava sozinha até tarde, Isabela aguardava<br />

ansiosa o regresso <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, que viajara para a Pensilvânia a fim de<br />

divulgar seu livro mais recente. Já estava deitada quan<strong>do</strong> o telefone tocou:<br />

- Peter? Onde está? Pensei que estivesse chegan<strong>do</strong>...<br />

- Isa, vou ficar por aqui mais um dia.<br />

- Por quê?<br />

- Patrick agen<strong>do</strong>u mais uma entrevista, num programa de TV local, e vou<br />

aproveitar minha estadia.<br />

- Havíamos combina<strong>do</strong> de ir juntos à apresentação da Juliana na escola.<br />

Ela está contan<strong>do</strong> com você.<br />

- Puxa, Isa, eu me esqueci! Agora não dá mais tempo, você terá de ir só.<br />

Quan<strong>do</strong> se despediram e desligou o telefone, Isabela chorou amargurada.<br />

Sentia que estava perden<strong>do</strong> o homem que amava. Ele se afastava e se tornava<br />

indiferente, não lembran<strong>do</strong> nem de longe o mari<strong>do</strong> terno e atencioso de outrora.<br />

Ela abraçou os joelhos e, encostan<strong>do</strong> neles a cabeça, reconheceu:<br />

- Está tu<strong>do</strong> erra<strong>do</strong>! Tu<strong>do</strong>!<br />

356


A<strong>do</strong>rmeceu choran<strong>do</strong>. Thomas tocou-a com carinho e despertou seu corpo<br />

espiritual.<br />

- Isabela, precisamos conversar.<br />

Ela sentou-se ao la<strong>do</strong> de seu corpo físico e, ator<strong>do</strong>ada, disse:<br />

- Não me sinto bem.<br />

- Eu sei, você está carregan<strong>do</strong> muito peso inútil.<br />

- Não enten<strong>do</strong>.<br />

- Entenderá.<br />

- Thomas, você precisa me ajudar. Por onde tem anda<strong>do</strong>, que quase não o<br />

vejo?<br />

- Trabalhan<strong>do</strong>, Isabela, mas sempre por perto. Há muito trabalho na Terra e<br />

poucos trabalha<strong>do</strong>res. Tenho esta<strong>do</strong> no núcleo espírita auxilian<strong>do</strong> em diversas<br />

tarefas.<br />

- E eu, não mereço sua ajuda?<br />

- Estou sempre liga<strong>do</strong> a você, mas há de concordar que também deveria estar<br />

lá.<br />

- Não estou conseguin<strong>do</strong>. Minha vida tornou-se complicada demais. Não<br />

posso entender a razão de tanta <strong>do</strong>r, de tanto sofrimento...<br />

Estenden<strong>do</strong> a mão para ela, Thomas fez um convite:<br />

- Venha comigo. Vou mostrar-lhe algumas situações que poderão clarear<br />

um pouco sua mente e ajudá-la a compreender o momento.<br />

Apoiada em Thomas, foi até o núcleo espírita e surpreendeu-se com a<br />

quantidade de espíritos em condições lastimáveis. O ambiente estava repleto<br />

de almas sen<strong>do</strong> socorridas.<br />

- Meu Deus, quanta gente! De onde vêm to<strong><strong>do</strong>s</strong> eles?<br />

- De toda parte.<br />

- Acabaram de desencarnar?<br />

- Alguns sim, outros não. Estão agora receben<strong>do</strong> socorro que lhes permita<br />

a transferência, posteriormente, para algum ponto onde possam prosseguir sua<br />

recuperação.<br />

Depois de caminhar pelas dependências <strong>do</strong> núcleo, ele a levou a caminhar<br />

pela cidade. Assustada, Isabela apertou o braço <strong>do</strong> amigo e perguntou:<br />

- Thomas, que está acontecen<strong>do</strong>? Que substância viscosa e malcheirosa é<br />

essa que permeia tu<strong>do</strong>? Quem são esses seres horripilantes? Eles estão em to<strong>do</strong><br />

lugar...<br />

- Sim, Isabela, esses espíritos que não querem entregar-se a Deus e a Jesus,<br />

que não querem render-se ao bem, atuam de todas as formas ao seu alcance<br />

para destruir os homens e <strong>do</strong>minar-lhes a consciência. Apesar de já controlarem<br />

grande parte <strong><strong>do</strong>s</strong> seres encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>, não estão satisfeitos. Querem mais.<br />

357


- Meu Deus! E por que andam livremente na Terra, influencian<strong>do</strong> as pessoas<br />

dessa maneira?<br />

Thomas pegou-a pelo braço e viajaram pelo espaço, enquanto ele esclarecia:<br />

- Cada ser humano tem seu livre-arbítrio e estabelece sintonia com aquilo<br />

que deseja. Esses espíritos nunca <strong>do</strong>minam aqueles que não lhes dão guarida<br />

mental. Ainda que exerçam influência sobre to<strong><strong>do</strong>s</strong>, só conseguem manipular os<br />

que lhes abrem espaço mental.<br />

Isabela notou que se afastavam da Crosta e alcançavam uma colônia de socorro<br />

próxima, onde a movimentação era intensa. Uma legião de trabalha<strong>do</strong>res<br />

se preparava para descer à Terra. Thomas cumprimentou vários deles, que<br />

também saudaram Isabela como se a conhecessem.<br />

- Sinto como se essas pessoas fossem conhecidas.<br />

- E são mesmo. Você já esteve aqui.<br />

- Tu<strong>do</strong> é familiar...<br />

Entraram num grande salão, já lota<strong>do</strong>, e acomodaram-se em duas cadeiras<br />

bem ao centro. Logo um senhor de cabelos brancos levantou-se e orou, dan<strong>do</strong><br />

início ao encontro. Depois, mais <strong>do</strong>is espíritos falaram aos membros <strong>do</strong> numeroso<br />

grupo, preparan<strong>do</strong>-os para as atividades de resgate e ajuda que estavam<br />

prestes a realizar no orbe da Terra. Em seguida, o simpático senhor voltou e<br />

proferiu sentida oração, que elevou ainda mais o teor vibratório <strong>do</strong> ambiente.<br />

Então, pediu a to<strong><strong>do</strong>s</strong> que se mantivessem em oração para receber a visita de<br />

ilustres convida<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ernesto e Elvira se materializaram no salão. Toman<strong>do</strong> a<br />

palavra, Ernesto procurou ser esclarece<strong>do</strong>r.<br />

- Queri<strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos e companheiros de luta e de trabalho, estamos felizes<br />

por contar com um grupo tão grande e com a dedicação de vocês. O momento<br />

na Terra é de extrema gravidade. O orbe se prepara, já há tempo, para evoluir<br />

na escala <strong><strong>do</strong>s</strong> mun<strong><strong>do</strong>s</strong>. Como vocês sabem, deixará de ser um planeta de expiações<br />

e provas para se tornar um planeta de regeneração, cujos habitantes desfrutarão<br />

uma vida mais pacífica e harmoniosa, alinhan<strong>do</strong>-se aos ensinos de<br />

Jesus.<br />

Todavia, parte considerável <strong><strong>do</strong>s</strong> irmãos da Terra não compreende a seriedade<br />

deste momento. São muitos os que querem que os outros mudem, enquanto<br />

se recusam a mudar a si mesmos. É então que Deus, o Pai misericordioso,<br />

bon<strong><strong>do</strong>s</strong>o e sábio, permite as colheitas de sofrimento para que as almas<br />

despertem de seu torpor e se decidam pela renovação interior. Infelizmente, só<br />

pela <strong>do</strong>r a grande maioria será tocada; por isso tanto sofrimento se espalha pela<br />

Terra nesta hora de transição.<br />

358


Com ligeira pausa, Ernesto facilitou ao grupo a assimilação dessas informações,<br />

antes de prosseguir:<br />

- Estamos aqui com o objetivo de ajudar nossos irmãos a passarem por esse<br />

<strong>do</strong>loroso processo. Embora o sofrimento seja necessário, nenhum irmão estará<br />

desampara<strong>do</strong>. Outros espíritos estão chegan<strong>do</strong>, procedentes das esferas superiores<br />

da Terra e também de outros orbes, para apoiar Jesus, que preside a transformação<br />

planetária. Sei que têm o coração opresso pelo que presenciam; entretanto,<br />

contamos com a fé de cada um de vocês, com a sua certeza de que<br />

Deus está no coman<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> e sempre quer o melhor para seus filhos. Armem-se<br />

de energia, esperança e alegria, pois uma nova era está prestes a se<br />

abrir para este mun<strong>do</strong>. Embora o mal nele esteja amplamente presente, esses<br />

espíritos que permaneceram por longo tempo nas regiões abissais estão, igualmente,<br />

ten<strong>do</strong> sua oportunidade decisiva. O mal que parece <strong>do</strong>minar o planeta<br />

não durará para sempre. O reino de Deus, amorosamente divulga<strong>do</strong> por<br />

Jesus e rejeita<strong>do</strong> pelos homens, será finalmente estabeleci<strong>do</strong>. Portanto, esperança<br />

e paciência devem revestir nossos corações neste momento extremo. A<br />

Terra será sacudida pelas intensas vibrações que a reprimem, para o bem de<br />

seus habitantes. Para a grande maioria, é a derradeira chance de permanecerem<br />

na Terra. Como vocês sabem, há alguns anos a transferência de almas já começou;<br />

agora o processo de expurgo se acelera, e muitos serão leva<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Ernesto fez nova interrupção em sua mensagem, para depois finalizar:<br />

- Portanto, eu os convoco: marchem com coragem e determinação, meus<br />

irmãos, que Jesus, <strong>do</strong> mais alto, multiplicará os resulta<strong><strong>do</strong>s</strong> de nossos esforços<br />

no bem.<br />

O salão estava em absoluto silêncio e a atenta platéia foi envolvida pela luz<br />

que irradiava de Ernesto e Elvira. O casal entrelaçou as mãos, e ele convi<strong>do</strong>u:<br />

- Vamos, irmãos, marchemos sem temor.<br />

A seguir as duas figuras se desvaneceram diante de to<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Isabela estava profundamente impressionada com o que ouvira. Enquanto<br />

retornavam, indagou, ven<strong>do</strong> a pesada nuvem de energia deletéria que cobria o<br />

planeta:<br />

- O que é essa névoa escura, Thomas?<br />

- A Terra está envolta pela energia densa que decorre da emissão <strong><strong>do</strong>s</strong> pensamentos<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> homens, encarna<strong><strong>do</strong>s</strong> e desencarna<strong><strong>do</strong>s</strong>. A atmosfera espiritual <strong>do</strong><br />

planeta está pesada, influin<strong>do</strong> ainda mais na atração de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tipos de calamidade,<br />

violência, desentendimento e desordem.<br />

Isabela refletiu um pouco, e então disse:<br />

- É inacreditável. Somos nós os responsáveis por tu<strong>do</strong> o que está acontecen<strong>do</strong>?<br />

359


- Infelizmente sim. Por isso, quanto mais difíceis estão as coisas, mais temos<br />

de trabalhar no bem, pelo bem e para o bem. Esse é o único meio de contribuirmos<br />

para que a realidade da Terra mude.<br />

- Não imaginava que tantos espíritos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong> se dedicassem dessa forma<br />

à humanidade terrena. E pensar que às vezes nos sentimos sozinhos e desampara<strong><strong>do</strong>s</strong>...<br />

- Você não tem idéia da quantidade de seres esclareci<strong><strong>do</strong>s</strong> que estão por toda<br />

parte, trabalhan<strong>do</strong> incansavelmente por to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós.<br />

- Sinto-me envergonhada.<br />

- Não sinta vergonha, Isabela; fortaleça sua vontade de trabalhar no bem e<br />

ajude. É isto que os emissários da luz esperam: pessoas que sejam seus braços<br />

e pernas para auxiliar a quem precisa. E assim, como somos também necessita<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

recebemos mais <strong>do</strong> que podemos imaginar.<br />

Thomas e Isabela aproximavam-se da casa dela, e ao entrarem, ele perguntou:<br />

- Agora compreende a importância <strong><strong>do</strong>s</strong> compromissos que você e Peter assumiram?<br />

- Sim... Mas estou muito preocupada com ele. Peter afastou-se totalmente<br />

de seus reais deveres...<br />

- Eu sei, e está momentaneamente inacessível à minha influência. Só que<br />

isso não importa por ora. Faça a sua parte e não esmoreça. Nós contamos com<br />

você, Isabela.<br />

Ela se acomo<strong>do</strong>u sobre seu corpo físico e não conteve a curiosidade:<br />

- Onde está Rafael?<br />

- Durma e descanse. - sugeriu Thomas, acarician<strong>do</strong>-lhe os cabelos.<br />

Isabela olhou-o nos olhos e perguntou mais:<br />

- Ele não está mais na Terra? Foi exila<strong>do</strong>?! O amigo espiritual insistiu:<br />

- Descanse, Isabela. Um dia poderá ajudá-lo. Entenden<strong>do</strong> a resposta com<br />

tristeza, acatou-a e a<strong>do</strong>rmeceu. Ao<br />

despertar, horas depois, trazia lembranças da experiência que vivera. Levantou-se,<br />

resoluta, organizou as tarefas da casa e comunicou à mãe, já de saída:<br />

- Chegarei mais tarde hoje. Depois <strong>do</strong> trabalho, irei ao núcleo espírita.<br />

- Pretende afastar-se <strong>do</strong> lar, em um momento como este?<br />

Ela pensou por instantes, lembran<strong>do</strong>-se da orientação de Thomas.<br />

