13.04.2013 Views

3 ENSINO & PESQUISA, NÚMERO 6 / 2009 - IEPS

3 ENSINO & PESQUISA, NÚMERO 6 / 2009 - IEPS

3 ENSINO & PESQUISA, NÚMERO 6 / 2009 - IEPS

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>ENSINO</strong> & <strong>PESQUISA</strong>, <strong>NÚMERO</strong> 6 / <strong>2009</strong><br />

3


FACULDADE ESTADUAL DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE UNIÃO DA VITÓRIA<br />

<strong>IEPS</strong> - INSTITUTO DE <strong>ENSINO</strong>, <strong>PESQUISA</strong> E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS<br />

EXPEDIENTE<br />

<strong>ENSINO</strong> E <strong>PESQUISA</strong>, n. 6 / <strong>2009</strong><br />

ISSN 1676-1030<br />

Realização<br />

FAFI Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras - UVA<br />

<strong>IEPS</strong> Instituto de Ensino, Pesquisa e Prestação de Serviços<br />

Apoio<br />

Fundação Araucária<br />

DIREÇÃO DA FAFIUV<br />

Professor Valderlei Garcias Sanchez<br />

VICE-DIREÇÃO DA FAFIUV<br />

Professora Leni T. Gaspari<br />

DIREÇÃO DO <strong>IEPS</strong><br />

Professor Eloi Tonon<br />

COORDENAÇÃO GERAL DA REVISTA<br />

Professor André da Silva Bueno<br />

CAPA & DIAGRAMAÇÃO<br />

Fernando Gohl e André Bueno<br />

Os Artigos presentes nesta Revista foram produzidos por Docentes desta IES<br />

e/ou convidados especiais, sendo os textos dos mesmos de inteira<br />

responsabilidade dos seus autores.<br />

4


SUMÁRIO<br />

A LINGÜÍSTICA TEXTUAL E ESTABELECIMENTO DO ESTATUTO DO<br />

TEXTO: UMA VISÃO COGNITIVISTA DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇAO<br />

TEXTUAL, por Atilio Augustinho Matozzo<br />

GOYA, por Ana Paula Such 18<br />

JOGO COM O "THRILLER" POLICIAL EM ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?<br />

UM ROMANCE B, DE CAIO FERNANDO ABREU, por Bárbara Cristina<br />

Marques<br />

ERNESTO SÁBATO E A ARTE DE RESISTIR, por Inês Skrepetz 27<br />

A MÃO ESQUERDA E O TRISTE TEMPO: DENÚNCIA SOCIAL E<br />

ANTROPOLOGIA HISTÓRICA EM À MÃO ESQUERDA DE FAUSTO WOLFF,<br />

por Emerson Pereti<br />

35<br />

MACÁRIO: UMA PEÇA EXPRESSIONISTA?, por Miguel Heitor Braga Vieira 41<br />

O TEMPO NOS ARQUÉTIPOS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, por Josoel<br />

Kovalski<br />

46<br />

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE HIBRIDISMO E IDENTIDADE EM O<br />

PACIENTE INGLÊS, DE MICHAEL ONDAATJE, por Juliana Pessi Mayorca<br />

LEGISLATIVO MUNICIPAL NUMA PERSPECTIVA PROSOPOGRÁFICA: O<br />

50<br />

CASO DO MUNICÍPIO DE TRÊS BARRAS-SC., por Soeli Regina Lima<br />

ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA <strong>PESQUISA</strong> E<br />

PRODUÇÃO CIENTÍFICA, por Clovis Roberto Gurski, Carla Andréia<br />

Lorscheider e Giseli Padilha<br />

CORRELAÇÃO ENTRE CONDIÇÕES DE SANEAMENTO BÁSICO E<br />

PARASITOSES INTESTINAIS EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES DE 0 A 15<br />

ANOS DA VILA ESPERANÇA, DO BAIRRO RIO D’AREIA EM UNIÃO DA<br />

VITÓRIA – PARANÁ, por Camila Juraszeck e José Jaison Chaves<br />

PARTÍCULAS ELEMENTARES, por Célio Fernando Lipinski<br />

5<br />

06<br />

22<br />

55<br />

61<br />

66<br />

e Erna Gohl 71<br />

EDUCAÇÃO QUÍMICA, CULTURA E SOCIEDADE: O <strong>ENSINO</strong> DE QUÍMICA E<br />

A SIGNIFICAÇÃO DA ESCOLA NO BRASIL, por Keller Paulo Nicolini e<br />

Geronimo Wisnieswski<br />

76<br />

VIDA E MORTE DE GALOIS, por Gilson Tumelero e Marieli Musial 78<br />

CURRÍCULO ESCOLAR X PRÁTICA ESCOLAR, por Viviane Maria Forstner<br />

Matozzo<br />

AS PORTAS DO TEMPO E O BESTIÁRIO DE JULIO CORTÁZAR, por Maria<br />

81<br />

Cristina Ferreira dos Santos<br />

AGROECOLOGIA, QUEBRANDO PARADIGMAS SOCIAIS E AMBIENTAIS,<br />

por João A. Scaramella Silva<br />

85<br />

91


A LINGÜÍSTICA TEXTUAL E ESTABELECIMENTO DO ESTATUTO DO TEXTO: UMA VISÃO COGNITIVISTA<br />

DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇAO TEXTUAL<br />

1 Introdução<br />

Atilio Augustinho Matozzo (PG-UFPR/GenTE/FAFIUV) 1<br />

A constituição de um campo dedicado exclusivamente ao estudo do texto, bem como a falta de<br />

perspectiva das gramáticas frasais, provoca uma grande evolução nos estudos da linguagem na década de 60. O<br />

berço da Lingüística Textual fora desenvolvido, primeiramente, na Europa (principalmente na Alemanha). Segundo<br />

Koch e Fávero (1983), a idéia principal consistia em pegar o texto como objeto de investigação não mais a palavra<br />

ou frase, justamente por serem os textos as formas específicas de manifestação da linguagem.<br />

Não demorou muito para que o surgimento de uma rica bibliografia sobre o assunto aparecesse e<br />

chamasse a atenção de grandes pesquisadores, entre eles Isenberg, Dressler e Van Dijk. Em pouco tempo,<br />

muitos congressos e revistas especializadas surgem dando ênfase à lingüística de texto. Com isso, são<br />

produzidos dicionários e enciclopédias sobre o assunto, as quais comentavam e ampliavam resultados sobre a<br />

nova área de pesquisa.<br />

A origem do termo Lingüística Textual (doravante LT) pode ser encontrada em Cosériu (1955) 2 , embora o<br />

sentido atual venha de Weinrich (1967) 3 . Assim, desde sua origem a LT desenvolveu uma grande diversidade de<br />

concepções, justamente pelo elevado número de autores e correntes bastante variadas que se formaram no<br />

decorrer dos anos.<br />

Duas grandes propriedades textuais compuseram, em larga escala, a base das pesquisas em LT: (a) a<br />

coesão, microtextualmente, responsável pela articulação textual a partir dos elementos da superfície do texto,<br />

essa articulação se dá por recursos lingüísticos concentrados no conhecimento estrutural do sujeito produtor de<br />

texto, movimento esse que, segundo Koch (2004), é o responsável pela tessitura textual; (b) a coerência que, de<br />

forma macrotextual, representa o nível de conexão conceitual e a estruturação do sentido, passando, a partir da<br />

década de 80, a ser vista através de uma perspectiva pragmático-enunciativa, passando a postular como um<br />

campo de interação entre texto e leitor.<br />

As pesquisas em LT apresentaram muitas concepções de textos, concepções que englobavam desde<br />

teorias estruturalistas, as quais vêem o texto como frase complexa ou signo lingüístico mais alto na hierarquia do<br />

sistema lingüístico, até, atualmente, teorias como a sociointeracionista que propõe que o texto é um lugar de<br />

interação, assim como de construção interacional de sentidos. Essas concepções corroboram para a incorporação<br />

de uma nova visão textual que surge com a evolução dos estudos sobre os processos de referenciação, coerência,<br />

estudos dos textos falados, estudos dos gêneros, entre outros. Hoje, temos uma LT totalmente renovada e<br />

evoluída.<br />

Assim, de forma ensaística, trataremos em nosso trabalho de três pontos específicos, os quais envolvem a<br />

lingüística de texto: primeiramente nos detemos na examinação e debate das conceituações em torno do conceito<br />

de texto – problematizando algumas discussões a cerca dos elementos composicionais, como: coesão e<br />

coerência e textualidade -, levamos em consideração os processos sócio-históricos que envolvem a<br />

produção/percepção do texto, levantamos algumas argumentações em torno da visão oferecida pela LT aos<br />

estudos dos gêneros textuais/discursivos e dos tipos textuais – ou arquétipos – nas últimas duas décadas;<br />

posteriormente, centramos a discussão no conceito de referenciação textual, a partir dos modelos propostos por<br />

Cavalcante (2004a, 2004b), Marcuschi (2001), entre outros; por fim, desenvolvemos uma análise textual de três<br />

gêneros diferentes, com seqüências textuais diferentes, porém que tratam do mesmo assunto (tópico) a pipa,<br />

nossa análise está ancorada nos processos de referenciação (anáforas diretas e indiretas).<br />

2 A reconfiguração dos estudos do texto: dos processos de textualidade à visão dos gêneros<br />

textuais/discursivos e das seqüências textuais<br />

2.1 O que define mesmo um texto? O jogo textual estabelecido pelos movimentos de coesão e coerência.<br />

Com o desenvolvimento da Lingüística Textual, o texto ganha uma abrangência significativa, o que leva ao<br />

surgimento de várias correntes as quais têm o texto como objeto de estudos. Aos poucos a preocupação com os<br />

1<br />

Mestrando em Estudos Lingüísticos pela UFPR. Professor de Lingüística na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e<br />

Letras de União da Vitória, Paraná. Coordenador do Grupo de Pesquisa e Estudos GenTE (Gêneros Textuais e Ensino de<br />

Língua Materna e Estrangeira). Pesquisador do Grupo de Pesquisa GPELLP – UFTM (Grupo de Pesquisa em Lingüística e<br />

Língua Portuguesa).<br />

2<br />

COSÉRIU, E. Determinación y Etorno: dos problemas de una lingüística del hablar. Romanistisches Jahrbuch, 1955.<br />

3<br />

WEINRICH, H. Linguistik der lüge. Heidelberg: Verlang Lambert Schneider, 1967.<br />

6


enunciados isolados (processos puramente sintáticos) é deixada de lado, pois o que interessaria, a partir de então,<br />

era o conjunto de enunciados interligados, responsáveis pela formação do texto. Mas, mesmo assim, a estrutura<br />

não é abandonada, ainda é parte integrante dos estudos textuais, já que seria ela – com base na gramática como<br />

estruturadora da língua – que garantiria o aperfeiçoamento e a seqüenciação do texto, num movimento interno do<br />

processamento textual.<br />

O envolvimento de processos, como os de pronominalização e da seleção de artigos, marcam o início dos<br />

estudos estruturalistas/gerativistas do texto. Porém, os gerativistas percebem que a gramática (da frase) não daria<br />

conta de explicar os fenômenos textuais, pois sua preocupação limitava-se à sentença, assim, surgem as<br />

gramáticas de texto 4 , que têm como função principal estabelecer os limites do que é ou não um texto. Segundo<br />

Fávero e Koch (1983), qualquer falante é capaz de distinguir um texto de um amontoado de frases, é capaz,<br />

também, de resumi-lo, parafraseá-lo, bem como de perceber se está completo ou incompleto, isso tudo é possível<br />

através da competência textual 5 .<br />

A existência de uma competência textual, de certa forma, mescla-se à criação das gramáticas de texto,<br />

pois os falantes são capazes de realizar inúmeros processos textuais, produzindo trechos interligados, repletos de<br />

significados, formando um texto, usando, assim, o conhecimento semântico de leitor/produtor – conhecimento de<br />

mundo –, ativando processos cognitivos que realizam um jogo de significações. Pensando nisso, o escritor sempre<br />

faz apostas significativas, numa tentativa de prever quem será seu leitor, fazendo uso de um jogo lexical. A<br />

explicação para esses processos mentais são encontradas na corrente cognitivista, a qual segundo Koch (2004),<br />

vê o texto como resultado de processos mentais, que ativam saberes acumulados a partir de inúmeros processos<br />

comunicativos/interativos anteriores.<br />

Com o desenvolvimento da corrente cognitiva, o contexto marca um processo a ser explorado no estudo<br />

do sentido/significado. No mesmo plano temos o desenvolvimento da coerência textual como uma competência<br />

cognitiva, tendo como função principal, num primeiro momento, a atribuição de significados ao texto. O<br />

desenvolvimento dos processos cognitivos, segundo Marcuschi (2007), são inalienáveis a qualquer forma de<br />

interação e produção de sentido a partir do estabelecimento de um contexto. O ativamento dos textos no cérebro<br />

de cada sujeito se dá em forma de enquadramentos de conhecimentos contextuais/semânticos, aproximando o<br />

leitor e seu conhecimento de mundo aos processos referenciais e inferenciais produzidos pelo enunciador como<br />

elementos de constituição de sentido, realizando, dessa forma, um jogo textual.<br />

Geralmente, em nossas leituras diárias, encontramos pistas deixadas no texto, são marcas que nos levam<br />

à compreensão. A marcação se dá através da interligação interna, promovida pelo processo de coesão, que tem<br />

como principal função dar prosseguimento ao texto, ajudando na concepção do sentido (coerência), isso acaba<br />

causando inúmeros problemas teóricos dentro da Lingüística Textual. Para muitos lingüistas de texto a coesão é<br />

fundamental para que exista o texto, para outros a coerência é o que o determina. Mas não é de nosso interesse,<br />

pelo menos no momento, a discussão desses desacordos, por isso, assumimos, em nosso trabalho, uma posição<br />

que privilegia ambos os conceitos como elementos fundamentais de um texto, já que o sentido é fundamental,<br />

assim como a estrutura interna, além, é claro dos processos textuais centrados nos interactantes/leitores/ouvintes.<br />

Para melhor compreendermos o envolvimento desses dois processos textuais, vejamos o exemplo 6 a seguir:<br />

(1) No dia 24 de maio de 1863, meu tio, o professor Lidenbrock, voltou apressadamente para a<br />

sua pequena casa na rua Koning, 19, num velho bairro de Hamburgo. Percebi que Marta, a<br />

nossa cozinheira, estava atrasada com as panelas, e disse para mim mesmo:<br />

“Bem, se meu tio estiver com fome, ela vai ouvir gritos terríveis”.<br />

(VERNE, Júlio. Viagem ao centro da terra. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint LTDA, 1989. p. 9)<br />

Temos aqui um breve trecho do capítulo inicial de uma das mais importantes obras da literatura universal.<br />

Destacamos algumas ocorrências interessantes, que marcam o processo contextual e significativo realizado pela<br />

narração do sobrinho do professor Lidenbrock, Axel. Conseguimos notar que a movimentação textual realizada<br />

pelo escritor denota informações imediatas, construindo e ativando contextos e significações através de um<br />

movimento básico na Lingüística Textual, o movimento tema-rema realizado pelos sintagmas nominais tio,<br />

4<br />

Por se pensar, na primeira fase da Lingüística Textual nas décadas de 60-70, que o texto era, simplesmente, a unidade<br />

lingüística superior à sentença, surgiram, entre os gerativistas, as gramáticas de texto (análogas às gramáticas da frase), as<br />

quais tinham por função descrever categorias e regras de combinação textual em determinada língua.<br />

5<br />

Assim como a competência lingüística apontada por Chomsky, já que são os gerativistas que desenvolvem as gramáticas de<br />

texto.<br />

6<br />

Escolhemos apenas um parágrafo do primeiro capítulo da obra, justamente para não nos estendermos, já que nosso objetivo<br />

ao exemplificar e não apresentar todos os elementos que caracterizam a coesão e a coerência.<br />

7


professor Lidenbrock, Marta, cozinheira e panelas. Essa ativação/construção também é facilitada pela presença<br />

de elementos dêiticos no texto, como: 24 de maio de 1863; sua pequena casa na rua Koning, 19. Dessa forma, o<br />

leitor, ao chegar à leitura da última linha contextualiza e referencia perfeitamente o enunciado: se meu tio estiver<br />

com fome ao professor Lidenbrock, e o enunciado: ela vai ouvir gritos terríveis, onde ela retoma Marta – a<br />

cozinheira – e os gritos só podem ser do professor. Esses processos de inferenciação, referenciação e<br />

significação são conduzidos pelo movimento de coesão, bem como de coerência, no estabelecido dos sintagmas<br />

e dêiticos. O conhecimento de mundo do leitor/ouvinte é, também, fundamental, já que este deve saber que<br />

atrasada com as panelas representa o ação de cozinhar.<br />

Mas como sabemos que, embora existam relações interdiscursivas, polifônicas e heterogêneas, os textos<br />

nunca são produzidos de forma única, de certo modo, há diferentes formas de conduzir a estrutura/significação<br />

textual. Em alguns casos o leitor precisa acionar muito mais o seu conhecimento mundano, realizando inferências<br />

mais aguçadas, pois as relações coesivas estabelecidas pelos autores podem não ser tão claras. Como, se por<br />

acaso, Júlio Verne resolvesse iniciar o capítulo dessa forma:<br />

(2) Meu tio voltou apressadamente a sua pequena casa. Percebi que Marta estava atrasada com<br />

as panelas, e disse para mim mesmo:<br />

“Bem, se meu tio estiver com fome, ela vai ouvir gritos terríveis” (Nossa adaptação)<br />

No exemplo 2, não temos a relação sintagmática que estabelece quem é o tio, porém, notamos que se<br />

trata de um homem que tem uma casa e um sobrinho – num movimento de inferenciação e acionamento do<br />

conhecimento de mundo –, mas, o problema de contextualização/inferenciação está no sintagma Marta, quem é<br />

ela, empregada? Cozinheira? Irmã do tio, mãe do sobrinho? Uma sobrinha? A forma em que se apresenta o texto,<br />

nesse trecho, não dá pistas de quem seja Marta, a única informação que temos é de que ela está mexendo nas<br />

panelas, inferimos, assim, que está cozinhando, pois ela ouvirá gritos terríveis se a comida não estiver pronta. A<br />

diferença basicamente se instaura nos elementos dêiticos que corroboraram para o estabelecimento de um<br />

contexto temporal anteriormente, no exemplo 1, agora não aparecem, assim, não há uma noção temporal no<br />

trecho adaptado, e na falta dos sintagmas nominais que definiam os sintagmas tio e Marta. Mas, mesmo não<br />

apresentando os mesmo elementos, podemos inferir sentidos, assim como no exemplo 1, o que comprova,<br />

portanto, que o exemplo 2 também é um texto.<br />

Com esses dois exemplos conseguimos perceber que tanto a estrutura textual calcada na organização<br />

interna (forma), realizada através da coesão – relação sintagmática e processos dêiticos, que dão pistas aos<br />

leitores na busca pela significação textual nos exemplos 1 e 2 – e a constituição significativa (função)– baseada no<br />

sentido apresentado nos exemplos 1 e 2 –, calcada na coerência, constroem e determinam o texto. Embora o fato<br />

narrado seja o mesmo, a disposição dos elementos textuais é diferente. Assim, conforme Brown e Yule (1983), o<br />

texto se constitui por dois processos: a coesão e a coerência, além de processos centrados nos leitores: a<br />

textualidade, a qual é representada pelas inferências e conhecimentos de mundo realizados pelos<br />

leitores/ouvintes.<br />

Segundo Beaugrande e Dressler (1981), a textualidade 7 é parte essencial de um texto, pois é um principio<br />

organizacional e comunicativo, que vem de encontro com as relações de interação, constituindo o status do texto.<br />

Dessa forma, os autores apresentam sete padrões para o funcionamento textual, conhecidos como padrões de<br />

textualidade. Dois desses padrões são centrados no texto: a coesão e a coerência; os outros cinco:<br />

intencionalidade; informatividade; aceitabilidade; situcionalidade e intertextualidade são centrados nos<br />

interactantes. Os sete padrões aliam-se a organização interna a uma função comunicativa do texto, já que todo<br />

texto é definido por uma coerência comunicativa que satisfaz os sete padrões de textualidade. Ainda, segundo<br />

Beaugrande e Dressler (1981), se qualquer um desses padrões não é considerado, o texto não é comunicativo.<br />

Sendo assim, segundo os autores, textos não comunicativos são não-textos, embora muitos discordem dessa<br />

posição.<br />

Em contrapartida, temos a postulação de Halliday e Hasan (1976) que conceituam o texto como uma<br />

unidade semântica; não de forma, mas de significado, na produção da tessitura 8 , a qual representa outra marca<br />

textual e que é estabelecida através dos movimentos internos – coesivos – dos textos. Essa visão influencia os<br />

trabalhos de vários pesquisadores da área, entre eles Ingedore Koch e Leonor Fávero.<br />

7<br />

O conceito proposto por Beaugrande e Dressler (1981), apresenta uma posição diferenciada de seus antecedentes, essa<br />

posição influenciou inúmeros pesquisadores brasileiros.<br />

8<br />

A tessitura, segundo Halliday e Hasan (1976), é compreendida como o definidor da propriedade textual, isto é, distingue o<br />

texto do que não é texto.<br />

8


A construção de diversas visões sobre o mesmo objeto desenvolve um arcabouço teórico muito vasto, que<br />

são divididos, segundo Koch (2004), em perspectivas que perpassam toda a teoria lingüística. Hoje, a Lingüística<br />

Textual apresenta correntes definidas de estudo, embora ocorressem evoluções, os grupos e vertentes elegeram<br />

seu objeto com base em outro objeto, ou seja, a partir do texto, o que possibilita o estudo dos movimentos internos<br />

e externos, dependendo da visão que se adota. Adotamos, então, a visão de texto como um produto social,<br />

desenvolvido com base num processo de interação, que se manifesta em forma de gêneros textuais/discursivos 9 ,<br />

levando em consideração os movimentos internos e externos do texto, ou seja, através de uma forma e de uma<br />

função. Já que não existe um saber unificado em torno de texto.<br />

2.1 A representação textual através dos gêneros textuais/discursivos e dos tipos textuais: uma discussão<br />

Retomado das antigas retórica e poética, passando pelas releituras bakhtinianas, a noção de gênero tem<br />

sido objeto de reflexão e estudos de numerosas escolas e vertentes do discurso e dos estudos da linguagem de<br />

modo geral, dando trabalho a muitos lingüistas, analistas do discurso e lingüistas aplicados.<br />

A verdade é que os gêneros se transformaram em um modismo no campo de estudos do texto e do<br />

discurso, essa moda provocou inúmeras visões distorcidas em torno do conceito de gênero e de texto. A<br />

postulação bakhtiniana de que todo texto se manifesta em forma de gêneros, já que cada campo de utilização da<br />

língua elabora os seus tipos relativamente estáveis de enunciados, foi, e ainda é, mal compreendida, pois para<br />

muitos a noção de texto passou a ser a noção de gêneros e, de alguma forma, negligenciou-se a existência dos<br />

tipos textuais/seqüências textuais.<br />

Os gêneros são modelos, não estanques, pelos quais o texto vem representado e os tipos são estruturas<br />

textuais, divididas, num primeiro momento em seis facetas de produção: narração, argumentação, exposição,<br />

descrição, explicação e injunção. Tanto os gêneros como os tipos textuais constituem as atividades de formulação<br />

textual, compreendendo, justamente, os elementos de textualidade.<br />

Conforme Travaglia (2002, p. 2):<br />

[...] cada modo de interlocução, de interação comunicativa instaura um processo típico,<br />

um funcionamento discursivo distinto que se transforma em um tipo de texto, para<br />

efetivar a comunicação, que como se sabe só acontece por meio de textos.<br />

Dessa forma o texto que se formula para comunicar é sempre de um tipo, isto é, o dizer, seja ele oral ou<br />

escrito, não se realiza fora de um elemento tipológico 10 – tipo e/ou gênero – o qual determina uma série de<br />

elementos na formulação do texto enquanto tal. Portanto, podemos afirmar que ao compor um elemento tipológico<br />

na formulação do texto, essa composição é uma atividade de formulação textual que faz com que tenhamos de<br />

atender inúmeros aspectos para constituir o texto, uma vez que cada elemento tipológico tem características de<br />

estrutura e composição que lhe são próprias e distintas das de outros elementos.<br />

Assim, a construção textual sempre apresentará duas propriedades distintas, o gênero e o tipo.<br />

Geralmente, no mesmo gênero há mais de um tipo, podendo, ou não haver a predominância de um tipo em<br />

especial, como, por exemplo, no gênero receita, temos a predominância da injunção, caracterizando uma ordem.<br />

Marcuschi (2002, p. 22) defende a idéia de que: “é impossível se comunicar verbalmente a não ser por<br />

algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto”, a base para essa<br />

afirmação é encontrada em Bakhtin (2003) e, também em Bronckart (2007), que postulam uma visão de língua<br />

como um processo social, integrado às ações sociointerativas que envolvem a comunicação humana.<br />

Segundo Marcuschi (2002, p. 22) as diferenças básicas entre tipo e gênero são:<br />

a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de seqüência<br />

teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição {aspectos lexicais,<br />

sintáticos, tempos verbais, relações lógicas}. Em geral, os tipos textuais abrangem<br />

cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação,<br />

exposição, descrição, injunção.<br />

b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para<br />

referir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que<br />

representam características sócio-cumunicativas definidas por conteúdos, propriedades<br />

9<br />

Postulamos essa terminologia por acreditarmos que as diferenças, embora existentes, sejam mínimas na manifestação<br />

textual.<br />

10<br />

Conforme Travaglia (2002), os elementos tipológicos pode ser o gênero e/ou os tipos de textuais, bem como subgêneros e<br />

subtipos, os quais são selecionados no processo de construção textual.<br />

9


funcionais, estilo e composição característica. Se os tipos textuais são apenas meia<br />

dúzia, os gêneros são inúmeros. (grifos do autor)<br />

A noção de texto reaparece, apontando novas visões em torno de seu estudo, essa evolução é notória em<br />

Bronckart (2007), que embora apresente uma noção de texto bastante conhecida, oriunda dos estudos de Labov<br />

na sociolingüística, recategoriza-a acoplando novos pressupostos à “velha” noção de texto como unidade<br />

comunicativa de nível superior.<br />

Bronckart (2007, p. 137) segue, praticamente, o mesmo caminho de Bakhtin, ao afirmar que:<br />

Na escala sócio-histórica, os textos são produtos da atividade de linguagem em<br />

funcionamento permanente nas formações sociais: em função de seus objetivos,<br />

interesses e questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de<br />

texto, que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que sejam<br />

chamadas de gêneros de texto) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos<br />

indexados, para os contemporâneos e para as gerações posteriores.<br />

O que Bronckart propõe é que os modelos de texto estão no mundo, basta fazermos uso deles, já que<br />

conhecemos os procedimentos de produção, embora muitos membros das mais diferenciadas comunidades<br />

discursivas tenham dificuldades com os modelos (de gêneros). Dessa forma, para Bronckart (2007), todo texto<br />

empírico é construído com base num modelo, isto é, ele pertence a um gênero. Porém, o principal interesse de<br />

Bronckart não são os gêneros, mas sim os segmentos textuais, desenvolvidos pelos tipos textuais.<br />

O interacionismo sociodiscursivo bronckartiano apresenta, em sua gênese, quatro tipos básicos de<br />

discurso, herdeiro das reflexões desenvolvidas por Benveniste sobre a situação de enunciação. Segundo<br />

Machado (2005), para interacionismo sociodiscursivo, os tipos de discurso são segmentos de texto ou até mesmo<br />

um texto inteiro, que apresentam características próprias em diferentes níveis: o semântico-pragmático; o<br />

morfossintático; o psicológico; a planificação e o nível do texto. Esses níveis se aplicam aos quatro tipos de<br />

discursos (tipos de texto) propostos por Bronckart: interativo, teórico, relato interativo e narração, caracterizados<br />

como arquétipos textuais.<br />

Apesar das diferenças entre as concepções sobre os tipos textuais aqui representadas por Bronckart e<br />

Marcuschi, ambas as linhas seguem processos discursivo-interacionais marcados no texto. De certa forma, os<br />

processos enunciativos, característicos da comunicação humana, envolvem-se em modelos textuais de mundo: os<br />

gêneros, que são produzidos por processos estruturais e funcionais dentro desses modelos, os tipos. Portanto,<br />

não podemos conceber texto, sem que este pertença a um gênero e, por conseguinte, sem ser estruturado por<br />

tipos de texto. O interessante disso tudo é a presença de uma concepção sócio-histórica e interativa de texto,<br />

diferentemente do antigo esquema textual baseado apenas na coesão e coerência.<br />

Estudar o texto a partir da concepção dos gêneros é uma marca evolutiva que vem se alastrando e<br />

tomando corpo nos estudos da linguagem de modo geral, pois considerar um texto como um reflexo das ações<br />

sociais desenvolvidas por comunidades discursivas mostra, mais uma vez, o inevitável progresso da lingüística de<br />

texto, bem como da lingüística geral. Apesar dos inúmeros equívocos e problemas do mal compreendimento das<br />

concepções, além, da existência/criação de correntes e pesquisas que não conseguem estabelecer um diálogo<br />

proveitoso com outras linhas, criando uma série de subáreas, as quais acabam, às vezes, estudando o mesmo<br />

objeto, mas com nomenclaturas distintas. Infelizmente é o que está acontecendo com a Lingüística Textual e as<br />

outras áreas que se servem dela, entre elas a psicologia, a literatura, a semântica. Não temos espaço suficiente<br />

nesse trabalho para tratarmos desse assunto. Portando, continuamos defendendo a posição de que o texto<br />

precisa sim de múltiplos olhares, mas que estes concordem e facilitem o real entendimento a cerca da verdadeira<br />

noção textual e que levem em consideração as reflexões que estejam calcadas em posições<br />

interativas/comunicativas, já que são essas posições que fazem com que os sujeitos concebam a produção de um<br />

texto.<br />

3 Um esboço das relações referencias: os processos anafóricos<br />

Com a evolução dos estudos da Lingüística Textual, a atenção se volta às guinadas lingüísticas que<br />

causam novas visões no estudo do texto. Entre essas novas visões temos a da coesão referencial, que deixou de<br />

ater-se à resolução de aspectos internos do texto, integrando-se a outras dimensões pragmático-discursivas,<br />

operando na configuração semântica da coerência. O conhecimento de mundo do leitor/interlocutor é fundamental<br />

para a compreensão do texto nesse jogo de interação sócio-cognitiva.<br />

Cavalcante (2004a) concebe o referente como uma representação “fabricada”, a qual existe na realidade,<br />

não como objeto mundano em si mesmo, mas propondo uma ação mútua entre língua e práticas sociais. Aqui<br />

entra a ativação de frames e inferências, retomando o mundo real ou criado pelas expressões referenciais, já que<br />