- E nesses momentos que mais precisamos trabalhar. Vou voltar às minhas<br />

responsabilidades espirituais.<br />

360


SESSENTA E CINCO<br />

O ENCONTRO COM o amigo e a experiência que presenciara no plano espiritual<br />

exerceram forte influência sobre a vontade de Isabela, que a partir daquele<br />

dia retomou com re<strong>do</strong>brada dedicação as atividades mediúnicas e também o<br />

serviço assistencial que mantinha no núcleo. Passou a enfrentar clara oposição<br />

em seu trabalho, uma vez que a mediunidade remunerada é muito comum naquele<br />

país e que ela se empenhava em disseminar a compreensão <strong>do</strong> papel dessa<br />

faculdade para os encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, sofria a pressão de Peter, que a solicitava para festas e outros<br />

compromissos, aos quais ela atendia quan<strong>do</strong> podia, desde que não interferissem<br />

em suas responsabilidades espirituais, reassumidas com toda a seriedade.<br />

Nas ocasiões em que o acompanhava, o mari<strong>do</strong> lhe pedia sempre que não<br />

falasse de suas atividades espirituais; nos círculos em que agora transitava,<br />

sentia vergonha <strong>do</strong> trabalho singelo que ela exercia. Isabela, por sua parte,<br />

calava-se sem constrangimento, já que sabia, mais <strong>do</strong> que nunca, que suas atitudes<br />

teriam maior importância <strong>do</strong> que suas palavras.<br />

Houve uma noite em que Isabela permaneceu até tarde na instituição, atenden<strong>do</strong><br />

a crianças e adultos. Enquanto apagava a luz de seu consultório, ao la<strong>do</strong><br />

de sua assistente, escutou barulho na porta da frente. Logo um jovem ofegante,<br />

com os olhos arregala<strong><strong>do</strong>s</strong>, apareceu diante delas ten<strong>do</strong> na mão uma faca. Envolvida<br />

por Thomas, a médica disse:<br />

- Entre com calma, está tu<strong>do</strong> bem.<br />

Sem responder, o rapaz fitava as duas como se não as visse:<br />

- Eles vêm atrás de mim... Atrás de mim...<br />

Lentamente, Isabela aproximou-se e tocan<strong>do</strong> seu braço, que ele puxou em<br />

reação imediata, convi<strong>do</strong>u com sincero carinho:<br />

- Venha, entre, estamos sozinhos aqui.<br />

A muito custo, o jovem acabou por ceder à suave energia de Isabela e serenou<br />

um pouco seu agita<strong>do</strong> coração. Baixou a faca, sem largá-la, e entrou no<br />

consultório. Isabela ofereceu-lhe uma cadeira onde se sentou com a respiração<br />

ainda ofegante. Ela também se sentou e indagou:<br />

- O que podemos fazer para ajudá-lo?<br />

O rapaz olhava temeroso para a porta, depois para as duas, e por fim fixou<br />

os olhos em Isabela.<br />

- O que eu preciso você não pode dar, e agora não posso sair às ruas para<br />

pegar.<br />

Isabela baixou os olhos e ao tornar e erguê-los perguntou:<br />

- De quem está fugin<strong>do</strong>? De traficantes?<br />

361


- Não, muito pior <strong>do</strong> que isso.<br />

- Da Máfia, então?<br />

- Também não.<br />

O rapaz fez breve pausa, notan<strong>do</strong> a interrogação no olhar de Isabela, e falou<br />

entre lágrimas:<br />

- Meu Deus, eu preciso confiar em alguém...<br />

Isabela o incentivou, enquanto Selena, sua assistente, permanecia paralisada<br />

pelo me<strong>do</strong>.<br />

- É isso mesmo. Precisa de ajuda, e para ter isso terá de confiar em alguém.<br />

Conte-me, o que está haven<strong>do</strong>? Quem o está assustan<strong>do</strong> dessa maneira.<br />

O rapaz começou a falar.<br />

- Moro neste bairro há mais de vinte anos, com minha família. Há alguns<br />

anos, aqui, neste lugar, conheci uma pessoa...<br />

Isabela permaneceu em silenciosa atenção, incentivan<strong>do</strong>-o. E ele prosseguiu:<br />

- E um homem poderoso e prometeu-me dinheiro e o que mais eu quisesse,<br />

se o ajudasse sem fazer perguntas. Assim, tenho feito tu<strong>do</strong> o que ele manda, só<br />

que desta vez foi demais. Não quero mais trabalhar para ele, mas estou apavora<strong>do</strong>.<br />

Sei <strong>do</strong> que é capaz. Ele e aquela assistente <strong>do</strong>ida...<br />

- E o que lhe pediu para fazer?<br />

- Ele pede para eu me livrar de lixo farmacêutico. Já fiz várias viagens à<br />

América <strong>do</strong> Sul e à África, para testar novos medicamentos, já destruí evidências<br />

de problemas com esses medicamentos e... bem... não quero mais. Ele<br />

ficou totalmente maluco...<br />

Isabela fitou o rapaz, que ficou longo tempo cala<strong>do</strong>; depois explodiu, choran<strong>do</strong><br />

de novo:<br />

- Ele quer que eu... eu... roube crianças daqui da comunidade para alguns<br />

testes...<br />

Isabela ergueu-se, chocada.<br />

- O que está dizen<strong>do</strong>?<br />

- E isso, falei. Agora está tão encrencada quanto eu... Também não pode<br />

contar isso para ninguém, ou ele acaba com a senhora. E tão poderoso que<br />

controla até a polícia.<br />

Isabela voltou a sentar-se novamente, respiran<strong>do</strong> fun<strong>do</strong>.<br />

- Contou alguma coisa para seus familiares?<br />

- Ainda não, mas vou ter de fazer isso logo. Eles também correm risco. Esse<br />

homem é louco e perigoso. Trabalha para gente ainda mais poderosa. Eu<br />

fugi de alguns de seus capangas, que queriam saber se já tinha começa<strong>do</strong> a<br />

trabalhar no que me pediu...<br />

362


- E o que ele quer com as crianças?<br />

- Não sei, deve ser algum tipo de experiência. Eles vivem fazen<strong>do</strong> isso...<br />

Por isso somem tantas crianças pobres...<br />

Isabela estava horrorizada.<br />

- Meu Deus, não é possível! Quem é esse homem? Apontan<strong>do</strong> a fotografia<br />

da inauguração da instituição, que ficava na parede <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r, ele mostrou<br />

Lawrence.<br />

- Aquele ali.<br />

- Lawrence, não! Deve haver algum engano. Ele é um <strong><strong>do</strong>s</strong> colabora<strong>do</strong>res<br />

da nossa instituição.<br />

O rapaz foi categórico:<br />

- É ele mesmo, <strong>do</strong>na, eu não tenho nenhuma dúvida. Foi aqui, no dia em<br />

que tiraram a fotografia, que eu o conheci.<br />

Fortemente impressionada, Isabela retornou ao consultório, sentou-se em<br />

sua cadeira e ficou a meditar, até que o rapaz, aflito, indagou:<br />

- E agora, o que eu faço?<br />

- Você acredita mesmo que ele vai machucá-lo ao se recusar a atendê-lo?<br />

- Não, ele vai é me matar.<br />

- Então você precisa desaparecer por algum tempo.<br />

- E minha família?<br />

- Também deve sair por uns tempos.<br />

- Como, se não temos para onde ir?<br />

Thomas lhe sugeria que ajudasse o rapaz. Embora sem registrar-lhe a presença<br />

com clareza, Isabela sentia a inspiração e seguia seu coração.<br />

-Tive uma idéia, mas antes vou ter de falar com algumas pessoas.<br />

Entregou papel e caneta ao jovem.<br />

- Escreva aqui seu endereço, vou conversar com sua família. Eles sabem<br />

no que você está envolvi<strong>do</strong>?<br />

- Minha mãe sabe. Meu pai nos aban<strong>do</strong>nou há muito tempo.<br />

- Vou colocá-la a par da situação. Depois, se o que estou planejan<strong>do</strong> for<br />

possível, tirarei to<strong><strong>do</strong>s</strong> daqui.<br />

Olhan<strong>do</strong> a mulher desconhecida que se preocupava com ele, o rapaz teve<br />

dúvida.<br />

- Por que está fazen<strong>do</strong> isso?<br />

- Porque você precisa de ajuda. Agora fique aqui e espere minha volta. Não<br />

abra a porta para ninguém. Vamos, Selena, deixo-a em casa.<br />

Enquanto dirigia para a casa <strong>do</strong> rapaz, Isabela fazia contato com alguns<br />

amigos pelo telefone. Conversan<strong>do</strong> com Glória Esteves, a mãe <strong>do</strong> jovem foragi<strong>do</strong>,<br />

esclareceu to<strong>do</strong> o caso. A mulher chorava, apavorada.<br />

363


- Eu avisei que não se envolvesse com aquele homem, não gostei da cara<br />

dele. Agora, o que vamos fazer?<br />

Isabela explicou a Glória como imaginava auxiliá-los e, sem alternativa, a<br />

mulher acabou aceitan<strong>do</strong>. Ela conseguiu acomodar mãe e filho na instituição<br />

de amigos, na costa oeste <strong>do</strong> país.<br />

Mais tarde, em casa, ligou para Eliana e lhe confidenciou sua experiência,<br />

receosa de ter agi<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> equivoca<strong>do</strong>. Sentiu-se melhor quan<strong>do</strong> a amiga<br />

assegurou que teria a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> a mesma conduta.<br />

Ao desligar, Eliana sentiu-se particularmente cansada. Preparou um chá e<br />

sentou-se para tomá-lo. Então a lembrança de Mateus aflorou nítida em sua<br />

mente. Desde o episódio em que tentara incriminá-la junto à polícia e à comunidade,<br />

ele desaparecera; nunca mais o encontrara. Ao se deitar, estranha inquietação<br />

a <strong>do</strong>minava. Tão logo a<strong>do</strong>rmeceu, seu corpo espiritual desprendeuse<br />

<strong>do</strong> corpo físico, e ela encontrou diversos trabalha<strong>do</strong>res espirituais que lhe<br />

apoiavam as tarefas. Essa ocorrência era habitual durante seu sono físico, fosse<br />

para participar da execução de diversos trabalhos, fosse para receber orientações<br />

sobre a condução da instituição que estava temporariamente sob sua<br />

responsabilidade. Naquela noite, entretanto, estranhou o número de amigos<br />

presentes.<br />

- Boa noite, Eliana - cumprimentou seu orienta<strong>do</strong>r. - Não estranhe a movimentação,<br />

há muito trabalho acontecen<strong>do</strong> no orbe terrestre nestes dias, e seu<br />

lar tem si<strong>do</strong> um ponto de apoio para muitos de nós, que estamos em serviço.<br />

Hoje, vamos procurar Licínio. Ele comprometeu sua encarnação e lamentavelmente,<br />

por ora, não vemos mais nenhuma possibilidade de renovação.<br />

Com o semblante entristeci<strong>do</strong>, Eliana disse:<br />

- Gostaria de falar com ele uma última vez.<br />

- É nosso objetivo nesta noite: acompanhá-la até sua casa, para que possam<br />

conversar. Está pronta?<br />

- Sim.<br />

Em um grupo de oito espíritos, Eliana e os demais seguiram para o sul <strong>do</strong><br />

Brasil, onde Mateus - que outrora fora Licínio - fixara residência. Ali chegan<strong>do</strong>,<br />

antes mesmo de entrarem no apartamento, Eliana sentiu as pesadas vibrações<br />

que emanavam <strong>do</strong> ambiente. As condições espirituais <strong>do</strong> lar eram lastimáveis.<br />

Sofre<strong>do</strong>res desencarna<strong><strong>do</strong>s</strong> eram manti<strong><strong>do</strong>s</strong> cativos por grupos de espíritos<br />

raivosos que, por sua vez, pareciam submeter-se a um pequeno grupo de<br />

entidades espirituais mergulhadas nas trevas. Estas exerciam forte influência<br />

sobre Mateus. Ele assistia a um filme pela televisão, quan<strong>do</strong> repentinamente<br />

foi intuí<strong>do</strong> a deixar o lar. Vestiu-se e saiu, sem pensar. Um daqueles espíritos<br />

que com ele dividiam o ambiente propôs:<br />

364


- Vamos atrás dele?<br />

Sem que ninguém percebesse a presença <strong>do</strong> pequeno grupo recémchega<strong>do</strong>,<br />

outro respondeu:<br />

- Ele não vai demorar, está cansa<strong>do</strong> e bêba<strong>do</strong>. Voltará logo. Eliana e mais<br />

cinco companheiros seguiram Mateus; outros<br />

<strong>do</strong>is permaneceram na residência. Ao alcançar o meio-fio, Mateus foi atingi<strong>do</strong><br />

por uma motocicleta que o atirou longe. Semi consciente, desmaiou nos<br />

braços de Eliana. Ao despertar no hospital, viu-se com uma perna e um braço<br />

enfaixa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Uma enfermeira, que verificava seu esta<strong>do</strong>, informou-o <strong>do</strong> acidente.<br />

- Quanto tempo terei de ficar no hospital?<br />

- Não sei... Creio que alguns dias. Irrita<strong>do</strong>, Mateus foi áspero:<br />

- Compromissos importantes me aguardam. Vou viajar para a Europa em<br />

duas semanas, e até lá preciso estar recupera<strong>do</strong>.<br />

- Como o senhor não teve nenhuma fratura, apenas escoriações, deverá ficar<br />

em observação por poucos dias.<br />

- Quem pode me dar essa informação?<br />

- O médico logo estará aqui.<br />

De fato, mais tarde o médico confirmou que ele batera a cabeça, onde se<br />

formara um edema. O local precisava desinchar para que pudesse sair <strong>do</strong> hospital;<br />

se tu<strong>do</strong> corresse como o espera<strong>do</strong>, em alguns dias teria alta e, quem sabe,<br />

até poderia viajar. Depois que o médico saiu, Mateus resmungou, aborreci<strong>do</strong>:<br />

- Só me faltava essa... Ficar preso em uma cama de hospital... Ao a<strong>do</strong>rmecer,<br />

auxilia<strong>do</strong> pelo grupo de amigos espirituais, seu<br />

corpo fluídico foi logo desprendi<strong>do</strong> e ele sentou-se na cama, ator<strong>do</strong>a<strong>do</strong>. Eliana,<br />

que emitia suave luminosidade a irradiar-se de seu coração e envolvê-la<br />

por inteiro, podia ser tomada por um anjo. Assim que a viu, assustou-se:<br />

- Eliana, o que faz aqui?<br />

Com sublime ternura, ela respondeu com outra pergunta:<br />

- Não me reconhece, Licínio?<br />

- Licínio?<br />

- Sim, somos conheci<strong><strong>do</strong>s</strong> muito antigos...<br />

- Por que me chama de Licínio, se meu nome é Mateus?<br />

Ela sentou-se ao la<strong>do</strong> daquele que muito amava, tomou-lhe as mãos e, irradian<strong>do</strong><br />

luzes azuladas e rosadas, falou:<br />

- Estou aqui para fazer-lhe um apelo.<br />

- O que quer?<br />

- Você precisa aproveitar sua permanência na Terra; não está fazen<strong>do</strong> bom<br />

uso desta encarnação, que é das mais preciosas.<br />

- Faço o que quero com minha vida, e ninguém vai me dizer como vivê-la.<br />

365


Paciente, ela concor<strong>do</strong>u:<br />

- Tem toda a razão. A forma como vive só diz respeito a você. No entanto,<br />

pelo grande carinho que nutro por você desde muitas encarnações, venho pedir-lhe<br />

que repense sua vida. Embora conheça os princípios cristãos que deveriam<br />

nortear sua existência, vem fazen<strong>do</strong> escolhas contrárias à lei divina. Essa<br />

sua semeadura não lhe trará uma boa colheita.<br />

Mateus sorriu com cinismo.<br />

- Lá vem você com sermões. É só isso que sabe fazer? Sermões e mais sermões?<br />