10


todo referente é, por definição, evolutivo, e seu estatuto informacional está sempre se modificando na memória<br />

discursiva dos interlocutores<br />

As expressões referenciais são constituídas por todas as formas de designação dos referentes, os quais<br />

se diferenciam pela forma como indicam ao co-enunciador como o enunciador pretende que ele identifique ou<br />

interprete o referente, numa atividade cooperativa. Muitas vezes, o co-enunciador tem marcações dêiticas no texto,<br />

o que lhe introduz pistas, como fora apresentado, anteriormente, no exemplo 1.<br />

Koch (2004, p. 51) considera que: “[...] é na dimensão da percepção-cognição que se fabricam os<br />

referentes, os quais, embora destituídos do estatuto lingüístico, vão condicionar o evento semântico”. Isso<br />

comprova que o referente é um evento cognitivo, pois é na prática social que se estabelece a criação de<br />

referentes, o que nos leva a crer que a referenciação é uma atividade sociocognitivo-discursiva com base no<br />

co(n)texto 11 .<br />

A (re)construção de processos discursivo-cognitivos mais amplos podem ser realizados pelo leitor/ouvinte<br />

através da recategorização, que se aplica como um recurso de renomeação, estabelecendo um jogo de interesses<br />

enunciativos dependendo do co(n)texto. Segundo Cavalcante (2004b), a recategorização se ancora num tipo de<br />

remissão a um aspecto co(n)textual, que pode ser tanto através de um item lexical como de uma idéia ou um<br />

contexto que opera como espaço mental para a inferência.<br />

Vejamos o exemplo a seguir:<br />

(3) O sujeito ligou para a padaria e perguntou ao padeiro:<br />

- O pãozinho quentinho já saiu?<br />

E o padeiro responde:<br />

- Sim senhor.<br />

Com tom irônico o camarada diz:<br />

- Então quando ele voltar me vise.<br />

(Piada retirada do sitio www.orapois.com.br – acesso em 20/01/<strong>2009</strong>, às 10h)<br />

No exemplo 3, temos um processo de recategorização, que se dá na última linha da piada, “então quando<br />

ele voltar me avise”. Os elementos que caracterizam esse texto são definidos pelos sintagmas nominais: sujeito,<br />

padaria, padeiro, pãozinho e camarada. Realizamos um jogo de associações, o que nos oferece a condição de<br />

compreendermos o texto. Assim temos:<br />

PADARIA<br />

PADEIRO<br />

SUJEITO<br />

CAMARADA = mesma pessoa que ligou<br />

PÃOZINHO = elementos de um mesmo lugar, que determinam o mesmo sujeito<br />

É, basicamente, assim que o nosso cérebro age na construção dos referentes. Logo, o que leva o padeiro<br />

a dizer, ao sujeito que ligou, que sim, o pão recém tinha saído do forno, foi a associação, realizada por ele, de que<br />

a maioria dos clientes de sua padaria costumam pedir pãezinhos quentes. Porém, a recategorização metafórica<br />

realizada através de um processo de referenciação por substituição pronominal, ou anáfora direta (pãozinho = ele),<br />

ancorada na fala do sujeito/camarada que diz: “quando ele – o pãozinho – voltar me chame, desconstrói as<br />

associações realizadas pelo padeiro, dando o tom irônico à piada.<br />

Koch e Marcuschi (1998) assumem que a progressão referencial se dá com base numa complexa relação<br />

entre linguagem, mundo e pensamento estabelecida centralmente no discurso, onde os referentes são objetos do<br />

discurso. Mais uma vez, batemos na tecla de que é através da carga semântica/lexical que adquirimos nossos<br />

processos interacionais que dão corpo aos referentes.<br />

Ainda, Koch e Marcuschi (1998) dão ao texto uma perspectiva macro, organizando-o com base em dois<br />

processos gerais: (i) a seqüencialidade, que dá progressão ao texto, realizando movimentos de referenciação,<br />

fazendo menção à introdução, preservação, continuidade, retomada, entre outros elementos, conhecidos como<br />

estratégia de designação de referentes; (ii) a topicidade, que se refere à progressão tópica, fazendo menção ao<br />

assunto ou tópico discursivo tratado ao longo do texto. Esses dois elementos são encontrados na piada analisada<br />

anteriormente. Mondada e Dubois (1995), completam essa idéia, postulando que a referenciação é um processo<br />

realizado negociadamente no discurso e que resulta na construção de referentes.<br />

11<br />

O termo co(n)texto indica que ora os processos textuais são contextuais, ora cotextuais.<br />

11


Em nosso trabalho centramos a nossa atenção às anáforas, diretas e indiretas. Segundo Kleiber (2001), a<br />

anáfora é uma relação entre dois elementos, que estabelecem uma relação binária. A argumentação de Kleiber é<br />

voltada a uma concepção estruturalista, com base nos pares mínimos. Para Marcuschi (2001), a anáfora é usada<br />

para designar expressões que, no texto, reportam-se a outras expressões, enunciados, conteúdos enunciados ou<br />

contextos textuais, contribuindo, assim, para a continuidade tópica e referencial. Essas duas noções nos levam ao<br />

seguinte esquema:<br />

A ----------------- B<br />

(ANAFORIZADO) (ANAFORIZANTE)<br />

O esquema acima representa o movimento realizando pela anáfora, num processo de reativação de<br />

referentes prévios, já que a condição de anaforização está, segundo Cavalcante (2004b), dentro do texto. Porém,<br />

nem sempre ocorre a mesma representação, não devemos assumir uma posição una, já que existem outras<br />

formas de encadeamentos anafóricos. O modelo que aqui assumimos é representado por Marcuschi (2001) e<br />

Cavalcante (2004a, 2004b).<br />

Encontramos, ainda em Marcuschi (2001), as definições de anáforas diretas e indiretas. Segundo o autor,<br />

a anáfora direta (AD) retoma referentes previamente introduzidos, estabelecendo uma relação de co-referência<br />

entre o elemento anafórico e seu antecedente, isto é, a AD seria uma espécie de substituto do elemento por ela<br />

retomado. Como vimos nos exemplos 1 e 3, o estabelecimento de uma AD através da retomada do SN pelos<br />

pronomes ela e ele. Um cuidado deve ser tomado, como aponta Kleiber (2001), nem sempre o SN1 existe, sendo<br />

representado, por exemplo, por um verbo. Na anáfora indireta (AI) não ocorre uma retomada de referentes, mas<br />

sim uma ativação de novos referentes, já que a AI é ancorada no universo textual. Para Cavalcante (2002), o que<br />

diferencia a AI das anáforas comuns/diretas são, basicamente, os processos de não-correferencialidade e a<br />

introdução de novos referentes, oriundos do conhecimento dos interlocutores, isto é, para ocorrer a AI é<br />

imprescindível que as informações estejam disponíveis na memória dos interlocutores, promovendo, dessa forma,<br />

as costuras necessárias à efetivação das inferências.<br />

A anáfora indireta ganhou mais terreno nos últimos tempos, por causa de seu caráter cognitivo, assim, o<br />

seu estudo caracteriza a grande parte das produções acadêmicas da lingüística de texto. Assim, passaremos à<br />

análise das anáforas em três gêneros diferentes, porém, tratam do mesmo referente, a pipa. Não propomos, aqui,<br />

uma classificação cartesiana das anáforas, até porque isso já fora realizado por outros estudiosos do assunto, o<br />

que apresentaremos é, uma tentativa, de tracejar, no mesmo trabalho, uma análise dos elementos composicionais<br />

do texto, que perpassam desde os movimentos de referenciação até a aplicação de modelos textuais (gêneros e<br />

tipos).<br />

4 O texto e sua dinamicidade: o leitor e seus movimentos de leitura<br />

O corpus escolhido para a análise consiste em três gêneros: um conto, um poema e um manual de<br />

instruções 12 . Todos eles trazem, em sua gênese, o mesmo assunto, a pipa. Os textos foram retirados da obra<br />

Coletânea de Textos, produzido pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná, Departamento de Ensino<br />

Fundamental, lançada em 2005. A obra é destinada ao trabalho com textos em salas de apoio à aprendizagem<br />

dos alunos do 6º ao 9º ano, e é composta por 11 unidades destinadas a um tema central, que são: tartarugas, pipa,<br />

meio ambiente, animais adolescência, vida urbana, meios de comunicação, diversidade lingüística, turismo,<br />

aventuras e trânsito.<br />

Vejamos, então, o texto 1 abaixo:<br />

1 ... Era uma vez uma pipa.<br />

(T1) A pipa e a flor<br />

2 O menino que a fez estava alegre, e imaginou que a pipa também estaria. Por isso fez nela<br />

3 uma cara risonha, colando tiras de papel de seda vermelho: dois olhos, um nariz, uma boca...<br />

4 Ô, pipa boa: levinha, travessa, subia lato...<br />

5 Gostava de brincar com o perigo, vivia zombando dos fios e dos galhos das árvores.<br />

6 Mas aconteceu um dia, ela estava começando a subir, correndo de um lado para outro no<br />

7 vento, olhou para baixo e viu, lá no quintal, uma flor, ela já tinha encontrado muitas flores.<br />

12<br />

Mais uma vez fizemos uma delimitação ao escolher os textos para análise, justamente por não dispormos de muito espaço.<br />

12


8 Só que desta vez seus olhos e os olhos da flor se encontraram, e ela sentiu uma coisa estranha.<br />

9 Não, não era a beleza da flor. Já via outras, mais belas. Eram os olhos...<br />

10 A pipa ficou enfeitiçada. Não mais queria ser pipa. Só queria ser uma coisa: fazer o que a<br />

11 florzinha quisesse. Ah! Ela era tão maravilhosa. Que felicidade se pudesse ficar de mãos<br />

12 dadas com ela pelo resto dos seus dias...<br />

13 E assim, resolveu mudar de dono, aproveitando-se de um vento forte, deu um puxão<br />

14 repentino na linha, ela arrebentou, e a pipa foi cair, devagarinho, ao lado da flor.<br />

15 E deu a linha para ela segurar.<br />

16 Ela segurou forte.<br />

17 Agora suas linhas nas mãos da flor, a pipa pensou que voar seria muito mais gostoso. Lá de<br />

18 cima conversaria com ela e ao olhar lhe contaria estórias para que ela dormisse. E ela<br />

19 pediu:<br />

20 “- Florzinha me solta...”<br />

21 E a florzinha soltou.<br />

22 A pipa subiu bem alto e o seu coração bateu feliz. Quando se está lá no alto é bom saber<br />

23 que há alguém esperando, lá embaixo.<br />

24 Mas a flor, aqui de baixo, percebeu que estava ficando triste. Não, não é que estivesse<br />

25 triste. Estava ficando com raiva. Que injustiça que a pipa pudesse voar tão alto, e ela<br />

26 tivesse de ficar plantada no chão. E teve inveja da pipa.<br />

27 Tinha raiva de ver a felicidade da pipa, longe dela...<br />

28 Tinha raiva quando via as pipas lá de cima, tagarelando entre si. E ela flor, sozinha,<br />

29 deixada de fora.<br />

30 “- Se a pipa me amasse de verdade não poderia estar feliz lá em cima, longe de mim.<br />

31 Ficaria o tempo todo comigo...”<br />

32 E a inveja juntou-se ao ciúme.<br />

33 Inveja é ficar infeliz vendo as coisas bonitas e boas que os outros têm, e nós não.<br />

34 Ciúme é a dor que dá quando a gente imagina a felicidade do outro, sem que a gente<br />

35 esteja com ele.<br />

36 E a flor começou a ficar malvada.<br />

37 Ficava emburrada quando a pipa chegava.<br />

38 Exigia explicação de tudo.<br />

39 E a pipa começou a ter medo de ficar feliz, pois sabia que isto faria a flor sofrer.<br />

40 E a flor foi, aos poucos encurtando a linha.<br />

41 E a pipa não conseguia voar.<br />

42 Via, ali do baixinho, de sobre o quintal (que era toda a distância que a flor lhe permitia<br />

43 voar) as outras pipas, lá de cima,... E sua boca foi ficando triste. E percebeu que já não<br />

44 gostava da flor como no início...<br />

45 ... A pipa percebeu que havia mais alegria na liberdade de antigamente que nos abraços<br />

46 da flor. Porque aqueles eram abraços que amarravam. E assim, num dia de grande<br />

13


47 ventania, e se valendo de uma distração da flor, arrebentou a linha, e foi em busca de uma<br />

48 outra mão que ficasse feliz vendo-a voar nas alturas.<br />

(ALVES, Rubem. A pipa e a flor. São Paulo: Loyola, 2004. p.12-24.)<br />

O T1 caracteriza-se como gênero textual conto, por apresentar a maioria dos elementos pertencentes a<br />

esse gênero. A narrativa, além de ser o principal elemento do gênero conto é a tipologia predominante, com a<br />

presença de discursos diretos, linhas 20 e 30, e discursos indiretos, linhas 4 e 11, por exemplo. O envolvimento do<br />

leitor é construído a através da presença de um mundo imaginário, típico dos contos nos quais a personificação de<br />

objetos, animais e plantas é possível.<br />

O autor inicia o texto, linha 1, com a colocação do sintagma nominal pipa (doravante SN1) antecedido do<br />

artigo indefinido uma, realizando o movimento de apresentação do SN1, o qual aparecerá em todo o texto. A<br />

seguir, na linha 2, o SN1 já aparece definido, com a presença do artigo a. Porém, anteriormente, na mesma linha,<br />

há o apagamento da SN1, ocasionando uma elipse, que faz com que o leitor busque a associação e o sentido no<br />

contexto estabelecido pela definição do SN1.<br />

Qual é a principal função de uma pipa? Voar, e de preferência bem alto, isso é posto a mostra na linha 4,<br />

que associa leveza a subir alto, logo o adjetivo travessa é incorporado a essa associação, pois na linha 5 as<br />

travessuras da pipa aparecem e temos mais uma vez a presença de elipses. O interessante é que,<br />

intencionalmente, ou não, o autor apresenta, uma linha antes, essa característica à pipa, movimentando<br />

cotextualmente o texto, abrindo os caminhos da interpretação ao leitor.<br />

Ao fazermos a leitura desse texto, percebemos que o autor tenta seguir uma linha calcada num manual de<br />

redações, isso pode ser comprovado através da repetição do movimento na introdução de um novo sintagma<br />

nominal ao texto, é o que acontece na linha 7, com a introdução do sintagma nominal flor (SN2), a qual é feita<br />

identicamente a do SN1 (com a presença, na primeira ocorrência do sintagma, do artigo indefinido).<br />

Com toda a certeza, a escolha desse texto para compor a unidade 2, pipas, da obra já mencionada, só<br />

ocorreu por causa dessa forma padronizada de elementos coesivos que dão seqüencialidade ao texto, embora<br />

não esteja perfeito, pois o uso de muitos pronomes causa ambigüidade em alguns pontos, entre eles na linha 18.<br />

Por um lado colocamos em xeque o pensamento educacional, o qual ainda está centrado na forma, esquecendose<br />

dos processos funcionais do texto. Como dissemos antes, uma das causas são as más interpretações das<br />

teorias. Por outro lado, a apresentação de um texto assim facilita, até certo ponto, a leitura, pois a sua base está<br />

formada, basicamente, nas anáforas diretas, que dão seqüência ao texto, concentrando as informações no cotexto.<br />

E no T1, interessantemente, a utilização da pronominalização que causa uma certa ambigüidade, e de elipse<br />

contemplam a grande maioria dos processos coesivos utilizados pelo autor.<br />

Apesar prevalência das anáforas diretas, encontramos, também, anáforas indiretas, principalmente as<br />

associativas, que forçam o interlocutor a buscar no seu conhecimento de mundo os referentes adequados, como é<br />

apresentado na linha 15, na qual o interlocutor é levado a associar o sintagma linha à pipa, pois sem linha ela não<br />

voa, logo, dar linha é soltar mais a linha para que a pipa voe mais alto. A presença das anáforas associativas<br />

fazem com que a busca do referente seja centralizado no contexto, prevalecendo a ativação de inferências,<br />

fazendo com que o sentido seja processado cognitivamente.<br />

Do meio do texto em diante, um jogo de opostos é estabelecido, como por exemplo, chão versus céu,<br />

liberdade versus prisão, alegria versus tristeza, esse jogo aguça o conhecimento semântico do leitor, portanto, o<br />

texto somente será coerente se o leitor estiver apto a compreender todos os jogos de oposição estabelecidos pelo<br />

autor, que coloca toda a essência do texto nesse jogo de opostos. As pistas são lançadas no decorrer do texto,<br />

principalmente pela principal oposição pipa, que alça vôos altos, e flor que está pregada ao chão.<br />

1 A pipa que<br />

2 O menino maluquinho soltava<br />

3 Era a mais maluca de todas<br />

4 Rabeava lá do céu<br />

5 Rodopiava adoidado<br />

6 Caía de ponta cabeça<br />

(T2) O menino maluquinho<br />

14


7 Dava tronco e cabeçada<br />

8 E sua linha cortava<br />

9 Mais que o afiado cerol.<br />

10 E a pipa<br />

11 Quem fazia<br />

12 Era mesmo o menininho<br />

13 Pois ele havia aprendido<br />

14 A amarrar linha e taquara<br />

15 A colar papel de seda<br />

16 E a fazer com polvilho<br />

17O grude para colar<br />

18 A pipa triangular<br />

19 Como o papai<br />

20 Lhe ensinara<br />

21 Do jeito que havia<br />

22 Aprendido<br />

23 Com o pai<br />

24 E o pai do pai<br />

25 Do papai...<br />

(ZIRALDO. O menino maluquinho. 64. Ed. Melhoramentos, 1998. p.48-49)<br />

Ao contrário do T1, o T2 apresenta em sua formação um número mais elevado de anáforas indiretas, que<br />

segundo Marcuschi (2001), podem ser: semânticas, baseadas no léxico; conceituais, baseadas em conhecimentos<br />

de mundo e inferenciais, centradas em inferências fundadas no texto. Seguindo, ainda, em linhas diferenciais,<br />

podemos notar que já na primeira linha do poema o sintagma nominal pipa vem introduzido definidamente, como<br />

se já conhecêssemos a pipa, ou as pipas, é o que conduzirá todo o texto, pois precisamos, enquanto leitores (do<br />

mundo) saber como fazer, como soltar e quais os tipos de pipas para podermos chegar a um sentido universal<br />

nesse texto.<br />

A partir da linha 4, precisamos fazer uso do nosso conhecimento semântico e conceitual, pois o autor<br />

realizou um jogo de associações a partir da palavra pipa. Que traz, meronimicamente em sua gênese, outras<br />

palavras, como: cerol, linha, papel de seda, grude entre outras. É como se o autor compartilhasse com todos os<br />

seus leitores as suas experiências sociais, entre elas o conhecimento de fazer pipas. Tanto que nas últimas linhas<br />

inferimos da onde vem o conhecimento, do pai, do pai, do papai, ou seja, é uma continuação familiar brincar de<br />

fazer pipas, é o que dá ancoragem a todas as associações realizadas no texto.<br />

Materiais:<br />

Varetas de qualquer tipo, sendo:<br />

(T3) Monte sua pipa<br />

Pipa de Combate ou Maranhão<br />

1 de 51 cm de comprimento e 2 mm de espessura.<br />

2 de 32 cm de comprimento e 2 mm de espessura<br />

Tesoura<br />

Papel de seda<br />

15


Cola branca<br />

Linha 10 corrente.<br />

Uma regra prática para regular o estirante consiste em pendurá-lo e regular de modo que a superfície “D”<br />

forme um ângulo de aproximadamente 30°, como se vê na ilustração anterior. Esta regulagem é aproximada, pois<br />

a definitiva será feita no momento de empinar, estique a linha até chegar a um ponto que esteja a dois dedos de<br />

distância (3 cm) da extremidade vertical e horizontal e dê um nó, fazendo o ângulo do estirante. A linha para<br />

empinar deve ser amarrada neste ângulo.<br />

De forma singular, a presença da injunção no T3, gênero manual de instrução, constrói toda a<br />

movimentação textual, além das ordens, pegue, cole, passe, envergue, etc.; a lista de materiais é fundamental<br />

para a determinação do gênero.<br />

O conhecimento de mundo, mais uma vez, é essencial, pois para que o sujeito que queira montar uma<br />

pipa deverá ter conhecimentos básicos em matemática, principalmente no que refere a medidas e ângulos. Apesar<br />

de ser um manual, o conhecimento lexical é indispensável, pois a palavra estirante não faz parte do vocabulário<br />

de todos os leitores, sem falar que ela poderá sofrer variações dependendo da região, como na imagem 10, em<br />

que o termo cabestro designa o mesmo referente no mundo, o estirante.<br />

Uma representação diferenciada dos outros textos aparece no T3, a relação parte todo, na qual temos na<br />

lista de materiais um pedido de varetas, podendo ser várias, porém, no decorrer as instruções pede-se, na<br />

instrução 9, que a primeira vareta (uma das várias) seja envergada, processando, como numa receita, a relação<br />

parte-todo.<br />

16


No que tange a interioridade do texto, temos um domínio total das anáforas diretas, em todas as imagens<br />

que ensinam a fazer a pipa, num movimento A B (anaforizado anaforizante), anteriormente discutido.<br />

5 Considerações finais<br />

No decorrer de nosso trabalho levantamos uma série de questionamentos referente aos processos de<br />

constituição textual, entre eles as representações de coesão, coerência, textualidade e referenciação. Não<br />

tínhamos a intenção de apresentar uma teoria que superasse as demais, mas sim de problematizar, em forma de<br />

discussão as teorias existentes, fazendo uma seleção de seus focos principais.<br />

Esperamos, posteriormente, desenvolver um trabalho mais amplo, no qual caibam todas as discussões<br />

que deixamos para trás. Ainda há um longo caminho a ser percorrido nos estudos do texto, a Lingüística Textual<br />

ainda é um campo novo dentro dos estudos da linguagem, logo, evoluções teóricas são inevitáveis, podendo<br />

haver a abertura de novos campos. Destacamos, com afinco, dois pontos interessantes a serem revistos pelos<br />

estudiosos do texto, um deles é reconfiguração dos trabalhos a cerca dos gêneros textuais, levando em<br />

consideração que eles são processos histórico-sociais, que estão à disposição dos sujeitos, como modelos nãoestanques<br />

de atividades comunicativas/interativas. Outro ponto diz respeito a um estudo mais aprofundando das<br />

seqüências textuais, focalizadas na produção sociointerativa dos sujeitos.<br />

Portanto, acreditamos que contribuímos, ao menos um pouco, com as reflexões que circundam as teorias<br />

do texto, apresentando a nossa discussão centrada nas relações cognitivas de produção textual.<br />

Referências<br />

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezzera. 4ª Ed. São Paulo:<br />

Martins Fontes, 2003.<br />

BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, M. U. Intoduction to text linguistics. London: Longman, 1981.<br />

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo.<br />

Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. 2ª Ed. São Paulo: EDUC, 2007.<br />

BROWN. G; YULE, G. Discourse analysis. Combridge University Press, 1983.<br />

CAVALCANTE, M. M. Teoria e análise lingüística: anáforas indiretas e relações lexicais. Revista do Gelne – ano<br />

4. nº 1. 2002.<br />

______. Expressões referenciais: uma proposta classificatória. PROTEXTO – Grupo de pesquisa em Gêneros<br />

Textuais e Referenciação. Fortaleza: meio digital, 2004a.<br />

______. O processo de recategorização sob diferentes parâmetros. PROTEXTO – Grupo de pesquisa em<br />

Gêneros Textuais e Referenciação. Fortaleza: meio digital, 2004b.<br />

FÁVERO, L. L.; KOCH, I, V. G. Lingüística textual: introdução. São Paulo: Cortez, 1983.<br />

HALLIDAY, M. A. K.; HASAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976.<br />

KLEIBER, G. L’anaphore associative. Paris: Presses Universitaires de France, 2001.<br />

KOCH, I. G. V. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />

KOCH, I. G. V.; MARCUSCHI, L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. Revista DELTA, online.<br />

Vol. 1. 1998. Disponível em , acesso em 14/12/2008.<br />

MACHADO, A. R. A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In MEURER, J. L.; BONINI, A.;<br />

MOTTA-ROTH, D. (Orgs.) Gêneros, teorias, métodos e debates. São Paulo: Parábola, 2005.<br />

MARCUSCHI, L. A. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. Revista Letras, Curitiba: Editora da UFPR,<br />

2001.<br />

_______. Gêneros textuais: definições e funcionalidade. In DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R; BEZERRA, M. A.<br />

(Orgs.). Gêneros textuais e ensino. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.<br />

_______. Fenômenos da linguagem: reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.<br />

MONDADA, L.; DUBOIS, D. Verbalisation de l’epace et fabrication du savoir: approche linguistique de la<br />

construction des objets Du discours. Lausanne: Université de Lausanne, 1995.<br />

TRAVAGLIA, L. C. Composição tipológica de textos como atividade de formulação textual. Revista do<br />

Gelne – ano 4, nº 1, 2002.<br />

17


1- GOYA E SUA CONTURBADA VIDA<br />

GOYA<br />

13<br />

Especialista em Língua e Literatura Espanhola e Hispano-Americana. FAFIUV<br />

18<br />

Ana Paula Such 13<br />

Francisco Luciérnes de Goya, nasceu em Fuendetodos, Saragoça, em 30 de março de 1746. Ainda muito<br />

jovem já demonstrou sua aptidão para a pintura, conseguindo, após duas tentativas frustradas, uma bolsa na Real<br />

Academia de San Fernando em Madri.<br />

Em 1785, passa a receber encomendas de pinturas das famílias nobres, sendo a primeira um retrato da<br />

Duquesa de Osuna. Em 25 de abril de 1785, depois da morte de Carlos III e da coroação de Carlos IV, foi<br />

nomeado "Primeiro Pintor da Câmara do Rei", tornando-se o pintor oficial do monarca e sua família. No ano de<br />

1808, teve que afastar-se do cargo devido a ocupação napoleônica da península Ibérica e o trono espanhol sendo<br />

ocupado por José Bonaparte, irmão de Napoleão. Em 1800, auge de sua carreira e prestígio, pintou seus quadros<br />

mais polêmicos: “Maja Desnuda” e “Maja Vestida” e o famoso “A Família de Carlos IV”, exemplo de como<br />

introduzia, nas figuras, traços grotescos. Nestas obras o artista explora o realismo, ora em ondas de erotismo, ora<br />

analisando desapiedadamente seus modelos, ironizando-os.<br />

Entretanto, sua tragédia particular teria inicio numa viagem a Andaluzia, transmitida por seu amigo<br />

Sebastián Martínez, Goya contrai uma séria e desconhecida doença que o teria deixado temporariamente<br />

paralítico, parcialmente cego e totalmente surdo. A doença o fez perder a vivacidade, o dinamismo e a sua<br />

autoconfiança. Pouco a pouco, e não seria para menos, a alegria, lentamente, desapareceu de suas pinturas, as<br />

cores ganharam uma tonalidade mais escura, seu modo pintar ficou mais livre, expressivo, sombrio e de certa<br />

forma agressivo.<br />

Entre os anos de 1810 e 1814, produziu uma série de pinturas “Os Desastres da Guerra” e suas duas<br />

obras primas “O 2 e maio de 1808 – A Porta do Sol” e “O de maio de 1808 – Os Fuzilamentos”. Nestas telas Goya<br />

descreve a guerra das invasões napoleônicas, na qual não houve glória, retrata uma luta na qual, pela primeira,<br />

vez não havia heróis, apenas assassinos e mortos. É a pintura que retrata os vencidos e não os vencedores como<br />

de costume. Durante a última parte de sua vida, isolado em sua “Quinta del Sordo”, Goya cobriu as paredes da<br />

casa com as famosas “pinturas negras”, realizadas durantes seus acessos de loucura tendo como exemplo<br />

“Saturno devorando um filho”, exposta atualmente no Museu do Prado. Esta pintura fazia referência aos conflitos<br />

internos da Espanha durante o reinado absolutista de Fernando VII, e também sendo reflexo da degradação física<br />

e mental do pintor romantico. Goya morreu na cidade de Bordeaux, França, em 16 de abril de 1828,<br />

completamente louco.<br />

Em 2006, a vida de Goya foi adaptada ás telas do cinema, o diretor Milos Forman, dirige o filme Sombras<br />

de Goya, mostrando, nos primeiros anos do século XIX, o gênio artístico do pintor espanhol em meio ao<br />

radicalismo da Inquisição e à invasão da Espanha pelas tropas de Napoleão. O enredo do filme é em torno da<br />

jovem Inés (Natalie Portman), a bela modelo e musa do pintor, quando ela é presa sob a falsa acusação de<br />

heresia.“Nem as intervenções do influente Frei Lorenzo (Javier Bardem), também retratado por Goya (Stellan<br />

Skarsgar), conseguem evitar que ela seja brutalmente torturada nos porões da Igreja. Estes personagens e os<br />

horrores da guerra, com os seus fantasmas, alimentam a pintura de Goya, testemunha atormentada de uma<br />

época turbulenta.” Belíssimas cenas remontam a época em que Goya viveu, dando um destaque especial as que<br />

mostram o artista pintando suas telas e seus modelos posando para ele.<br />

Entretanto uma coisa é intrigante: o filme, baseado na vida do pintor espanhol, passado na Espanha e<br />

falado em inglês. Quando questionado, o diretor Milos Forman simplesmente respondeu que não sabia falar<br />

espanhol. Uma lástima, mas que não tira nem a beleza nem a magia do filme.<br />

2 GOYA - OBRAS<br />

Goya, em suas obras, alguns temas são constantes como os auto retratos, bruxaria, o clero e sua vida<br />

“santa”, guerras e morte. De igual maneira, centra a atenção no erotismo, exemplificado nas conhecidas telas<br />

intituladas “Maja Desnuda” e “Maja Vestida”. Ninguém sabe ao certo quem foi a modelo e nem porque Francisco<br />

Goya fez dois quadros, um com a modelo nua e outro ela vestida. Há uma “lenda” que tenta explicar a origem das<br />

obras. Supõe-se que Goya apresentou a vistosa Duquesa de Alba como se fosse, uma mulher do povo. O próprio<br />

nome “Maja” significa, em espanhol, mulher vulgar, dada a atitudes que a tornam num ser profundamente<br />

provinciano. Conta-se ainda que ela havia posado para o quadro nua, quando seu marido descobriu, Goya,<br />

avisado previamente, “refez” a pintura, pintando um outro quadro onde a dama da corte aparecesse vestida. A<br />

obra foi feita entre 1800 e 1803 e ambos quadros podem ser vistos no Museu do Prado, em Madri.


14<br />

O lado cartunista/caricaturista de Goya pode ser observado na tela “Família Real de Carlos IV”<br />

representando a família real a de uma maneira satírica, mostrando a decadência dos seus membros. A exemplo<br />

de Velázquz o pintor coloca-se numa posição de observador, de onde pode retratar a fadiga do rei e dos seus<br />

familiares. Alinhados de pé, de costas para a parede, doze figuras, implacavelmente foram retratadas para a<br />

historia, com uma ousadia ímpar.<br />

A luz, cai obliqua, filtrada, sobre a parte central do quadro, ressaltando a figura da rainha Maria Luisa,<br />

centralizadora e dominadora da composição como o foi da corte, constituindo o eixo psicológico do quadro, e<br />

tendo a seu lado os filhos mais novos e diletos, Maria Isabel e Francisco de Paula. A direita e a esquerda da<br />

rainha, separados em dois grupos encontram-se os membros restantes de família real, salientando em cada um,<br />

em relação ao primeiro plano, o rei Carlos IV e o príncipe das Astúrias, o futuro Fernando VII, como figuras<br />

secundárias em relação a rainha.<br />

Atrás do rei encontram-se seu irmão, D. António Pascual, de perfil, o rosto de uma jovem desconhecida e<br />

o casal: D. Luis de Borbom, príncipe de Parma e sua esposa, Dona Maria Luisa Josefina, filha dos reis, com seu<br />

filho no colo, Carlos Luís.<br />

O outro grupo, atrás do príncipe das Astúrias, o mostra espreitando o seu irmão, D. Carlos Maria Isidro,<br />

futuro pretendente ao trono da Espanha na morte de Fernando e criador da facção “carlista”, e duas figuras<br />

femininas, uma a infanta Maria Josefa, irmã de Carlis IV e uma jovem que, misteriosamente, volta sua cabeça para<br />

trás, evitando sua identificação. Por trás deste grupo, Goya faz seu auto-retrato, pintando numa tela, semelhante<br />

ao mestre Velázquez.<br />

A execução técnica do quadro é também magistral, com essa pincelada atrevida,<br />

abreviada, de esboço, que lhe confere um aspecto surpreendentemente moderno, com<br />

brilhantes e ousados toques que atingem o auge no traje da rainha. A penumbra,<br />

combinando imprecisões e relevos, vê-se também utilizada, bem como o colorido e suas<br />

gradações. (ANGLÉS, 1999, p. 118)<br />

14<br />

Maja Desnuda. 1797 – 1800. Óleo sobre tela. Dimensões 97 X 100cm. Museu do Prado - Madrid<br />

15<br />

Maja vestida. 1797 – 1800. Óleo sobre tela. Dimensões 97 X 100cm. Museu do Prado - Madrid<br />

16<br />

Família Real de Carlos IV. – 1800. Óleo sobre tela. Dimensões 280 X 336cm. Museu do Prado – Madrid<br />

19<br />

16<br />

15


Conhecido também como “A Carga do Mamelucos”, em conjunto com a tela popularmente denominada<br />

“Os Fuzilamentos de Moncloa”( O 3 de maio de 1808) foram pintadas seis anos depois dos trágicos<br />

acontecimentos que narram.<br />

Representa o furioso ataque do povo madrileno a um destacamento francês, composto por mamelucos<br />

egípcios e couraceiros polacos, que passavam pela Porta do Sol possivelmente para reforçar as tropas que se<br />

ocupavam em reprimir o levante popular nas portas do Palácio.<br />

O quadro foi encomendado pelo rei para “perpetuar por meio do pincel as mais notáveis e heróicas ações<br />

de nossa gloriosa insurreição contra o tirano europeu”. Goya valeu-se da variedade de cores para conseguir<br />

efeitos impressionantes ao pintar a tumultuada cena dando movimento as figuras.<br />

Longe de qualquer glorificação pessoal do herói, ao estilo da pintura de história<br />

tradicional, Goya mostra o seu anticlassicismo representando, “uma história sem herói”,<br />

louvando o herói anônimo que é o povo. Para tal, foge de qualquer tipo de<br />

hierarquização ou equilíbrio na composição, recorrendo à curva, à estruturação<br />

parabólica, muito mais apta para o tom expressivo que se depreende da visão<br />

instantânea, quase de reportagem, do confuso estoiro e do movimento de uma cena de<br />

insurreição popular. (ANGLÉS, 1999, p. 138)<br />

A tela plasma os acontecimentos da colina de Príncipe Pio com grandes contrastes, refletindo a<br />

desigualdade de forças na situação real: de um lado os oito soldados de infantaria que representam com o seu<br />

fuzil, uniforme e chapéu, um muro, um grupo mecânico e sem personalidade; do outro lado, as vitimas, um grupo<br />

misto, que demonstra individualidade nos seus gestos desesperados e indefesos, aguardando a serem fuzilados<br />

impiedosamente.<br />

17<br />

O 2 de Maio de 1808.- A Luta na Porta do Sol. Óleo sobre tela. – cerca de 1814. Dimensões 266 X 345 cm. Museu do<br />

Prado- Madrid<br />

18<br />

O 3 de maio de 1808 em Madrid. Os Fuzilamentos na Montanha do Príncipe Pio. Cerca de 1814. Óleo sobre tela. Dimensões<br />

266 X 345cm. Museu do Prado. Madrid.<br />

20<br />

17<br />

18


Do grupo dos revolucionários destaca-se um com a camisa branca. É intencional a associação com o<br />

Cristo crucificado, as mãos apresentam estigmas. Aqui vislumbra-se o assassinato de mártires, que formam três<br />

grupos: os que estão à espera de serem fuzilados e que vêem com horror seu futuro, os que estão sendo<br />

fuzilados e os mortos. Os grupos posicionam-se da direita à esquerda, o que introduz um elemento de transcurso<br />

do tempo na composição.<br />

Trata-se de um quadro, como o próprio tema impunha, de um colorido mais sombrio que<br />

o outro, com o predomínio para os tons negros e cinzentos, jogando com sabedoria com<br />

os contrastes de luz para acentuar o dramatismo da cena; colocadas, além disso, tanto<br />

a técnica como a representação das figuras ao serviço de um expressionismo brutal,<br />

onde contrasta o personalizado e desesperado protesto das vítimas perante o maquinal<br />

anonimato dos executores, cujos rostos se evitam e cujas posturas se igualam no<br />

mecânico ato de matar, seguindo um ritual da ordenança militar. (ANGLÉS, 1999, p. 140)<br />

Ao expressar seus pensamentos e crenças, Francisco fixou em suas telas fantasias, sonhos e realidades<br />

de sua época. Para entender o alcance da arte de Goya e apreciar os princípios que governaram seu<br />

desenvolvimento e sua tremenda versatilidade e imprescindível entender que seu trabalho cobriu um período de<br />

mais de 60 anos, pois continuou a desenhar e pintar até seus 82 anos. Goya, um gênio de sua época, não deixou<br />

herdeiros diretos de sua técnica, mas até hoje suas obras são estudadas e imitadas.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ANGLÉS, E. A. Goya. Editorial Estampa. Navarra, 1999.<br />

MÜHLBERGER, R. O que faz de um Goya um Goya? Título original: What makes a Goya a Goya? Tradução:<br />

Valentina Fraíz-Grijalba. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, 48 p., 51<br />

PROENÇA, G. História da Arte. Ática. São Paulo, 2006<br />

VALSECCHI, M. (direção) Galeria Delta de Pintura Universal. 2vol. Editora Delta. 1972<br />

WRIGHT, P. Galeria de Arte, Goya. Tradução: Ângela dos Santos. – São Paulo: Editora Manole Ltda. , 1994.<br />

21


O JOGO COM O "THRILLER" POLICIAL EM ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA? UM ROMANCE B, DE CAIO<br />

FERNANDO ABREU<br />

Bárbara Cristina Marques 19<br />

O romance Onde andará Dulce Veiga? Um romance B (1990), do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu,<br />

faz parte de um conjunto de obras que exploram o humor, o lirismo, o pastiche e a paródia como forma<br />

representativa de um tipo de procedimento estético e estilístico que enche a obra de arte de extratexto históricosocial<br />

através do uso permanente de intertextualidade. Essa incorporação dos gêneros massivos, que confere<br />

multiplicidade à narrativa, no caso de Onde andará Dulce Veiga Um romance B?, evidencia um gesto camp<br />

(SONTAG, 1987), isto é, de um tipo de estilo que se relaciona a uma poética do artifício definida pelo exagero<br />

estético de certos objetos artísticos.<br />

De modo geral, a trama do romance é articulada pela busca da cantora Dulce Veiga que desaparece no<br />

dia de um show de estréia sem deixar pistas. O protagonista, também narrador, é um jornalista decadente de<br />

quase quarenta anos que, depois de um tempo de desemprego e desilusão, é convidado a trabalhar como<br />

repórter em um jornal sensacionalista. Escalado por Castilhos, seu editor, a fazer uma entrevista com uma banda<br />

de rock chamada Vaginas Dentadas, o protagonista (sem nome em todo o romance) redescobre o mito Dulce<br />

Veiga ao ouvir, na voz de Márcia Felácio, vocalista das Vaginas Dentadas, a música “Nada além” 20 , agora em<br />

ritmo de punk rock da década de 80. A lembrança de Dulce, que fora entrevistada por ele no início de sua carreira,<br />

o leva a escrever uma crônica intitulada “Onde andará Dulce Veiga?”, fato que desperta a curiosidade em milhões<br />

de leitores do jornal. É, pois, a partir daí que a narrativa se abre num jogo à moda policial, na medida que o<br />

jornalista/protagonista/narrador se vê obrigado a fazer o papel de detetive na tentativa de desvendar o mistério<br />

que gravita em torno do desaparecimento da cantora ocorrido há vinte anos. Como a crônica sobre o sumiço de<br />

Dulce desperta grande repercussão nacional, Rafic, dono do jornaleco Diário da Cidade, viabiliza financeiramente<br />

ao jornalista a investigação do paradeiro da cantora.<br />

Narrado como uma espécie de roteiro cinematográfico, Onde andará Dulce Veiga, Um romance B chocase<br />

com os ingredientes típicos da trama policial, mesclando-os aos diferentes desdobramentos que o gênero<br />

recebeu desde sua origem. A despeito de Boileau e Narcejac (1991) afirmarem ser um grande engano pensar em<br />

renovação do romance policial a partir de Edgar A. Poe, tornando-se sucessivamente romance-problema,<br />

romance de suspense, romance noir, etc, fica evidente no romance de Caio a elaboração de técnicas de<br />

narrativas detetivescas pelo abuso de clichês do gênero. Mais um recurso usado pelo autor para revelar um tipo<br />

de inconsciente coletivo que projeta sobre os produtos da indústria cultural sonhos, desejos e expectativas. O<br />

mistério, o erotismo e a violência, retratada pela cidade caótica e pela deterioração de personagens com o uso de<br />

drogas, ajudam a compor o cenário de suspense do romance. De modo geral, Onde andará Dulce Veiga? Um<br />

romance B pode ser entendido como uma paródia do gênero policial tradicional, uma vez que o desaparecimento<br />

de Dulce – mote da trama – não se liga a crimes e/ou assassinatos; ao contrário, apenas sugere esta<br />

possibilidade sustentada pelas divagações do próprio narrador.<br />

Dulce Veiga, eu tinha que encontrar Dulce Veiga.<br />

[...] Não aconteceu nada. Nada além de um terror lento, enquanto lembrava de Rafic, do<br />

dinheiro e do que, não sabia exatamente como, eu tinha prometido a ele: encontrar<br />

Dulce Veiga. E ela podia estar morta, morando em Cristiana, Salt Lake City, Alcântara ou<br />

Jaguari, internada num hospício, longe de tudo [...] Era preciso encontrar Dulce Veiga,<br />

manter aquele emprego, continuar a viver (ABREU, 1990, p. 119-120).<br />

Não há dúvida de que o romance policial, e todos os seus congêneres, desde sua criação, sempre atraiu<br />

grande público por se tratar de um gênero que se sustenta num tipo de modelo estrutural que estimula as<br />

emoções dos leitores através da combinação de alguns elementos. Decifrar enigmas, identificar crimes por meio<br />

de pistas, desvendar mistérios, poder espiar a vida alheia, obter informações sigilosas, estudar a natureza<br />

psicológica dos criminosos e descobrir uma inteligência máxima na figura do detetive são alguns dos fatores<br />

responsáveis pela aceitação e perpetuação do gênero. A repetição em série destes modelos permitiu que o<br />

romance policial fosse considerado um produto de massa pelo seu caráter envolvente junto ao público<br />

consumidor. Desse modo, muitas obras do gênero tornaram-se verdadeiros best-sellers, transformando as<br />

narrativas policiais em ícones da indústria cultural e do mercado editorial.<br />

19<br />

Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina. Professora do Curso de Letras da Universidade<br />

Norte do Paraná. E-mail: barbara.marques@gmail.com<br />

20<br />

Música de Custódio Mesquita em parceria com Mario Lago, interpretada por Orlando Silva em 1941.<br />

22


A respeito da chamada literatura de entretenimento, Silvia Borelli (1996, p. 50) diz que formas narrativas<br />

consideradas de massa são organizadas a partir de uma “lógica que não propõe rupturas estéticas mas resgata,<br />

como em qualquer outra literatura, matrizes tradicionais aparentemente perdidas na imensa fragmentação do<br />

cotidiano modernizado”. Isto significa dizer, como afirma a autora, que as literaturas triviais obedecem, sobretudo,<br />

a “mecanismos de constituição” na tentativa de manter o consumo. Não obstante seja considerada marginal por<br />

muito críticos literários, não se pode ocultar a atração que a literatura de massa exerce em grande parte de<br />

leitores, também tidos como ‘médios’. Ignorar obras que objetivam o consumo rápido e explícito em favor de uma<br />

literatura ‘culta’ e/ou esteticamente mais apurada, é o mesmo que descartar um dos elementos da triconomia<br />

autor-obra-receptor, ou seja, o leitor (ECO, 2004).<br />

No romance de Caio Fernando Abreu, o suspense e o mistério, ingredientes do policial, além de incitar a<br />

curiosidade do seu leitor (curiosidade esta que provoca mudança na vida do protagonista), misturam-se ao jogo<br />

das imagens cinematográficas no afã de estabelecer a fantasia ou a ilusão. Na verdade, o romance parodia<br />

situações clássicas das narrativas policiais, bem como aspectos do cinema, a fim de exagerar os elementos dos<br />

massivos, deformando criativamente os modelos de sucesso. No texto, o autor chega a citar Phillip Marlowe,<br />

detetive criado pelo escritor Raymond Chandler que, ao lado de Dashiell Hammett, funda o chamado romance<br />

noir. Caio, dessa maneira, não só enfatiza a ação investigativa do romance, como também potencializa o efeito do<br />

kitsch em narrativas como esta. Isso quer dizer que o caráter de exagero, de provocação de efeito e de<br />

reconhecimento imediato dos produtos que apresentam uma estética kitsch, é trabalhado no romance, entre<br />

outros, a partir da apropriação dos recursos do romance policial, mais especificamente o romance noir.<br />

Márcia entrou no táxi. Pela janela, ainda disse:<br />

– Deixa elas terminarem o show sozinhas. Diz que eu passei mal, inventa qualquer coisa.<br />

Depois a gente conversa.<br />

Patricia tentou beijá-la, ela fechou a janela. O táxi arrancou e partiu. No meio da rua,<br />

Patricia ainda gritou o nome dela, depois baixou a cabeça, chutou o pára.-lama de um<br />

carro e tornou a entrar no Hiroshima. Eu então toquei o ombro do motorista, e disse<br />

finalmente aquela frase que sonhava há pelo menos trinta anos:<br />

– Siga aquele carro.<br />

Ele me olhou como se eu tivesse completamente louco. Precisei repetir três vezes,<br />

vezes demais para um clichê. Ele começou a se mover, era nordestino. A cena da<br />

perseguição dos automóveis, filmada de helicóptero. Pneus gritando nas curvas,<br />

batidas e música frenética, uma grua subindo devagar. Mas nas ruas vazias não havia<br />

perigo, e o fusca arrebentado onde eu estava não tinha sequer rádio (ABREU, 1990, p.<br />

182 – grifo nosso).<br />

Na passagem acima, o jornalista sai à procura de Márcia Felácio que, tal como sua mãe, a cantora Dulce<br />

Veiga, abandona o show para atender mais um dos surtos de Saul. Este enlouquece após o desaparecimento de<br />

Dulce, travestindo-se curiosamente na figura clicherizada da cantora. No longo percurso do protagonista em busca<br />

de pistas que pudessem apontar o paradeiro de Dulce, muitas cenas são ‘amarradas’ magistralmente para manter<br />

o ar enigmático do romance. Em resumo, o protagonista tenta seguir alguns passos da carreira de Dulce,<br />

cruzando personagens que fizeram parte do momento de sucesso desta. Assim, o núcleo central do romance,<br />

ancorado no jornalista, em Dulce Veiga e Márcia Felácio, vai passo a passo se ramificando em diversos outros<br />

núcleos. O jornalista acaba por se lembrar/descobrir (as lembranças nem sempre são muito definidas para ele)<br />

algumas figuras que acompanhavam a cantora no auge de sua carreira. Interessante ressaltar que este fato<br />

ocorre a partir de velhas fotografias encontradas na redação do jornal, quando, ao terminar a crônica sobre o<br />

desaparecimento de Dulce, o jornalista procura nos arquivos fotos da cantora para integrá-las ao texto. Vêm à<br />

tona no romance, nesse momento, as personagens Alberto Veiga, marido de Dulce, o pianista Pepito Moraes,<br />

Rafic, o “homem de bigodes pesados e ar de turco” (ainda não identificado pelo jornalista), e a atriz Lilian Lara,<br />

melhor amiga de Dulce. Percebe-se, então, que as fotografias funcionam também como pistas. Deve-se salientar<br />

também que, como em todo o romance, as descrições destas personagens nas fotografias revelam mais uma vez<br />

o ambiente cafona marcado pelos clichês.<br />

Havia também fotos com outras pessoas: debruçada nos ombros de Pepito Moraes, seu<br />

pianista preferido; com o marido Alberto Veiga, clima canastrão de galã de filme<br />

mexicano dos anos 60, paletó com ombreiras, cigarro na piteira entre as unhas<br />

esmaltadas; no meio do grupo, em torno de uma mesa de boate, mãos dadas com um<br />

homem forte, vagamente familiar, de bigodes pesados e ar de turco; recebendo um<br />

prêmio de Leniza Maia e entregando outro a Maysa, sorrindo entre as duas. Para minha<br />

23


surpresa, várias fotos com Lilian Lara – sua melhor amiga, diziam alguns recortes da<br />

revista Intervalo (ABREU, 1990, p. 57 – grifo do autor).<br />

No trecho acima, os recursos da simulação e da intertextualidade aparecem novamente no romance,<br />

sustentados pela mistura que faz o narrador entre realidade e ficção. O ato de o narrador colocar em cena uma<br />

personagem real, como a cantora Maysa, e recuperar Leniza Maia, a famosa cantora de rádio que luta pela fama<br />

no romance A estrela sobe (1939), de Marques Rebelo, aponta, como uma espécie de interface da narrativa, o<br />

valor do simulacro. Este, em forma de repetição de modelos massivos ou representação de representação (como<br />

é o caso da cantora ‘fictícia’ Leniza Maia), aparece como um jogo intertextual a ser decodificado pelo leitor.<br />

Procedimento típico da cultura de massa, a repetição pode se referir a um protótipo, a uma matriz, ou a um<br />

arquétipo, repetidos constantemente na tentativa de marcar pontos de identificação com o público. Calabrese<br />

(1987) diz que a forma mais conhecida, e portanto mais comercial, da repetição é aquela que consiste na<br />

continuação de um tema e/ou personagens que tenham sucesso. Viu-se neste último trecho, por exemplo, que a<br />

repetição de Leniza Maia e a referência à cantora brasileira Maysa funcionam também para privilegiar os<br />

flashbacks do romance que, de modo geral, mantêm a salvo as personagens, potencializando ainda mais o tipo de<br />

simulação produzida. Sem dúvida alguma, essa condição de reproduzir na ficção ícones da cultura massiva,<br />

funcionando como um espelho para o leitor, recondiciona uma narrativa que requer receptores diferenciados, que<br />

possam decodificar e reconhecer no texto os elementos parodísticos, as citações, o jogo de ironia e, sobretudo, os<br />

simulacros.<br />

A idéia de thriller policial também pode ser tomada como um dos processos utilizados pelo autor para<br />

sustentar o princípio de simulação do romance. Tal fato indica um duplo movimento no plano da diegese:<br />

aumentar o potencial dramático da ação no que respeita aos movimentos de desdobramentos da trama<br />

sustentada pelo mistério do desaparecimento de Dulce Veiga; incidir sobre a descaracterização de alguns<br />

elementos do gênero através do exagero e da ridicularização, elevando o índice parodístico da narrativa.<br />

Segundo Muniz Sodré (1988, p. 38), a palavra thriller, “como variante do gênero policial, tem sido forte<br />

constante de inspiração à indústria cinematográfica e, sem dúvida nenhuma, fonte de conhecimento dos<br />

bastidores do poder dos grandes centros urbanos”.<br />

Thriller é uma palavra para todo uso, cujo sentido convém precisar. A narrativa de ‘fazer<br />

medo’ deve entender-se de duas maneiras. De um lado, há a narrativa de espanto, cujo<br />

modelo deve ser procurado no velho romance ‘noir’ [...] A detecção aí não desempenha<br />

nenhum papel. Por outro lado, há esse novo romance policial americano que não<br />

procura absolutamente espantar, mas que faz mal pela dureza de certas cenas<br />

(BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 59 – grifo dos autores).<br />

O thriller, romance noir, ou também “policial americano” (REIMÃO, 2005, p. 11), de modo geral, destacase<br />

ou difere-se do romance policial tradicional pela presença de alguns elementos que colaboram para a<br />

degradação do ambiente em que é narrada a história. Claro que a temática do noir, parentesco que mantém com<br />

a tradição do policial, está centrada em algum crime, mas com o diferencial de personagens, ambientes e<br />

situações que fogem aos padrões clássicos das narrativas policiais mais tradicionais. No romance ou no filme noir,<br />

aparecem heróis/detetives (ou anti-heróis) nada elegantes, pouco afeitos ao cerebralismos dos investigadores dos<br />

policiais europeus e seus talentos para desvendar soluções enigmáticas ou crimes. Contrariamente, a narrativa do<br />

noir revela toda a obscuridade dos violentos centros urbanos, a marginalidade e a brutalidade dos becos sujos,<br />

onde se encontram personagens execráveis. É o “bas-fond social” (REIMÃO, 2005, p. 12) que é mostrado nos<br />

romances deste gênero. Metido em tramas complexas, o detetive do noir é “duro, elíptico, desarrumado, hirsuto”<br />

(BOILEAU; NARCEJAC, 1988, p. 58).<br />

Na trama de Onde andará Dulce Veiga?Um romance B, Caio explora estas características, perceptíveis<br />

em muitos momentos do romance, salientando os clichês do gênero de forma que a narrativa seja divida em duas<br />

ambiências: a underground da metrópole apodrecida, cujo cenário é o da prostituição, das drogas e da<br />

marginalidade; e a totalmente kitsch, evidenciada pela cafonice de cenários e personagens.<br />

Em meio à paródia detetivesca, a visão que o leitor tem do protagonista é uma espécie de mistura do<br />

sujeito descentrado de Hall (1998), de um ‘eu’ esquizóide de Deleuze e Guattarri (1976), do fractal de Baudrillard<br />

(1976), isto é, sem identidade fixa – traço comum nas personagens de Caio Fernando Abreu – , mas que,<br />

ironicamente, é temperado ao tom do humor, traço que aponta para os sinais do triunfo da superficialidade, do<br />

vazio e da efemeridade da pós-modernidade. Nesse sentido, a narrativa realiza a marcação dos estereótipos e<br />

das formas ritualizadas do processo de imitação. Tanto o sujeito problemático quanto o risível são amalgamados<br />

em uma só pessoa. “O bem e o mal cozinhando no mesmo caldeirão. Não rimos mais dos outros, mas, à la Woody<br />

Allen, rimos de nós mesmos” (VILLAÇA, 1996, p. 138 – grifo da autora).<br />

24


Abri o chuveiro, mas a água fria não conseguia resgatar aqueles restos e reflexos de<br />

imagens perdidas, viradas pelo avesso. Entre os pêlos negros do peito, contei à toa dois<br />

fios inteiramente brancos. Amanhã serão três, pensei. Depois dez, cem. Mil, em direção<br />

a quê? A um daqueles senhores cinqüentões em que talvez me tornaria em breve, tufos<br />

de pêlos grisalhos escapando pelo colarinho aberto, uma corrente de ouro entre eles.<br />

Digno, só um pouco patético. Essa era a melhor maneira de ficar deprimido pelo resto do<br />

dia. Então tive vontade de cantar, que estava tudo, tudo certo, repeti esfregando a<br />

cabeça, mas não lembrava nenhuma canção, eu não sabia cantar, navegando naquele<br />

pequeno milagre que começara a acontecer há dois dias. Um emprego: acordar, tomar<br />

banho, fazer a barba, beber café – e ter para onde ir (ABREU, 1990, p. 76).<br />

Nesse caso, o “ter para onde ir” é o mesmo que poder recomeçar, redescobrir-se diante do frenesi da<br />

metrópole que “parecia metida dentro de uma cúpula de vidro embaçada de vapor. Fumaça, hálitos, suor<br />

evaporando, monóxido, vírus” (ABREU, 1990, p. 16). A função de jornalista, então, abre-se na possibilidade da<br />

descoberta (de si e do outro). Vê-se que a crônica, gênero consagrado pelo veículo jornalístico, que fora publicada<br />

em homenagem à cantora tem papel fundamental no romance porque marca a associação não apenas com o<br />

ofício de escritor, mas, inegavelmente, serve como alavanca para desencadear o processo investigativo da<br />

narrativa. De autor a detetive, o jornalista passa a se alimentar de pistas, e não mais de notícias. O vazio dá lugar<br />

à expectativa.<br />

Pontes e pistas que se ligam, por vezes evidências óbvias demais para que ninguém<br />

nunca as tivesse observado antes, coincidências descabidas que falseiam a história são<br />

características dessa obra que, pela maneira como são associadas, atribuem certa ironia<br />

crítica da narrativa ao discurso do romance policial. Ela recupera esse discurso e sua<br />

visão de mundo de forma acentuada, aproximando-o do ridículo e associando-o a outro<br />

tipo de mistério que muitas vezes se contradiz à objetividade do mistério policialesco<br />

(JASINSKI, 2000, p. 78).<br />

Ao contrário do narrador objetivo do romance noir, que “nunca se comove, nunca toma partido” (BOILEAU;<br />

NARCEJAC, p. 61), o narrador do romance de Caio entra numa espécie de paranóia, acentuando, assim, seu<br />

envolvimento com o desaparecimento de Dulce Veiga. Os discursos enigmáticos das personagens em relação às<br />

possíveis pistas do paradeiro da cantora são articulados na narrativa a fim de problematizar o andamento da<br />

solução do mistério. A obscuridade dos relatos a respeito de Dulce prende o leitor na trama, acreditando num<br />

desfecho que possa surpreender. Entretanto, como pontua Sandra Reimão (2005, p. 12), “no romance policial noir<br />

não existe verdade final indiscutível, inquestionável, uma interpretação acima de qualquer suspeita”.<br />

O próprio Caio, ao comentar o romance em entrevista a José Castello (1995, p. 3-4) ressalta que: “O leitor,<br />

se puder, vai entender então que Dulce está ligada ao Santo Daime e isso provocará um choque violento porque,<br />

provavelmente, ele estava lendo o livro como um romance policial”. Isso já revela uma proposta de ruptura com o<br />

romance policial, indicando, antes de mais nada, o caráter de desapropriação do gênero em favor de reciclagens e<br />

transformações. Assim, o deslocamento de matrizes culturais como esta – o policial – permite que a narrativa<br />

resulte em novos produtos. A respeito da adulteração dos produtos massivos, Borelli (1996, p. 193), conclui que,<br />

“se, por um lado, os gêneros perdem parte de sua autenticidade com adaptações [...], por outro, ganham em<br />

diversificação e ampliam seus limites em direção a interessante processo de desterritorialização”.<br />

As descobertas sobre o sumiço de Dulce Veiga vão sendo projetadas no romance conforme o protagonista<br />

vai tateando situações e pessoas. O triângulo afetivo concentrado em Dulce Veiga, Alberto Veiga e Saul é pontochave<br />

para o desfecho do mistério. Descobre-se, então, que Dulce mantinha uma relação extraconjugal com Saul,<br />

um ativista político que fora exilado em tempos de ditadura militar no país. Assim, é levantada no romance outra<br />

especulação – a de que Márcia poderia não ser realmente filha de Alberto Veiga. Especulação que se confirma<br />

quando o jornalista vai ao encontro de Lilian Lara, que fora, afinal, “a última pessoa a ver Dulce Veiga” (ABREU,<br />

1990, p. 171). Imaginando receber a visita do jornalista para uma entrevista sobre sua carreira de sucesso como<br />

atriz, Lilian Lara fala o tempo todo de seus papéis, chegando a colocar uma fita de vídeo sobre o filme que fizera<br />

com Dulce: “Quando Dulce desapareceu [...] nós estávamos fazendo um filme juntas. Eu peguei uns fragmentos,<br />

mandei montar este vídeo. É a última imagem dela” (ABREU, 1990, p. 174). A passagem que narra a ida do<br />

jornalista à casa da atriz reforça a idéia do procedimento híbrido da narrativa. Em primeiro lugar, porque a<br />

personagem de Lilian só apresenta um certo glamour quando vista no vídeo do filme, produzido há vinte anos. Na<br />

realidade da ficção, esta personagem é apresentada na superfície, sem nenhuma densidade, vivendo ainda de um<br />

modelo identitário do passado, mediado por imagens cinematográficas ou televisivas. Em segundo lugar, tem-se a<br />

configuração do tempo e do espaço desmontada pelos artifícios das imagens. O paralelismo entre realidade e<br />

ficção se desdobra em ‘realidade da narrativa’ e ‘ficção propriamente dita’. No filme “em preto e branco” (ABREU,<br />

25


1990, p. 175) mostrado ao jornalista, Dulce aparece sentada numa poltrona. Nesse sentido, cruzam-se a imagem<br />

real de Dulce na narrativa e a imagem do filme. Nessa passagem do romance, embora sabendo ser “um fracasso<br />

como detetive” (ABREU, 1990, p. 169), o jornalista é surpreendido com duas revelações bombásticas. Saul era o<br />

pai de Márcia, e não o marido Alberto Veiga. Dulce o havia deixado para viver com Saul que “foi preso, torturado,<br />

e quando saiu da prisão, meio louco, Dulce tinha desaparecido e Alberto mandara Márcia para bem longe. Aí ele<br />

foi parar num hospício, durante anos” (ABREU, 1990, p. 174). A segunda revelação: Patricia era filha de Lilian<br />

Lara.<br />

A pluralidade de fontes e pistas nesse romance é uma constante no texto como tentativa de clicherizar a<br />

dramatização de narrativas policialescas. Cruzada com um número imenso de imagens, percebe-se que Onde<br />

andará Dulce Veiga? Um romance B subverte a racionalidade típica do thriller policial, pois permite ao leitor<br />

vivenciar ou assistir às mazelas e às ambigüidades do sujeito problemático.<br />