Vocês to<strong><strong>do</strong>s</strong> são enfa<strong>do</strong>nhos, falan<strong>do</strong> e falan<strong>do</strong> sem parar.<br />

- Mais uma vez, devo concordar com você. Falamos demais e agimos de<br />

menos. Mas é nossa tentativa de acertar. E você, meu queri<strong>do</strong>, o que está fazen<strong>do</strong><br />

com sua vida?<br />

- Sei que estou aqui para conquistar o mun<strong>do</strong>. Meus negócios estão florescen<strong>do</strong><br />

como nunca; eles me levarão à Europa e depois aos Esta<strong><strong>do</strong>s</strong> Uni<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

onde também preten<strong>do</strong> atuar como consultor. Não haverá barreiras ou limites<br />

para o meu crescimento.<br />

Fez breve silêncio, depois afirmou, convicto:<br />

- Eu quero o mun<strong>do</strong> em minhas mãos! Eliana permanecia calma e serena.<br />

- E o que será de sua alma imortal, essa que agora conversa comigo?<br />

Ele se mostrou confuso e Eliana aproveitou sua ligeira hesitação para prosseguir.<br />

- Quais foram as conquistas de sua alma na presente encarnação? E veja<br />

que oportunidades não lhe faltaram: teve chance de conhecer o Evangelho redivivo<br />

pelos princípios espíritas, e me surpreendeu com a sua notável inteligência.<br />

Contu<strong>do</strong>, você está usan<strong>do</strong> de maneira deturpada a inteligência brilhante<br />

que o trouxe <strong>do</strong> sistema de Capela para cá, milênios atrás.<br />

- Do que está falan<strong>do</strong>?<br />

- De nosso mun<strong>do</strong> de origem.<br />

- Que conversa é essa, agora?<br />

- Você não se lembra, mas fomos exila<strong><strong>do</strong>s</strong> quan<strong>do</strong> Capela passou por uma<br />

transformação semelhante a esta, que a Terra experimenta hoje. A rebeldia<br />

perante as leis divinas nos tornou um entrave ao progresso de nosso mun<strong>do</strong>.<br />

Na Terra, contribuímos para a evolução das almas primitivas que aqui se encontravam<br />

e, com muita <strong>do</strong>r e sofrimento, fomos tecen<strong>do</strong> dias melhores para<br />

nós mesmos. Agora, estamos mais uma vez diante da transformação. A Terra<br />

está a caminho de tornar-se um planeta onde reinarão o bem e o amor. Com<br />

estron<strong><strong>do</strong>s</strong>a gargalhada, ele a interrompeu:<br />

- Sei de todas essas histórias.<br />

- Eu tenho certeza de que sabe.<br />

366


- Estudei uma porção de religiões, li, freqüentei cultos aqui e ali, porém<br />

nada me convenceu. Eu não acredito...<br />

Envolven<strong>do</strong>-o em intensa vibração amorosa, ela disse:<br />

- Não quer aceitar a verdade que está diante de você. Não é por acaso que<br />

está neste quarto de hospital. Está aqui para pensar em sua vida e, se Deus<br />

permitir, fazer melhores escolhas enquanto há tempo.<br />

- O que quer dizer? Está me ameaçan<strong>do</strong>? Não aceito ameaças...<br />

- Não se trata de ameaça, e sim da constatação de que a justiça divina nos<br />

alcança a to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Ainda há tempo; pouco, mas há. Reveja suas opções, mude<br />

seu coração, renove seus pensamentos e sentimentos no bem e no amor. Recomece<br />

hoje, aqui, neste quarto de hospital, aproveitan<strong>do</strong> a sagrada oportunidade<br />

que Deus lhe oferece. O Cria<strong>do</strong>r nos ama, e Jesus, igualmente com amor,<br />

espera pelo nosso despertar. E nosso orbe em Capela, já em adiantada fase de<br />

regeneração, está mais lin<strong>do</strong> <strong>do</strong> que nunca, à espera <strong>do</strong> nosso regresso. Desperte<br />

enquanto há tempo. Logo as trevas se adensarão e será muito mais difícil<br />

encontrar a luz.<br />

A uma pausa de Eliana, um <strong><strong>do</strong>s</strong> amigos que a acompanhavam tocou de leve<br />

em seu ombro, alertan<strong>do</strong>-a da chegada, em breve, das entidades das trevas<br />

que procuravam por Mateus. Entenden<strong>do</strong> de pronto, ela e os demais recolocaram-no<br />

sobre seu corpo físico e o fizeram a<strong>do</strong>rmecer profundamente. Eliana<br />

ergueu os olhos úmi<strong><strong>do</strong>s</strong> ao céu, em súplica.<br />

- Senhor, sabemos que ainda não nos fizemos merece<strong>do</strong>res de seu amor e<br />

de sua misericórdia. Mesmo assim, Pai ama<strong>do</strong>, rogamos por este nosso irmão<br />

que não consegue enxergar e compreender seu amor. Tenha compaixão de<br />

nós, que com escolhas errôneas semeamos a <strong>do</strong>r e o sofrimento em nossos<br />

destinos, atrain<strong>do</strong> <strong>do</strong>lorosos flagelos. Não nos aban<strong>do</strong>ne, Senhor, tenha misericórdia<br />

de nossa pequenez...<br />

Ela não pôde prosseguir. Pesadas lágrimas lhe desciam pela face. A oração<br />

cheia de amor encheu o quarto de luz, elevan<strong>do</strong> o teor vibratório <strong>do</strong> ambiente e<br />

impedin<strong>do</strong> a entrada <strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos arraiga<strong><strong>do</strong>s</strong> ao mal, comparsas de Licínio no<br />

mun<strong>do</strong> espiritual. Eles resmungavam <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora:<br />

- Aqueles seres repugnantes estão aí... Não nos deixam entrar. Mas somos<br />

persistentes... Uma hora eles vão ter de sair.<br />

No intuito de consolar Eliana, um <strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros comentou, quan<strong>do</strong> já<br />

deixavam o hospital de volta à casa dela:<br />

- Ao menos ele terá algum tempo para refletir sem a influência direta <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

comparsas. E uma ótima oportunidade.<br />

Ela olhou com tristeza o prédio <strong>do</strong> hospital, que sumia a distância.<br />

- Que Jesus nos ajude.<br />

367


Duas semanas depois, à tarde, Isabela atendia uma criança quan<strong>do</strong> Selena<br />

apareceu, lívida, em seu consultório. A médica estranhou.<br />

- O que foi, Selena? Ainda não terminei a consulta.<br />

- Um homem está aí fora queren<strong>do</strong> falar com a senhora.<br />

- Um homem?<br />

- Muito agressivo... - sua voz era um sussurro. - Acho que é daqueles que<br />

estavam atrás <strong>do</strong> Mário. Ele quer vê-la agora.<br />

Antes que a jovem acabasse, o homem entrou no consultório. Isabela falou,<br />

tentan<strong>do</strong> manter a calma:<br />

- Senhor, poderia aguardar alguns instantes? Estou terminan<strong>do</strong> a consulta e<br />

já vou atendê-lo.<br />

O homem recuou, olhou para a criança, depois para a mãe, observou toda a<br />

sala e saiu dizen<strong>do</strong>:<br />

- Não demore.<br />

Depois de concluir o atendimento, Isabela pediu ao homem que entrasse.<br />

Sem saber o que fazer, Selena chamou Regina, presidente da instituição, temen<strong>do</strong><br />

o que pudesse acontecer com Isabela. O homem foi objetivo:<br />

- Queremos saber onde está Mário.<br />

- O que foi que ele fez?<br />

- Não interessa. Queremos falar com ele, só isso.<br />

- Não sei onde ele está.<br />

- Achamos que a senhora sabe, sim, e deve falar, pois Mário é um jovem<br />

vicia<strong>do</strong> e perigoso.<br />

- O que foi que ele fez? - ela insistiu.<br />

- Ele nos deve dinheiro e desertou de seu trabalho com alguns <strong>do</strong>cumentos<br />

que nos pertencem. Queremos os <strong>do</strong>cumentos de volta, apenas isso. Diga-lhe<br />

que tem 24 horas para aparecer.<br />

- E se ele não aparecer?<br />

O homem respondeu, deixan<strong>do</strong> o consultório:<br />

- Somos persuasivos e persistentes. Saberemos encontrá-lo. Assim que ele<br />

saiu, Isabela segurou-se na cadeira e falou baixinho:<br />

- E agora?<br />

Foi quan<strong>do</strong> Regina chegou. Já ciente de to<strong>do</strong> o ocorri<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> apoia<strong>do</strong> o<br />

auxílio presta<strong>do</strong> por Isabela ao rapaz, a dirigente disse:<br />

- Não sei o que fazer. Eles não desistirão até que o encontrem.<br />

- Como descobriram que os ajudamos?<br />

- Sempre alguém acaba falan<strong>do</strong> com alguém que sabe ou viu alguma coisa.<br />

Desolada, Isabela falou:<br />

368


-Acho que me precipitei em ajudá-los. Deveria ter feito o rapaz se entregar<br />

à polícia.<br />

Enquanto ambas conversavam, Selena entrou dizen<strong>do</strong>:<br />

- Aconteceu um acidente horrível com um helicóptero há pouco mais de<br />

uma hora. Está na televisão.<br />

As duas concentraram a atenção na auxiliar, que continuou:<br />

- Foi com o helicóptero <strong>do</strong> senhor Lawrence.<br />

Regina e Isabela se entreolharam, incrédulas. Saíram da sala e foram até o<br />

refeitório, onde estava a televisão, para saber os detalhes <strong>do</strong> acidente que ceifara<br />

a vida de Lawrence e de Susan, bem como a <strong><strong>do</strong>s</strong> pilotos que os conduziam.<br />

Sem se dar conta de seu esta<strong>do</strong> espiritual, Lawrence e Susan perambularam<br />

por Nova York e depois retornaram ao escritório, onde permaneceram<br />

por longo tempo, sem consciência clara da situação; até que receberam<br />

a visita de entidades espirituais das trevas, que os arrebataram e levaram consigo<br />

para as regiões infernais. Todavia, no caminho, o grupo, que seguia com<br />

extrema cautela, foi intercepta<strong>do</strong> pelos espíritos que recolhiam as almas destinadas<br />

a deixar a Terra. Foram to<strong><strong>do</strong>s</strong> imobiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> e transporta<strong><strong>do</strong>s</strong> para longe<br />

<strong>do</strong> orbe terrestre, em meio a gritos de pânico, horror e revolta.<br />

Lawrence e Susan, ainda sob forte perturbação, não conseguiam compreender<br />

o que acontecia e, aos gritos, exigin<strong>do</strong> esclarecimento. O grupo foi leva<strong>do</strong><br />

junto com outros, provenientes de diversas regiões <strong>do</strong> planeta. Entre eles<br />

estava Licínio, que desencarnara em um acidente de avião. Ele também deixava<br />

o orbe, assim como as demais almas rebeldes que eram retiradas <strong>do</strong> plano<br />

espiritual da Terra.<br />

SESSENTA E SEIS<br />

ISABELA FECHOU o consultório e pensativa dirigiu-se para casa. Já poderia<br />

dizer a Mario que retornasse, pois, apesar de solucionar-se tragicamente, o pior<br />

da situação <strong>do</strong> rapaz havia passa<strong>do</strong>. Chegou em casa em silêncio e subiu para<br />

ver a filha. Fitou o rosto sereno da menina, que <strong>do</strong>rmia, e murmurou cheia de<br />

ternura, enquanto ajeitava a coberta com delicadeza sobre o corpo da pequenina:<br />

- Parece um anjo... Quanta <strong>do</strong>çura...<br />

Depois foi para o quarto esperan<strong>do</strong> encontrar o mari<strong>do</strong>. Ele não estava. Ao<br />

invés dele, encontrou sobre sua mesa um reca<strong>do</strong> que a sogra lhe escrevera:<br />

"Peter <strong>do</strong>rmirá na Califórnia. Virá somente amanhã".<br />

Sem ânimo para jantar, desceu, tomou um copo de leite, voltou para o<br />

quarto e se deitou. Acomo<strong>do</strong>u-se na cama vazia e não pôde reter as lágrimas<br />

369


que lhe corriam pela face. Lembrou-se com ternura <strong><strong>do</strong>s</strong> primeiros tempos de<br />

seu relacionamento com Peter, <strong>do</strong> namoro a distância, <strong>do</strong> início <strong>do</strong> casamento,<br />

quan<strong>do</strong> passavam juntos to<strong>do</strong> o tempo livre, trocan<strong>do</strong> carinho, longas e reconfortantes<br />

conversas... Suspirou com tristeza sentiu saudade daqueles momentos<br />

inesquecíveis, mas tão breves, que vivera ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem ama<strong>do</strong>. Agora,<br />

seu lar estava enfraqueci<strong>do</strong>, ela sabia disso.<br />

Aquela atitude de Peter, de permanecer fora de casa mais tempo <strong>do</strong> que o<br />

planeja<strong>do</strong>, já era quase uma constante. Ele se distanciava cada vez mais dela e<br />

da família, enreda<strong>do</strong> em uma vida de notoriedade que o estava transforman<strong>do</strong><br />

em um homem leviano, orgulhoso e egoísta. Dava crédito a tu<strong>do</strong> que os bajula<strong>do</strong>res<br />

ao seu re<strong>do</strong>r diziam. Muito especialmente seu editor, se que tornara<br />

seu conselheiro, satisfeito com os lucrativos resulta<strong><strong>do</strong>s</strong> que os livros de Peter<br />

rendiam.<br />

Suas palestras e sua enorme capacidade, recém-descoberta, de envolver os<br />

especta<strong>do</strong>res com seu carisma pessoal faziam dele uma figura continuamente<br />

procurada por famosos entrevista<strong>do</strong>res <strong><strong>do</strong>s</strong> programas de rádio e televisão. E<br />