O desfecho da trama dá-se como uma espécie de dessacralização do mito de Dulce Veiga. Dulce, que,<br />

nas palavras do editor Castilhos, era "a mais elegante, a mais dramática, a mais misteriosa e abençoada com<br />

aquela voz rouca que conseguia dar forma a qualquer sentimento […]. E era linda, tão linda" (ABREU, 1990, p.<br />

48), é encontrada no final do romance cantando numa churrascaria como uma senhora de vida simples,<br />

totalmente alheia ao universo artístico. A dessacralização do mito ocorre na narrativa por força da ilusão perdida,<br />

dos desejos não realizados, do aniquilamento de um tempo de esperança. No diário da cantora, encontrado pelo<br />

jornalista, em que se descobre um mapa apontando a cidade Estrela do Norte, espécie de comunidade alternativa,<br />

Dulce confessa querer "outra coisa". A estrela dá lugar, então, à mulher em conflito.<br />

Procurar Dulce Veiga é uma maneira metafórica de montar o quebra-cabeça da própria existência do<br />

jornalista. Desvendar pistas e interpretar os sinais fazem de Onde andará Dulce Veiga? Um romance B não<br />

apenas um romance aparentemente do tipo B, romance policial, mas um verdadeiro projeto de busca de um<br />

centro, de uma certa unidade, tanto para o desfecho da trama, bem como para o jornalista.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga?. São Paulo: Cia das Letras, 1990.<br />

BAUDRILLARD, Jean. L’échange symbolique et la mort. Paris: Gallimard, 1976.<br />

BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991.<br />

BORELLI, Silvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo:<br />

EDUC: Estação Liberdade, 1996.<br />

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. São Paulo: Martins Fontes, 1987.<br />

CASTELLO, José. Caio Fernando Abreu vive surto de criação. O Estado de São Paulo, São Paulo, 9 dez. 1995.<br />

Caderno 2, p. 3-4.<br />

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976.<br />

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro.<br />

Rio de Janeiro: DP&A, 1998.<br />

JASINSKI, Isabel. Simulações do mistério: olhar orquestrador de vozes em Onde andará Dulce Veiga?. Revista<br />

Letras, Curitiba, n. 53, p. 65-81, jan./jun. 2000.<br />

REIMÃO, Sandra. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.<br />

SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988.<br />

SONTAG, Susan. Notas sobre o Camp. Contra a interpretação. Trad. Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM,<br />

1987, p. 318-337.<br />

VILLAÇA, Nizia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito & ficção. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.<br />

26


ERNESTO SÁBATO E A ARTE DE RESISTIR<br />

21<br />

Professora de Letras pela FAFIUV, Mst. em Estudos Literários pela UFPR.<br />

27<br />

Inês Skrepetz 21<br />

Unidos na entrega aos outros e no desejo absoluto de um<br />

mundo mais humano, resistamos.<br />

Ernesto Sábato, A Resistência, 2008, p. 98.<br />

Na virada do século, em 2000, o escritor argentino Ernesto<br />

Sábato, então com 89 anos e uma das vozes mais lúcidas da<br />

América Latina, envia para seus leitores e ao mundo cinco cartas<br />

que, parafraseando Bosi (2002), seriam uma criação simbólica<br />

grávida de valores e sentimentos de resistência. O livro de Sábato<br />

porta o título do objetivo de sua mensagem, A Resistência, uma<br />

obra que abarca o conhecimento de um escritor de profunda<br />

vivência e reflexão existencial. Em um livro anterior, O escritor e<br />

seus fantasmas, Sábato já havia colocado que, tanto para o bem<br />

quanto para o mal que “o verdadeiro escritor escreve sobre a<br />

realidade que sofreu e de que se alimentou”. (1985, p.57). Neste<br />

sentido, A Resistência, obra traduzida para o português somente<br />

em 2008, rompe fronteiras instigando a nossa época e também a<br />

realidade brasileira, justamente pelo crivo crítico em relação ao<br />

sistema globalizado em que vivemos hoje, denunciando a pobreza<br />

do terceiro mundo, como quando se refere sobre a situação dos<br />

“meninos de rua” em nosso país. Este pensamento inquieto de<br />

Caricatura de Ernesto Sábato<br />

Ernesto Sábato, envolvido e desencantado no decorrer de sua<br />

carreira, com tantos “ismos”: surrealismo, comunismo, marxismo,<br />

cientificismo e até mesmo humanismo – ao qual faz, dentro de sua obra, em foco, uma crítica incômoda, apesar<br />

de ainda ser considerado por muitos estudiosos como um dos maiores escritores humanistas da atualidade.<br />

Mesmo em sua maturidade serena, ele não perdeu sua agudez de espírito, transformando-se em um<br />

escritor e intelectual que não apenas reproduz fatos, mas que os critica, reinventa e aponta caminhos para que a<br />

resistência diante dos poderes desumanizadores seja realmente concretizada de uma forma que sua voz, através<br />

das cartas, não se limita apenas em expor a crueldade que violenta a condição humana cotidianamente, nem tão<br />

pouco se refere a uma descrença absurda e um niilismo obscuro, mas poeticamente inicia sua obra, na primeira<br />

carta, com uma confiança e ternura de quem acredita na humanização do “ser” e da vida. Volta-se, assim, ao<br />

espaço da arte, da literatura como um meio de resistir às banalizações, uma forma de permitir o encontro das<br />

pessoas consigo mesmo e os outros, possibilitando que as relações pessoais sejam humanizadas e não somente<br />

uma intenção para satisfazer desejos e interesses egoístas.<br />

Esta resistência humana, sem atos violentos, faz com que Sábato não seja prisioneiro das estruturas<br />

alienantes do sistema e do poder, permitindo com que a sua mensagem, ao ser enviada, esteja carregada de<br />

vivência, e não somente de uma união fria de palavras. Esta atitude de resistir faz com que ele não caia na<br />

metafórica armadilha Kafkiana do personagem Gregor Samsa, em A metamorfose: “Ao acordar de sonhos<br />

inquietantes, Gregor Samsa deu por si mesmo como transformado num gigantesco inseto” (1992, p. 9). Mesmo<br />

transformado, metamorfoseado num inseto, o personagem conserva a capacidade de se emocionar e sofrer, mas<br />

não consegue resistir as pressões do seu meio e num dia qualquer “apenas morre” – sendo, como um inseto<br />

morto, simplesmente “jogado fora”.<br />

Este fragmento da obra de Kafka, a priori, nos leva a pensar que as pessoas com sensibilidade mais<br />

aguçada para detectar e sentir as contradições e repugnâncias dos poderes estabelecidos e alienantes não<br />

possuem um espaço na sociedade, e que a forma mais fácil de se “livrar” delas é subtraindo toda e qualquer<br />

relação humana, como aconteceu com Samsa – seu isolamento não foi opcional, na verdade ele se viu obrigado a<br />

esconder-se dos outros por causa de sua condição e estado repugnantes. Gradativamente, a rejeição e sua<br />

anulação como ser produtivo apresentam-se como formas de aniquilação do indivíduo, num sistema que não<br />

reconhece nem aceita a diferença.<br />

O trecho de A Metamorfose nos incita à reflexão, ainda mais quando identificamos que Sábato, ao iniciar<br />

sua primeira carta, escreve como se tivesse acordado de “sonhos inquietantes”, e ao dar-se por si, se visse


transformado em alguém que ainda acredita numa vida mais humana, e que não se deixa aniquilar pelo meio: “Há<br />

certos dias em que acordo com uma esperança demencial, momentos em que sinto que as possibilidades de uma<br />

vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos. Hoje é um desses dias”. (2008, p.13). Portanto, a diferença<br />

entre Sábato e o personagem de Kafka está no ato de resistir. Mas como?<br />

A obra A Resistência é um caminho para resistir diariamente. No seguir deste artigo analisaremos, pois,<br />

algumas das estratégias de resistência que são apresentadas no livro, e que elegemos como mais relevantes<br />

neste momento. Entre estas estratégias, estão a Arte e a Serenidade. A vida moderna e conturbada impossibilita,<br />

muitas vezes, a reflexão existencial e as relações humanas, inibindo o senso crítico e nos tornando cúmplices de<br />

um poder desumano ora por comodidade, ora por inação. Abordaremos assim a importância da Arte (em Sábato<br />

posta de modo genérico, como pintura, poesia, música, etc.) como aliada da Serenidade, enquanto um exercício<br />

estético e mental que responde aos anseios e angústias do ser humano, principalmente da juventude, nas<br />

gerações atuais.<br />

Esta, conforme Sábato, quase sempre se encontra perdida na vertigem competitiva e consumista da<br />

atualidade, que não deixa espaço, frequentemente, para a originalidade, a imaginação e a criatividade. Numa<br />

frase belíssima de Herman Hesse que poderíamos utilizar para sintetizar o pensamento de Sábato, “a<br />

serenidade...é o segredo da beleza e a substância de toda arte”. (1970, p.8).<br />

O Discurso de Resistência<br />

Bosi (2002), em seu livro Literatura e Resistência, propõe que a resistência possui várias faces, formas e<br />

maneiras diversas pelas quais se pode resistir, mas o seu sentido mais profundo recorre a uma força de vontade e<br />

de caráter, capaz de se defender das pressões externas e recorrentes da vida. Bosi a define, inicialmente, como:<br />

Resistência é um conceito originalmente ético, e não estético. O seu sentido mais<br />

profundo apela para a força de vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito.<br />

Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato mais próximo é in/sistir, o<br />

antônimo familiar é des/sistir. (BOSI, 2002, p. 118).<br />

Refletindo nesta via, podemos pensar que “resistir” possui proximidade ao cognato “insistir”, ou seja, é<br />

uma força de vontade que não desiste perante a outra. Mas esta tensão, que permeia a própria ideia de<br />

resistência, faz com que a relação eu/mundo e eu/outro seja expressa numa perspectiva crítica constante na<br />

própria escrita ou discurso, tornando-a não mais uma variante da rotina social, mas o seu reverso. Bosi (2002,<br />

p.130), aprofunda ainda mais a questão ao colocar que a vida e o mundo são representados, no discurso literário,<br />

como “objeto de busca e construção, e não a vida como encadeamento de tempos vazios e inertes”, questionando<br />

assim até a ideia que temos de realidade, que se transforma muitas vezes numa “apologia conformista da ‘vida<br />

como ela é’”. Neste sentido, Bosi rompe com a ideia de que a escrita é apenas uma reprodução do que se<br />

entende, ou imagina-se entender, do que seria a realidade; e esta, permeada pela tensão crítica que envolve a<br />

análise dos fatos, faz com que o próprio real seja posto em xeque, sem que seja necessário recorrer a retóricas<br />

presunçosas nem alardes ideológicos. Pode-se, assim, desmistificar os discursos de conformidade, mecanismos<br />

alienantes que se arrastam comprimindo os valores humanos, “precisamente o contrário da vida plena e digna de<br />

ser vivida” (idem). Como Sábato coloca na segunda carta de A Resistência, refletindo sobre os antigos valores,<br />

que estão quase em desuso nos dias atuais:<br />

A vida dos homens centrava-se em valores espirituais, hoje quase em desuso, como a<br />

dignidade, o desinteresse, o estoicismo do ser humano perante a adversidade. Esses<br />

grandes valores, como a honestidade, a honra, o apreço pelas coisas bem – feitas, o<br />

respeito pelo outro, nada disso era excepcional, mas coisas que se encontravam na<br />

maioria das pessoas. De onde vinha sua força, sua coragem perante a vida? (SÁBATO,<br />

2008, p. 36).<br />

Dando continuidade a esta reflexão sobre o conceito de resistência, podemos aceitar, por conseguinte,<br />

que o “resistir” é primeiramente um conceito ético, a força de vontade e de caráter em não desistir diante de outras<br />

forças opressoras; e, dentro da escrita e do discurso, ela se faz presente de uma forma muito intensa quando é<br />

permeada pela tensão crítica, permitindo a conversão mútua entre o ético e o estético, principalmente por se tratar<br />

de um escritor – neste caso Sábato – que faz parte de um “tecido vivo” gerado pela sua própria cultura. Esta<br />

mesma cultura, quando analisada dentro da questão escrita/discurso, é posta à prova em sua constituição<br />

existencial e histórica. Bosi esclarece como ocorre esta conversão mútua entre o ético e o estético dentro da<br />

resistência:<br />

A translação de sentido da esfera ética para a estética é possível, e já deu resultados<br />

notáveis, quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em<br />

28


sociedade: os seus valores. A força desse imã não pode subtrair os escritores enquanto<br />

fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura. (2002, p.120).<br />

Assim sendo, como afirma Bosi (2002, p. 135), a narrativa resistente “abraça e transcende a vida real”,<br />

não há como o escritor apenas reproduzir os discursos existentes socialmente e nem tão pouco se elevar<br />

metafisicamente deles, mas sim colocá-los em crise para que haja uma profunda reflexão do que se é<br />

determinado como “valores na realidade”. A “resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que<br />

ilumina o nó inextrincável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico”. (2002, p. 134).<br />

Memória e Resistência<br />

Consequentemente, antes de nos determos um pouco mais na obra A Resistência, é importante<br />

deixarmos claro, como afirma Bosi (2002, p. 129), que é necessário aprofundarmos o campo de visão, e que<br />

independentemente de qualquer cultura política militante, podemos detectar em certas obras “uma tensão interna<br />

que as faz resistentes, enquanto escrita, e não só, ou não principalmente enquanto tema”. Por isso, ao elegermos<br />

especificamente A Resistência, queremos deixar claro que não se trata de uma obra gerada a partir de um<br />

contexto militante político-partidário, dentro de uma mentalidade “anti-burguesa” que somente lança um “não....à<br />

ideologia dominante”. Mas sim, por se tratar de uma literatura contemporânea que se coloca na arena dos<br />

conflitos existenciais e sociais - onde se faz presente esta tensão crítica delineada por Bosi, em que se aventa<br />

também a relação das discussões sobre o que seriam os principais problemas da realidade e suas possíveis<br />

soluções.<br />

Neste sentido, a resistência proposta por Bosi (esta conversão mútua entre o ético e o estético, e que<br />

encontramos na obra de Sábato), refere-se a uma tensão crítica que ilumina a consciência existencial histórica e<br />

social do indivíduo, principalmente, “quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em<br />

sociedade: os seus valores”. (2002. P. 120). É o que Sábato apresenta neste trecho da primeira carta: Se nos<br />

tornamos incapazes de criar um clima de beleza no pequeno mundo ao nosso redor, e só tentarmos às razões do<br />

trabalho, muitas vezes desumanizado e competitivo, como poderemos resistir? (SÁBATO, 2008, p. 17).<br />

A narrativa resistente, como nos afirma Bosi (2002, p.134) “abraça e transcende a vida real”. Ela torna o<br />

escritor um sujeito ativo na sociedade, um testemunho vivo do seu tempo, consciente do seu ofício e de sua<br />

vocação, que apesar dos desencantos com as ideologias, como no caso de Sábato, não arrefeceu sua crença na<br />

humanidade:<br />

Quizá, por mi formación anarquista, he sido siempre una especie de francotirador<br />

solitario, perteneciendo a esa clase de escritores que, como señaló Camus: “uno no se<br />

puede ponerse del lado de quienes hacen la historia, sino al servicio de quienes la<br />

padecen”. El escritor debe ser un testigo insobornable de su tiempo, con coraje para<br />

decir la verdad, y levantarse contra todo oficialismo que, enseguecido por sus intereses,<br />

pierde de vista la sacralidad de la persona humana. (SÁBATO, 1998, p. 39).<br />

Neste sentido, a atitude do escritor como um intelectual resistente diante dos poderes que não permitem a<br />

plenitude da edificação dos valores, que constituem o ser humano, conforme Sábato, deve ser de coragem para<br />

desmistificar a verdade, e isto só pode ser concretizado a partir da consciência crítica, uma reflexão profunda e<br />

ativa da realidade. Sábato já havia iniciado esta reflexão em O escritor e seus fantasmas (1961), quando indica<br />

que a memória é uma forma de resistência, e que sempre estará sendo resgatada em suas obras posteriores, o<br />

que denota a atitude de um intelectual inquieto, voltado sempre para a condição humana e o papel do escritor<br />

como testemunha desta: “O escritor consciente (dos inconscientes não me ocupo neste livro) é um ser integral que<br />

atua com plenitude de suas faculdades para dar testemunho da realidade humana”. (1961, p.150).<br />

Tal entendimento contribui para a reflexão sobre memória e resistência que irá desaguar na consciência<br />

crítica, social e histórica do indivíduo e na sua atitude diante dos poderes alienantes (que, conforme Sábato, não<br />

são apenas engendrados por sistemas político-partidários, mas também pelos meios midiáticos e outros). Por isso,<br />

se faz interessante trazer para esta problematização uma entrevista dada por Edwrad Said, e publicada em seu<br />

livro Cultura e Resistência (2003). Nela, Said (parafraseando Milan Kundera), afirma que “a luta do homem contra<br />

o poder é a luta da memória contra o esquecimento” (2006, p. 183). E a partir desta afirmação, Said declara que:<br />

A memória é um poderoso instrumento coletivo para se preservar a identidade. E é algo<br />

que pode ser transmitido não só por meio de livros e narrativas oficiais, mas também por<br />

meio da memória informal. É uma das principais defesas contra o apagamento histórico.<br />

É um meio de resistência. (2006, p.184).<br />

Nesta perspectiva, Said (2003) prossegue discutindo que não há cultura sem resistência, e que sem<br />

resistência não há cultura. Só é possível resistir com conhecimento. É desta forma que a memória torna-se um<br />

29


meio para que a resistência (esta conversão mútua entre o ético e o estético) seja concretizada, penetrando a<br />

narrativa e o discurso cotidiano, transformando-se numa atitude consciente e crítica da realidade, explorando os<br />

valores dentro desta força catalisadora, que é a vida em sociedade.<br />

Partindo da afirmação de Sábato, em sua obra Antes del fin, “el escritor debe ser un testigo insobornable<br />

de su tiempo, con coraje para decir la verdad, y levantarse contra todo oficialismo que, enceguecido por sus<br />

intereses, pierde de vista la sacralidad de la persona humana”. (1998, p.39). Podemos, então, entrar em outro<br />

paradigma que gera este artigo, que é a atitude do escritor, enquanto intelectual inserido numa sociedade, perante<br />

os poderes ideológicos que subtraem os valores que constituem o ser humano. Como nas palavras do seu<br />

tradutor Sérgio Molina (2008, p.110): “sem sucumbir ao ceticismo ou à paralisia, o escritor insiste na atualidade de<br />

valores como a liberdade, a solidariedade e a imaginação como formas de resistência à barbárie que avança”.<br />

Neste sentido, a resistência em Sábato é cotidiana, diária, transpassada pela consciência crítica em todos os seus<br />

momentos. Sua concepção de resistência entende não somente o que deve mudar mas também, como mudar,<br />

chamando para o não conformismo diante da banalização dos sentidos no curso da existência humana:<br />

O homem está se acostumando a aceitar passivamente uma constante invasão<br />

sensorial. E essa atitude passiva acaba sendo uma servidão mental, uma verdadeira<br />

escravidão. Mas há um jeito de contribuir para a proteção da humanidade, e é não se<br />

conformar. (SÁBATO, 2008, p. 16).<br />

Não basta apenas a crítica, mas é necessário, também, apontar os caminhos para a sua concretização.<br />

Assim sendo, percebemos em Sábato a caracterização de um escritor e intelectual envolvido num profundo<br />

humanismo crítico, que em certos momentos ressalta a importância dos valores gerados dentro da cultura<br />

formadora e, outras vezes, faz da crítica mordaz uma prática de resistência a esta mesma cultura – que, mais<br />

frequentemente do que imaginamos, age como um invólucro hermético no ser humano, impondo-lhe a realidade<br />

conformista: “o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida”<br />

(BOSI, 2002, p. 130).<br />

É neste sentido que Sábato (2000), em sua obra A Resistência, resgata o pensamento de Gandhi, o<br />

grande revolucionário e pacifista indiano, em que a única revolução possível é a realizada dentro do próprio ser<br />

humano. Isto significa que não há um pensamento anti-social, mas sim, que só é possível transformar o ser a<br />

partir de uma reflexão interior. Assim, é nesta via que segue a atitude de “escritor-intelectual-humanista” de<br />

Sábato, o qual compreende a realidade do mundo, mas também coloca-o em discussão como uma forma de<br />

resistência. Por isso, mesmo com uma visão preocupante e “sombria” da atualidade, ele não sucumbe à paralisia<br />

ou ao ceticismo, ele aponta atitudes humanas e concretas de resistência, esta que perpassa tanto o foco narrativo<br />

escrito, literário, quanto o seu discurso e as ações cotidianas.<br />

A arte de Resistir<br />

No decorrer deste artigo, até então, percorremos uma longa trajetória para que pudéssemos chegar com<br />

mais clareza até a obra, especificamente, d’A Resistência. Quando Bosi afirma que o texto literário é uma<br />

“formação simbólica grávida de sentimentos e valores de resistência” (2002, p.132), percebemos que esta obra de<br />

Sábato nos permite um vasto campo de análise, mas é necessário, para uma maior profundidade, nos determos<br />

nos conceitos e aspectos que nos propomos a refletir desde o início. O principal deles é o conceito de resistência,<br />

gerado pelo autor em sua “formação simbólica”, que é o texto literário, bem como uma de suas estratégias, a Arte:<br />

A arte foi o porto definitivo onde preenchi meus anseios de navio sedento e à deriva.<br />

Cheguei a ela quando a tristeza e o pessimismo já haviam roído meu espírito, de tal<br />

maneira que, como um estigma, ficaram para sempre entrelaçados à trama da minha<br />

existência. Mas devo reconhecer que foi justamente o desencontro, a ambigüidade, esta<br />

melancolia ante o efêmero e o precário a origem da literatura em minha vida. (SÁBATO,<br />

2008, p. 59-60).<br />

30


Entendida como uma forma de canalizar e expressar a angústia, a vertigem da<br />

vida moderna gerada pelo consumismo e pelo sistema competitivo, a Arte, em<br />

suas várias formas de atividade – literatura, pintura, escultura, etc. – é um<br />

campo aberto para a divagação consciente e para a expressão da resistência,<br />

por meio de denúncia, em imagens, de nossos condicionamentos mentais e<br />

ideológicos. Sábato, a partir de seu “balanço sombrio”, não se rende ao<br />

ceticismo e à paralisia, mas chama a atenção, principalmente da geração mais<br />

jovem, para que se voltem à arte, um espaço fértil para a originalidade,<br />

imaginação e criatividade. Sábato entende a arte como uma reflexão da própria<br />

existência, capaz de realizar, por meio do exercício intelectual e sensorial, uma<br />

viagem de autoconhecimento.<br />

Por conta desta definição, precisamos nos aprofundar mais, agora, n’ A<br />

Resistência em si. Sábato já navegou por várias formas de gênero literário, mas<br />

escolheu escrever esta última de forma epistolar, de modo a apresentá-la como<br />

uma reflexão existencial humana e instigante. Como ele mesmo afirma no<br />

epílogo: “sei que esta carta irritará muita gente, eu mesmo a teria repudiado Pintura de Sábato<br />

anos atrás”. Assim, A Resistência se trata de uma obra composta por cinco<br />

cartas (além do citado epílogo), através das quais o autor busca atrair o leitor por meio de uma expressão de<br />

intimidade, trazendo-o para o seu mundo existencial. Tais formas de expressão guardam um sentido estético<br />

apurado, tornando a obra convidativa, e o gênero epistolar mantém a propriedade “ficcional/funcional”, se tornando<br />

um espaço de reflexão e um meio de se aproximar mais intimamente do outro, como nos define Valverde (2000,<br />

p.2):<br />

Compreender as diferentes interações entre ficcionalidade e funcionalidade no gênero<br />

epistolar obedece a um esforço de equilibrar a norma e sua flexibilização,<br />

características inerentes a todos os gêneros literários. Ainda que possa ser subsidiário,<br />

numa relação esclarecedora, de afirmação e informação, entre autor e obra, julgamos<br />

ser o gênero epistolar um gênero autônomo que se impõe por si mesmo como um<br />

sistema aberto, dinâmico e heterogêneo.<br />

Assim sendo, Sábato foi hábil e criativo, empregando com sensibilidade e profundidade um meio de se<br />

expressar que condensa adequadamente informação e imaginação, permitindo que sua narrativa seja permeada<br />

pela criação de imagens críticas, e não apenas uma reprodução de informações forjadas por um mecanismo<br />

cultural alienante.<br />

Neste sentido, cada carta é escrita tematicamente. Sábato vai, gradativamente, investigando a vida, a<br />

sociedade, recorrendo muitas vezes à memória, e partindo desta consciência crítica social e histórica para que,<br />

compreendendo melhor a realidade, possa escolher também a melhor forma de resistir. Esta reflexão, pautada em<br />

uma grande carga de experiências de vida, torna A Resistência uma “mensagem na garrafa em busca de<br />

interlocutores que ainda não se desumanizaram”. (MOLINA apud SÁBATO, 2008).<br />

Desta forma, na primeira carta, Sábato critica a globalização, numa época em que os meios de<br />

comunicação se tornam cada vez mais avançados e a relação humana continua, todavia, precária. Por isso, ele<br />

enfatiza as pequenas atitudes da vida como geradoras de grandes valores, o que se desdobra na segunda carta,<br />

quando ele resgata os “antigos valores” – o mítico, a religião, o sagrado – como formas de resistência ao<br />

sentimento de orfandade que assola o nosso tempo. Na terceira carta, ele chama a atenção dos adultos para<br />

advertirem as crianças sobre os riscos planetários, para a questão do meio ambiente, e as atrocidades das<br />

guerras: “é importante que elas se sintam parte de uma história ao longo da qual os seres humanos fizeram<br />

grandes esforços e também cometeram tremendos enganos”. (SÁBATO, 2008, p.56). Na quarta carta, há um<br />

aprofundamento dos valores comunitários, criticando o consumismo e a competição, deixando claro que esta crise<br />

não é precisamente do sistema capitalista, como muitos imaginam, mas é baseada na idolatria da técnica e na<br />

exploração do ser humano: “também não é possível vivermos em comunidade quando todos os vínculos se<br />

baseiam na competição”. (SÁBATO, 2008, p.77). A partir destas reflexões, Sábato chega à quinta carta,<br />

explicitando o que ele entende por resistência, e como encarnar esta palavra, não somente na narrativa escrita<br />

mas também, na vida cotidiana:<br />

Acredito que é preciso resistir: esse tem sido meu lema. Hoje, contudo, muitas vezes<br />

me pergunto como encarnar essa palavra. Antes, quando a vida era menos dura, eu<br />

teria entendido por resistência um ato heróico (...). A situação mudou tanto, que<br />

devemos reavaliar com muita atenção o que entendemos por resistência. Não posso<br />

lhes dar uma resposta. Se eu a tivesse, sairia por aí como o Exército da Salvação (...).<br />

31


Mas não. Intuo que é algo menos formidável, mais modesto, algo como a fé num<br />

milagre, o que quero transmitir a vocês nesta carta. Algo condizente com a noite em que<br />

vivemos, não mais do que uma vela, algo que nos ajude a esperar. (SÁBATO, 2008,<br />

p.87).<br />

Ao analisarmos este fragmento mais explícito sobre a ideia de resistência, percebemos que Sábato a<br />

expõe como algo simples, iluminativo, “não mais do que uma vela” (idem); “uma luz que ilumina o nó inextrincável<br />

que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico” (BOSI, 2002, p.134). Esta vela possui uma simbologia<br />

destacada neste contexto, principalmente por ela manter a “chama acesa” que permite iluminar, clarear o que se<br />

entende por realidade. Neste sentido, Sábato, enquanto escritor e intelectual, possui esta consciência crítica,<br />

iluminativa, que perpassa tanto a escrita literária de sua obra quanto permite se “distanciar” da “realidade”, e<br />

colocando-a em crise, estabelece o ponto de inflexão. Sábato tem esta criticidade intelectual, que nas palavras de<br />

Walter Benjamin, “consiste em escovar a história a contrapelo” (apud NOVAES, 2006, p.18), tornando a escrita e o<br />

discurso da resistência “não mais uma variante (...) da rotina social, mas o seu avesso” (BOSI, 2002, p.130). Por<br />

isso que este “distanciamento” permite que o indivíduo possa compreender a realidade para melhor resisti-la,<br />

“compreender resistindo e resistir compreendendo”, como afirma Bosi. (2002, p. 254). Sábato, deixa bem claro<br />

esta atitude de compreender a realidade e resistir diante dos poderes desumanizadores, principalmente quando se<br />

trata da competitividade exacerbada dos dias atuais:<br />

Também não é possível vivermos em comunidade quando todos os vínculos se<br />

baseiam na competição. É inegável que ela faz aumentar o rendimento de certas<br />

pessoas, que se sentem incentivadas pelo desejo de triunfar sobre os outros. Mas não<br />

podemos nos enganar, a competição é uma guerra não armada, e como toda a guerra<br />

se baseia num individualismo que nos separa dos demais, que se tornam os rivais a<br />

combater. (SÁBATO, 2008, p.77).<br />

E complementa posteriormente, que:<br />

Quando critico a competição, não o faço apenas por um princípio ético, mas também<br />

pela enorme satisfação de compartilhar o destino, e que nos salva de ficarmos<br />

esterilizados pela corrida para o êxito individual a que se tem resumido a vida do<br />

homem. (SÁBATO, 2008, p.77).<br />

Desta forma, trazendo esta reflexão sobre o individualismo de nossa época, gerada pela competitividade<br />

exarcebado e pelo consumismo violento, em que o “ter” se sobrepõe ao “ser”, Sábato reflete sobre a condição da<br />

juventude, que acaba se tornando vítima e reprodutora desta vertigem, um campo fértil para o niilismo, ou seja, o<br />

aniquilamento dos valores:<br />

Ontem recebi a carta de um rapaz, que nela me diz “tenho medo do mundo”. Dentro do<br />

mesmo envelope, mandou-me uma fotografia, e nela pude perceber algo, em seu jeito<br />

de olhar, em suas costas encurvadas, que revelava uma enorme desproporção entre<br />

seus recursos e a terrível realidade que o perturba. Sempre houve ricos e pobres,<br />

salões de dança e masmorras, mortos de fome e faustosos banquetes. Mas, neste<br />

século, o niilismo se difundiu de tal maneira que a transmissão de valores às novas<br />

gerações vai se tornando impossível. (SÁBATO, 2008, p.75).<br />

Assim, Sábato, ao receber estas cartas angustiadas dos jovens, busca orientá-los para que se dediquem à<br />

arte como uma forma de canalizar estas angústias e desalentos, deixando-se tomar pelas forças invisíveis que<br />

agem nos seres humanos:<br />

Toda criança é um artista que canta, dança, pinta, conta histórias e constrói castelos.<br />

Os grandes artistas são pessoas estranhas que conseguiram preservar no fundo da<br />

alma essa ingenuidade sagrada da infância e dos homens que chamamos primitivos, e<br />

por isso provocam o riso dos imbecis. (SÁBATO, 2008, p.78).<br />

Contudo, para que a arte possa fazer parte da vida, principalmente da febril vida agitada dos jovens, é<br />

necessário percorrer um caminho, o qual Sábato aponta como sendo da serenidade: “é impossível o homem<br />

permanecer humano a essa velocidade (...). A serenidade, uma certa lentidão, é tão indissociável da vida do<br />

homem quanto a sucessão das estações para as plantas (...). (SÁBATO, 2008, p.86). E esta atitude serena, como<br />

resistência, não se remete somente à vida exterior, mas também a vida interior de cada ser humano, pois “a<br />

vertigem da velocidade não está somente fora, nós já assimilamos à mente que não pára de emitir imagens, como<br />

se ela também fizesse zapping”. (SÁBATO, 2008, p.86). Este fragmento nos lembra Gandhi (2004), quando ele<br />

fala que não existe mudança exterior se não houver mudança interior – neste sentido, Sábato reflete<br />

32


profundamente ao dizer que “talvez a aceleração tenha chegado ao coração, que já pulsa em ritmo de urgência<br />

para que tudo se passe rápido e não permaneça (...) perdemos o silêncio e também o grito”. O jovem, retido numa<br />

condição de inatividade, e não se reconhecendo mais como ser humano, deixa de ser livre, e não mais percebe a<br />

humanidade em seus semelhantes: “na vertigem da velocidade, tudo é temível e o diálogo entre as pessoas<br />

desaparece”. (SÁBATO, 2008, p.86).<br />

Por isso, a serenidade permite a análise da vida, a reflexão da realidade e a resistência diante da vertigem<br />

que não permite que a arte incorpore-se na vida, intensificando as relações humanas:<br />

A serenidade não é feita nem de brincadeiras nem de narcisismo, é conhecimento<br />

supremo e amor, afirmação da realidade, atenção desperta junto à borda de todos os<br />

abismos; é uma virtude (...), é indestrutível e cresce com a idade (...) é o segredo da<br />

beleza e a verdadeira substância de toda a arte. (HESSE, 1970, p.8).<br />

Assim sendo, somente um pouco de serenidade permitirá que a originalidade, a criatividade e a<br />

imaginação possam fazer parte da arte de resistir. Conforme Bobbio (2002), em sua obra Elogio da serenidade,<br />

não é fácil ser sereno, e a tentação da irritabilidade é contínua no mundo moderno; mesmo assim, ele dedica toda<br />

a obra a esmiuçar o sentido deste conceito, presente na proposta de resistência de Sábato. Bobbio escolheu a<br />

palavra serenidade justamente por advir do termo “mitezza”, vocábulo que somente a língua italiana herdou do<br />

latim, e que significa algo próximo à moderação e suavidade, uma disposição do espírito conhecedor que<br />

compreende e medita sobre si, o mundo, e as coisas, como Hesse (1970), coloca como um “profundo<br />

conhecimento”, e ao qual Bobbio também aborda como sendo uma virtude adquirida pelo hábito e com o tempo. A<br />

serenidade é um exercício, por isso ela não está ligada somente à contemplação, em que corre o risco de se<br />

desdobrar em comodismo e alienação; porém, desperta, ela é capaz de edificar um espírito resistente. Por isso,<br />

um pouco de serenidade – ou “um pouco de lentidão”, como nos coloca Sábato – para que a reflexão existencial,<br />

histórica e cultural faça parte de nossa resistência cotidiana. É interessante que Sábato não coloca a serenidade<br />

como uma norma, mas como uma estratégia suave e profunda, pois “a serenidade absoluta não é a lei do oceano.<br />

E o mesmo acontece com o oceano da vida”. (GANDHI, 1982, p.23).<br />

Portanto, por mais que o ser humano faça parte do tecido vivo de qualquer cultura, não há razão dele se<br />

posicionar nela apenas como vítima, pois tanto a narrativa quanto o discurso de resistência, de Sábato,<br />

incorporam a realidade, colocando-a em crise, e oferecem estratégias concretas de como resistir cotidianamente,<br />

assim como ele aponta o percurso da serenidade. Desta forma, o fragmento do personagem Gregor Samsa, de<br />

Kafka, ilustra estes “nós inextrincáveis” que destituem o ser de sua autonomia existencial, incapacitando-o de<br />

resistir ao seu meio. O caminho da serenidade, apontado por Sábato, permitirá que a arte incorpore-se na vida,<br />

onde a criatividade e a imaginação possam encontrar espaço dentro desta vertigem de nossa época, permitindo o<br />

diálogo e uma interação mais humana entre as pessoas. Concluímos, pois, este artigo com a mesma frase que<br />

Sábato conclui a sua quinta carta: “o mundo nada pode contra um homem que canta na miséria”. (SÁBATO, 2008,<br />

p.91).<br />

Referências<br />

ALBERTI, Verena. Literatura e Autobiografia: a questão do sujeito na narrativa in Estudos Históricos, voluma 4,<br />

número 7 Rio de Janeiro: FGV, 1991.<br />

ATTENBOROUGH, Richard. As palavras de Gandhi. São Paulo: Record, 1982.<br />

BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: UNESP, 2002.<br />

BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.<br />

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.<br />

CORREA, Maria A. Genio y figura de Ernesto Sábato. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires,<br />

2002.<br />

FILHO, Antônio Gonçalves. O balanço existencial de Sábato in Estado de São Paulo, Caderno Cultura,<br />

04/05/2008.<br />

GANDHI, Mahatma. A única revolução possível é dentro de nós. São Paulo: Projeto periferia, 2004.<br />

HESSE, Herman. O jogo das contas de vidro. São Paulo: brasiliense, 1970.<br />

LE GOFF, Jacques. Memória – História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.<br />

NOVAES, Adauto (org.) O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.<br />

33


SÁBATO, Ernesto. A resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.<br />

SÁBATO, Ernesto. Antes del fin. Buenos Aires: Seix Barral, 1998.<br />

SÁBATO, Ernesto. La Resistencia. Buenos Aires: Seix Barral, 2000.<br />

SÁBATO, Ernesto. O escritor e seus fantasmas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.<br />

SÁBATO, Ernesto. Uno y el Universo. Buenos Aires: Seix Barral, 1968.<br />

SAID, Edward. Cultura e Resistência. Rio de janeiro: Ediouro, 2006.<br />

SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.<br />

VALVERDE, Maria de. Carta, um gênero ficcional ou funcional? Évora: Universidade de Évora, 2001 in<br />

www.eventos.uevora.pt/comparada/volume1/htm acesso: 09/07/2008.<br />

34


A MÃO ESQUERDA E O TRISTE TEMPO: DENÚNCIA SOCIAL E ANTROPOLOGIA HISTÓRICA EM À MÃO<br />

ESQUERDA DE FAUSTO WOLFF<br />

Emerson Pereti 22<br />

Através de alguns ensaios recolhidos em seu livro “Modernização dos sentidos”, o professor e teórico<br />

Hans Ulrich Gumbrecht se empenha em analisar a natureza epistemológica da Modernidade. Para isso a divide<br />

em períodos históricos chave, nos quais foram se operando mudanças significativas nos meios de interpretação e<br />

representação no mundo ocidental. A intenção era usar a dinâmica dessa sequência como uma pré-história para<br />

discutir a identidade do próprio presente histórico. Segundo Gumbrecht, esse estado de coisas sob as quais vive<br />

grande parte da civilização ocidental, e que se convencionou chamar de Pós-modernidade, seria uma<br />

consequência da própria obsessão por inovações que é um legado do cronótopo “tempo histórico” da<br />

Modernidade. Um período em que a própria concepção de presente se faria como uma situação que desfaz,<br />

neutraliza e transforma os efeitos acumulados dessas modernidades que têm se seguido uma à outra desde o<br />

século XV. Estaríamos vivendo, de acordo com sua análise, uma passagem da concepção de tempo histórico<br />

como uma assimetria entre o passado (horizonte de experiência) e o futuro (horizonte de expectativa) para uma<br />

visão de mundo baseada em uma ideia de presente expansivo, em que nossa noção de “agora” adquire<br />

temporalidades múltiplas e simultaneamente vivenciáveis. Isso se configuraria efetivamente através do<br />

afastamento de uma perspectiva distópica de futuro, gerada pela constatação da lógica autodestrutiva do sistema<br />

tecnocrático capitalista, e da super capacidade de reprodução técnica do passado.<br />

Ambos os movimentos, o adiamento do futuro ameaçador para um futuro distante e o<br />

preenchimento do presente com múltiplos passados, convergem na impressão de que no<br />

tempo social pós-moderno o presente está se tornando mais amplo (tão amplo que não é<br />

mais transformado em passado por nenhum futuro que se transponha para o presente. 23<br />

A própria concepção da história estaria mudando de uma concatenação narrativa de períodos diferentes<br />

de tempo para uma espécie de “antropologia histórica”, ou seja, a reconstrução de um vasto leque de modelos<br />

possíveis que podem moldar e organizar a vida humana. A destemporalização, a dessubjetivação e a<br />

desreferencialização, típicas da condição pós-moderna, explicaria então nossas dificuldades hoje em identificar<br />

origens e pontos terminais para as histórias, em procurar originais como uma base para as cópias e em buscar<br />

autenticidade como um contraste para a artificialidade. Da mesma forma, justificaria a perda da pertinência de se<br />

fazer distinções como representação e referente, superfície e profundidade, materialidade e sentido, percepção e<br />

experiência. Estaríamos assim, passando também por mudanças estruturais na forma como concebemos o<br />

passado, influenciando consequentemente na maneira como o reproduzimos e representamos.<br />

Talvez isso explique, como propõe Perry Anderson, no campo da literatura, o espaço de destaque do<br />

romance histórico nos âmbitos superiores da ficção dos últimos decênios. Um gênero que adquire hoje um vigor<br />

maior até do que teve no auge de seu período clássico nos inícios do século XIX.<br />

A virada pós-moderna atravessou virtualmente todas as artes, com efeitos locais<br />

diferentes em cada uma delas. Mas se considerarmos sua morfologia no terreno da<br />

literatura, parece haver pouca dúvida de que a mudança singular mais notável operada na<br />

ficção foi a sua reorganização geral em torno do passado. 24<br />

O advento do pós-modernismo com suas temporalidades simultâneas teria possibilitado, segundo ele, um<br />

amplo repertório temático e estético para as re-interpretações e representações do passado através do discurso<br />

literário:<br />

Em outros traços, o romance histórico reinventado para pós-modernos pode misturar<br />

livremente os tempos, combinando ou entretecendo passado e presente; exibir o autor<br />

dentro da própria narrativa; adotar figuras históricas ilustres como personagens centrais, e<br />

não apenas secundárias; propor situações confractuais; disseminar anacronismos;<br />

multiplicar finais alternativos; traficar com apocalipses. 25<br />

22<br />

Mst. Programa de Pós Graduação em Letras da UFPR<br />

23<br />

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 285<br />

24<br />

ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Conferência elaborada como resposta à intervenção de Fredric<br />

Jameson, publicada na revista Novos Estudos n<br />

35<br />

o<br />

77. Disponível em versão digital em<br />

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-3002007000100010&lng=e&nrm=iso&tlng=e.<br />

25<br />

Idem.


No campo das artes brasileiras, sobretudo a partir dos anos oitenta, o tempo passado vem ocupando um<br />

espaço cada vez mais expressivo na produção literária. Desde então, autores como João Ubaldo Ribeiro, Silviano<br />

Santiago e Ruy Tapioca tem construído obras expressivas através da pesquisa e recriação do discurso histórico.<br />

A metanarrativa histórico-biográfica de Fausto Wolff<br />

Publicado em 1996, o romance À mão esquerda do escritor e jornalista Fausto Wolff, falecido em<br />

setembro de 2008, veio a contribuir de maneira muito significativa para essa profícua cena da ficção histórica<br />

nacional. De caráter autobiográfico-ficcional e ficcional-histórico, o romance conta a história do jornalista Percival<br />

von Traurigzeit e de sua família, entrelaçando episódios históricos, memorialísticos e ficcionais, entre os primeiros<br />

registros do nome da família, no norte da Europa no século XII, passando pelo mundo provinciano dos imigrantes<br />

alemães no sul do Brasil, até o presente do protagonista, no Rio de Janeiro nos anos 90.<br />

No sumário da obra, cada capítulo vem intitulado com um nome de alguma pessoa, seguido por um<br />

número específico. Ao deparar-se com o texto, o leitor se dá conta de que aquele título se refere ao nome do<br />

narrador e ao ano a partir do qual este elabora sua narrativa. Na edição da Civilização Brasileira, há sobre cada<br />

capítulo um estranho ícone representando o braço esquerdo de um cavaleiro medieval que segura firmemente um<br />

coração. Tomando por base o sumário, a primeira impressão é de desconcerto, e de que a leitura do romance<br />

constituirá, no mínimo, em um processo imbricado e confuso. A narrativa é construída por vinte e seis diferentes<br />

narradores, a maioria da mesma família, situados em datas e contextos históricos e sociais distintos. Não há<br />

linearidade temporal na maneira como concatenam seus discursos, e falam sob inúmeras circunstâncias: imersos<br />

no tempo narrado ou através de suas reminiscências; no meio de uma conversa, em um causo de bar ou no fluxo<br />

de seus pensamentos; em um momento específico de suas vidas ou até mesmo depois de sua própria morte.<br />

Além deles, há a figura do Narrador, uma entidade estilística capaz de situar-se tanto à distância espacial<br />

como temporal, trabalhando privilegiadamente a matéria das experiências 26 para encadear o enredo e elucidar<br />

alguns pontos contextuais da história. No começo do capítulo VI, ele deixa bem clara sua função no romance:<br />

Como o Rumor de alguns dramas históricos de Shakespeare, como o coringa de certas<br />

peças de Brecht ou o diretor de cena de Nossa Cidade de Thornton Wilder, sou o narrador.<br />

Sou produto da falta de talento do autor que não sabe colocar na boca de seus<br />

personagens camponeses, histórias de reis, príncipes e duques mortos na memória de<br />

seus descendentes. Entrarei nesta história sempre que algum acontecimento – fato ou<br />

ficção – tenha de ser narrado imparcialmente, insensível a risos ou lágrimas 27<br />

Enquanto esse narrador organiza a estrutura, apresenta o panorama histórico e reconstrói o tempo, às<br />

vezes até corrigindo os “deslizes literários” do autor 28 , os outros personagens/narradores fazem uma espécie de<br />

trabalho arqueológico, resgatando as pequenas histórias da vida privada, descrevendo seu ambiente provinciano<br />

ou narrando as impressões individuais sobre amplos fenômenos sociais e políticos. Dessa forma, o romance<br />

permite com que esses micro-mundos particulares transpassem a contextura historiográfica, construindo<br />

narrativas residuais que se articulam contra a inanidade da historiografia tradicional.<br />

Através das diferentes perspectivas narrativas e da reconstituição “privilegiada” e articuladora do narrador,<br />

são expostos quadros de destaque da história brasileira e mundial. Há constantes passagens que remetem ou<br />

aludem a acontecimentos de expressão histórica nacional como: a Guerra dos Farrapos; as estruturas de poder<br />

da República Velha; a Revolta Tenentista; a Coluna Prestes; a crise de 29; a Semana de Arte Moderna; a<br />

fundação do Partido Comunista Brasileiro; a Revolução de 30; as implicações da segunda grande guerra nas<br />

colônias alemãs do sul; os mandatos de Getúlio Vargas e seu suicídio; o golpe militar de 1964 e seus<br />

desdobramentos, assim como esporádicas menções ao mandato de algum presidente do período de<br />

redemocratização ou a algum episódio de repercussão nacional contemporâneo.<br />

26<br />

BENJAMIN, Walter. O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política 7ª ed. São<br />

Paulo: Brasiliense, 1994. p. 199-221.<br />

27<br />

WOLFF, Fausto. À mão esquerda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 33<br />

28<br />

No capítulo XV, o autor descreve, através da narração de um dono de bar a um dos Traurigzeit no ano de 1951, a complexa<br />

conjuntura histórica e política do desencadeamento da revolta tenentista de 1924. Para corrigir esse “deslize” literário, o<br />

narrador aparece no capítulo subseqüente começando pela seguinte justificativa: “Uma questão de ordem, como dizia<br />

antigamente. A rigor, o presente capítulo não precisava existir. Ocorre que o autor deixou-se cair numa armadilha literária ao<br />

colocar o bolicheiro Herbert Müller de La Cruz contando os acontecimentos daquele dia 4 de novembro de 1924 [...] não é<br />

preciso nenhum Edmound Wilson ou Álvaro Lins para entender que nesse teatro forçado ele não poderia parar a fala para<br />

comentar sobre a bodega, a situação política, filosófica e política do país, já que não teria conhecimentos suficientes [...] Caso<br />

insistisse nessa loucura o estilo certamente sairia prejudicado, mais para realismo mágico que para ficção histórica<br />

introspectiva.” Idem. p. 80<br />

36


Dentre os fatos que contextualizam um panorama histórico mundial, estão as guerras entre católicos e<br />

protestantes na Europa nos séculos XVI e XVII, principalmente a Guerra dos Trinta Anos; a Guerra do Vietnam; a<br />

revolução sexual européia dos anos sessenta e subseqüentes; o colapso da União Soviética e a reformulação da<br />

esquerda mundial; a expansão da mídia eletrônica e suas conseqüências na cultura ocidental nas décadas finais<br />

do século XX.<br />

Ao lado dos personagens centrais, vão também aparecendo figuras conhecidas da história mundial como<br />

o líder revolucionário Luis Carlos Prestes, a rainha Cristina da Suécia, o escritor Efraim Lessing, o filósofo Wilhelm<br />

Leibniz ou o dramaturgo William Shakespeare. Alguns desses personagens também interagem no romance,<br />

sempre contextualizados tanto histórica como biograficamente no fluxo da narrativa.<br />

Além de seu caráter ficcional histórico, o romance também adquire um cunho autobiográfico. Embora se<br />

problematize com frequência pelo grau de ficcionalidade do enredo 29 , a procedência de uma família pobre alemã<br />

bem como a vida no interior do Rio Grande do Sul e depois na capital rio-grandense, a profissão de repórter e<br />

jornalista, a mudança para o Rio de Janeiro, a atividade como dramaturgo e cineasta, e a contribuição para o<br />

Pasquim, relatados na obra, ligam quase inevitavelmente a figura do protagonista à do autor. E ai talvez esteja a<br />

maior funcionalidade narrativa da obra enquanto romance histórico. De um modo geral, o leitor passa a perceber<br />

que os vários discursos, independentemente de seu local e tempo de enunciação, confluem para a formação da<br />

identidade social e histórica desse autor/protagonista, fazendo com que ele próprio se torne a força centrípeta,<br />

através da qual se organiza e se remonta o aparente caos entre a assimetria espaço/temporal e os diferentes<br />

focos narrativos do romance.<br />

A partir dessa constatação, também se reconfigura o caráter meramente estilístico do já citado narrador.<br />

Apesar de protestar contra a indefinição de seu caráter, 30 ele se declara, em várias passagens do texto, junto com<br />

o autor e o protagonista, como parte indissociável de uma trindade estética criativa. No capítulo XXI, em uma<br />

discussão com o autor sobre quem narraria aquele parte do texto, o narrador a certa altura afirma:<br />

E o repete no último capítulo:<br />

Como Pérsio, o autor e eu somos uma santíssima trindade, ou seja, três em um, pedimos<br />

a opinião de Bárbara, mulher do autor, que lia na sala um artigo de Luís Fernando<br />

Veríssimo... 31<br />

“Eu conheço Pérsio von Traurigzeit, esse brigante. Afinal somos uma trindade: eu, o autor<br />

e ele. Ele não está bem. esta noite em seu quarto, mais uma vez, não consegue dormir” 32<br />

Nessas passagens, o posicionamento ideológico dos três converge, inclusive no argumento:<br />

O comunismo é antes de tudo uma filosofia revolucionária, econômica e social, um<br />

humanismo, enfim, que a burguesia dos países do Terceiro Mundo diz que acabou,<br />

mesmo sabendo que nunca teve a chance de ser posta em prática. 33<br />

__ Que bobagem, don Giovanni. O que nunca existiu não pode morrer __ disse Pércio. __ É<br />

preciso lembrar que o comunismo de Marx, Engels e Lênin nunca foi posto em prática. (...)<br />

__ É simples. O comunismo é uma ideologia, ao contrário do capitalismo, uma doença<br />

autofágica. Como o comunismo é um humanismo, o seu ideal não é que todos sejam<br />

pobres, classe média ou ricos, mas que todos sejam felizes. 34<br />

29<br />

No capítulo XLVI, o autor e o narrador têm uma discussão sobre os rumos do romance. Questionado pelo narrador sobre o<br />

“monumento de auto-piedade” em que estava se transformando o personagem central da obra, o autor responde: “E eu com<br />

isso? Quantas vezes preciso te dizer que eu não sou o personagem central e que isto é um livro de ficção pura? Se o sacana<br />

quer ter pena dele mesmo deixa ele ter, que merda!” Ibidem. p. 368<br />

30<br />

No capítulo XL, intitulado “Fante: 610,85” o narrador faz a seguinte afirmação: “O número que está no lugar do ano aí em<br />

cima é a prestação que a mulher do autor terá que pagar mensalmente por um novo carro que pretende comprar, e o fante sou<br />

eu, o velho narrador, que me rebelei com a não definição do meu caráter. Como ontem estivemos lendo relendo rapidamente<br />

algumas páginas de Ask the Dust, do John Fante, [...] sugeri que me batizasse de Fante a fim de que a cada dois, três<br />

capítulos, o leitor não tivesse que se defrontar com a palavra Narrador.” Ibidem. p. 296. No entanto, quando volta a reaparecer<br />

nos capítulos subseqüentes volta a se denominar ou “a ser denominado” simplesmente como “narrador”.<br />

31<br />

Ibidem. p. 125<br />

32<br />

Ibidem p. 566<br />

33<br />

O narrador, ao afirmar estar se desmascarando ideologicamente. Ibidem. p. 82<br />

34<br />

A reprodução do discurso do próprio protagonista. Ibidem. p. 551<br />

37


A Mão Esquerda<br />

Um enigma que percorre o texto é a identidade do assassino auto-denominado A Mão Esquerda de Deus.<br />

Ele aparece em pequenas citações entre os capítulos, geralmente pela repercussão de algum de seus crimes na<br />

mídia. Suas vítimas são principalmente homens ricos e poderosos, cujos nomes aludem a personagens comuns à<br />

memória popular brasileira. Entre elas estão figuras como PC Maria, João Carné (por ter sido mau poeta e<br />

péssimo presidente) ou o senador baiano Petrônio Carlos Guimarães. Não precisaríamos nem dos apostos para<br />

saber a quem se referem. Essa característica de fazer trocadilhos com nomes conhecidos do cenário político<br />

nacional para alegorizar sua crítica também é evidenciada em outras obras de Wolff, a idéia é aproximar a<br />

realidade sem que a escrita perca seu caráter ficcional.<br />

Os assassinatos de MED são uma resposta individual e, ao que parece, desesperada, à bizarra injustiça<br />

social no país. Sua ideia é instaurar o medo entre os ricos e poderosos, alertando-os de que o estado de injustiças<br />

sobre o qual erigiram sua vida não pode mais ser considerado seguro. No último capítulo do livro, em um bilhete<br />

endereçado aos jornais ele explica seu epíteto: “Não sou religioso, mas o que Deus faz com sua mão direita,<br />

estamos cansados de saber.” 35<br />

No desenlace do texto, não são poucos os indícios de que seja o próprio Pérsio o assassino. Como MED,<br />

o jornalista nutria uma profunda aversão à classe dominante, sabia atirar com exímia destreza com um fuzil e<br />

conhecia o ambiente social da elite. Além disso, era atribulado frequentemente pela impotência e inoperância do<br />

modo com que vivia. No último capítulo, enquanto estava na Itália, também houve um crime atribuído a la Mano<br />

Sinistra de Dio, e a maneira como o narrador termina o livro é deveras enigmática:<br />

Mas Pérsio estava com muito dinheiro e não viajou para o Brasil. Tinha receio de que as<br />

pessoas erradas estivessem esperando por ele no Galeão. 36<br />

No entanto, a natureza da Mão Esquerda pode ser entendida particularmente como uma expressão<br />

simbólica da decadência progressiva dos meios organizados de contestação à macroesturtura capitalista em<br />

meados da década de noventa – período que comportou as conseqüências imediatas do colapso do marxismoleninismo<br />

soviético e a rearticulação do capitalismo transnacional neoliberal como resposta histórica absoluta. O<br />

resultado de um posicionamento axiomático e radical contra um estado de coisas sobre o qual impera uma lógica<br />

econômica amoral e anti-humanista, que parece ter varrido todos os projetos coletivos de resistência a essa época.<br />

Em um momento de profunda indignação no final do livro, o protagonista contesta seu amigo Nicolay:<br />

E segue mais adiante:<br />

__ Não é verdade, isto não é uma fase transitória. É um pesadelo permanente porque não<br />

é casual. O poder quer as coisas como estão. O poder precisa da mediocridade para<br />

sobreviver. 37<br />

...Sim, meu caro Nicolay, eu tenho medo de um mundo onde a arte perdeu seu valor<br />

moral e estético, e palavras como amor, fidelidade, ideal, princípios, caráter, soam como<br />

versos de poesia parnasiana. (...) __ O pior é que não se pode mais contar com o povo<br />

para fazer qualquer revolução. A classe dominante conseguiu transferir para o povo a sua<br />

falta de caráter. Transformou-o em vândalos, como em Roma. Só que em vez de atacar<br />

seus algozes, luta entre si. 38<br />

Perguntado se teria uma solução, ele responde: “Eu não, infelizmente, mas no Brasil há um maluco que<br />

acha que tem.” 39<br />

Independentemente de sua identidade, A Mão Esquerda de Deus aparece como a manifestação de um<br />

impulso reprimido, mostrando que o sangue não pode ser estancado, e que as respostas à repressão consumista<br />

e à imobilidade social podem aparecer a qualquer momento sob diferentes formas, inclusive as mais radicais. Em<br />

toda sua carreira, seja ela através do jornalismo, da dramaturgia ou da literatura, Fausto Wolff sempre assumiu<br />

uma postura consciente de crítica à desumanização do capitalismo. Nas longas enumerações de seus textos, o<br />

autor sempre denunciou as mazelas sociais do Brasil, posicionando-se contra a grande mídia, a quem acusava de<br />

estar organicamente ligada aos interesses do capital, e reafirmando a necessidade de conscientização para<br />

organizar um movimento popular esclarecido de resistência. Em sua concepção, o trabalho intelectual em um país<br />

35 Ibidem. p. 566<br />

36 Ibidem. p. 569<br />

37 Ibidem. p. 560<br />

38 Ibidem. pp. 563-564<br />

39 Ibidem. p. 565<br />

38


tão injusto quanto o Brasil sempre viria acompanhado de uma grande responsabilidade social. Em uma ficção<br />

histórica, cujo enfoque principal é o resgate do passado, os assassinatos da Mão Esquerda são, sobretudo, um<br />

elo estilístico para apresentar e denunciar a situação do próprio presente.<br />

O Triste Tempo<br />

Outro personagem que perpassa toda a obra de maneira alegórica é o bobo corcundinha. Esse estranho<br />

narrador aparece no capítulo XXII - quando há a maior assimetria temporal - apresentando-se como Juan Ruiz<br />

Alarcón de Extremadura Buontempo, bobo da corte do duque Henrique Julius Traurigzeit, em um pequeno ducado<br />

ao norte da Alemanha no ano de 1594. Filho bastardo de um marquês que o repelira por ter nascido corcunda, foi<br />

levado à China para ser vendido como animal de circo. Comprado mais tarde por um mercador, veio parar na<br />

Alemanha onde desde 1554 serve à casa dos Traurigzeit. Nesse mesmo capítulo, o bobo tem um encontro<br />

inusitado com uma trupe de artistas que estão cruzando a Alemanha com destino à Dinamarca. Entre eles está<br />

William Shakespeare, a quem o contato com um antepassado dos Traurigzeit “teria influenciado” para a confecção<br />

de pelo menos duas grandes obras: Hamlet e o Mercador de Veneza. 40<br />

Tido a princípio como mais um recurso narrativo para apresentar a nobre descendência dos Traurigzeit, o<br />

bobo vai aos poucos adquirindo um caráter transcendental. No capítulo L, depois de resumir as mazelas pelas<br />

quais passara a família durante quase um século, ele aparece no ano de 1689, tentando ajudar seu novo senhor,<br />

o príncipe Augusto, a conquistar a rainha Cristina da Suécia. Analisando sua longevidade, se torna óbvio que o<br />

anão é um personagem especial. No capítulo LV, já no ano de 1824, ele falará da conversão dos Traurigzeit ao<br />

catolicismo e de “seus grandes feitos e grandes cagadas”; chorará a morte dos amigos Byron, Lessing e Leibniz e<br />

seguirá a família ao seu novo destino, o Brasil.<br />

Em uma segunda leitura, motivada agora por um curioso déjà-vu, o leitor poderá encontrar indícios de sua<br />

presença em muitas partes do texto. No capítulo LX, o jornalista Pércio fala sobre seu bisavô:<br />

Ao lado estava o seu secretário, um corcundinha muito velho que, dizem, havia gente que<br />

conseguia enxergar e até falar com ele e outros que não o viam de jeito nenhum. O fiel<br />

corcunda enterrou o velho duque numa cova que ninguém sabe onde está – e botou o pé<br />

no mundo. 41<br />

Retrocedendo ainda mais na narrativa, é possível encontrá-lo até nos relatos do menino Pércio:<br />

Quando chegamos vi um corcundinha que devia ter uns mil anos e era pouca coisa mais<br />

alto que eu. Sua cara feia resplandecia à luz do luar. Estava parado perto de uns cavalos<br />

mas ao ver eu me aproximar fugiu para dentro do mato. 42<br />

No capítulo XL, ele se declara peremptoriamente:<br />

Enquanto enxugava as lágrimas, envergonhado, um anão corcunda deu-lhe um forte soco<br />

na boca do estômago e só não deu na cara porque era pequeno demais para alcançar (...)<br />

__ Por que é que você fez isso?<br />

__ Por que você está me matando, seu patife!<br />

__ Eu? Mas eu nem te conheço!<br />

__ Conhece sim, seu canalha. Eu sou o tempo<br />

__ Que tempo?<br />

40 No capítulo XXXIII, o bobo narra um episódio em que um nobre antepassado dos Traurigzeit, na presença de Shakespeare,<br />

resolve uma contenta entre um judeu e o fornecedor de gansos do castelo sobre um empréstimo de dinheiro. Em uma<br />

determinada passagem o nobre pergunta: “Então você, judeu miserável, matador de Cristo, não melhor do que um turco infiel,<br />

como ousa cobrar juros escorchantes de um leal súdito e fornecedor oficial de gansos da nossa casa?” O judeu lhe responde:<br />