Peter perdia-se, mais e mais fascina<strong>do</strong> pelas sensações que experimentava,<br />

diante das novas possibilidades que a vida lhe oferecia.<br />

Isabela virou-se na cama, buscan<strong>do</strong> afastar da mente aqueles pensamentos<br />

tristes. Em sentida oração, pediu amparo e proteção para o esposo e a família,<br />

e finalmente a<strong>do</strong>rmeceu. Era madrugada alta quan<strong>do</strong> se sentou na cama, gritan<strong>do</strong><br />

apavorada. A sogra entrou, acendeu a luz.<br />

- O que foi?<br />

Sentan<strong>do</strong>-se na cama ao seu la<strong>do</strong>, ela examinou o quarto e viu que tu<strong>do</strong> estava<br />

em ordem; então indagou:<br />

- Mais um pesadelo?<br />

- Outro terrível...<br />

A sogra foi até a cozinha e voltou com um copo de água. Depois de bebêla,<br />

Isabela agradeceu:<br />

- Obrigada por estar aqui.<br />

Sorrin<strong>do</strong> com carinho, Dorothy tomou-lhe as mãos.<br />

- Estarei aqui para o que precisar. Quer me contar o que sonhou?<br />

Isabela ainda tremia. Tomou o último gole de água e narrou, ao depositar o<br />

copo na mesa de cabeceira:<br />

- Foi muito confuso... Pessoas corriam para to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>, eram de diferentes<br />

nacionalidades. Depois de muitos gritos de pavor, vi água inundan<strong>do</strong><br />

tu<strong>do</strong>... Fiquei paralisada, e ela me engoliu.<br />

Ela fez uma pausa, limpan<strong>do</strong> as lágrimas:<br />

- Espero que seja somente um sonho...<br />

370


- Não terá fica<strong>do</strong> impressionada com as cenas <strong>do</strong> último <strong>do</strong>cumentário sobre<br />

o tsunami? O seu relato é pareci<strong>do</strong>.<br />

- Parece, só que é como se estivesse acontecen<strong>do</strong> em diversos lugares <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, e não somente como foi na In<strong>do</strong>nésia. Eu via pessoas de diferentes<br />

partes <strong>do</strong> globo, corren<strong>do</strong> ao mesmo tempo.<br />

- Teme que seja outro aviso?<br />

A nora não ousou responder e as duas guardaram silêncio por algum tempo.<br />

Depois, Isabela pediu:<br />

- Vá <strong>do</strong>rmir; já estou melhor, obrigada.<br />

- Tem certeza de que não quer que eu fique mais um pouco? Quer que<br />

chame sua mãe?<br />

- Não é preciso, estou bem.<br />

Depois que ela saiu, Isabela ficou sentada na cama. Tinha me<strong>do</strong> de a<strong>do</strong>rmecer<br />

e continuar sonhan<strong>do</strong>. Meditou sobre o que significaria aquele sonho.<br />

Sentia um peso enorme no coração. O que estaria acontecen<strong>do</strong> que tanto a oprimia?<br />

Por certo, era a repetida ausência de Peter que a entristecia. Finalmente<br />

foi vencida pelo cansaço e a<strong>do</strong>rmeceu.<br />

Algumas semanas depois sonhou com explosões e tanques invadin<strong>do</strong> sua<br />

rua. Via as pessoas atingidas pelos projéteis. Alarmada, ligou para Helena e<br />

contou sobre os sonhos que vinha ten<strong>do</strong>. A amiga ouviu com atenção, antes de<br />

comentar:<br />

- Talvez não seja um sonho premonitório. Nem to<strong><strong>do</strong>s</strong> os seus sonhos se realizaram<br />

exatamente como os viu.<br />

- Sim, você tem razão. Nem to<strong><strong>do</strong>s</strong> se concretizaram. Ainda assim, eu fico<br />

me questionan<strong>do</strong>: por que tanta <strong>do</strong>r, Helena? Em to<strong><strong>do</strong>s</strong> os meus sonhos vejo<br />

muita <strong>do</strong>r, muito sofrimento. Por que temos de sofrer assim? Violência, desamparo,<br />

fome, <strong>do</strong>enças de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tipos, e muitas catástrofes naturais... Uma<br />

atrás da outra...Onde tu<strong>do</strong> isso vai parar?<br />

Deixan<strong>do</strong> que Isabela desabafasse, Helena a escutou sem interromper.<br />

Quan<strong>do</strong> ela silenciou, a amiga explicou:<br />

- Infelizmente somos nós mesmos, seres humanos, que cultivamos a <strong>do</strong>r e<br />

o sofrimento ao nosso re<strong>do</strong>r. Observe o comportamento da grande maioria de<br />

seus conheci<strong><strong>do</strong>s</strong>. Quantos estão preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> de fato em ajudar os seus semelhantes,<br />

ou então em melhorar-se, em mudar? Quantos meditam sobre os ensinos<br />

de Jesus e buscam segui-los? Ao invés disso, recitamos versículos decora<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

que saem tão-só de nossos lábios, e não de nossos corações. A taça da<br />

iniqüidade está cheia... E natural que derrame, espalhan<strong>do</strong> <strong>do</strong>r por toda parte.<br />

Enquanto cada ser humano não fizer real e verdadeiro esforço por transformar<br />

o próprio interior, resgatan<strong>do</strong> os preciosos valores transmiti<strong><strong>do</strong>s</strong> por Jesus para<br />

371


se aproximar de Deus, não conquistaremos melhora expressiva em nossas vidas,<br />

em nosso planeta. É preciso verdadeiro esforço no bem. Sem isso, a <strong>do</strong>r<br />

persistirá como professora para nos ensinar a refletir sobre nossas atitudes. O<br />

orgulho e o egoísmo <strong>do</strong>minam nossa sociedade he<strong>do</strong>nista. Enquanto não combatermos<br />

com seriedade essas graves <strong>do</strong>enças da alma, elas continuarão a nos<br />

corroer por dentro, extravasan<strong>do</strong> para tu<strong>do</strong> o que estiver à nossa volta. Claro<br />

que há muita gente trabalhan<strong>do</strong> pelo bem, e sofren<strong>do</strong>, como você, a oposição<br />

sistemática, que se apresenta das mais diversas formas.<br />

Helena se calou. Depois, aconselhou com humildade:<br />

- Confiemos em Deus. Ele conhece todas as coisas e seus desígnios são<br />

justos e perfeitos. Fortaleça sua fé pelo trabalho incessante. Esse é o conselho<br />

que os orienta<strong>do</strong>res espirituais nos têm da<strong>do</strong>, profundamente preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> que<br />

estão não só com a situação atual da Terra, mas sobretu<strong>do</strong> com a condição<br />

espiritual de to<strong><strong>do</strong>s</strong> nós. Eles estão ao nosso re<strong>do</strong>r para nos sustentar, porém<br />

precisamos confiar em sua proteção e na direção divina sobre o planeta.<br />

Conversaram ainda por algum tempo, e então Isabela finalizou a ligação,<br />

agradecida.<br />

- Mais uma vez, obrigada por me escutar...<br />

- Ligue sempre que desejar. E dê um beijo bem carinhoso na minha neta...<br />

Sorrin<strong>do</strong>, Isabela respondeu:<br />

- Sua neta... Pode deixar...<br />

Num esforço para se reaproximar <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, Isabela organizou uma pequena<br />

viagem para que os <strong>do</strong>is pudessem ficar algum tempo a sós. Entretanto,<br />

Peter já acalentava o desejo <strong>do</strong> divórcio, ressenti<strong>do</strong> com o fato de ela ter deixa<strong>do</strong><br />

de acompanhá-lo em seus compromissos e viagens. Achava inadmissível<br />

que tantas belas mulheres ansiassem por sua companhia e a esposa o trocasse<br />

por um punha<strong>do</strong> de pobres <strong>do</strong> Brooklin. Contu<strong>do</strong>, ao mesmo tempo em que<br />

cobrava sua presença, quan<strong>do</strong> a tinha ele receava que Isabela dissesse algo<br />

sobre suas experiências psíquicas e sobre o Espiritismo, aparecen<strong>do</strong> como fanática<br />

aos olhos daqueles que o admiravam e poden<strong>do</strong>, assim, prejudicar-lhe a<br />

imagem e o prestígio.<br />

Ciente <strong><strong>do</strong>s</strong> planos de Peter - que fora Constantino há quase 2 mil anos -,<br />

Thomas solicitou às esferas mais elevadas que cuidavam <strong>do</strong> planeta permissão<br />

para reencarnar e ficar ao la<strong>do</strong> de Isabela, na tentativa de manter os <strong>do</strong>is uni<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

Recebeu a autorização e, como não tinha tempo a perder, aproveitou-se<br />

daquela viagem romântica <strong>do</strong> casal para retomar o corpo físico, agora como<br />

filho de Isabela e Peter. Planejaram ficar juntos por quatro dias, mas já no segun<strong>do</strong><br />

Peter começou a fazer telefonemas, dan<strong>do</strong> sinais de que não conseguia<br />

concentrar-se na esposa. Acabaram por regressar na manhã <strong>do</strong> terceiro dia.<br />

372


Isabela vinha quieta e pensativa, enquanto Peter dirigia. Já perto de casa, ele<br />

falou:<br />

- O que você tem? Veio calada o caminho inteiro. Sinto termos de voltar<br />

antes, mas realmente fiquei um pouco inquieto, pois preciso dedicar-me ao<br />

próximo livro.<br />

Fitan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong>, Isabela indagou:<br />

- E o livro de sua vida, Peter, como o está escreven<strong>do</strong>? De acor<strong>do</strong> com o<br />

que planejou antes de tomar esse corpo, ou fugin<strong>do</strong> de suas responsabilidades?<br />

- Lá vem você outra vez... Isso está fican<strong>do</strong> desagradável e cansativo. Não<br />

sabe falar de outra coisa? Está fanática pelo... por esse Espiritismo...<br />

- Não é pelo Espiritismo que estou envolvida, e sim pelas verdades eternas<br />

que ele nos ensina...<br />

Isabela não pôde prosseguir, porque Peter estacionara o carro e Juliana vinha<br />

gritan<strong>do</strong> com alegria:<br />

- Mamãe chegou!<br />

Semanas depois, Isabela constatou, entre apreensiva e feliz, que estava esperan<strong>do</strong><br />

outra criança. Já Peter recebeu a notícia com profunda inquietação;<br />

não queria mais um filho. Envolviam-no entidades espirituais afinadas com as<br />

trevas, antigos companheiros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> - que anos antes o haviam ajuda<strong>do</strong> a<br />

afundar-se em uma depressão -, aos quais agora Peter dava larga guarida. Agora<br />

utilizavam uma tática diferente: hipnotizavam-no com o sucesso e a fama,<br />

para que se sentisse encanta<strong>do</strong> por si mesmo e pelo êxito alcança<strong>do</strong>.<br />

Depois que Isabela deu-lhe a notícia da gravidez, Peter não teve mais tranqüilidade.<br />

Sentia-se compeli<strong>do</strong> a esquecer os planos de separação, permanecen<strong>do</strong><br />

junto da esposa e da família. Por outro la<strong>do</strong>, perdia-se em sentimentos<br />

contraditórios, desejan<strong>do</strong> plena liberdade para fruir a vida como bem entendesse.<br />

Passou algumas semanas em ardente conflito. Finalmente, venci<strong>do</strong> pelo<br />

orgulho e pela vaidade, resolveu ter uma conversa definitiva com a companheira.<br />

Naquela manhã, quan<strong>do</strong> ele desceu, Isabela perguntou:<br />

- Na sexta-feira tenho consulta para fazer um ultrassom. Vem comigo?<br />

Ele não respondeu. Quan<strong>do</strong> terminou de tomar o café, pediu:<br />

- Venha comigo até o escritório, precisamos conversar. Isabela o seguiu<br />

com o coração opresso. Já imaginava o teor da<br />

conversa. Peter fechou a porta e disse:<br />

- Esta não é uma conversa fácil para mim, principalmente com você nesse<br />

esta<strong>do</strong>.<br />

Isabela, anteven<strong>do</strong> o triste desenrolar <strong>do</strong> assunto, não conseguiu conter as<br />

lágrimas que lhe brotavam nos olhos. Imediatamente, foi amparada por espíri-<br />

373


tos amigos e pelo protetor espiritual que substituíra Thomas. Eles a fortaleciam,<br />

enchen<strong>do</strong>-a de carinho a amor.<br />

Peter, então, comunicou:<br />

- Isabela, quero o divórcio.<br />

- Assim, de repente?<br />

- Nos últimos tempos tenho pensa<strong>do</strong> muito em obter minha liberdade. E<br />

claro que a chegada de mais um filho abalou-me no mais íntimo; no entanto,<br />

não seria justo comigo nem com você, nem mesmo com ele, escolhermos ficar<br />

juntos apenas por causa dele.<br />

- E o amor que sentíamos um pelo outro, Peter?<br />

Quase comovi<strong>do</strong>, ele afagou os cabelos da esposa; depois disse, afastan<strong>do</strong>-se:<br />

- Tenho imenso carinho por você, Isa, mas quero voar o mais alto que puder.<br />

Quero ter liberdade total para realizar o que desejo.<br />

Ela baixou a cabeça e ele continuou:<br />

- É claro que nada haverá de faltar para vocês. Deixarei a casa em seu nome<br />

e lhe darei uma grande quantia em dinheiro. Terão tu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> melhor possível.<br />

Vou pagar os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> das crianças, as viagens que você fizer, sozinha ou<br />

com eles - enfim, tu<strong>do</strong> o que quiserem ou de que precisarem. Dinheiro não<br />

será problema.<br />

Erguen<strong>do</strong> a cabeça, com os olhos úmi<strong><strong>do</strong>s</strong> e brilhantes, Isabela questionou:<br />