“Mas Alteza, por acaso não tenho de me alimentar como os cristãos? Não tenho de me vestir como os cristãos? Não preciso<br />

ter um teto para me abrigar como os cristãos?” em uma clara alusão a uma passagem de O mercador de Veneza. p. 232. No<br />

capítulo XLIII, o príncipe Traurigzeit conta a ao dramaturgo inglês o enredo de uma peça a ser interpretada. Diz ele: “A história<br />

que você vai dramatizar é simples: o velho rei Hamlet é assassinado por seu irmão mais moço, Feng, um nome horrível que<br />

você pode mudar, enquanto o herdeiro da coroa dinamarquesa, o príncipe Hamlet, está estudando em Wittemberg, na<br />

Alemanha...”. p. 333. Nessas passagens, como em outras dentro da obra, se evidencia a construção de livres “situações<br />

confractuais” em que a história é reinterpretada e reinventada a partir da manipulação estilística do autor.<br />

41 Ibidem. p. 50<br />

42 Ibidem. p. 19<br />

39


__ O seu tempo, seu verme. Olhe o que você me transformou. E desapareceu no meio da<br />

multidão. 43<br />

No final da obra ele volta a aparecer, como se estivesse sempre acompanhando o protagonista, incumbido<br />

de guardar seus “grandes feitos e grandes cagadas” como o fizera também com seus antepassados. Sua<br />

aparência grotesca e curva é como a representação da teologia da história nos escritos de Walter Benjamin, 44<br />

aquele mecanismo invisível no qual o materialismo histórico poderia se fiar para redimir as injustiças da história.<br />

No romance, ele não age apenas como um instrumento estético de ligação entre o presente e o passado remoto,<br />

mas como um alinhave que dá aos dois uma aparência unívoca. Uma representação do próprio conceito<br />

materialista de história.<br />

Muitos foram os que procuraram demonstrar o caráter multíplice do pós-modernismo. Se por um lado ele<br />

enseja uma lógica cultural na qual a própria concepção de arte está inerentemente ligada ao fator mercadoria; por<br />

outro ele quebrou as amarras estruturais que separavam a alta da baixa cultura e deu trânsito a novos setores de<br />

produção artística. Assim como desconstruiu ideais, contestando os objetivos totalizantes de objetividade, verdade<br />

e consenso sobre as quais estes se sustinham, também fomentou resistências múltiplas à homogeneização e<br />

revisou o projeto social para outra perspectiva pluritópica. Sendo assim, também sua função como lógica cultural<br />

dentro do sistema de suspensão do capitalismo tardio é contraditória e antitética. Ao mesmo tempo em que nos<br />

delimita a um presente estanque, onde a lei de mercado é a máxima histórica, nos permite reflexionar sobre o<br />

passado, contestá-lo, remexê-lo, extrair dele as narrativas residuais que ficaram soterradas pela idéia do<br />

progresso, preencher o presente com elas, e, a partir desse aprendizado, reorientar nossas expectativas.<br />

Traurigzeit em alemão quer dizer “Triste Tempo”, o espaço/motor no qual erigimos inexoravelmente nossa<br />

vida através de difíceis ações e posicionamentos. Ao mostrar a construção de sua história através de um discurso<br />

polifônico, sob diversos pontos de vista, em uma infra-história conceitual em que se desenvolvem simultâneas<br />

temporalidades, Fausto Wolff construiu uma narrativa extremamente criativa e original, aberta tanto ao resgate<br />

histórico do passado quanto às necessidades imperiosas do presente.<br />

Bibliografia<br />

ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Revista Novos Estudos n o 77. Disponível em:<br />

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100010&lng=e&nrm=iso&tlng=e.<br />

Acesso em 26/05/2008.<br />

BENJAMIM, Walter. O narrador, considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e<br />

política 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

__________. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política 7ª ed. São Paulo: Brasiliense,<br />

1994.<br />

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.<br />

JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível. Revista Novos Estudos n o 77. Disponível em:<br />

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000100009&lng=e&nrm=iso&tlng=e.<br />

Acesso em 26/05/2008.<br />

___________. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2004<br />

WOLFF, Fausto. ABC do Fausto Wolff. Porto Alegre: L&PM, 1988<br />

___________. A imprensa livre de Fausto Wolff. Porto Alegre: L&PM, 2004.<br />

___________. À mão esquerda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996<br />

___________. O Dia em que Comeram o Ministro. Rio de Janeiro: Codecri, 1982<br />

43 Ibidem. p. 301<br />

44 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Magia e técnica, arte e política 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.<br />

222<br />

40


MACÁRIO: UMA PEÇA EXPRESSIONISTA?<br />

Miguel Heitor Braga Vieira 45<br />

“Não peças esperanças ao homem que descrê e desespera”.<br />

(Álvares de Azevedo, Macário)<br />

O título desse trabalho talvez soe provocativo numa primeira mirada, pois se refere a um texto dramático<br />

escrito quase na metade exata do século XIX e a uma corrente vanguardista situada no início do século XX.<br />

Porém, essa distância cronológica só aumenta o grau de interesse em se verificar de que maneira o poeta<br />

brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852) pode ter antecipado em Macário algumas preocupações estéticas do<br />

expressionismo europeu.<br />

Valemo-nos de uma abordagem comparatista que visa não somente à promoção da obra do poeta<br />

romântico através de uma imposição de sentido como “precursor”, algo por vezes sensacionalista e menor, mas<br />

àquela que possa alargar sua leitura crítica ao dialogar com idéias que surgiram após um conhecimento do que se<br />

propôs a arte expressionista.<br />

É de senso lato que o autor brasileiro foi, além de artista, um estudioso da literatura ocidental, conhecedor<br />

de suas vertentes e dotado de grande consciência crítica. João Roberto Faria, ao estudar as ideias teatrais no<br />

Brasil do século XIX, dedicou um capítulo inteiro à “Utopia dramática de Álvares de Azevedo” (FARIA, 2001, p. 49-<br />

53). Nele, o professor salienta a importância que a “Carta sobre a Atualidade do Teatro entre Nós”, de Azevedo,<br />

tem como panorama de seu pensamento. A ausência apontada por ele nos palcos brasileiros encenações de<br />

escritores como Goethe, Shakespeare, Schiller, entre outros, dá um conhecimento de sua perspectiva cosmopolita<br />

e abrangente, que privilegia a formação de atores, a melhoria do repertório e de cenários.<br />

Quanto à vivência teatral da época em que foi escrita, o poeta ironiza o gosto do público por farsas e<br />

melodramas, saudoso pelos tempos da Comédia: “Verdadeiros blasés, parece que só amamos as impressões<br />

fortes: que preferimos estremecer, chorar, do que rir daquelas boas risadas de outrora” (AZEVEDO, 2000, p. 746).<br />

O tom é de quase uma manifesto dramático, que o próprio autor não pôde realizar em sua completude pela curta<br />

vida que teve.<br />

Além dessa carta, é de interesse precípuo o breve texto que antecede a peça Macário, espécie de prólogo<br />

intitulado “PUF!”. Nele podemos afirmar que os pensamentos do autor estão dispostos de maneira mais<br />

propositiva, pois abre a guarda ao mostrar seu ideário dramático e fazer uma autocrítica sobre o texto que se<br />

sucede. Diz:<br />

O meu protótipo [de drama] seria alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro espanhol e<br />

o teatro grego – a força das paixões ardentes de Shakespeare, de Marlowe e o Otway, a<br />

imaginação de Calderón de la Barca e Lope de Veja, e a simplicidade de Ésquilo e<br />

Eurípedes – alguma coisa como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa<br />

parte dos dramas dele – em Goetz de Berlinchingen, Clavijo, Egmont, no episódio da<br />

Margarida de Faust – e a outra na simplicidade ática de sua Iphigenia. Estudá-lo-ia<br />

talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D. Carlos:<br />

estudá-lo-ia ainda na Noiva de Messina com seus coros, com sua tendência à<br />

regularidade” (AZEVEDO, 2000, p. 507).<br />

Como bem notou João Roberto de Faria, é uma citação de “tirar o fôlego” (FARIA, 2001, p. 51). O que<br />

pretendia Álvares de Azevedo era algo como a soma de elementos barrocos, clássicos e românticos. Algo difuso<br />

para nossa compreensão, mas que já mostra sua inclinação para a originalidade; salta aos olhos, também, a forte<br />

influência da literatura alemã sofrida por ele. A busca de estudo, de empreender uma exegese de suas<br />

preferências, deve ser levada em conta. Não podemos deixar em nenhum momento de lado que se trata de um<br />

estudante e poeta de vinte anos, em sua plena formação artística e dotado de extrema capacidade de realização.<br />

Podemos inferir daí que Álvares de Azevedo fosse um escritor em dia com as informações teóricas sobre<br />

o período no qual se enquadrava cronológica e estilisticamente ao escrever: o Romantismo. Deixamos de<br />

acreditar somente nas informações em que consta uma personalidade boêmia, noturna e mundana pra relevar sua<br />

posição de consciência criadora no Brasil de fins dos anos de 1840 e primeiros de 1850. Sabia o que estava<br />

realizando, cônscio de suas qualidades e bem situado no período literário que lhe dava gosto.<br />

45<br />

Professor colaborador de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), campus de Cornélio<br />

Procópio. Doutorando em Letras (Estudos Literários) na Universidade Estadual de Londrina (UEL).<br />

41


Macário provavelmente foi escrito entre os anos de 1849 e 1850, não se tem ao certo a data de sua<br />

produção. É um texto com características teatrais, mas que o próprio autor não conseguiu definir pelo fato de não<br />

seguir as regras típicas do gênero, atendo-se a nomeá-lo de “drama, comédia, dialogismo” (AZEVEDO, 2000, p.<br />

509). Importa que sempre foi tratado como um texto dramático, além de ter sido representado nos palcos<br />

brasileiros em alguns momentos de sua existência. Nas poucas páginas que dedica a esse texto em seu<br />

Panorama do teatro brasileiro, Sábato Magaldi designa-o como uma “tentativa dramática” (1997, p. 118) e ainda<br />

observa sua gênese através de uma reflexão baseada na índole romântica: “A desordenada inspiração do poeta<br />

precisava de liberdade para expandir-se. E nada melhor do que um sonho, que rompe sem cerimônia as formas<br />

cênicas e desconsidera as limitações do espaço” (1997, p. 199). É interessante notar na referência de Magaldi aos<br />

vocábulos “liberdade”, “sonho”, os quais irão aparecer quase que com a mesma força do romantismo também na<br />

concepção teatral expressionista.<br />

Antonio Candido se debruça mais pacientemente sobre a “inspiração confusa” de Álvares de Azevedo no<br />

ensaio “A educação pela noite” e assinala sua importância ao dizer: “O Macário é um drama fascinante, feito mais<br />

para a leitura do que para a representação, com duas partes diferentes enquanto estrutura e qualidade, sendo a<br />

primeira melhor, e uma das mais altas realizações de Álvares de Azevedo” (CANDIDO, 1989, p. 11).<br />

Concordamos que seja uma “das mais altas realizações” do poeta brasileiro, mas quanto à assertiva de que são<br />

duas partes que o dividem diferentes na qualidade, deixamos em aberto para verificação posterior.<br />

O argumento levantado por Candido é o problema da “binomia” como base do pensamento não só literário<br />

como crítico do autor de Lira dos vinte anos. Esse “choque dos contrários” (CANDIDO, 1989, p. 10), verdadeiro<br />

pressuposto da estética romântica, faz-se presente durante todo o decorrer do Macário, servindo para intensificar<br />

o embate dramático entre os personagens e resvalando muitas vezes na negação de estancamento entre os<br />

gêneros literários que tão bem serviu ao modo romântico de construir o real.<br />

Mas qual é a história do texto? Um enredo simples, dividido em dois episódios, o primeiro “Numa<br />

estalagem da estrada” e o segundo “Na Itália”. No primeiro acompanhamos o encontro do personagem homônimo<br />

ao título com um desconhecido na referida estalagem de beira de estrada. Lá, numa noite chuvosa e fria, eles se<br />

alimentam, bebem, fumam e, sobretudo, conversam sobre assuntos mais diversos: a vida, a morte, o amor, a<br />

melancolia, o sexo. Em determinado momento esse desconhecido revela-se ser nada menos do que o próprio<br />

Satã, sendo ridicularizado pelo descrente Macário. Sem sono, os dois partem num burro preto de Satã e chegam<br />

numa cidade obscura, que pelas referências reconhecemos ser São Paulo. Lá vão para a casa de Satã, bebem,<br />

conversam e vão ao cemitério onde Macário adormece e tem sonhos terríveis. O que nos desconcerta na leitura é<br />

o retorno brusco ao cenário primeiro da estalagem onde Macário acorda com a mulher esmurrando a porta<br />

dizendo que ele dormia até tarde. O encontro com o diabo se reforça como um delírio noturno e com a<br />

constatação misteriosa de um trilho queimado de pé de cabra no chão, situação em que termina a primeira parte.<br />

No segundo episódio temos a presença de um terceiro personagem importante, Penseroso. Ele é a figura<br />

contraposta a Macário. Um personagem tipicamente romântico, idealista, prestes a morrer pelo amor, com<br />

discursos líricos sobre a mulher e a vida. Penseroso e Macário mantêm diálogos longos em que podemos<br />

identificar prontamente a “binomia” apontada por Antonio Candido: Penseroso, o afirmativo e crente, e Macário, o<br />

negativo e cético. Só que há o desequilíbrio com a presença de Satã, o relativista, que dá dinamicidade aos<br />

acontecimentos, culminando essa parte com o suicídio de Penseroso. A peça termina com o caminhar dos dois<br />

sobreviventes a uma orgia, onde veem pela janela o quadro de uma sala fumacenta, mesas com homens ébrios,<br />

cenário que lembra muito o de Noite na taverna, do mesmo autor.<br />

Retomamos, então, aqui, a idéia de Candido, quando este considera desiguais as duas partes do texto. Na<br />

realidade, não se pode considerar a segunda inferior pela própria natureza de Macário. Em todo momento<br />

estamos diante de condições instáveis entre sonho e realidade. Pode ser que seja intencional essa marca de<br />

dubiedade para acentuar seu caráter dramático. O crítico identifica a segunda parte de Macário como inferior à<br />

primeira considerando a princípio sua composição “desarticulada”, “em dez cenas desconexas, duas das quais<br />

sem identificação de lugar” (CANDIDO, 1989, p. 13). Essa desarticulação seria mesmo desarranjo formal se<br />

pensarmos no efeito estético de sonho e irrealidade que proporciona, algo próximo de intenções de autores<br />

tipicamente expressionistas, guia de nossa leitura presente? Achamos que não.<br />

Chegamos ao impasse: como relacionar Macário, uma obra romântica, a uma vanguarda europeia do<br />

século XX que é o expressionismo?<br />

Partimos do pressuposto em pensar o romantismo na direção tomada por Michael Löwy e Robert Sayre<br />

(1995). No capítulo concernente à tentativa de redefinir o que é o romantismo em Revolta e melancolia, os autores<br />

enumeram vários tipos de estudos referentes ao fato romântico. O terceiro tipo indicado por eles é aquele que visa<br />

“reconhecer a multiplicidade cultural do romantismo e que, por conseguinte, o consideram como uma visão de<br />

42


mundo, uma Weltanschauung que se manifesta sob as mais diversas formas” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 19). Esse<br />

tipo de abordagem teria o mérito de visualizar tudo aquilo que caracteriza o que é chamado romantismo ao<br />

mesmo tempo em que se percebe sua variedade de influências. O romantismo teria, assim, se refletido em<br />

grandes autores do século XX, como Thomas Mann, William Butler Yeats, entre outros, e em correntes artísticas,<br />

principalmente no expressionismo e no surrealismo. Segundo os autores, portanto, a visão de mundo romântica<br />

permanece nos “aspectos mais inovadores assim como nos mais tradicionais do século XX” (LÖWY; SAYRE,<br />

1995, p. 223-224).<br />

Essa multiplicidade de aparições ressoantes do romantismo no século XX vem sob forma de movimentos<br />

estéticos frente a condições sociais e econômicas excludentes da modernidade. O romantismo seria um<br />

mecanismo de crítica na contramão dessa modernidade em formação. Seria equivocada a abordagem das<br />

correntes culturais iconoclastas do século XX apenas sob as designações de “moderno”, “modernismo”, ou ainda<br />

mais recentemente em “pós-modernismo”. Eles dizem: “Com efeito, essas designações dizem respeito ao que é<br />

´moderno´ – isto é, novo – na cultura (arte, pensamento), enquanto, para nós, o romantismo constitui antes uma<br />

recusa do moderno social” (LÖWY; SAYRE, P.228).<br />

O expressionismo é uma das vanguardas europeias surgidas no período pré e pós 1ª Guerra Mundial.<br />

Acontecido principalmente na Alemanha entre os anos de 1905-1910, está representado no teatro por nomes<br />

como Georg Kaiser, Ernst Toller, Walter Hasenclever. Em Estética teatral, temos: “Ansioso por ´exprimir´ e não<br />

reproduzir, o expressionismo, nas suas origens, afirma-se como nostalgia de um aprofundamento da vida” (BORIE<br />

et alii, 1996, p. 415). Sente-se a busca pelo “homem em estado puro”, algo presente, na pintura, seja nos quadros<br />

de antecessores como Van Gogh e Cézanne, seja, na filosofia, nos escritos de Nietzsche e Kierkegaard.<br />

Essas afirmações vão ao encontro do pensamento de Löwy e Sayre. De acordo com eles, “entre as novas<br />

formas assumidas, no século XX, pela crítica romântica da civilização, alguns movimentos culturais de<br />

vanguarda – como o expressionismo e o surrealismo – ocupam posição central” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 230).<br />

Contudo, é temerário considerar o expressionismo como um movimento de vanguarda homogêneo. Não há uma<br />

doutrina ou estética comum a todos que são considerados expressionistas e sim o que Löwy e Sayre chamam de<br />

Stimmung, isto é, atmosfera ou clima que expõem o sentimento utópico, angustiado, desesperado e revoltado dos<br />

artistas. Tanto dramaturgos, poetas, escritores quanto pintores e filósofos tratam de negar a realidade objetiva,<br />

violentando-a, preocupando-se com a interioridade e dilaceramentos do humano. Gilberto Mendonça Teles (1995)<br />

sintetiza bem esse sentimento na introdução aos manifestos expressionistas disponibilizados em Vanguarda<br />

européia e modernismo brasileiro: “O artista perdia o controle da expressão, os elementos é que expressavam a si<br />

mesmo. Seu mundo interior era obscuro e alógico, assim também devia ser sua expressão” (TELES, 1997, p. 104).<br />

Vemos outros pensadores também relacionando o romantismo ao expressionismo. O caráter de busca do<br />

essencial do ser humano, através de referências autobiográficas ou confessionais, é levantado por Gerd A.<br />

Bornheim, pensando em duas quimeras de ambos os movimentos: a intuição e o primitivo do homem. Ele diz:<br />

A alma romântica é uma alma que se confessa sempre, que não consegue esquecer-se.<br />

A arte romântica tende a resolver-se em termos de autobiografia. Do expressionismo<br />

também se pode dizer que confessa algo, que é autobiográfico – e nesta medida, podese<br />

falar em filiação romântica do expressionismo (BORNHEIM, 1992, p. 65).<br />

Mas se no romantismo temos a subjetividade do próprio artista sugerindo formas de interpretação do real,<br />

no expressionismo surgem personagens fragmentadas servindo de marionetes às condições sociais a que chegou<br />

o homem do início do século XX, escravo de suas próprias criações científicas, técnicas e industriais.<br />

Já Anatol Rosenfeld direciona seu pensamento crítico para a estrutura das obras dramatúrgicas<br />

expressionistas e também para sua fundamentação filosófica. Ao usar peças de Wedekind como exemplo de<br />

teatro expressionista, diz: “Formalmente, a obra prepara o expressionismo cênico pela destruição da estrutura<br />

‘bem feita’” (ROSENFELD, 1977, p. 111). Essa conclusão do crítico após leitura de textos do dramaturgo alemão<br />

faz lembrar a ruptura de gêneros e leis dramáticas iniciada por Victor Hugo no “Prefácio a Cromwell” de 1827. Sob<br />

as áreas filosófica e existencial, ele diz:<br />

Característica é a atmosfera irreal até à abstração, bem como a tipização das<br />

personagens (prenúncio do antipsicologismo e da busca do mito, essenciais ao<br />

Expressionismo), a objetivação radical de vivências subjetivas (na poesia logo não<br />

haveria mais “uma dor atroz ‘como’ um punhal”, mas apenas a presença do “punhal<br />

atroz”). A essas antecipações importantes acrescentam-se ainda o elemento fantástico<br />

da cena do cemitério (em plena fase naturalista), o diálogo lírico, de curva barroca,<br />

muitas vezes reduzido a monólogos paralelos, e a deformação grotesca com que é<br />

apresentado o mundo adulto dos pais e professores, expoentes do mundo burguês que é<br />

43


cruelmente desmascarado. A distorção caricata e fantasmagórica transforma as<br />

personagens de Wedekind logo em marionetes rígidos, logo em animais disfarçados de<br />

seres humanos que se agitam regidos por impulsos elementares” (ROSENFELD, 1977, p.<br />

112).<br />

Parece, nesse comentário, que estamos diante de uma leitura de Macário, não fosse a indicação de que é<br />

de uma peça de Wedekind. Há a presença do fantástico em Álvares de Azevedo, os diálogos líricos que se<br />

aproximam de formas barrocas, em que cada personagem, como no segundo episódios acontece com diálogos<br />

entre Penseroso e Macário, parecem dissertar sobre sua concepção de mundo paralelamente, expondo suas<br />

concepções existenciais na solidão inescapável da linguagem.<br />

Pelo que dissemos até aqui aprece lícito confrontar o Macário com aspectos expressionistas pelo<br />

arcabouço do ideário romântico. A recusa a comportamentos estereotipados é princípio romântico e expressionista<br />

e a vemos no prólogo da peça, em trecho citado por Antonio Candido: “É difícil marcar o lugar onde pára o homem<br />

e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto – onde a paixão se torna ferocidade. É difícil marcar<br />

onde deve parar o galope do sangue nas artérias, e a violência da dor no crânio” (CANDIDO, 1989, p. 15). O autor<br />

se preocupa, assim como os expressionistas, com o homem em estado puro, com seus impulsos elementares,<br />

sem filosofias.<br />

Pensemos principalmente nos personagens, suas ações e digressões, lembrando Décio de Almeida Prado:<br />

“No teatro, ao contrário [do romance], as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a<br />

não ser através delas” (PRADO, 1998, p. 84). Vimos que são três os principais personagens da peça: Macário,<br />

Satã e Penseroso. O que os distingue e confere energia à história é que cada um se insere numa categoria<br />

distinta daquela clássica Homem-Diabo (cujo exemplo maior é Fausto-Mefistófeles, de Goethe), como bem notou<br />

Antonio Candido (1989). Temos a tripartição representativa em Homem Angélico, Homem Diabólico e<br />

(redundantemente) Homem Homem; respectivamente: Penseroso, Satã e Macário. Interessante é que no primeiro<br />

episódio inexiste o Homem Angélico e no segundo praticamente está ausente o Homem Diabólico. Não temos um<br />

provável embate que se faria entre os opostos, apenas o Homem Homem, Macário, perpassa os dois.<br />

Inferimos dessa maior presença do Homem Homem que a preocupação seja o homem comum mesmo,<br />

que se revela às vezes esperançoso, fiel a seus sentimentos, mas na maior das vezes cético e sarcástico frente<br />

ao mundo que se lhe apresenta. Ora, essa contradição tão próxima ao ser humano se mostra na personalidade de<br />

Macário de tal forma que em alguns momentos ele chega a ser mais diabólico que o próprio Satã e, em outras,<br />

mais angelical que Penseroso. É um tipo de homem comprometido em descobrir suas razões interiores, sua<br />

essência, mas que não é um ser “a-histórico”, pois se encontra efetivamente inserido no tempo. Macário em certo<br />

momento diz:<br />

O mundo hoje é tão devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais na<br />

indústria, no progresso? As máquinas são muito úteis, concordo. Fazem-se mais<br />

palácios hoje, vendem-se mais pinturas e mármores – mas a arte degenerou em ofício –<br />

e o gênio suicidou-se” (AZEVEDO, 2000, p. 549).<br />

Esse descontentamento com o progresso aparente, o espírito inspirador afundando-se no que foi criado<br />

pelos seus semelhantes é apontado por Löwy e Sayre ao se lembrarem da introdução de Kurt Pinthus para a<br />

coleção de poemas expressionistas Crepúsculo da humanidade, de 1919: “Criticando a alienação da vida<br />

moderna, Pinthus observa que a humanidade tornou-se ‘inteiramente dependente de suas próprias criações’, de<br />

sua ciência, técnica, estatística, comércio e indústria, de uma ordem social estereotipada, de costumes burgueses<br />

e convencionais” (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 231). Não é isso, em sua proliferação, que Macário, por volta de 1850<br />

já está apontando aqui no Brasil? Essa inquietação surgida pela sensação de uma perda de paraíso está no<br />

âmago da visão romântica de mundo e repete-se também no expressionismo. Não é à por menos que vemos o<br />

desejo de fuga ao Oriente e o gosto por ruínas tão frequentes como refúgio ao homem desolado. Essas duas<br />

situações encontramos na boca de Satã e Macário, respectivamente: “É uma propensão singular a do homem<br />

pelas ruínas” e “Sabes. . . há ocasião em que me dão venetas de viver no Oriente (AZEVEDO, 2000, p. 526 e 528).<br />

Temos que considerar ainda o cosmopolitismo que sempre guiou as ideias teóricas de Álvares de<br />

Azevedo, às vezes sendo irônico – em sua peça mesmo – ao costume de poetas brasileiros evocarem a<br />

exuberância da natureza e sua cor local sem conhecê-la a fundo.<br />

Aquele defeito apontado por Antonio Candido, de que os dois episódios teriam um abismo de qualidade<br />

entre si, perde mais uma vez sua força ao pensarmos que servem exatamente como duas amostras das facetas<br />

humanas: uma o homem acompanhado de Satã e se revelando alheio a ele e outra ao lado de um ser idealizado,<br />

angelical, mas também lhe sendo díspar. Esse homem, romântico, portador das maiores dúvidas e contradições é<br />

também o homem representado no expressionismo.<br />

44


Por vezes a descrença no aparato filosófico construído pela humanidade ressoa no Macário, tal qual no<br />

expressionismo, na sua busca exasperada de autoconhecimento sem as lentes impostas pela sociedade: é o<br />

desejo de integração total à revelia de sua constante fragmentação e alienação, pelo perdido real e absoluto. É um<br />

sentimento de permanente ilusão que o leva a dizer num quase grito existencialista:<br />

É uma cousa singular esta vida. Sabes que às vezes eu quereria ser uma daquelas<br />

estrelas para ver de camarote essa Comédia que se chama o Universo? Essa Comédia<br />

onde tudo que há mais estúpido é o homem que se crê espertalhão? Vês aquele boi que<br />

rumina ali deitado sonolento na relva? Talvez seja um filósofo profundo que ri de nós (...)<br />

Eis o que é a filosofia do homem! Há cinco mil anos que ele se abisma em si, e<br />

pergunta-se quem é, donde veio, aonde vai, e o que tem mais juízo é aquele moribundo<br />

que crê e ignora! (AZEVEDO, 2000, p. 528).<br />

Pelo que dissemos acima parece admissível concluir agora a aproximação de Macário às ideias préexpressionistas,<br />

ou ainda da vanguarda propriamente dita e formalizada nas primeiras décadas do século XX.<br />

Contudo, torna-se imperioso constatar que tão somente a designação dessa peça como precursora não leva a<br />

lugar algum. O que defendemos aqui é que o romantismo tomado como período literário tão somente é redutor e<br />

que se aliaria, para nós, mais a uma visão de mundo e a uma sensibilidade que se inicia já no século XVIII na<br />

Europa e perpetra a história da literatura desde então.<br />

A leitura da herança romântica pelos expressionistas é seletiva, como a das demais vanguardas do século<br />

XX, o que reforça seu caráter crítico inserido na modernidade. Dessa forma podemos, sim, antever em Macário a<br />

cristalização de posicionamentos que se repetirão em estéticas de arte posteriores como o simbolismo, nas<br />

vanguardas semeadas no crepúsculo do século XIX e designadas de futurismo, surrealismo, cubismo,<br />

expressionismo e outros “ismos”.<br />

Assim, ao pavimentar (ou despavimentar) o caminho de textos românticos como de o Macário para além<br />

de uma localização fixa e redutora na história literária, estamos alargando sua recepção para nossas leituras<br />

contemporâneas.<br />

REFERÊNCIAS<br />

AZEVEDO, Álvares. Macário. Rio de Janeiro: Artium, 1998.<br />

_____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.<br />

BORIE, Monique; ROUGEMONT, Martine de; SCHERER, Jacques. Estética teatral: textos de Platão a Brecht.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.<br />

BORNHEIM, Gerd A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992.<br />

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.<br />

CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo E. S. A personagem de<br />

ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998.<br />

DUBE, Wolf-Dieter. O expressionismo. São Paulo: Verbo/EDUSP, 1976.<br />

FARIA, João Roberto de. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2001.<br />

LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.<br />

Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro. São Paulo, Global Editora, 1997.<br />

ROSENFELD, Anatol. Teatro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1997.<br />

45


1 INTRODUÇÃO<br />

O TEMPO NOS ARQUÉTIPOS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS<br />

46<br />

Professor de Teoria da Literatura do Colegiado de Letras da FAFIUV.<br />

46<br />

Josoel Kovalski 46<br />

Pensamos por vias imagéticas. A literatura nos mostra e produz um arcabouço de procedências<br />

significativas ao longo das histórias contadas. A significação também se dá pelo tempo inserido no bojo dos<br />

receptores, tempo que sempre foi questão de debate entre os pensadores e, embora as definições se percam ou<br />

não se encontrem, está intrinsecamente aliado às nossas percepções e condições de leitores.<br />

As imagens suscitadas pela narrativa comportam uma gama de significação que depende do universo<br />

cognoscitivo dos receptores para adentrá-la. Quando nos referimos ao conhecimento da imagem pensamos nas<br />

verdades que estas podem projetar nos leitores, verdades estas que estão sempre vinculadas a um horizonte<br />

temporal. Logo, ficam arraigadas a uma projeção mental pré-definida, o que comumente chamamos arquétipo.<br />