- Acha mesmo que estou preocupada com o dinheiro? Ele fitou a esposa<br />

com certo desdém.<br />

- Claro, você é superior, uma mulher acima das banalidades da vida... Não<br />

se preocupa com o dinheiro...<br />

- Não é isso...<br />

- Não precisa explicar, Isa. De qualquer mo<strong>do</strong>, importan<strong>do</strong>-se você ou não,<br />

vou cobrir todas as despesas de minha família.<br />

Ela emudeceu e ele também. Depois de longo silêncio, Peter foi duro:<br />

- Podemos fazer isso da maneira mais fácil ou da mais difícil. Dadas as<br />

suas condições, acho melhor simplificarmos ao máximo. Vou para um hotel<br />

agora mesmo. Você descansa, se refaz, e mais tarde conversamos sobre as<br />

questões burocráticas.<br />

Ela se levantou, abraçou forte o mari<strong>do</strong>, que permaneceu imóvel, e perguntou<br />

com delicadeza:<br />

- Se fiz algo de que não gostou, eu posso mudar. Afastan<strong>do</strong> a esposa, ele<br />

respondeu:<br />

- Não é você, querida, sou eu.<br />

Sentin<strong>do</strong> a decisão inabalável <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, Isabela disse, com enorme tristeza:<br />

374


- Não há nada que eu possa fazer ou dizer que vá fazê-lo mudar de idéia,<br />

não é?<br />

- Não, nada.<br />

- Então está certo. Faça como desejar, não vou dificultar em nada sua decisão.<br />

Sorrin<strong>do</strong> pela primeira vez desde que haviam começa<strong>do</strong> aquele difícil diálogo,<br />

Peter falou alivia<strong>do</strong>:<br />

- Acho uma sábia decisão.<br />

Depois de comunicar à família a decisão <strong>do</strong> casal, Peter instalou-se em um<br />

hotel ainda naquele dia.<br />

Nos meses que se seguiram, durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> de gestação, Isabela<br />

buscou amparo no trabalho incessante. Sempre que sentia o desânimo rondarlhe<br />

o coração, ligava para Helena e conversavam. Ao desligar, a jovem se sentia<br />

fortalecida em seus valores e ideais e, atenden<strong>do</strong> aos conselhos da amiga,<br />

dedicava-se ao próximo, esquecida de si e de seus problemas.<br />

Os pesadelos continuavam, cada vez mais freqüentes. Noite após noite, Isabela<br />

via grandes calamidades abaten<strong>do</strong>-se sobre a Terra. Ao despertar, recorria<br />

ao melhor meio de acalmar-se: orava por si, por seus familiares e por to<strong>do</strong><br />

o planeta. No final da gestação, o médico a aconselhou a diminuir um pouco o<br />

ritmo, pois a água em sua placenta diminuíra além <strong>do</strong> normal, o que podia ser<br />

reflexo <strong>do</strong> estresse emocional pelo qual passava. Isabela acatou-lhe as orientações<br />

e manteve-se mais em casa.<br />

Naquele dia estava particularmente cansada. Entrou no lin<strong>do</strong> quarto que<br />

decorava com extrema<strong>do</strong> carinho e acrescentou alguns detalhes. Depois, abriu<br />

uma das gavetas da cômoda e pegou algumas peças <strong>do</strong> enxoval que preparava<br />

para o filho; beijan<strong>do</strong>-as, falou baixinho, enquanto afagava a barriga:<br />

- Como queria que seu pai estivesse conosco agora, filho. Mas não se preocupe<br />

com nada, vamos pedir muito a Deus que o proteja e ajude. Quem sabe...<br />

Afinal, nada é impossível para o Cria<strong>do</strong>r.<br />

Preparava-se para descer para o jantar, quan<strong>do</strong> notou o sangue a escorrerlhe<br />

pelas pernas. Assustada, gritou pela mãe, que logo apareceu no quarto:<br />

- Minha filha! Vou ligar já para o seu médico. Venha, eu a aju<strong>do</strong> a se deitar.<br />

Ana Lídia acomo<strong>do</strong>u a filha na cama, apreensiva:<br />

- Você devia ter se aquieta<strong>do</strong> antes.Trabalhou em demasia, e para quê? Às<br />

vezes sou obrigada a concordar com Peter.<br />

Gemen<strong>do</strong> de <strong>do</strong>r, Isabela pediu:<br />

- Por favor, mãe, agora não. Chame o médico.<br />

375


Horas depois, ainda aos oito meses de gestação, ela estava no centro cirúrgico<br />

sen<strong>do</strong> preparada para uma cesariana. O obstetra esclarecia, procuran<strong>do</strong><br />

acalmá-la:<br />

- A placenta descolou e a bolsa se rompeu, por isso o sangra-mento. Precisamos<br />

tirar o bebê.<br />

- E interromper a gestação não fará mal à criança?<br />

- Com o rompimento da bolsa, você pode acabar com uma infecção, bem<br />

como o bebê.<br />

- Sou pediatra, <strong>do</strong>utor, e sei bem que o bebê pode não estar com o pulmão<br />

pronto...<br />

- Embora não desconheça sua experiência profissional, peço que confie<br />

em mim. Temos condição de cuidar dele, que é muito saudável... Agora, relaxe.<br />

Quem vai assistir ao parto?<br />

Isabela respondeu, disfarçan<strong>do</strong> a frustração:<br />

- Nem minha mãe nem minha sogra têm coragem; portanto, não terei acompanhante<br />

desta vez.<br />

O médico, que fizera o parto de Juliana e já sabia da situação entre Isabela<br />

e Peter, não disse nada; apenas acomo<strong>do</strong>u-a na posição, esperan<strong>do</strong> o efeito da<br />

anestesia.<br />

O procedimento correu com tranqüilidade e prestimoso amparo espiritual.<br />

Uma equipe de médicos <strong>do</strong> plano etéreo acompanhava aquele momento, auxilian<strong>do</strong><br />

Thomas no retorno ao planeta. O bebê nasceu saudável e choran<strong>do</strong> muito.<br />

Foi leva<strong>do</strong> para a UTI neonatal por questões de segurança, mas três horas<br />

depois já estava nos braços da mãe. Ao fitar aqueles olhos serenos e amorosos,<br />

Isabela tinha a nítida sensação de que já o conhecia. "Certamente, profun<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

laços de amor nos unem", pensava.<br />

De fato, a adaptação entre mãe e filho correu com naturalidade; Marcos<br />

veio preencher o interior de Isabela com plena realização materna. A felicidade<br />

que sentia na companhia <strong><strong>do</strong>s</strong> filhos atenuava a amargura pela ausência de<br />

Peter. Ela não demorou a reassumir as suas responsabilidades.<br />

Marcos crescia saudável e feliz. Peter aparecia esporadicamente para ficar<br />

algum tempo com os filhos, apesar de estar sempre com pressa, aproveitan<strong>do</strong><br />

pouco <strong>do</strong> convívio com as crianças. Dois anos se passaram. Não obstante as<br />

dificuldades e os desafios, Isabela se aprofundava mais e mais no autoconhecimento<br />

e no aprendiza<strong>do</strong> da Doutrina Espírita, buscan<strong>do</strong> aproveitar as lições<br />

que a vida colocava em seu caminho. No íntimo, aguardava a volta <strong>do</strong> esposo,<br />

ainda que não admitisse isso nem a si mesma.<br />

376


SESSENTA E SETE<br />

ERA NOITE ALTA. Isabela se remexia na cama, com sono agita<strong>do</strong>, até que<br />

sentou-se assustada, choran<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> se acalmou, respirou fun<strong>do</strong> e pensou:<br />

mais um pesadelo. E depois de se reequilibrar tomou nas mãos O Evangelho<br />

segun<strong>do</strong> o Espiritismo, fez uma leitura e começou a orar a Jesus pedin<strong>do</strong> socorro<br />

para os homens e para o planeta. Não conseguiu mais conciliar o sono.<br />

No dia seguinte, em seu consultório, após a saída <strong>do</strong> último paciente, ela<br />

consultou o relógio e, verifican<strong>do</strong> que era um bom horário para falar com o<br />

Brasil, ligou para Helena. Feita uma pequena introdução, em que se cumprimentaram<br />

e colocaram as novidades em dia, Helena, que conhecia a amiga<br />

muito bem, indagou:<br />

- O que a está preocupan<strong>do</strong>, Isabela?<br />

- E surpreendente como você me conhece.<br />

- Conheço-a muito bem, de fato. O que há?<br />

- Os sonhos.<br />

- Eles continuam?<br />

- Sim, e muitos deles acontecem... Você sabe: o ataque às torres gêmeas, o<br />

tsunami na Polinésia, desastres de avião, de trem e de carro... guerras... o terremoto<br />

no Haiti...<br />

Angustiada, Isabela fez longa pausa antes de prosseguir:<br />

- Sonho e fico só esperan<strong>do</strong> as notícias... É desespera<strong>do</strong>r. Por que tenho<br />

esses sonhos, Helena, se não posso fazer nada para ajudar? Que senti<strong>do</strong> há em<br />

sonhar coisas assim terríveis? Em vê-las por antecipação, sem ter objetivo algum<br />

com isso?<br />

- Isa, as aptidões mediúnicas beneficiam primeiro o próprio médium, que,<br />

como você bem sabe, é um ser com grandes dívidas para com as leis divinas.<br />

- Sim, eu sei.<br />

- Pois então, esses sonhos têm um papel importante, primeiramente para<br />

você mesma.<br />

- Não enten<strong>do</strong> para quê.<br />

Helena pensou um pouco e, fortemente envolvida por seu mentor espiritual,<br />

respondeu:<br />

- Para que jamais se afaste <strong>do</strong> caminho <strong>do</strong> bem.<br />

A frase provocou forte impacto emocional em Isabela. Não pôde conter as<br />

lágrimas que lhe vinham aos olhos e lhe escorriam pelo rosto alvo. Ela sentia<br />

que Helena tocara em um ponto fundamental. Aqueles sonhos eram para ela<br />

própria...<br />

- Ainda há muitas coisas que não compreen<strong>do</strong>...<br />

377


- Por isso precisamos da fé em Deus acesa e firme em nosso coração. Confiar<br />

em Deus é, acima de tu<strong>do</strong>, saber que ele sempre nos dará o melhor, em<br />

todas as circunstâncias.<br />

A conversa das amigas se prolongou bastante, até que desligaram. Isabela<br />

seguiu pensativa o caminho de volta para casa. Depois de ficar algum tempo<br />

com os filhos, acomo<strong>do</strong>u-os para <strong>do</strong>rmir e também se recolheu. Sentia-se abatida<br />

e entristecida. O peso que carregava no coração era enorme.<br />

Antes de se deitar, ela fez algumas anotações na agenda e, ao fechá-la,<br />

pensou em como o tempo vinha passan<strong>do</strong> ainda mais depressa nos <strong>do</strong>is últimos<br />

anos. Depois de ler um trecho <strong>do</strong> romance Há Dois Mil Anos, colocou-o<br />

na mesa de canto da cama e, de olhos cerra<strong><strong>do</strong>s</strong>, fez suas orações.<br />

Logo que a<strong>do</strong>rmeceu, viu-se no alto de um morro de onde podia contemplar<br />

o mar. Algo chamou sua atenção e ela avistou, muito longe no horizonte,<br />

que a praia já não existia, coberta pelas águas, e percebeu que a água iria ocupar<br />

toda a cidade. Quis correr, porém não podia mover-se. Então viu a água se<br />

aproximan<strong>do</strong> e milhares de pessoas corren<strong>do</strong> por to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong><strong>do</strong>s</strong>. O mar invadiu<br />

toda a cidade, cobrin<strong>do</strong> o morro onde ela estava. Pessoas, casas, carros,<br />

tu<strong>do</strong> fora traga<strong>do</strong>, enquanto Isabela apenas observava.<br />

Depois, viu-se em um campo ressequi<strong>do</strong>, sem vegetação, quase um deserto.<br />

O sol escaldante parecia queimar à menor exposição, pois muitas pessoas<br />

cobriam to<strong>do</strong> o corpo, não deixan<strong>do</strong> nada à vista. Pensou estar em um deserto<br />

no Oriente, porém ouviu palavras em português, em espanhol, em inglês, e<br />

notou que por ela passavam pessoas de diversas regiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> devastadas<br />

pela seca. Então viu-se em meio à multidão, que perambulava à procura de<br />

alimento e abrigo. À frente, um tumulto se estabeleceu; com grande violência<br />

as pessoas se agrediam mutuamente, em descontrola<strong>do</strong> frenesi. To<strong><strong>do</strong>s</strong> pareciam<br />

enlouqueci<strong><strong>do</strong>s</strong>. Desesperada, Isabela queria gritar por socorro, pedin<strong>do</strong><br />

para sair daquele terrível pesadelo. Foi aí que se viu transportada ao plano espiritual<br />

em companhia de pessoas que sabia conhecer. Bem perto estava um<br />

jovem que irradiava luz.<br />

- Por favor, tire-me deste pesadelo.<br />

- Este pesadelo poderá tornar-se realidade, para a infelicidade de nosso orbe.<br />

- Não há nada que possamos fazer para impedir? Deve haver algo...<br />

- Jesus vem tentan<strong>do</strong> ajudar seus irmãos há mais de 2 mil anos, e nós não<br />

lhe demos ouvi<strong><strong>do</strong>s</strong>... Transformamos a Terra no palco <strong>do</strong> orgulho, da vaidade,<br />

de ilusões e egoísmo. É natural que a iniqüidade se tenha espalha<strong>do</strong> sobre o<br />

planeta. Agora, esse mal que parte da mente <strong><strong>do</strong>s</strong> homens encarna<strong><strong>do</strong>s</strong>, e também<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> desencarna<strong><strong>do</strong>s</strong>, atinge o ápice de seu magnetismo deletério. Observe.<br />

378


Ele mostrou a atmosfera, onde ela divisou figuras horripilantes, como<br />

monstros devora<strong>do</strong>res, contorcen<strong>do</strong>-se na forma de dragões que enchiam o<br />

espaço. Outras imagens deprimentes e repugnantes vagavam ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> escuro<br />

orbe. Isabela indagou:<br />

- Por que está tão escuro? Não vejo o mar, não vejo nada.<br />

- Por certo os satélites não registrarão as imagens que você pode constatar,<br />

mas o orbe da Terra está toma<strong>do</strong> por essa espessa e densa vibração negra, reflexo<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> pensamentos e sentimentos da humanidade. Isabela exclamou, ajoelhan<strong>do</strong>-se<br />

no chão:<br />

- Meu Deus, que coisa horrível! Nós fizemos isso?<br />

- Sim, estamos fazen<strong>do</strong> isso.<br />

- E esses monstros?<br />

- Alguns são pensamentos humanos transfiguran<strong>do</strong>-se em terríveis animais,<br />

outros são espíritos animaliza<strong><strong>do</strong>s</strong> que sintonizam com essas emanações e as<br />

apreciam, fazen<strong>do</strong> uso delas.<br />

- E essas imagens horrorosas, de assassinatos e to<strong><strong>do</strong>s</strong> os tipos de ações horripilantes...<br />

- Ações que estão sen<strong>do</strong> planejadas, realizadas ou relembradas por seres<br />

encarna<strong><strong>do</strong>s</strong> e desencarna<strong><strong>do</strong>s</strong>.<br />

- Nunca assisti a nada tão assusta<strong>do</strong>r!<br />

Então Isabela prostrou-se no chão, em pranto <strong>do</strong>lori<strong>do</strong>.<br />

- Meu Deus, ajude-nos! O que será de nós? Estamos destruin<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>...<br />

Uma falange de espíritos com pesadas túnicas negras passou por eles, sem<br />

os notar. Fitan<strong>do</strong> o amigo, ela interrogou com o olhar, e ele respondeu:<br />

- São hostes de seres arraiga<strong><strong>do</strong>s</strong> ao mal, dirigin<strong>do</strong>-se para a Terra, a fim de<br />

efetivar seu intento: toda sorte de destruição possível.<br />

- E ninguém os impede? Toman<strong>do</strong>-a pelo braço, ele convi<strong>do</strong>u:<br />

- Venha.<br />

Foram até um ponto mais eleva<strong>do</strong> e ele aplicou-lhe passes na área <strong>do</strong> córtex<br />

cerebral, expandin<strong>do</strong>-lhe a capacidade de visão espiritual; assim, Isabela<br />

pôde visualizar milhares de luzes que se movimentavam para to<strong><strong>do</strong>s</strong> os la<strong>do</strong>.<br />

Ele explicou:<br />

- São espíritos <strong>do</strong> bem, outros companheiros da luz, que se movimentam<br />

pelo orbe da Terra auxilian<strong>do</strong> a to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que lhes dão sintonia.<br />

Em seguida ele apontou novamente para a Terra.<br />

- Olhe bem. Consegue ver os pontos de luz em meio à escuridão?<br />

- Sim, é como se o mun<strong>do</strong> fosse um céu escuro, ilumina<strong>do</strong> por minúsculos<br />

pontos que chegam até onde estamos.<br />

379


- Esses são lares ou instituições onde o bem e sua vibração se sobrepõem<br />

ao mal e seu magnetismo destrutivo. E especialmente aí, junto a esses corações<br />

volta<strong><strong>do</strong>s</strong> para Deus e o amor, e continuamente fortaleci<strong><strong>do</strong>s</strong>, que trabalhamos<br />

para expandir a luz sobre a Terra.<br />

- E essas pessoas fazem parte de alguma religião específica?<br />

- Estão vinculadas às mais diversas escolas religiosas, mas têm em comum<br />

o amor a Deus e o esforço para praticar o bem com sinceridade. Trazem a verdadeira<br />

religião no coração.<br />

- Mas são tão poucos...<br />

Dessa vez, sem maiores explicações, ele a levou para uma sala onde havia<br />

um telão. Outros já se encontravam acomoda<strong><strong>do</strong>s</strong>. Então, vários espíritos eleva<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

se aproximaram, emitin<strong>do</strong> intensa luz. Entre eles estava Ernesto, que tomou<br />

a palavra.<br />

- Somos chama<strong><strong>do</strong>s</strong> a ajudar. Muitos de vocês, aqui reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> nesta noite,<br />

estão na Terra e viverão o verdadeiro Armage<strong>do</strong>m que se deflagra sobre a humanidade.<br />

E iminente o tempo em que muitas catástrofes naturais abalarão o<br />

planeta, convulsionan<strong>do</strong>-o -resulta<strong>do</strong>, em parte substancial, de ataques das<br />

trevas, que se valem <strong><strong>do</strong>s</strong> pensamentos deletérios de nossos irmãos <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong>is<br />

planos. Deus o permitirá para que a Terra seja purificada. Como cegos, esses<br />

espíritos recalci-trantes no mal, que se acreditam maiores <strong>do</strong> que o Cria<strong>do</strong>r,<br />

terão seus últimos momentos no planeta.<br />

O ora<strong>do</strong>r fez curta interrupção e acrescentou:<br />

- Estão aqui nesta noite, queri<strong><strong>do</strong>s</strong> companheiros, para se revigorar interiormente<br />

e seguir com firmeza no bem, motivan<strong>do</strong> igualmente aqueles que,<br />

ainda em grande conflito espiritual, não conseguem definir-se. Estão esperan<strong>do</strong><br />

que algo lhes aconteça. Precisam ser alerta<strong><strong>do</strong>s</strong> de que o tempo acabou, de<br />

que não haverá outra oportunidade. Eles têm de fazer sua opção agora. Em<br />

futuro não muito distante, Jesus, que é o comandante <strong>do</strong> nosso planeta, governará<br />

espiritualmente a Terra sem a oposição <strong>do</strong> mal. Será o início de urna nova<br />

ordem mundial; não haverá mais lugar para o mal, nem para a indecisão. Levem<br />

aos nossos irmãos esse alerta inadiável: é hora de despertar e escolher a<br />

luz, o bem, o amor. E devem fazer isso imediatamente. Não há mais tempo.<br />

Ao observar a angústia e a dúvida no rosto de muitos, Ernesto, conhecen<strong>do</strong>-lhes<br />

as indagações, esclareceu:<br />

-A Terra vive um momento de transição em seu nível evolutivo. O expurgo<br />

das criaturas recalcitrantes no mal começou há muitas décadas e vem se intensifican<strong>do</strong>.<br />

Logo, muitas almas deixarão o planeta, exiladas para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> em<br />

fase primitiva de desenvolvimento. Ali permanecerão para que, através da <strong>do</strong>r<br />

e <strong>do</strong> sofrimento, despertem para as realidades da vida e se <strong>do</strong>brem diante das<br />

380


leis divinas, regressan<strong>do</strong> ao Cria<strong>do</strong>r com humildade. Vocês podem estar se<br />

perguntan<strong>do</strong>: quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isso acontecerá? No curso de alguns anos. A transição<br />

está no ápice, e gradualmente ocorrerá a purificação.<br />

Ele fez longa pausa, limpan<strong>do</strong> algumas lágrimas que lhe escapavam <strong><strong>do</strong>s</strong><br />

olhos. Depois continuou.<br />

- Essa é a minha própria história, meus irmãos, e sei o quanto é <strong>do</strong>lorosa.<br />

Que Deus nos ajude e que cada um de vocês seja um solda<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem, ponto de<br />

luz a brilhar sobre o planeta, alicerçan<strong>do</strong> a reconstrução para a nova era.<br />

A reunião terminou e to<strong><strong>do</strong>s</strong> se dispersaram. Isabela e o amigo que a trouxera<br />

retornaram em absoluto silêncio. Ao chegar em casa, ela o encarou e disse:<br />

- Estamos em meio a uma verdadeira guerra entre o bem e o mal.<br />

- Sim, e essa guerra é travada, antes de mais nada, dentro <strong>do</strong> coração de<br />

cada ser humano. Agora me despeço, você precisa descansar.<br />

Isabela se acomo<strong>do</strong>u sobre seu corpo físico e a<strong>do</strong>rmeceu. Não demorou a<br />

amanhecer. Ao despertar, ela trazia as sensações da experiência vivida e era<br />

<strong>do</strong>minada por um sentimento de urgência e de compromisso com as realizações<br />

no bem.<br />

Lançou-se ao trabalho incansavelmente, lutan<strong>do</strong> a cada dia, com afinco e<br />

determinação, pela renovação interior. Via todas as dificuldades como oportunidades<br />

de crescimento e aprendizagem. Sentia-se em paz e com força sempre<br />

recomposta, vencen<strong>do</strong> os desafios e obstáculos com otimismo e fé, convicta de<br />

que Deus estava no coman<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>. Em todas as situações, passou a utilizar<br />

a visão espiritual da vida para ampliar seu entendimento e adequar suas reações,<br />

direcionan<strong>do</strong>-as em favor de to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Cessaram os conflitos, o bem finalmente<br />

fincava raízes em seu íntimo.<br />

SESSENTA E OITO<br />

Os DIAS SE SUCEDIAM CÉLERES. Isabela dedicava-se aos seus compromissos<br />

profissionais e espirituais, bem como aos filhos, com extremo empenho. No<br />

decorrer <strong>do</strong> tempo constatava, com pesar, que seus pesadelos, um a um, se<br />

tornavam reais, presencian<strong>do</strong> os dias de angústia, tormento e desespero que se<br />

abatiam sobre o planeta.<br />

Eram dez horas da noite de um sába<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o telefone tocou. Do outro<br />

la<strong>do</strong> da linha, a voz conhecida c querida de Helena evidenciava tristeza; assim<br />

que a escutou, Isabela ficou séria e indagou:<br />

- O que houve?<br />

Sem rodeios, a amiga comunicou:<br />

- Eliana desencarnou ontem à noite.<br />

381


- Mas o que aconteceu? - estava surpresa e inconformada.<br />

- Você acompanhou a situação das últimas chuvas por aqui? Os desmoronamentos<br />

?<br />

- Sim, tenho visto pela internet.<br />

- Ela estava ajudan<strong>do</strong> algumas famílias da comunidade a deixarem suas<br />

casas e o morro desabou. Várias habitações foram arrastadas pela encosta, e<br />

muitas pessoas não conseguiram escapar. Entre elas estava Eliana, que, como<br />

sempre, se dedicava ao próximo sem descanso.<br />

Isabela permaneceu por longo tempo em silêncio; depois suspirou, com<br />

profunda tristeza.<br />

- O que fazer? Perdemos uma grande líder! Certamente ela está agora nos<br />

braços de Jesus, a quem serviu com amor e renúncia.<br />

Helena falou com a voz embargada pela emoção:<br />

- Sim, é verdade. Aqui, estamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> de coração parti<strong>do</strong>; ainda assim, não<br />

vamos esmorecer. Queremos prosseguir com todas as atividades da instituição,<br />

tal e qual ela nos orientou. Estamos tristes, porém confiantes de que ela mesma,<br />

no futuro, se unirá ao grupo em espírito, para nos instruir e conduzir.<br />

Limpan<strong>do</strong> as lágrimas abundantes que lhe corriam pela face, Isabela desligou<br />

o telefone. Sentou-se ao la<strong>do</strong> da mãe, que brincava com os netos. Observou-os<br />

por algum tempo.<br />

- Mãe, pode colocá-los na cama hoje? Não me sento muito bem.<br />

Subiu e deitou-se, entregan<strong>do</strong>-se a <strong>do</strong>lori<strong>do</strong> pranto, com o coração aperta<strong>do</strong>.<br />

Cada vez que via um noticiário sentia a grande opressão que se abatia sobre<br />

a Terra, e suplicava forças a Deus para poder suportar aqueles dias aterra<strong>do</strong>res.<br />

Eliana, por sua vez, rapidamente se refez no plano espiritual, e caminhava<br />

pela colônia em conversa com alguns companheiros, entre eles seu orienta<strong>do</strong>r.<br />

- Estamos felizes com seu retorno, Constância, especialmente pelo êxito<br />

alcança<strong>do</strong>. Sua ajuda agora, aqui no plano espiritual, será muito importante.<br />

Necessitamos de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os companheiros abnega<strong><strong>do</strong>s</strong> com os quais possamos<br />

contar. O momento é muito grave. Estamos sobremaneira preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong> com<br />

nossos irmãos terrenos.<br />

- Estou pronta a servi-los em tu<strong>do</strong> o que puder. Entretanto, preciso solicitar<br />

o apoio de vocês em uma questão que toca fun<strong>do</strong> meu coração...<br />

Adivinhan<strong>do</strong>-lhe de pronto a preocupação, Mace<strong>do</strong> sorriu e disse:<br />

- Está falan<strong>do</strong> de Licínio.<br />

- Sim, isso mesmo.<br />

- O que deseja fazer, Constância?<br />

- Ele já foi transferi<strong>do</strong> para outro orbe, não é?<br />

382


- Sim, encontra-se no plano espiritual de um planeta primitivo, sen<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong><br />

para futuro reencarne.<br />

- Se Jesus me permitir, serei feliz em contribuir o mais possível com meus<br />

irmãos na Terra. Mas, depois, gostaria imensamente de reencontrar Licínio.<br />

Olhan<strong>do</strong>-a com profun<strong>do</strong> respeito, Mace<strong>do</strong> considerou:<br />

- Você está prestes a seguir para Capela. Cumpriu seu trabalho na Terra, e<br />

pode regressar ao seu verdadeiro lar. Ao invés disso, deseja dirigir-se a um<br />

planeta primitivo, para permanecer ao la<strong>do</strong> de nosso irmão?<br />

- Embora deseje ardentemente voltar ao lar em Capela, onde me aguardam<br />

afetos preciosos, não poderia fazê-lo deixan<strong>do</strong> Licínio para trás. Estou ligada a<br />

ele por laços indissolúveis.<br />

Seus olhos cintilavam, e lágrimas desciam-lhe pela face.<br />

- Quero pedir autorização para acompanhá-lo, ainda que seja para assistilo<br />

<strong>do</strong> plano espiritual.<br />

Mace<strong>do</strong> fitou-a com o carinho de um pai.<br />

- Sem dúvida tem méritos acumula<strong><strong>do</strong>s</strong> e que pesarão a seu favor na decisão<br />

<strong><strong>do</strong>s</strong> espíritos superiores que administram o Universo. Vamos levar sua solicitação.<br />

Com humildade ela agradeceu:<br />

- Obrigada, meus irmãos. Enquanto isso, estou pronta para contribuir em<br />

tu<strong>do</strong> o que estiver ao meu alcance.<br />

- De fato, temos muito trabalho a fazer. Um enorme grupo de almas deixará<br />

o planeta esta noite; algumas delas serão recolhidas à nossa colônia, porém<br />

a grande maioria será exilada da Terra, tão logo se separe <strong>do</strong> corpo físico.<br />

Uma vez encerra<strong>do</strong> aquele encontro, verdadeiro exército forma<strong>do</strong> por espíritos<br />

da colônia partiu em direção à Terra, para o socorro necessário. Algumas<br />

horas mais tarde o imenso grupo retornou, trazen<strong>do</strong> consigo inúmeros espíritos,<br />

muitos desacorda<strong><strong>do</strong>s</strong>, que acabavam de deixar o corpo físico.<br />