A relação dos arquétipos com o tempo e seu conseqüente prolongamento em nossas mentes se dá pelas<br />

inserções temporais que colocamos, ampliando os tempos heterogêneos e fundindo-os em nossas percepções de<br />

leitores. O sentido das imagens pode se dar na medida em que esses arquétipos pulsam em nosso agora,<br />

permeados pelas constantes instâncias temporais que abrangem nosso ser-no-mundo. Entendendo o tempo como<br />

experiência e busca de imagens, os “agoras”, perpassados por ele, modificam e complementam-se gerando<br />

sentidos.<br />

O livro Grande Sertão: veredas é um cabedal de refluxos temporais e inserções de imagens. Riobaldo, o<br />

grande narrador, sugere imagens e nos conduz pelas veredas de suas estórias, levando-nos a recriar com ele<br />

cada evento e dialogar com nossas próprias imagens estruturadas dos arquétipos que ele trabalha. Nessa senda,<br />

as imagens ganham novos horizontes, os arquétipos pulsam como possibilidades de um vir-a-ser constante, posto<br />

que extraídos de nossa própria concepção e reconsideradas pelos eventos que ilustram. Ele deixa, assim, abertas<br />

as portas do tempo. Tempo que trabalha, que significa. O próprio livro é como o homem, travessia de tempos em<br />

busca de significados.<br />

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA<br />

Se pensarmos em uma linha diacrônica tradicional, os arquétipos são semelhantes aos estereótipos, a<br />

saber, imagens consagradas e que fazem parte do inconsciente coletivo. No entanto, uma vez que tomamos como<br />

premissa o conceito de História de Walter Benjamin (1984), que está intimamente ligado aos conceitos de Ser e<br />

Tempo propostos por Martin Heidegger (2002), percebemos que os arquétipos, além de abrangerem o imaginário<br />

coletivo, abarcam a potencialidade de vir-a-ser dos seres no fluxo do Tempo. Logo, esses arquétipos ou imagens<br />

sugeridas pela narrativa exigem de nossos conhecimentos vivenciais um atrelamento à historicidade. Visto que a<br />

vivência é sempre vivência em um tempo, nós, inseridos nele o compreendemos não somente como<br />

colecionadores de eventos, mas, utilizamo-nos dele como propiciador de devires.<br />

Quando formamos uma imagem arquetípica nossos conhecimentos acerca dela são suscitados pela carga<br />

histórica que para nós as significam: tudo se torna uma relação com o tempo, desde as primeiras sugestões que<br />

os arquétipos propiciam até as mudanças que esses mesmos arquétipos, ou imagens, projetam nas relações<br />

temporais por nós vivenciadas. Em termos benjaminianos isso seria apropriar-se de reminiscências, o que significa<br />

uma articulação com o passado da imagem, trazendo-a ao nosso porvir. Pois, conforme Heidegger (2002, p. 254)<br />

“O tempo é compreendido como um após outro, como “fluxo” dos agoras, como “correr do tempo”“.<br />

Esse tempo que flui projeta imagens. Na tradição junguiana um arquétipo é visto como uma imagem<br />

primordial que só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo. Ao passar para o consciente ela é preenchida<br />

com o material da consciência, pois para o psicanalista alemão, o arquétipo é um elemento vazio e formal em si,<br />

nada mais sendo que uma “facultas praeforma”, ou uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação.<br />

O arquétipo aqui será tratado conforme sua relação com a temporalidade do ser, projetando sempre uma<br />

abertura para o devir, ou vir-a-ser. A partir da idéia de arquétipo como um suporte para o vir-a-ser do ser no<br />

Tempo, pensamos no conceito de Walter Benjamin (1994) para a História. Para ele, o analista que se propõe a<br />

pensar sobre o Tempo deve tomar a História como uma experiência com o passado ainda pulsante, e não como<br />

uma coleção de fatos de outrora. A História, assim, é um fluxo ininterrupto de “agoras”. Dessa forma, ao<br />

pensarmos em um arquétipo, inferno-morte, do Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em que o narrador<br />

propicia, a partir da inserção do arquétipo, o vir-a-ser:


A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemén instrui. Duns lugares<br />

inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá só conseguiu aprofundar por<br />

um relance a graça de sua substância alumiável, em as trevas de véspera para o<br />

Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que lê o prazer trivial de cada um é judiar dos outros,<br />

bom atormentar; e o calor e o frio mais perseguem; e, para digerir o que se come é<br />

preciso desforçar no meio, com fortes dores; e até respirar custa dor; e nenhum<br />

sossego não se tem. Se creio? Acho prozeável. Repenso no acampo da Maraúba da<br />

Jaíba, soante que mesmo vi e assaz me contaram; e outros – as ruindades de regra que<br />

executavam em tantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando,<br />

furando os olhos, cortando as línguas e orelhas, não economizando as crianças<br />

pequenas, atirando na inocência do gado, queimando pessoas ainda meio vivas, na<br />

beira de estrago de sangues...esses não vieram do inferno? Saudações. Se vê que<br />

subiram de lá antes dos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros,<br />

exemplação de nunca se esquecer do que está reinando por debaixo. Entanto, que<br />

muitos retombam para lá constante que morrem...viver é muito perigoso. (ROSA, 2001,<br />

p.64).<br />

Quando pensamos no arquétipo inferno-morte como elemento vazio, ou seja, apenas fazendo parte do<br />

inconsciente coletivo à maneira de Jung (2000), ele está na Pré-História, conceito esse de Walter Benjamin (1984),<br />

que compreende o ser no fluxo da História. Sabendo que o pensador alemão concebia a História como um evento<br />

dialético, a saber, onde o efêmero e o duradouro pudessem confluir, nos atemos em seus conceitos para<br />

pensarmos a inserção dessas imagens como propiciadoras de múltiplas significâncias ulteriores. Em Grande<br />

Sertão: veredas, o alegorista retirou o arquétipo de sua Pré-História propiciando novos sentidos e, por isso, este<br />

arquétipo fica na Pós-História, ou na decadência.<br />

Os arquétipos enquanto idéias imagéticas são, no conceito de Benjamin (1984) originados. Para o filósofo<br />

alemão, origem nada tem a ver com gênese. A origem é um salto em direção a um novo. Nesse salto, a inserção<br />

de um arquétipo originado se liberta do vir-a-ser para entrar na decadência e por isso, na História, que é a fusão<br />

de todos os tempos. As idéias originadas na História são, portanto, em si mesmas intemporais, ou seja, não<br />

obedecem à linearidade do tempo, mas contém, sob a forma de “história natural”, uma remição à sua Pré e Pós-<br />

História.<br />

Nessa concepção de História como decadência, a alegoria, que é o momento da origem, está vinculada à<br />

questão de morte e ruína:<br />

Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca mundana, da história<br />

como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios do declínio.<br />

Quanto maior a significação, tanto maior a sujeição a morte, porque a morte que grava<br />

mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a Phisis e a significação.<br />

(BENJAMIN, 1984, p. 188).<br />

Assim como nas representações teatrais do Barroco Alemão em que os sentidos só eram suscitados a<br />

partir do dilaceramento do corpo, no arquétipo inferno-morte, as possibilidades semânticas emergem da<br />

desapropriação do a priori do arquétipo. Portanto, a partir do momento que o alegorista se utilizou da imagem<br />

inferno-morte para ilustrar, ele adicionou, além das conveniências primordiais que tínhamos sobre ela, extraindo-a<br />

do cediço, novas possibilidades de interpretação, propiciando uma decadência que a visão pós-histórica da<br />

imagem passa a remeter. Nas perspectivas de um agora, tanto do narrador, como dos eventuais leitores,<br />

entramos na chamada confluência de vários tempos, o que permite e abre os devires que os arquétipos instauram.<br />

Logo, arquétipos, como literatura, são infinitos, pois têm a possibilidade de contemplação ulterior, dadas pela<br />

relação temporal. Com a questão do dilaceramento podemos pensar em Heidegger (2002) com o conceito de<br />

decadência como complementação do ser.<br />

Enquanto ser-no-mundo de fato, a pre-sença da de-cadência já de-caiu de si mesma;<br />

mas não de-caiu em algo ôntico com o que ela se deparou ou não se deparou, no curso<br />

de seu ser, e sim do mundo que em si mesmo, pertence ao ser da pre-sença. A<br />

decadência é uma determinação existencial da própria pre-sença e não se refere a ela<br />

como algo simplesmente dado, nem a relações simplesmente dadas com o ente do qual<br />

ela “provêm”, ou com o qual ela posteriormente entra em commercium. (HEIDEGGER,<br />

2002, p. 237).<br />

47


Para Heidegger (2002) essa decadência do Dasein (ou da pre-sença) se dá em seu mundo, ou seja, o ser<br />

inferno-morte na passagem citada de Grande Sertão: veredas decai como determinação existencial a partir da<br />

utilização desse arquétipo como imagem referencial pelo narrador.<br />

Tomando como pressuposto a idéia de poesia como imagem arquetípica, vemos que esta também está<br />

associada ao conceito de complementação do ser na dialética da história (pré e pós-história). Conforme Octavio<br />

Paz (1972, p. 50), o homem se constitui como imagem e na imagem.<br />

A poesia coloca o homem fora de si e, simultaneamente, o faz regressar ao seu ser<br />

original: volta-o para si. O homem é sua imagem: ele mesmo e aquele outro. Através da<br />

frase que é ritmo, que é imagem, o homem – esse perpétuo chegar a ser – é. A poesia<br />

é entrar no ser.<br />

Compreendendo Grande Sertão: veredas como sendo essencialmente poético, na medida em que joga<br />

com a capacidade semântica dos vocábulos e das imagens, sua narrativa é propiciadora de arquétipos, ou<br />

imagens. A questão do jogo com as palavras compreende uma peculiaridade profanadora na perspectiva de<br />

Agamben (2007). Ele tomou como pressuposto a idéia de Benjamin de que a Religião Capitalista nos impede de<br />

trocar experiências, o que gera enredos fragmentários. Ao colocar em xeque a Pré-História das imagens, usandoa<br />

de uma forma insólita, o escritor está profanando a Religião Capitalista a qual só permite o uso da linguagem<br />

com intuitos comerciais.<br />

Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe, Bobeia. Ao que a pessoa vai,<br />

em meia-noite, a uma encruzilhada e chama fortemente o cujo – e espera. Se sendo,<br />

há-de que vem um pé-de-vento, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos,<br />

se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem<br />

completação...o senhor imaginalmente percebe o crespo – a gente se retém – então da<br />

um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece de<br />

conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a<br />

alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas!...”O<br />

Hermógenes tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes –<br />

demônio. Sim só isto. Era ele mesmo. (ROSA, 2001, p. 64)<br />

Riobaldo nesta passagem trabalha como um manipulador de tempos heterogêneos ao induzir o<br />

interlocutor a pensar na imagem demônio. A profanação dá-se pela via agambeniana de tirar a imagem do cediço<br />

e coloca-la no pos factum, ou seja, em uma possibilidade de novo sentido.<br />

Ao tratar de imagens no devenir do Tempo, percebemos que as possibilidades de sentido só se<br />

potencializam na colisão dos agoras, ou seja, quando os tempos heterogêneos chocam-se e os aspectos cediços<br />

confluem para as determinações das imagens pelos receptores.<br />

Se pensarmos em Benjamin e sua perspectiva de história-destino, o alegorista induziu os arquétipos às<br />

desventuras incessantes do tempo ao colocá-los na Pós-História. Entretanto, o tempo continua aberto e<br />

exercendo suas funções - possibilitando novos instantes de sentido a cada novo receptor ante o texto.<br />

No caso do arquétipo inferno-morte o narrador fornece o sentido do seu agora e retrai, ao mesmo tempo, o<br />

de outrora e o vir-a-ser que estão no instante dele (Riobaldo). Porque conforme Bergson (1999, p. 176) “Nós só<br />

percebemos praticamente o passado, o presente puro, sendo o inapreensível avançar do passado a roer o futuro”.<br />

A memória na concepção de Bergson (1999) é a forma de prolongar o passado no presente que lhe é<br />

contemporâneo, porque a memória afasta e aproxima os fragmentos do tempo que são compreendidos pelos<br />

arquétipos na sua Pré e Pós-História. Logo, conforme Heidegger (2002, p. 14): “os percalços e peripécias do<br />

tempo nos proporcionam o horizonte de doação do sentido que se dá, na medida em que se retrai”, assim como<br />

contamos apenas com fragmentos do Tempo.<br />

O Tempo, nessa visão, seria uma busca de imagens arquetípicas. Para exemplificar, um excerto de<br />

Grande Sertão: veredas:<br />

Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De mim, conto. Como é que<br />

se pode gostar do verdadeiro no falso? A amizade com ilusão de desilusão. Vida muito<br />

esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos que a gente<br />

acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando eu peguei a<br />

levar cruas minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – não<br />

dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu<br />

também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se<br />

48


definir calado, em si, um assunto contrário, absurdo, não concede segmento. Voltei para<br />

os frios da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio<br />

para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui em mão<br />

de minha mulher! (ROSA, 2001, p. 77).<br />

Riobaldo, manipulador de tempos, busca a imagem arquetípica do amor e a extrai das desventuras do<br />

Tempo na forma de pássaro, outro arquétipo. Pássaro, assim como o tempo, voa. Ao pousar nesse agora ele<br />

transforma-se em imagem para a vida e para a dor, “ovos de ferro” (ROSA, 2001, p. 77). O narrador, a todo o<br />

momento, busca imagens para inserir condições de significâncias no interlocutor, mostrando que a significação<br />

ocorre na fusão de imagens arquetípicas. Quando pensamos na imagem pássaro contamos com a questão<br />

tradicional para o conceito de arquétipo proposto, em uma perspectiva junguiana, por Meletínski (2002) para quem<br />

arquétipos são mitos consagrados e conhecidos como arquétipo da mãe, da criança e da sombra. Logo,<br />

adicionamos a esse conceito tradicional o instante de sentido proposto por Riobaldo na passagem mencionada.<br />

Em sua visão de história como história possível, Benjamin (1994) nos faz lembrar de Stephen Dedalus. A<br />

personagem joyceana divaga sobre o tempo que dispersa, posto que nos vem fragmentado. Essa visão de<br />

Dedalus nos permite ver o arquétipo na sua concepção dialética de História.<br />

Não tivesse Pirro caído pela mão de uma bruxa em Argos ou não tivesse Julio César<br />

sido morto a punhaladas. Eles não podem ser descartados do pensamento. O tempo os<br />

marcou a ferro em brasa e agrilhoados eles estão alojados no lugar das possibilidades<br />

infinitas que eles jogaram fora. Mas podem essas ter sido possíveis visto que nunca se<br />

deram? (JOYCE, 2005, p. 30)<br />

Perguntamos-nos com Dedalus se as possibilidades podem acontecer. Os arquétipos como Deus, Amor,<br />

Morte, Inferno e tantos outros que encontramos em Grande Sertão: veredas continuam fluindo no Tempo que está<br />

aberto e recebendo origens ocasionadas pelo dilaceramento que o alegorista propõe.<br />

Ilustrar a relação da imagem arquetípica e sua posterior apreciação numa fusão de tempos heterogêneos,<br />

mostrando que as imagens revigoradas pelo narrador e, portanto, extraídas do cediço formam novas<br />

possibilidades de interpretação foi o que tivemos em mente. Associar os conceitos de História Dialética (pré e pós)<br />

com a possibilidade de significação que as imagens geram é estar frente a mais uma das grandes habilidades de<br />

Guimarães Rosa, a de criar em cada vez que (re) significa.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

AGAMBEN, G. Profanações. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.<br />

BENJAMIN, W. Origem do Drama Barroco Alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,<br />

1984.<br />

______. Magia e Técnica. Arte e Política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Parte I. 11ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

_____. Ser e tempo. Parte II. 9ed. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

JOYCE, J. Ulisses. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.<br />

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ed. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />

MELETÍNSKI, E. M. Os arquétipos literários. Tradução de Aurora Bernardini, Homero Freitas de Andrade e<br />

Arlete Cavaliere. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.<br />

PAZ, O. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972.<br />

ROSA, J. G. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

49


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE HIBRIDISMO E IDENTIDADE EM O PACIENTE INGLÊS, DE MICHAEL<br />

ONDAATJE<br />

1 Introdução<br />

50<br />

Juliana Pessi Mayorca 47<br />

A obra de Michael Ondaatje, O paciente inglês (1992), é extremamente rica e complexa. Durante toda a<br />

leitura, deparamo-nos com inúmeros questionamentos relacionados ao “eu” e “ao outro”, assunto que o presente<br />

artigo irá tratar, mais especificamente com questões relativas à identidade e ao hibridismo.<br />

O cenário do romance é a Segunda Guerra Mundial, na Itália, no Cairo e em acampamentos isolados no<br />

deserto conhecido como Gilf Kebir, onde uma equipa britânica de exploradores desenha mapas da aviação.<br />

Katherine é a recém-casada de Geoffrey Clifton, um pragmático explorador britânico, um erudito em História e<br />

exploração geográfica que vivia aparentemente bem ao lado de sua esposa, até que ela se envolve com Almásy<br />

(o paciente inglês). Depois que Geoffrey descobre a traição, tenta matar os amantes e a si próprio, mas somente o<br />

marido traído acaba morrendo, ficando Katharine gravemente ferida.<br />

Almásy a leva para uma caverna e sai para procurar ajuda. É parado pelo seu próprio exército, e como<br />

ninguém o quer ajudar, ele comete traição para conseguir o que quer. Volta à caverna após muito esforço,<br />

encontra-a morta com seus últimos pensamentos deixados escritos para ele. A dor é desesperante, esta é a única<br />

morte que lhe diz respeito entre o massacre da guerra. Voa com o cadáver dela a bordo e é atingido pelo fogo<br />

antiaéreo. Ele, queimado, é recolhido no deserto por uma tribo nômade. Embora sobreviva ao acidente, a sua<br />

alma está destroçada. Ele mantém um livro ao seu lado, "Histórias", de Heródoto, onde guarda as lembranças da<br />

sua amante morta, relatos de viagem, colagens e outros textos que acabam por modificar o livro original.<br />

A história continua na abandonada villa san Girolamo, norte de Florença. É aqui que ele relata suas histórias.<br />

A guerra está por acabar, os alemães estão em retirada. Almásy tem queimaduras que o deixam irreconhecível e<br />

mantém a sua identidade desconhecida, recebendo o “apelido” de paciente inglês. No hospital militar ele foi dado<br />

por um inglês e por isso foi evacuado. Encontra-se agora aos cuidados de Hana, uma enfermeira canadense,<br />

cansada da guerra, que o cuida e escuta suas histórias, lendo para ele e aliviando a sua dor com os<br />

medicamentos que lhe dá. Nesta villa, juntam-se Kip, um indiano sapador que lidera uma equipa de desmontagem<br />

de bombas, e Caravaggio, um ladrão mutilado, agente duplo, que suspeita que este anônimo paciente inglês<br />

possa ser um espião alemão.<br />

Nesse lugar devastado, Hana, ao mesmo tempo que cuida do homem queimado e sem nome, apaixona-se<br />

por Kip. Os monólogos do homem moribundo são uma mistura de acontecimentos reais e sonhos, por conta da<br />

fraqueza e das drogas. Ele mantém o livro de Heródoto junto ao peito, agarra-se a ele como algo vivo.<br />

As páginas finais do livro estão marcadas pelo lançamento de bombas nucleares em Nagasaki e Hiroshima,<br />

um choque para o mundo inteiro, aumentando o nível de crueldade da guerra. Isso faz com que Kip vá embora<br />

daquele lugar, revoltado com todos que convive, a quem ele culpa, uma vez que é um ataque do ocidente ao seu<br />

país.<br />

2 O autor<br />

Antes de analisarmos a obra, cabe aqui falar um pouco sobre o autor do livro, cuja vida já é um exemplo de<br />

hibridismo, assunto que trataremos neste texto. Philip Michael Ondaatje nasceu no Sri Lanka em 12 de setembro<br />

de 1943. Em 1954 mudou-se com a mãe para a Inglaterra, e em 1962 radicou-se no Canadá, tendo se<br />

naturalizado canadense. Foi professor na York University na década de 70 e desde 1983 leciona no Glendon<br />

College, ambos em Toronto. Embora seja mais conhecido como romancista, sua obra inclui também memórias e<br />

poesia. O paciente inglês recebeu o Booker Prize, o Canada Australia Prize e o Canada Governor General’s<br />

Award, entre outros prêmios. Em 1996, foi levado às telas pelo diretor Anthony Minghella e recebeu nove prêmios<br />

Oscar, inclusive o de melhor filme.<br />

Ondaatje propõe um questionamento: o que faria oriental um homem? O fato de haver nascido no Oriente<br />

talvez fosse a resposta mais esperada, ou o fato de haver sido criado, ter-se inspirado ou ter se influenciado pelo<br />

que é oriental. Da mesma forma, julgamos ocidental um homem que nasceu ou foi criado no Ocidente. O<br />

raciocínio segue para o inevitável: um homem nascido no Oriente e vivendo no Ocidente é um homem entre dois<br />

mundos. Michael Ondaatje seria um homem entre dois mundos, uma vez que vez que nasceu no Sri Lanka e mora<br />

no Canadá, mas neste texto as divisões entre Ocidente e Oriente não fazem sentido.<br />

47 Mestranda em Teoria da Literatura – UNIANDRADE/PR


A partir dessas reflexões, tomamos o pensamento de Edward Said (2001), no livro Orientalismo. Para esse<br />

autor, “orientalismo” é a tendência da cultura ocidental em produzir um conjunto de pressupostos e<br />

representações sobre o Oriente, sempre visto como uma fonte de perigo e fascinação, como algo exótico e<br />

ameaçador. Said realiza uma descrição muito fundamentada dos processos de formação dos estereótipos sobre<br />

Oriente: aberrante, subdesenvolvido e inferior. O livro mostra essa representação que o Ocidente fez do Oriente<br />

com pouca relação com a realidade, e argumenta que essa representação, a qual foi aceita com naturalidade pela<br />

comunidade científica e pelo imaginário popular ocidental, foi necessária para que o Ocidente se (auto) definisse,<br />

encontrando um Outro, o oriental, que ajudasse, por diferenciação, a se conhecer e elevar a si mesmo, e<br />

legitimasse seus interesses colonialistas. O Oriente está tão presente no Ocidente, que não podemos separar<br />

ambos, sendo uma miragem a idéia de uma existência em separado.<br />

No romance de Michael Ondaatje, o indiano Kip representa exatamente isso: uma personagem entre dois<br />

mundos. Por meio dele pensamos na dicotomia oriente/ocidente. Pensando também na relação de Kip com o<br />

paciente inglês e com a própria canadense Hana, confirmamos uma decorrência na literatura que trabalha<br />

também com essa dicotomia, como mostra a passagem do romance, em que Kip discute com o paciente inglês,<br />

após o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki:<br />

Cresci com as tradições do meu país, mas depois com as do seu país. A sua frágil ilha<br />

branca, com seus costumes e maneiras e livros e prefeitos e razão, de algum modo veio<br />

a converter o resto do mundo. Vocês defendem o comportamento preciso. Eu sabia que<br />

se levantasse uma xícara com o dedo errado seria banido. Se desse o nó de um jeito<br />

errado na gravata estaria fora. Foram só os barcos que eram a vocês todo esse poder?<br />

Foi por que vocês tinham as histórias e as prensas tipográficas, como dizia meu irmão?<br />

Vocês e depois os americanos nos converteram. Com suas regras missionárias. E<br />

soldados indianos perderam suas vidas como heróis para que pudessem ser pukkah.<br />

Vocês fazem guerras como se fosse um jogo de críquete. Como conseguiram nos<br />

enganar com essa história? Aqui ...escute só o que o seu povo fez (...) Uma bomba.<br />

Depois outra. Hiroshima. Nagasaki. (ONDAATJE, p. 254-5)<br />

E Kip continua falando, furioso, dessa relação do oriente com o ocidente: “Americano, francês, não me<br />

importo. Quando vocês começam a bombardear as raças escuras do mundo, são ingleses. Vocês tinham o rei<br />

Leopoldo da Bélgica e agora têm o cretino Harry Truman dos Estados Unidos. Aprenderam tudo com os ingleses”<br />

(p. 257). O próprio Caravaggio sabe que o jovem soldado tem razão: “nunca teriam lançado uma bomba dessas<br />

sobre um país de brancos” (p. 257)<br />

Nesse diálogo, em que as personagens personificam o oriente e o ocidente, confirmamos a teoria de Said<br />

(2001), que em sua tese central diz que o Oriente é uma invenção ocidental, uma espécie de imagem refletida no<br />

espelho para legitimar a identidade eurocentrista e discriminatória do Ocidente: racional, desenvolvido,<br />

humanitário e superior. Suas perguntas chave, e que tocam o leitor são: Como representamos outra cultura? O<br />

que é outra cultura? Podemos definir o que é cultura quando pensamos na diferença racial, religiosa, social ou as<br />

elaborações teóricas sobre o tema sempre são interessadas, prontas para autodefinir a cultura própria no que<br />

deve ser preservado e defendido da hostilidade e agressão da outra desconhecida?<br />

O Oriente é o não europeu, e isso é uma infinita rede de possibilidades (muçulmano, negro, pobre, distante),<br />

assim como o “europeu” é outra infinidade de possibilidades (branco, católico, educado, familiar). Na obra de<br />

Ondaatje, estas questões estão muito próximas de outras: a tolerância, o olhar para o outro (que difere ou é igual),<br />

a saudade de um mundo tranqüilo (que provavelmente nunca tenha existido).<br />

Estudioso da obra de Michel Ondaatje, Costa Neto (2007) tece algumas considerações importantes sobre o<br />

escritor e sua obra: seus textos tratam da relação dos países dominantes e suas colônias, da reafirmação da<br />

existência de um mundo com fronteiras, levando os países à guerra, ou melhor, o que resta depois de uma guerra,<br />

principalmente com questões relativas à identidade. Também, do diálogo da Literatura com a História, com a<br />

Arqueologia (metáforas para buscar o passado) e das relações de Ondaatje com a historiografia, que vão da mais<br />

poética possibilidade de se fazer história ao elemento mais centrado no dado ou no evento. (p.127-8)<br />

A partir dessas reflexões, veremos como se dá a relação com o outro na obra O paciente inglês, e como<br />

questões como o hibridismo e identidades se manifestam.<br />

3 Identidade<br />

O conceito de identidade é muito questionado no mundo contemporâneo. Muitas vezes nos perguntamos se<br />

a identidade é fixa, se existe uma “verdadeira” identidade ou quais os fatores que influenciam a formação de uma<br />

51


identidade. Há inúmeras respostas para essa última indagação, entre elas podemos citar a etnia, a localização<br />

geográfica, a linguagem, a religião, a sexualidade, a cultura, as tradições, as condições sociais e materiais, etc.<br />

A personagem queimada e desfigurada no romance O paciente inglês é um mistério, porque não se sabe<br />

sua identidade. Não há referências de nação, etnia, cultura que o identifique.<br />

No hospital de Pisa, viu o paciente inglês pela primeira vez. Um homem sem rosto. Um<br />

poço de ébano. Todos os sinais de identificação consumidos pelo fogo. Partes de seu<br />

corpo e de seu rosto queimadas haviam sido aspergidas com ácido tânico, que<br />

endurecia formando uma casca protetora sobre a pele em carne viva. A área ao redor<br />

dos olhos estava revestida por uma camada espessa de violeta de genciana. Nada<br />

havia nele que permitisse o reconhecimento. (ONDAATJE, 2007, p. 47-8)<br />

Na arena global, existem preocupações com as identidades nacionais e étnicas. Num contexto mais local,<br />

existem preocupações com a identidade pessoal, como por exemplo, as relações pessoais e a questão sexual. Há<br />

discussões que sugerem que nas últimas décadas estão surgindo mudanças na identidade que chegam a produzir<br />

uma "crise de identidade".<br />

Outro fator que influencia na formação da identidade é a questão do tempo e lugar que o sujeito se encontra.<br />

Hanna, a enfermeira, personagem do romance de Ondaatje, acaba passando por uma crise de identidade devido<br />

às condições que se encontra - vivendo num país estranho, devastado pela guerra e marcado pela destruição:<br />

“Durante a guerra, com todos os seus pacientes mais graves, ela sobrevivia mantendo a frieza oculta em seu<br />

papel de enfermeira. Vou sobreviver a tudo isso. Não vou enlouquecer. Eram frases enterradas ao longo de toda a<br />

sua guerra.” (ONDAATJE, 2007, p. 47)<br />

Em outra passagem também encontramos esse dilema vivido pela personagem:<br />

Levantou-se devagar e se aproximou dele. Era bem pequeno, mas ainda assim parecia<br />

um luxo. Ela se recusava a olhar para si mesma a mais de um ano, de vez enquando<br />

apenas a sua sombra na parede (...) Ela sorriu com isso. Oi, meu chapa, disse. Espiou<br />

os próprios olhos, tentando se reconhecer.” (p. 51)<br />

A princípio parece fácil definir identidade. Poderíamos dizer que é tudo aquilo que a pessoa é: “sou<br />

brasileiro”, “sou homem”, “sou pai”, “sou branco”, “sou heterossexual”. Assim, a identidade seria fixa e<br />

autosuficiente. Mas é aí que aparece a diferença, aquilo que o outro é: “ele é japonês”, “ele é jovem”, “ele é negro”,<br />

“ela é bissexual”. Percebemos, assim, que a identidade e a diferença são interdependentes, elas são inseparáveis.<br />

No romance que estamos analisando, há uma passagem que comprova esse conflito entre o “eu” e o “outro”:<br />

(...) ela viu que um dos homens era um sikh. Inferno. Ela estava cercada por homens<br />

estrangeiros. Nem um só italiano puro. Um romance na villa. O que Poliziano ia pensar<br />

deste quadro de 1945, dois homens e uma mulher com um piano entre eles e a guerra<br />

quase terminada e o brilho molhado das armas quando o relâmpago se esgueirava<br />

para dentro da sala enchendo tudo de cor. (ONDAATJE, 2007, p. 61).<br />

Expressões como “estrangeiros”, “italiano puro”, “guerra” assinalam o conflito que espelha as questões da<br />

diferença: a briga, as intrigas, o conflito, enfim, a guerra.<br />

De fato, a identidade não prescinde diferença, como diz Silva (2008), que em geral consideramos a<br />

diferença como um produto derivado da identidade e que nessa perspectiva, a identidade é o ponto de partida<br />

para a diferença. Isso faz com que o que somos seja tomado como a norma, o “certo” para avaliarmos aquilo que<br />

não somos.<br />

Por sua vez, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas. Além de depender uma da<br />

outra, elas são produto da criação linguística. Ambas são produto de um mundo cultural e social, pois somos nós<br />

que a produzimos em nossas relações culturais e sociais. Assim, identidade e diferença são criadas por meio da<br />

linguagem, da nossa cultura e dos sistemas simbólicos que a compõe, sendo marcadas pela flexibilidade,<br />

indeterminação e instabilidade. Elas são tão indeterminadas e instáveis quanto à linguagem da qual dependem.<br />

Assim, as identidades não são unificadas. Pode haver contradições no seu interior que têm que ser<br />

negociadas. Pode haver discrepâncias entre o nível coletivo e o nível individual. As pessoas assumem suas<br />

posições de identidade e se identificam com elas. O nível psíquico, juntamente com o simbólico e o social,<br />

contribui para explicar como a identidade é formada e mantida. Isso mostra como a identidade não é fixa, como<br />

não existe uma “verdadeira” identidade. Mais um exemplo da obra O paciente inglês que comprova isso:<br />