Assim, Constança prosseguia em serviço com os grupos de resgate distribuí<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por to<strong>do</strong> o orbe terrestre. Semanas depois, Mace<strong>do</strong> procurou-a para<br />

comunicar:<br />

- Você tem a autorização para seguir em companhia de Licínio. Todavia,<br />

deve estar bem consciente <strong><strong>do</strong>s</strong> riscos, caso decida reencarnar naquele planeta.<br />

- Eu sei. Não preten<strong>do</strong> fazê-lo, por ora, mas somente quan<strong>do</strong> ele puder aproveitar<br />

de fato a minha presença física.<br />

- Quan<strong>do</strong> desejar, pode partir.<br />

- Agradeço por sua intercessão. Ficarei aqui o tempo que puder ser útil.<br />

Quan<strong>do</strong> a situação estiver melhor, partirei.<br />

- Que Jesus a abençoe e ampare, minha dedicada irmã.<br />

383


Em silêncio, ela sorriu feliz e aliviada. Estava decidida a permanecer ao<br />

la<strong>do</strong> daquele ser a quem tanto amava.<br />

Peter, que agora vivia em companhia da mãe e da filha Jenni-fer, continuava<br />

maravilha<strong>do</strong> com o sucesso. Vez por outra, nas raras ocasiões em que estava<br />

sozinho, lembrava-se com saudade de Isabela e <strong><strong>do</strong>s</strong> filhos. Porém, antes que<br />

pudesse ter qualquer idéia ou iniciativa no senti<strong>do</strong> de repensar suas atitudes,<br />

sua atenção era atraída por algum compromisso prazeroso que de imediato lhe<br />

vinha à mente, em geral sugeri<strong>do</strong> por entidades espirituais recalcitrantes no<br />

mal; estas o mantinham em esta<strong>do</strong> de hipnose mental, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>-lhe a vontade<br />

e manipulan<strong>do</strong> sua vida de acor<strong>do</strong> com seus inconfessáveis interesses.<br />

Envolvi<strong>do</strong> pelas densas energias que partiam de sua própria mente, acrescidas<br />

daquelas que emitiam os espíritos das sombras, Peter sentia-se mais cansa<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que o habitual. Por insistência da filha e da mãe, resolveu tirar alguns<br />

dias de folga e ir para uma pequena cabana que possuíam nas montanhas.<br />

Em frente à casa havia um lin<strong>do</strong> lago circunda<strong>do</strong> de exuberante natureza,<br />

crian<strong>do</strong> um cenário magnífico. Peter sentou-se perto da cabana, onde acenderam<br />

uma fogueira, e ali ficou, naquela noite fria, observan<strong>do</strong> o céu e as estrelas,<br />

aconchega<strong>do</strong> pelo calor <strong>do</strong> fogo e das cobertas que o protegiam. Mais tarde,<br />

ao recolher-se, já na cama, foi toma<strong>do</strong> por súbita nostalgia. Naquele lugar<br />

tranqüilo conseguia perceber melhor suas emoções e sentia-se sozinho e vazio.<br />

Leu um pouco e, depois de arrumar a lenha na lareira, ajeitou-se no leito e a<strong>do</strong>rmeceu.<br />

Assim que seu corpo físico caiu em sono profun<strong>do</strong>, seu corpo sutil<br />

foi recebi<strong>do</strong> por um grupo de antigos amigos. Ao vê-los, com emoção incontrolável,<br />

fitou-os um a um e indagou:<br />

- Quem são vocês? Sei que os conheço, mas não me recor<strong>do</strong>. Enquanto<br />

Henrique e Elvira irradiavam energia sobre seu cór-<br />

tex cerebral, Ernesto plasmou diante dele uma projeção de sua própria tela<br />

mental, com as lembranças derradeiras da última encarnação que tivera em<br />

Capela. As imagens mostraram a Peter um homem arquitetan<strong>do</strong> o envenenamento<br />

de outro. Depois, viu o homem lançar Ernesto <strong>do</strong> alto de um prédio e,<br />

em seguida, identificou a si mesmo ocupan<strong>do</strong> a mesa e o escritório daquele a<br />

quem tirara a vida. Então, observou-se morren<strong>do</strong> também, sob a influência<br />

espiritual de Ernesto, e ambos perden<strong>do</strong>-se na noite <strong><strong>do</strong>s</strong> séculos, em duelo de<br />

ódio. Por fim, viu-se sozinho, vagan<strong>do</strong> sob forte nevoeiro, em região que mais<br />

se assemelhava ao inferno.<br />

Quan<strong>do</strong> a projeção terminou, Peter caiu de joelhos, em choro convulsivo.<br />

Ernesto aproximou-se, ajoelhou-se à sua frente e falou, tocan<strong>do</strong>-lhe o ombro:<br />

- Ferdinan<strong>do</strong>, acorde, meu irmão! Erguen<strong>do</strong> o rosto, Peter o fitou e indagou:<br />

384


- Aquele homem sou eu?<br />

- Você se recorda?<br />

Peter respondeu, entre lágrimas, olhan<strong>do</strong> para Elvira:<br />

- Sim, eu me lembro, me lembro de tu<strong>do</strong>.<br />

Agachou-se e chorou, com a cabeça colada aos joelhos. Elvira acercou-se<br />

daquele que fora seu primo há muitos milênios, em Capela, e com amor e <strong>do</strong>çura<br />

esclareceu:<br />

- Viemos aqui hoje, Ferdinan<strong>do</strong>, para nos despedir de você e convidá-lo a<br />

repensar suas atitudes.<br />

- Despedir?<br />

- Não vai demorar para que regressemos ao sistema de Capela. Logo completaremos<br />

nossa tarefa na Terra e pretendemos retornar.<br />

- Você também, Ernesto?<br />

- Sim, meu irmão, o momento se aproxima. Ernesto fez pequena pausa antes<br />

de prosseguir:<br />

- A Terra passa por importante fase de transição. Prepara-se para ascender<br />

na escala <strong><strong>do</strong>s</strong> mun<strong><strong>do</strong>s</strong> e tornar-se um planeta de regeneração, onde as leis de<br />

Deus governarão os homens e, finalmente, os ensinos deixa<strong><strong>do</strong>s</strong> por Jesus serão<br />

aceitos e vivi<strong><strong>do</strong>s</strong>. No entanto, o planeta vive neste momento o Armage<strong>do</strong>m<br />

profetiza<strong>do</strong> por João, no Apocalipse: a luta entre o bem e o mal se trava por<br />

toda parte. Essa luta, que muitos julgam ser entre as nações e Deus, de fato já<br />

acontece, envolven<strong>do</strong> os poderosos da Terra e to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que insistem em<br />

violar as leis divinas que comandam o Universo. Os homens são influencia<strong><strong>do</strong>s</strong><br />

por inteligências infernais apegadas ao mal, que, pelo orgulho que alimentaram<br />

ao longo <strong><strong>do</strong>s</strong> milênios, acreditam ser possível opor-se indefinidamente ao<br />

bem e ao Cria<strong>do</strong>r. Ao término dessa luta, até ingênua, to<strong><strong>do</strong>s</strong> os que insistirem<br />

em permanecer longe de Deus e de seus ensinamentos - independentemente da<br />

crença religiosa que abracem - serão exila<strong><strong>do</strong>s</strong> da Terra e leva<strong><strong>do</strong>s</strong> para planetas<br />

primitivos, para ali encetarem a trajetória de regresso ao Cria<strong>do</strong>r. Repete-se,<br />

dessa forma, aquilo que ocorreu em nosso orbe.<br />

Ernesto fez outra pausa, e depois continuou:<br />

- Centenas de almas estão deixan<strong>do</strong> o planeta to<strong><strong>do</strong>s</strong> os dias, conduzidas<br />

para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> primitivos. Infelizmente, muitos de nossos irmãos de Capela ainda<br />

não conseguiram alinhar-se com as leis de Deus e são novamente bani<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />

para mais uma vez recomeçar em mun<strong><strong>do</strong>s</strong> em início de evolução.<br />

Ernesto fitou Peter com imenso carinho e prosseguiu:<br />

- Partiremos em breve, Ferdinan<strong>do</strong>, mas antes queríamos ter uma última<br />

conversa com você.<br />

Ernesto calou-se, emociona<strong>do</strong>. Elvira aproximou-se e disse:<br />

385


- Estamos muito preocupa<strong><strong>do</strong>s</strong>. Desejamos que consiga fazer seu trabalho<br />

de renovação interior para o bem e que continue na Terra. Ser envia<strong>do</strong> outra<br />

vez para um planeta primitivo significará estacionar em suas possibilidades e<br />

acrescentar <strong>do</strong>r e sofrimento à sua alma. Já não foi suficiente, Ferdinan<strong>do</strong>? Por<br />

que rebelar-se ainda? Você dispõe de to<strong><strong>do</strong>s</strong> os recursos de que precisava: o<br />

conhecimento espiritual, uma companheira que está trabalhan<strong>do</strong> arduamente<br />

para renovar-se, a saúde e a inteligência. Enfim, tem tu<strong>do</strong> para cumprir os<br />

compromissos assumi<strong><strong>do</strong>s</strong> antes de seu regresso ao plano físico, e a grande oportunidade<br />

de alinhar-se com as leis universais.<br />

Ernesto, Elvira e Henrique, pelo intenso amor que dedicavam a Ferdinan<strong>do</strong>,<br />

estavam envoltos em intensa luz. O outro, por sua vez, não conseguia erguer<br />

a cabeça e a segurava entre as mãos. Lembrara-se de tu<strong>do</strong>: <strong><strong>do</strong>s</strong> erros e<br />

sofrimentos, <strong><strong>do</strong>s</strong> compromissos firma<strong><strong>do</strong>s</strong> no plano espiritual antes de reencarnar,<br />

das recomendações e <strong>do</strong> preparo que tinha para enfrentar o momento de<br />

transição da Terra; sobretu<strong>do</strong>, estava consciente de se haver comprometi<strong>do</strong> a<br />

contribuir nessa passagem decisiva. Quanto mais as lembranças afloravam em<br />

sua mente, mais ele chorava, desola<strong>do</strong>.<br />

Elvira e Ernesto se mantiveram cala<strong><strong>do</strong>s</strong>, até que Ferdinan<strong>do</strong> ergueu a cabeça.<br />

Incapaz de fitar os benfeitores, apenas gaguejou, entre soluços:<br />

- Falhei novamente...<br />

Ernesto tomou-lhe o braço, enérgico:<br />

- Erga-se e siga em frente! Não chore o passa<strong>do</strong>, construa o futuro. Você<br />

está aqui e ainda pode refazer sua história mudan<strong>do</strong> suas decisões. Tem o destino<br />

nas mãos. Basta que se reerga e decida retornar aos seus deveres, trabalhan<strong>do</strong><br />

com afinco e determinação pela sua própria renovação e para o bem de<br />

to<strong><strong>do</strong>s</strong>. Elvira abraçou o primo.<br />

- Gostaríamos de regressar em sua companhia; já que isso ainda não é possível,<br />

vamos aguardá-lo e sustentá-lo com nossas orações e vibrações de amor.<br />

Ferdinan<strong>do</strong>, que não conseguia enfrentar o olhar de Elvira, questionou:<br />

- Acha mesmo que ainda tenho a possibilidade de fazer algo de verdadeiramente<br />

útil?<br />

- Certamente, se assim quiser. Como encarna<strong>do</strong>, está diante da mais incrível<br />

oportunidade que Deus lhe deu. Aproveite a sua encarnação para o bem.<br />

Permaneça na Terra e siga, junto com o planeta, em sua espiral de ascensão e<br />

progresso.<br />

Após curta interrupção, ela falou, contundente:<br />

- Não desperdice essa oportunidade, que é a última... Para isso, precisa pôr<br />

as ilusões de la<strong>do</strong> e buscar a verdade acima de tu<strong>do</strong>, principalmente a verdade<br />

a respeito de si próprio.<br />

386


Elvira calou-se. Ernesto aproximou-se e abraçou-o com imensa ternura, dizen<strong>do</strong>:<br />

- Decerto no futuro nos encontraremos em Capela. Cabe a você decidir<br />

quanto tempo isso levará. Volto a repetir: o destino está em suas mãos.<br />

To<strong><strong>do</strong>s</strong> permaneceram quietos, embala<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo silêncio da noite. Depois, os<br />

três se despediram de Ferdinan<strong>do</strong>, com forte e emociona<strong>do</strong> abraço, e partiram<br />

de mãos dadas.<br />

O corpo físico de Peter estremeceu na cama, pelo impacto das sensações<br />

que ele vivia em espírito. Despertou assusta<strong>do</strong> e angustia<strong>do</strong>, com o rosto banha<strong>do</strong><br />

em lágrimas. Sentou-se na cama, tentan<strong>do</strong> compreender o que acontecera;<br />

sobretu<strong>do</strong>, em meio às emoções e imagens conturbadas <strong>do</strong> recente encontro,<br />

buscava manter vivas as lembranças.<br />

Ainda que sua mente estivesse turva pelo distanciamento que experimentara<br />

das realidades espirituais, ele sabia da urgência de promover mudanças em<br />

sua vida, tomar outros rumos, ter a humildade de recomeçar, por mais que isso<br />

representasse esforço, vergonha e aban<strong>do</strong>no das ilusões.<br />

Enquanto caminhava até a janela, necessita<strong>do</strong> de ar fresco, ele pensava que<br />

aquele havia si<strong>do</strong> um encontro real. A despeito de não recordar to<strong><strong>do</strong>s</strong> os detalhes<br />

da conversa, trazia nítida impressão das emoções que vivenciara. Depois<br />

de aspirar o ar gela<strong>do</strong> da noite, fitou o céu por longo tempo, procuran<strong>do</strong> intuitivamente<br />

o sistema de Capela. Então fechou a janela e deitou-se. Entretanto,<br />

não conseguiu mais <strong>do</strong>rmir.<br />

Durante os <strong>do</strong>is dias seguintes Peter descansou, mas permaneceu ensimesma<strong>do</strong>.<br />

Decidiu, por fim, voltar com a família para casa, antes da data prevista.<br />

No caminho, ia pensativo e distante, atento às próprias emoções, sentin<strong>do</strong> como<br />

se despertasse de profun<strong>do</strong> sono. Em casa, logo após o jantar, foi para o quarto e<br />

an<strong>do</strong>u de um la<strong>do</strong> a outro, parecen<strong>do</strong> indeciso. Decorri<strong><strong>do</strong>s</strong> alguns momentos de<br />

hesitação, sentou-se na cama, pegou o celular e ligou para Isabela:<br />

- Boa noite, Isabela. Surpresa, ela o cumprimentou:<br />

- Olá, Peter, tu<strong>do</strong> bem?<br />

- Tu<strong>do</strong>. E como estão as coisas aí?<br />

- Estamos to<strong><strong>do</strong>s</strong> bem.<br />

Peter silenciou e ela, perceben<strong>do</strong> a modulação de voz diferente, insistiu:<br />

- Está mesmo tu<strong>do</strong> bem?<br />

- Claro, está tu<strong>do</strong> ótimo.<br />

Seguiu-se novo silêncio, porém dessa vez Isabela manteve-se em expectativa.<br />

Por fim, Peter falou:<br />

387


- Isa - fazia muito tempo que não a chamava pelo apeli<strong>do</strong> -, eu gostaria<br />

muito de ver as crianças no sába<strong>do</strong>. Sei que não é meu dia de visita... E que<br />

estou com saudade...<br />

- Tu<strong>do</strong> bem, Peter. Vou trabalhar no centro espírita no sába<strong>do</strong>, mas náo há<br />

problema; minha mãe estará aqui, você pode vir.<br />

- Vai trabalhar no sába<strong>do</strong>?<br />

- Sim, assumi mais uma tarefa na casa. É uma noite de Evangelho. Sentimos<br />

que estamos precisan<strong>do</strong> muito dele neste momento que o nosso planeta<br />

vive, e resolvermos ampliar essa luz, implantan<strong>do</strong> aos sába<strong><strong>do</strong>s</strong> um novo trabalho<br />

aberto ao público.<br />

- Você não se cansa?<br />

- Sim, bastante; mas minhas energias se renovam ao sentir a atuação luminosa<br />

de nossos orienta<strong>do</strong>res espirituais.<br />

- E claro... Então... vou ver as crianças no sába<strong>do</strong>.<br />

- Está certo. Vou deixar minha mãe avisada.<br />

Despediram-se. Ao desligar, Isabela teve certeza de que algo estava acontecen<strong>do</strong><br />

com o ex-mari<strong>do</strong>. No sába<strong>do</strong>, estava sentada à mesa, inician<strong>do</strong> o comentário<br />

da lição <strong>do</strong> Evangelho que fora lida, quan<strong>do</strong> viu Peter entrar no salão.<br />

Ele evitou fitá-la diretamente; procurou um lugar no fun<strong>do</strong> e acomo<strong>do</strong>u-se.<br />

Embora à entrada dele o coração de Isabela batesse descompassa<strong>do</strong>, ela prosseguiu<br />

em sua atividade. No final, procurou por Peter e ao vê-lo disse:<br />

- Que surpresa, não o esperava aqui.<br />

Ele beijou-a na face e respondeu, sorrin<strong>do</strong>:<br />

- Foi um lin<strong>do</strong> comentário, Isa.<br />

- Agradeço, em nome daqueles que o fizeram. Não foi meu, só colaborei<br />

no que me foi possível. Temos muitos amigos espirituais trabalhan<strong>do</strong> conosco.<br />

Eles tecem lin<strong><strong>do</strong>s</strong> comentários em todas as nossas tarefas dedicadas ao Evangelho<br />

de Jesus.<br />

Peter não respondeu, apenas sorriu. Enquanto caminhavam pelo corre<strong>do</strong>r,<br />

em direção ao estacionamento, indagou:<br />

- Como andam as atividades da instituição?<br />

- Temos muito trabalho. Há inúmeras pessoas necessitadas de tu<strong>do</strong>... Você<br />

sabe, Peter, as pessoas estão muito carentes de orientação e auxílio. Precisam<br />

encontrar algo em que acreditar, para fortalecer sua fé em Deus. A abençoada<br />

Doutrina Espírita tem ajuda<strong>do</strong> centenas e centenas de pessoas a obter respostas<br />

para as dúvidas fundamentais que atormentam to<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens; com isso, traz<br />

paz aos seus corações, consolo e uma fé cada vez mais vigorosa, porque baseada<br />

na razão e não apenas em emoções instáveis.<br />

Ele a ouviu atento e, ao chegarem aos automóveis, perguntou:<br />

388


- Acha mesmo que o momento pelo qual passamos é o da grande transição<br />

da Terra?<br />

- Estou convencida disso. Continuo ten<strong>do</strong> aqueles sonhos premonitórios e,<br />

infelizmente, eles sempre se realizam. Você sabe o quanto isso me perturbou, a<br />

princípio. Agora, depois de tantas experiências que tive, procuro contribuir<br />

como posso, oran<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que está ao meu alcance para colaborar<br />

com o Mestre, na árdua tarefa de despertar a consciência humana.<br />

Ele afastou alguns fios de cabelo que, com o vento, cobriam o rosto de Isabela<br />

e disse, carinhoso:<br />

- Você está diferente, mais madura. Está linda, Isabela. Ela sorriu, procuran<strong>do</strong><br />

desviar a conversa para outro rumo:<br />

- Esteve com as crianças?<br />

- Ainda não. Se não se importar, irei com você e... quem sabe, podemos<br />

jantar juntos...<br />

- Será um prazer.<br />

O jantar foi tranqüilo. Juliana e Marcos estavam felizes com a presença <strong>do</strong><br />

pai e o menino não se cansava de abraçá-lo. Brincaram muito, e Peter comentou<br />

com Isabela:<br />

- São crianças amorosas e educadas. Você está fazen<strong>do</strong> um excelente trabalho,<br />

Isa. Meus parabéns.<br />

Não deixan<strong>do</strong> escapar o ensejo, ela comentou:<br />

- Seria ainda melhor se você passasse mais tempo com eles. Ele a encarou,<br />

sério.<br />

- É o que desejo. Aliás, acho que preciso mudar muitas coisas... Fez-se silêncio<br />

entre os <strong>do</strong>is, até que ele prosseguiu:<br />

- Isa, tenho pensa<strong>do</strong> bastante em minha vida, nos últimos dias. Estou angustia<strong>do</strong><br />

e acho que tenho de fazer muitas mudanças. Por outro la<strong>do</strong>, mudar<br />

parece algo tão difícil, tão penoso, que sinto como se tivesse uma montanha<br />

enorme sobre mim e devesse removê-la com minhas próprias forças. A montanha<br />

é gigantesca... Parece que não vou conseguir.<br />

Ele baixou a cabeça pensativo; depois, olhan<strong>do</strong>-a, disse:<br />

- Acho que fiz algumas escolhas equivocadas, e me sinto sem forças para<br />

procurar o caminho de volta...<br />

Fixan<strong>do</strong> os lin<strong><strong>do</strong>s</strong> olhos azuis <strong>do</strong> homem que amava, Isabela falou, inspirada<br />

por amigos espirituais que ali se encontravam:<br />

- Nada é impossível se você for perseverante. Deus nos concede aquilo que<br />

pedimos. Peça e ele lhe dará as forças que lhe faltam para obter êxito no que<br />

sente que deve fazer.<br />

389


- Não sei nem por onde devo começar... Isabela pensou por instantes e então<br />

sugeriu:<br />

- Por que não faz uma visita a Uberaba, no Triângulo Mineiro, para viver<br />

um pouco da atmosfera daqueles que conviveram com Chico Xavier, e que até<br />

hoje laboram no Espiritismo?<br />

- Por que ir até Uberaba? - ele questionou.<br />

- Ali ainda jorra uma fonte cristalina <strong>do</strong> Cristianismo primitivo, verten<strong>do</strong><br />

como água pura da nascente para to<strong><strong>do</strong>s</strong> aqueles que desejarem dela beber e que<br />

se dispuserem ao esforço efetivo pela própria renovação interior. Só essa renovação<br />

poderá ajudar o homem no momento de transição <strong>do</strong> planeta, esteja ele<br />

encarna<strong>do</strong> ou fora <strong>do</strong> corpo denso.<br />

Ele refletiu e depois perguntou, hesitante:<br />

- Você viria comigo?<br />

- Poderia ir, se levarmos toda a família. Não agüentaria ficar longe das<br />

crianças por muito tempo.<br />

- Então vou levar minha mãe, para ajudar com as crianças.<br />

- Por mim, tu<strong>do</strong> bem.<br />

- Sua mãe não se importará?<br />

- Acho que não, isso lhe dará algum tempo para descansar. Combinaram os<br />

detalhes da viagem, que definiram para dali a<br />

duas semanas. Depois de vários preparativos, viajaram para o Brasil. Isabela<br />

trazia o coração cheio de esperanças, enquanto Peter, inseguro e receoso,<br />

sentia culpa e remorso. Sabia que precisava consolidar, de fato, o desejo de<br />

conquistar a força e a humildade imprescindíveis para a renovação interior; só<br />

assim reencontraria o caminho para o verdadeiro sucesso: o amadurecimento<br />

espiritual.<br />

* *****<br />

Algum tempo depois, Elvira, Ernesto e Henrique participaram de linda festa<br />

de despedida a um grupo de espíritos que se preparava para regressar ao<br />

sistema de Capela. Estavam reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> em sublime cerimônia presidida por Jesus.<br />

Nela, o grande mensageiro de Deus alegrava-se com aqueles irmãos que<br />

haviam colabora<strong>do</strong> em sua luta pelo progresso planetário.<br />

Mais tarde, naquela mesma noite, numeroso grupo de capelinos deixava o<br />

orbe da Terra. Para Ernesto também, logo estaria encerra<strong>do</strong> o exílio. Então,<br />

viveriam de fato juntos para sempre, prosseguin<strong>do</strong> no caminho ascendente de<br />

crescimento espiritual, para Deus, no mun<strong>do</strong> abençoa<strong>do</strong> que já atingira a fase<br />

de regeneração na qual o amor e a fraternidade regiam as almas e os corações.<br />

390


Felizes, Elvira, Ernesto e Henrique observavam seus irmãos partirem. De<br />

repente o semblante de Ernesto ficou sério, e Henrique comentou:<br />

- Está preocupa<strong>do</strong> com Ferdinan<strong>do</strong>.<br />

- Sim, Henrique, eu me sentiria mais feliz se ele pudesse retornar conosco...<br />

Infelizmente, suas escolhas, até agora, o levaram a caminho diferente.<br />

Henrique indagou:<br />

- O que acha, Elvira? Ele vai conseguir ficar na Terra? Ou sucumbirá de<br />

novo e acabará por ser exila<strong>do</strong> outra vez, como tantos de nossos irmãos de<br />

Capela que, junto com irmãos da Terra, estão sen<strong>do</strong> transferi<strong><strong>do</strong>s</strong> compulsoriamente<br />

para mun<strong><strong>do</strong>s</strong> primitivos?<br />

Elvira se manifestou prontamente:<br />

- Só Deus tem a resposta, não é Henrique? O certo é que Ferdinan<strong>do</strong> tem<br />

todas as condições para o pleno êxito de sua encarnação.<br />

Tu<strong>do</strong> lhe foi da<strong>do</strong> para que triunfasse sobre si mesmo. Ele está despertan<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> torpor em que mergulhou, mas ainda pode fazer o esforço pela renovação e<br />

mudar, permanecen<strong>do</strong> na Terra, essa morada luminosa preparada por Jesus<br />

para os seus irmãos muito ama<strong><strong>do</strong>s</strong>. A escolha é e será sempre dele próprio. Por<br />

isso, nós não podemos ter certeza; isso compete somente ao Cria<strong>do</strong>r. Vamos<br />

continuar oran<strong>do</strong> por ele e envian<strong>do</strong>-lhe nossos pensamentos de afeto e desejos<br />

de sucesso.<br />

Os três se uniram, enlaçan<strong>do</strong> os braços, e contemplaram o planeta com extrema<strong>do</strong><br />

carinho. Naquele instante de alegria, oraram a Deus, pedin<strong>do</strong> que abençoasse<br />

o lin<strong>do</strong> orbe azul em seu momento de transição, bem como os seus<br />

habitantes. Depois, observaram o grupo de capelinos que partia. À medida que<br />

se afastavam, deixavam atrás de si, no imenso negro <strong><strong>do</strong>s</strong> céus, rastros luminosos<br />

que se confundiam com o cintilar das estrelas. Regressan<strong>do</strong> à constelação<br />

de Capela, enfim reuni<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo amor e com o coração transbordante de gratidão<br />

a Jesus, sentiam-se igualmente uni<strong><strong>do</strong>s</strong> a ele para sempre.<br />

FIM<br />

391


É NECESSÁRIO ACORDAR<br />

Grande número de adventícios ou não aos círculos <strong>do</strong> Cristianismo acusa<br />

fortes dificuldades na compreensão e aplicação <strong><strong>do</strong>s</strong> ensinamentos de Jesus.<br />

Alguns encontram obscuridades nos textos, outros perseveram nas questiúnculas<br />

literárias, inquietam-se, protestam e rejeitam o pão divino pelo envoltório<br />

humano de que necessitou para preservar-se na Terra.<br />

Esses amigos, entretanto, não percebem que isso ocorre, porque permanecem<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, vítimas de paralisia das faculdades superiores.<br />

Na maioria das ocasiões, os convites divinos passam por elas, sugestivos e<br />

santificantes; todavia, os companheiros distraí<strong><strong>do</strong>s</strong> interpretam-nos por cenas<br />

sagradas, dignas de louvor, mas depressa relegadas ao esquecimento. O coração<br />

não adere, <strong>do</strong>rmitan<strong>do</strong> amorteci<strong>do</strong>, incapaz de analisar e compreender.<br />

A criatura necessita indagar de si mesma o que faz, o que deseja, a que<br />

propósitos atende e a que finalidades se destina. Faz-se indispensável examinar-se,<br />

emergir da animalidade e erguer-se para senhorear o próprio caminho.<br />

Grandes massas, supostamente religiosas, vão sen<strong>do</strong> conduzidas, através<br />

das circunstâncias de cada dia, quais fileiras de sonâmbulos inconscientes.<br />

Fala-se em Deus, em fé e em espiritualidade, qual se respirassem na estranha<br />

atmosfera de escuro pesadelo. Sacudidas pela corrente incessante <strong>do</strong> rio da<br />

vida, rolam no turbilhão <strong><strong>do</strong>s</strong> acontecimentos, enceguecidas, <strong>do</strong>rmentes e semimortas<br />

até que despertem e se levantem, através <strong>do</strong> esforço pessoal, a fim de<br />

que o Cristo as esclareça.<br />

Emmanuel / Francisco Cândi<strong>do</strong> Xavier "Pão Nosso"<br />

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