52


Foi interrogado outra vez. Tudo sobre ele era muito inglês, exceto pelo fato de sua pele<br />

estar toda preta, esturricada, uma criatura saída do pântano da história ali no meio dos<br />

oficiais interrogadores. (...) Continuou divagando, deixando todos loucos, aliado ou<br />

traidor, não havia como ter certeza de quem ele era. (...) E em seu livro de citações, sua<br />

edição de 1890 das Histórias de Heródoto, há mais fragmentos: mapas, anotações de<br />

um diário, textos em muitas línguas, parágrafos recortados de outros livros. Só o que<br />

falta é o seu próprio nome. Não há ainda a menor pista de quem ele é na verdade,<br />

anônimo, sem exército, batalhão ou esquadrão. (ONDAATJE, 2007, p. 89)<br />

“Anônimo”, “aliado ou traidor”, “criatura saída do pântano da história” são palavras e expressões que nos remetem<br />

às contradições da identidade do paciente inglês.<br />

Já Woodward (2008) nos fala de identidade e representação, que é necessário analisar a relação entre<br />

cultura e significado.<br />

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos<br />

quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos<br />

significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e<br />

aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam<br />

possível àquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A representação,<br />

compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas<br />

e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às<br />

questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? (p. 17)<br />

A questão da representação nas relações sociais leva a uma preocupação com a identificação. Esse<br />

conceito, que descreve o processo pelo qual nos identificamos com os outros, seja pela ausência de uma<br />

consciência da diferença ou da separação, seja como resultado de supostas similaridades, tem sua origem na<br />

psicanálise.<br />

A identidade e a diferença são uma relação social, ou seja, de poder. Para Silva (2008), elas não são<br />

simplesmente definidas, elas são impostas, elas não convivem harmoniosamente, sem hierarquia. A definição da<br />

identidade e da diferença não é apenas disputa entre grupos sociais e sim uma disputa mais ampla por outros<br />

recursos simbólicos e materiais da sociedade.<br />

A afirmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes<br />

grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens<br />

sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estreita conexão com relações de<br />

poder. O poder de definir a identidade e de marcar a diferença não pode ser separado<br />

das relações mais amplas de poder. A identidade e a diferença não são, nunca,<br />

inocentes. (SILVA, 2008, p. 81)<br />

Essas questões de afirmação da identidade e marcação da diferença sempre vão implicar com operações<br />

de incluir e excluir, com “o que somos” e “o que não somos”. Isso gera a separação entre o “nós” e o “eles” e<br />

significa classificar, hierarquizar e atribuir diferentes valores aos grupos classificados.<br />

Hall (2005) por seu lado diz que as identidades nunca são unificadas. Na modernidade tardia são cada vez<br />

mais fragmentadas e fraturadas. Elas não são nunca singulares, mas multiplamente construídas ao longo de<br />

discursos, práticas e posições que podem ser ou não antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma<br />

historicização radical, estando constantemente em processo de transformação e mudanças. Isso que nos mostram<br />

as personagens do romance O paciente inglês, que metaforizam, encaram uma espécie de limbo, como se<br />

estivessem gestando ou vivendo uma nova identidade.<br />

4 Hibridismo<br />

Hibridismo é um conceito ligado à identidade e que nos ajuda a entender a complexidade do romance de<br />

Michael Ondaatje. Vale, portanto, tecer algumas considerações.<br />

Por hibridismo entendemos ser a mistura, a conjunção, o intercurso entre diferentes nacionalidades, etnias,<br />

idiomas, costumes, raças, enfim, de culturas nem sempre harmoniosas que percebemos durante todo o percurso<br />

narrativo. Diante disso, Silva (2008) diz que na perspectiva da teoria cultural contemporânea, o hibridismo coloca<br />

em xeque aqueles processos que tendem a conceber as identidades como fundamentalmente separadas,<br />

divididas.<br />

O processo de hibridização confunde a suposta pureza e insolubilidade dos grupos que<br />

se reúnem sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas. A identidade que<br />

53


se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades<br />

originais, embora guarde traços delas. (SILVA, 2008, p.87)<br />

Em várias passagens de O paciente inglês notamos esse hibridismo, essa mistura de etnias. A seguir uma<br />

passagem em que o paciente inglês está recordando o encontro de pessoas de várias nacionalidades:<br />

Só os beduínos e nós zanzando pelas estradas dos Quarentas Dias. Havia rios de tribos<br />

do deserto, os seres humanos mais maravilhosos que encontrei na vida. Nós éramos<br />

alemães, ingleses, húngaros, africanos – todos insignificantes ao lado deles. Aos poucos<br />

fomos nos tornando homens sem pátria. Passei a odiar as nações. Somos deformados<br />

pelo Estado-nação. (ONDAATJE, 2007, p. 126)<br />

Principalmente na personagem de apelido Kip, o indiano desarmador de bombas, encontramos uma<br />

identidade híbrida, a começar pela maneira como recebeu esse apelido, como comprova a passagem abaixo:<br />

O nome aderido a ele de um modo curioso. No treinamento de manejo de bombas, na<br />

Inglaterra, o papel do seu relatório ficou um pouco sujo de manteiga e o oficial exclamou,<br />

de gozação: “O que é isto aqui? Gordura de salmão?” Todo o mundo rio dele. O jovem<br />

sikh não tinha a menor idéia do que fosse um salmão, mas já estava definitivamente<br />

traduzido pelo nome de um peixe inglês, seco e salgado. Em uma semana, o seu nome<br />

verdadeiro, Kirpal Singh, fora totalmente esquecido. Não se importou com isso.<br />

(ONDAATJE, 2007, p. 81)<br />

Assim como as questões de identidade e diferença tem relação com o poder, o processo de hibridização também.<br />

Em especial na obra que está sendo analisada, O paciente inglês, a hibridização se dá forçadamente, devido à<br />

guerra. As personagens se encontram naquele lugar, sul da Itália, em virtude do andamento da guerra. A villa<br />

funciona como um limbo, um lugar de trégua e de relativo sossego se comparado a outros lugares e momentos da<br />

Segunda Grande Guerra. Um lugar onde o amor, a bondade, a tolerância com o outro ainda se faziam. A villa se<br />

torna uma ilha no meio da guerra.<br />

O cruzamento de fronteiras, o “não estar em casa” pode significar percorrer o território de diferentes<br />

identidades. Para Silva (2008), isso serve de metáfora para o caráter necessariamente móvel da identidade, pois<br />

quem “viaja” é o “outro”, o “estrangeiro” nesse território, mesmo que seja temporariamente. É essa experiência de<br />

estar fora de casa, do lugar de origem que, segundo a teoria contemporânea dos estudos culturais que marca toda<br />

a identidade cultural.<br />

5 Conclusão<br />

O romance O paciente inglês se beneficia, como vimos, de sobremaneira quando visto pelos olhos dos<br />

Estudos Culturais. Encontramos no texto de Michael Ondaatje identidades híbridas e multiculturais, comprovando<br />

o que estudiosos desses assuntos afirmam: que a identidade não é fixa, estável, coerente, una e permanente,<br />

pelo contrário, ela é uma construção, um processo de produção, uma relação, ela é fragmentada, é instável e<br />

contraditória. Ainda, quando pensamos em identidade, pensamos no outro, na diferença, no diferente. E isso é<br />

inevitável. Pensar na obra de Ondaatje como exemplo de diversidade seria algo estéril. Enxergamos O paciente<br />

inglês como um exemplo de multiplicidade, pois nos obriga a olhar a riqueza de outras identidades; a ver o outro<br />

como ele é, e não como diferente de nós; a enxergar esse outro não como o exótico, mas alguém que deixa um<br />

pouco de si e leva um pouco de nós, afinal nossas identidades estão em constante transformação.<br />

6 Referências<br />

COSTA NETO FILHO, Benedito. A História editada – o novíssimo romance histórico. 2007. Tese (Doutorado<br />

em Letras). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.<br />

ONDAATJE, Michael. O paciente inglês. São Paulo: Companhia das letras, 2007.<br />

SAID, Edward. Orientalismo – O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das letras, 2001.<br />

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: __________ (org). Identidade e<br />

diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da.<br />

(org). Identidade e diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />

54


LEGISLATIVO MUNICIPAL NUMA PERSPECTIVA PROSOPOGRÁFICA: O CASO DO MUNICÍPIO DE TRÊS<br />

BARRAS-SC. 48<br />

1 A evolução das Câmaras 50 Municipais no Brasil<br />

Soeli Regina Lima 49<br />

A história das câmaras municipais no Brasil iniciou, ainda, no período colonial. Para que elas fossem<br />

criadas, era necessário que determinado local tivesse o estatuto de vila. Assim, já em 1532, quando São Vicente<br />

foi elevada à categoria de vila, aconteceu a primeira eleição para a Câmara Municipal. Na questão legal, elas<br />

seguiam as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, que regiam Portugal e foram transplantadas para o<br />

Brasil. Nessa época, elas eram assim compostas: “(...) dos dois juízes ordinários, servindo um de cada vez, ou do<br />

juiz de fora (onde houvesse) e dos três vereadores. Eram também oficiais da câmara com funções especificadas,<br />

o procurador, o tesoureiro e o escrivão, investidos por eleição, da mesma forma que os juízes ordinários e os<br />

vereadores” (LEAL, 1997, p. 81). Outros funcionários eram nomeados pela Câmara.<br />

Nesse período, a instituição administrativa máxima no nível municipal era a Câmara, ou seja, não havia<br />

prefeituras como as conhecemos hoje. Suas atribuições eram diferentes das atuais, pois abrangiam muitas outras<br />

funções, envolvendo questões de ordem administrativa, policial ou judiciária.<br />

De acordo com Leal (2007), as eleições aconteciam de três em três anos e eram indiretas, apesar do<br />

mandato ser de um ano apenas. Poderiam votar os considerados “homens bons” — aqueles que já haviam<br />

ocupado cargos da municipalidade ou “andavam na governança”. Todo o processo estava descrito nas<br />

Ordenações, o que mostra que as eleições brasileiras aconteciam em pé de igualdade com as de Portugal.<br />

Em 19 de junho de 1822, foi publicada a primeira lei eleitoral brasileira, a qual regulamentava a escolha de<br />

uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, que, eleita após a Proclamação da Independência, elaborou a<br />

Constituição do Império, outorgada em 1824.<br />

Com a independência do Brasil, a autonomia das Câmaras Municipais foi diminuída. O Império passou a<br />

centralizar o poder, através da Constituição de 1824. A legislatura dos vereadores passou a ser de quatro anos.<br />

Nessa época, não existia ainda a figura do prefeito e o vereador mais votado assumia a presidência da Câmara.<br />

Em consulta ao site do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, constatamos o registro de vários<br />

regulamentos complementares para as eleições desse período, entre eles: o de 1842, com alistamento prévio e a<br />

eleição para membros das Mesas Receptoras, proibindo o voto por procuração; o de 1855, chamado de Lei dos<br />

Círculos, por meio do qual é criado o voto por distritos ou círculos eleitorais; a Lei do Terço, de 1875, que estipula<br />

o uso do título de eleitor; e o de 1881, denominado Lei Saraiva, com voto secreto e eleições diretas.<br />

Com a proclamação da República, as Câmara Municipais foram dissolvidas e o governo estadual passou<br />

a nomear os membros do “Conselho de Intendência”. A figura do intendente aparece em 1905 e permanece até<br />

1930.<br />

Já pela Constituição de 1891 as antigas províncias passaram a ser denominadas "Estados" e seus<br />

"governadores" foram chamados de "Presidentes de Estado", de acordo com a Organização Federal, das<br />

Disposições Preliminares no Art. 2º: “Cada uma das antigas Províncias formará um Estado e o antigo Município<br />

Neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se der execução ao<br />

disposto no artigo seguinte.” Os municípios passaram a ter autonomia tutelada pelos Estados. Art. 68: “Os<br />

Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao<br />

seu peculiar interesse”. Dessa forma, os municípios se organizaram aos moldes e ditames dos seus Estados. Isso<br />

se refere inclusive à denominação do líder municipal, que poderia ser desde Prefeito, noutros, Intendente e, ainda<br />

noutros, Presidente Municipal. A reforma constitucional de 1926 amenizou a situação ao conceder à União o<br />

direito de intervir nos Estados para proteger a autonomia municipal. No entanto, essa autonomia não se<br />

concretizou.<br />

Após a Revolução de 1930, surgiram as prefeituras, com as funções do Executivo separadas do poder<br />

Legislativo. Com isso, percebemos que o poder hoje exercido pela prefeitura foi, anteriormente, exercido pela<br />

Câmara Municipal, pelo "Conselho de Intendência" e pela "Intendência Municipal".<br />

No período de Estado Novo, de 1937 a 1945, as Câmara Municipais foram fechadas e o poder Legislativo<br />

dos municípios foi extinto. Pela Constituição de 1937, de conteúdo centralizador, ficava a cargo do presidente da<br />

48<br />

Pesquisa realizada para Câmara Municipal de Três Barras- (2007-2008).<br />

49<br />

Mestre em Geografia pela UFPR, especialista em História do Brasil pela FAFIUVA. soeli8@yahoo.com.br<br />

50<br />

O texto foi baseado na análise de Leal, 1997 e nas Constituições do Brasil (1824, 1891,1934, 1937,1946, 1967, 1988)<br />

55


República a nomeação das autoridades estaduais, os interventores. Esses, por sua vez, nomeavam as<br />

autoridades municipais. A partir da democracia de 1945 as Câmaras são reabertas e começam a tomar a forma<br />

que as conhecemos hoje.<br />

Com a Constituição de 1967, buscou-se institucionalizar e legalizar o regime militar, aumentando a<br />

influência do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário. O controle dos militares esteve presente junto às<br />

administrações. Os partidos políticos foram extintos, sendo autorizados a funcionar no país apenas o MDB-<br />

Movimento Democrático Brasileiro e a ARENA- Aliança Renovadora Nacional. Com a Constituição da República<br />

Federativa do Brasil de 1988, o direito à democracia foi conquistado com a determinação da eleição direta no país.<br />

2. Um estudo prosopográfico dos presidentes da Câmara de Vereadores de Três Barras.<br />

O estudo sendo de cunho prosopográfico 51 - biografia coletiva necessita de certa delimitação na utilização<br />

dos dados qualitativos, para não privilegiar um biografado em detrimento de outro. Quanto ao método<br />

prosopográfico este:<br />

define um universo de pessoas a ser estudado e propõe um conjunto de questões sobre o perfil e atuação, que<br />

incluem dados sobre nascimento e morte dos indivíduos, laços de casamento e parentesco, origens sociais e<br />

posição econômica herdada, local de residência, educação, montante das fortunas pessoais ou familiares,<br />

ocupação, religião, trajetória política, experiência profissional (FERREIRA, 2002)<br />

A prosopografia possibilita o trabalho com grande número de informações. Os dados pessoais são<br />

imutáveis, já a inserção do biografado na sociedade local cria alternativas de historicizar o texto, relatar dados nos<br />

mais diversos aspectos culturais, geográficos, sociais, políticos.<br />

O estudo da prosopografia política não deixa de ser o estudo de certa elite social, o que permite<br />

compreender a complexidade de suas relações com outros setores da sociedade. Linteau, 1998 demonstrou<br />

diferentes possibilidades de análise de biografias da elite política nas esferas do Executivo e Legislativo, através<br />

de uma pesquisa de Montreal-1880-1914. Relacionou as informações de forma que através das mesmas o leitor<br />

identifica a evolução do local, ou seja, a cidade transparece através dos seus representantes políticos. Dados de<br />

imigração, religião, etnia, característica profissional, faixa etária e carreira política demonstram as opções da<br />

população por seus representantes, que não deixam de ser a imagem do local.<br />

Ao abordarmos uma temática de pesquisa que envolva prosopografia política devemos situá-la no<br />

processo histórico-espacial mais amplo onde “os homens só podem encontrar no espaço e/ou no tempo um ponto<br />

de apoio para aplicar a alavanca que aciona o poder e por ali modificar as situações reais no sentido que queira”<br />

(RAFFESTIN,1993, p. 34). Dito de outra forma os fatos locais vividos pelos sujeitos políticos não podem estar<br />

desvinculados do cenário nacional e internacional.<br />

3 O município de Três Barras no contexto de delimitação político territorial<br />

Três Barras localiza-se no planalto Norte Catarinense. Sua colonização iniciou-se em 1850, quando uma extensa<br />

faixa de terra foi doada por D.Pedro II a José Teixeira Cordeiro e Lucas Cordeiro. A área situada no Paraná<br />

abrangia 30 mil alqueires, o que corresponde hoje ao município de Três Barras.<br />

No ano de 1913, foi criado o Distrito de Três Barras, pela Lei nº. 1304, publicado no Diário Oficial do<br />

Paraná, em 01/04/1913, compondo o município paranaense de Rio Negro. Em 05 de março de 1914, pela Lei 365,<br />

a comarca de Rio Negro (PR) elevou Três Barras a categoria de município. A eleição para prefeito e camaristas<br />

(como eram chamados os vereadores), foi realizada em 13/05/1914, na cidade de Rio Negro, no edifício da<br />

Comarca Municipal. Dídio Augusto foi eleito prefeito com 17 votos.<br />

Nessa época, Três Barras está inserida no cenário de dois grandes eventos da história, em âmbito<br />

nacional: a instalação da Southern Brazil Lumber and Colonization Company (Lumber), subsidiária da Brazil<br />

Railway Company e a Guerra do Contestado. A Lumber instalou uma moderna serraria no município,<br />

empreendimento que lhe rendeu o título de maior serraria da América do Sul. Explorou erva-mate, fazendo o seu<br />

beneficiamento e sua exportação, e promoveu a colonização local através de imigrantes europeus.<br />

A Guerra do Contestado (1912-1916) deixou suas marcas no município, especialmente nos aspectos<br />

políticos. Através do Acordo de Limites, realizado no término da guerra e assinado em 20/10/1916, com a<br />

homologação final de 03/08/1917, Três Barras retorna à categoria de Distrito de Canoinhas, sob jurisdição<br />

Catarinense.<br />

51<br />

A pesquisa empírica sob o enfoque prosopográfico teve por base teórica os seguintes autores: SANTOS, 2001; LINTEAU,<br />

2008; FARIAS JUNIOR, 2007; LEVI, 2005; ROSENTHAL, 2005; LIMA, 2002; HEINZ,2007; CRUZ, 1999; SILVA, 2006.<br />

56


O povo tresbarrense, com a presença da Lumber 52 no início do século XX, tem a garantia de prosperidade.<br />

O fato de retornar à categoria de Distrito, com a nova delimitação territorial, só foi sentido quando do fim das<br />

atividades da serraria, iniciando um movimento em prol a emancipação política de Canoinhas-SC, denominado de<br />

Grupo dos Onze”. A sua nova emancipação política aconteceu no ano de 1961.<br />

3.1 Legislativo sob ótica dos 53 presidentes da Câmara Municipal de Três Barras<br />

Milton (2008), aponta como ponto negativo na atuação do Legislativo, que aqueles que deveriam ser o eco<br />

da aspiração da população — os vereadores — não o são, em muitos dos casos, pois existem outros interesses<br />

que são maiores do que os de quem eles representam. O ponto positivo é que, quando esses mesmos vereadores<br />

são tocados pela necessidade da população e ela participa,acompanhando as sessões, cobrando do vereador, os<br />

interesses deles próprios ficam menores. Então, isso prova que a presença da sociedade, a vigília constante junto<br />

aos elementos políticos é de suma importância. “Na medida em que a sociedade se ausenta das decisões, os<br />

vereadores sentem-se mais tranqüilos para tomar decisões próprias. Na medida em que a sociedade participa,<br />

cobra, o vereador realmente exerce a sua função. O legislar existe quando há a efetiva participação da sociedade.”<br />

(ANDRADE, 2008).<br />

De acordo com SAWINSKI, 2008 as atividades da Câmara de Vereadores, em relação ao processo<br />

administrativo empresarial são muito parecidos com o processo público, a diferença é que, na área pública, a<br />

velocidade de acontecimento dos fatos é menor que na área privada. O único momento em que a gestão pública<br />

age com maior rapidez é justamente nos períodos eleitorais. Mas tudo isso tem um objetivo, que é eleger seus<br />

sucessores. Para ele, o lado ruim da gestão pública é a falta de continuidade dos projetos, pois depende muito da<br />

opinião de cada líder que assume o poder. Então, como as lideranças mudam muito, as idéias e projetos vão se<br />

perdendo, dando espaço para novos. Assim sendo, não se tem constância nas gestões.<br />

Para o vereador JARSCHEL, 2008 suas maiores dificuldades no trabalho político estiveram ligadas aos<br />

acordos realizados entre Legislativo e Executivo, para execução de determinadas obras. Ele era contrário a esses<br />

acordos. Em certa fase, foi criticado pelos companheiros do partido, que o viam como “adversário”. Não continuou<br />

na carreira política por acreditar que a função do vereador é a de representar o povo que o elegeu. Assim, por não<br />

conseguir atender a todas as reivindicações desse povo, diante de tais acordos políticos, preferiu se abster da<br />

carreira política.<br />

Já para Ossaif, 2008, em geral, os municípios de pequeno porte, necessitam de uma nova Legislação.<br />

Existem vereadores que assumem o cargo sem noção de suas funções. Não lêem projetos, ou quando lêem não<br />

os analisam com profundidade. Deixam de cumprir com suas reais obrigações e acabam realizando atividades<br />

assistencialistas para a população em vez de legislar e fiscalizar o executivo.<br />

Análise das Atas de Sessões da Câmara Municipal de Três Barras.<br />

Quanto ao número de sessões realizadas no período de 1961 a julho de 2008 foram realizadas 2.491 sessões<br />

ordinárias e 1.211 sessões extraordinárias totalizando 3.702 sessões. Percebe-se o aumento de sessões<br />

extraordinárias a partir da legislatura de Adhemar Schumacher. Um dos fatores que podem estar ligados a este<br />

acréscimo está no fato de que no ano de 1975 seguindo a Lei Complementar nº. 25 de 02/07/1975 que dispõe<br />

sobre a remuneração dos vereadores, os mesmos passam a ter remuneração pelo trabalho realizado.<br />

Presidentes de Câmara Período Sessões<br />

ordinárias<br />

01 José Nunes Cavalheiro 01<br />

02 Ione Cyríaco de Souza 01<br />

03 Medouro Neves de Menezes 02<br />

04 Jorge de Souza 02<br />

Sessões<br />

Extraordinárias<br />

52<br />

Maiores informações sobre company town da Lumber podem ser analisados na dissertação de mestrado LIMA, 2007:<br />

Capital transnacional na indústria da madeira em Três Barras: as company tows e a produção do espaço urbano.<br />

53<br />

Após a realização de entrevistas diretas semi-estruturadas foi elaborada a biografia política dos presidentes da Câmara<br />

Municipal para a publicação de um livro. Neste trabalho apresentamos algumas opiniões dos entrevistados sobre o Poder<br />

Legislativo.<br />

57<br />

21<br />

75<br />

133<br />

85<br />

05<br />

01<br />

06<br />

01<br />

Total<br />

26<br />

76<br />

139<br />

86


05 Leônidas Bueno 02<br />

06 José Sawinski 01<br />

07 Silvino Giacomo de Luca 02<br />

08 Pedro Andrino de Souza 01<br />

09 Willy Sudoski 02<br />

10 Cassemiro Gauloski 02<br />

11 Adhemar Schumacher 02<br />

12 José Bittencourt Pacheco de Miranda 02<br />

13 Ernani Wogeinaki 02<br />

14 Sérgio Jarschel 02<br />

15 Fermina Cassemira de Paula e Silva 02<br />

16 Lineu Pacheco 01<br />

17 Cerival da Cruz 02<br />

18 Milton Aurélio Uba de Andrade 01<br />

19 Jorge Luiz Ossaiff de Souza 01<br />

20 Ernani Wogeinaki 02<br />

21 Sebastião Altavir Ferreira 02<br />

22 Ione Cyríaco de Souza 01<br />

23 Milton Miguel (in memória) 01<br />

24 Mona Uba Dequêch Denk 01<br />

25 Alinor Lescovitz 01<br />

26 Ernani Wogeinaki 02<br />

27 Cerival da Cruz 02<br />

28 José Sawinski Júnior 01<br />

29 João Francisco Canani 01<br />

30 Francisco Altamir Farias* 02<br />

Total 47<br />

* O número de sessões foi contado até o final do mês de julho de 2008.<br />

FONTE: Atas da Câmara Municipal de Três Barras<br />

58<br />

148<br />

58<br />

96<br />

48<br />

135<br />

113<br />

76<br />

72<br />

72<br />

104<br />

105<br />

111<br />

118<br />

50<br />

53<br />

108<br />

109<br />

72<br />

67<br />

53<br />

55<br />

108<br />

104<br />

54<br />

54<br />

34<br />

2.491<br />

----<br />

01<br />

02<br />

----<br />

----<br />

----<br />

40<br />

39<br />

44<br />

40<br />

21<br />

20<br />

101<br />

50<br />

57<br />

159<br />

118<br />

33<br />

35<br />

41<br />

33<br />

135<br />

111<br />

53<br />

47<br />

18<br />

1.211<br />

148<br />

59<br />

98<br />

48<br />

135<br />

113<br />

116<br />

111<br />

116<br />

144<br />

126<br />

131<br />

219<br />

100<br />

110<br />

267<br />

227<br />

105<br />

102<br />

94<br />

88<br />

243<br />

215<br />

107<br />

101<br />

52<br />

3.702


As pesquisas realizadas ainda nas Atas de Sessões da Câmara de Vereadores apresentam informações que<br />

demonstram a evolução da cidade, nos seus mais diferentes aspectos. Entre estas deliberações podemos citar<br />

algumas:<br />

ATA nº. 20 (05/12/1961) Indicação para que 23 de janeiro seja o feriado municipal, em homenagem à criação do<br />

município.<br />

ATA nº. 05 (24/08/1968) Criado projeto que concede auxílio para participação do município nos 9 os Jogos Abertos<br />

de Santa Catarina.<br />

ATA nº. 09 (21/03/1977) Recebimento de telegrama do Dr. Jorge Konder Bornhausen comunicando que o Banco<br />

Central do Brasil autorizou a instalação de uma agência do BESC em Três Barras.<br />

ATA nº. 28 (10/07/1978) Autorização de convênio com o MOBRAL para implantar um Posto Cultural em Três<br />

Barras e convênio com a Secretaria de Educação, Cultura, para fins de construção de uma Escola Isolada na<br />

localidade da Campininha.<br />

ATA nº. 29 (01/06/1983) Grupo de vereadores desloca-se à Florianópolis, onde tiveram audiência com governador<br />

Sr. Esperidião Amim Helou Filho, para tratar de assuntos de interesse da municipalidade e dos relativos à<br />

calamidade pública provocada pelas cheias que atingiram o Núcleo Residencial São Cristóvão.<br />

ATA nº. 183 (18/09/1985) Ato de oficialização da instalação do Distrito de São Cristóvão, pelo decreto nº. 1032 de<br />

11/09/1985.<br />

ATA nº. 240 (10/05/1999) Ofício do Diretor de Esportes, João Eduardo Bishop, sobre o Congresso Técnico dos<br />

Joguinhos Micro-Regionais. Convite para abertura dos Joguinhos Abertos de Santa Catarina, fase micro-regional,<br />

dia 21/05/1999, às 20h, no Ginásio de Esportes Pedro Merhy Seleme. Convite para exposição de fotos e objetos,<br />

em comemoração aos 60 anos da E.E.B. “General Osório”.<br />

ATA nº. 303 (04/08/2003) Registro da “1ª Festa do Colono e do Peão de Boiadeiro de Três Barras”, promovida<br />

pela Associação dos Micro e Pequenos Agricultores. Registro da viagem para o Chile, em virtude da apresentação<br />

da Fanfarra Municipal.<br />

ATA nº. 241 (27/06/2007) Sessão Solene para o lançamento oficial do Hino de Três Barras, homenagem aos<br />

autores do Hino: Maris Stella Uba Schuppel e o Sub-Tenente Luiz Carlos Martins, e lançamento da cartilha<br />

“Vereador, a base da democracia”.<br />

4. Considerações Finais<br />

Podemos afirmar que a produção dessa pesquisa foi um momento ímpar. Durante a realização das<br />

entrevistas e leitura da Atas de Sessões da Câmara de Vereadores passamos a identificar a forma como<br />

representantes políticos agem diante e através do poder político. Podemos afirmar, com convicção, que é possível<br />

reconhecer o município nos seus mais diferentes aspectos, ora sociais, ora econômicos, culturais, enfim, ele<br />

transparece através daqueles que são os seus representantes políticos.<br />

Referencias<br />

ANDRADE, Milton Aurélio Uba de. Entrevista concedida a Soeli Regina Lima em 2008.<br />

BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em:<br />

www.presidencia.gov.br/legislacao<br />

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891)-(1934). Disponível em:<br />

www.presidencia.gov.br/legislacao<br />

BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (1937)-(1946)-(1967)-(1988). Disponível em:<br />

www.presidencia.gov.br/legislacao<br />

COSTA; L.D.; GOUVÊA J.C. Elites e historiografia: questões teóricas e metodológicas. Rev. Sociologia Política.<br />

Curitiba, nº. 28, 2007.<br />

CRUZ, P. M. Política, poder, ideologia e Estado Contemporâneo. Florianópolis: Editora Diploma Legal, 2001.<br />

FARIAS JUNIOR, J.P. Biografia e historiografia: contribuições para interpretação do gênero biográfico na<br />

Antiguidade. Revista Espaço acadêmico. N167 68 Janeiro/2007. Ano VI ISSN 15196186.<br />

FERREIRA, T. M.T.B. História e prosopografia. X Encontro Regional de História -ANPUH-RJ, 2002.<br />

HEINZ, F. (org.) Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.<br />

59


JARSCHEL, Sérgio. Entrevista concedida a Soeli Regina Lima em 2008.<br />

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Nova Fronteira, 1977.<br />

LEVI, G. Usos da biografia. IN: Amado, J.; Ferreira, M. de M. (Org.) Usos e abusos da História oral. 7 ed. Rio de<br />

Janeiro: FGV, 2005.<br />

LINTEAU, P. A. Lê personnel politique à Montreal, 1880-1914: évolution d´une élite municipale. Revue d´<br />

histoire de l´ Amérique française, vol. 52, nº 2 autome 1998.<br />

LIMA, S.R. Capital transnacional na indústria da madeira em Três Barras: as company tows e a produção do<br />

espaço urbano. Dissertação de Mestrado. UFPR, 2007.<br />

SOUZA, Jorge Luiz Ossaiff de. Entrevista concedida a Soeli Regina Lima 2008.<br />

RAFFESTIN. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1980.<br />

ROSENTHAL, G. A estrutura e a gestalt das autobiografias e suas conseqüências metodológicas. IN:<br />

Amado, J.; Ferreira, M. de M. (Org.) Usos e abusos da História oral. 7 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.<br />

SANTOS, G. S. dos. São Luís: o retorno da historiografia à biografia. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 6, nº. 11, 2001,<br />

p. 261-266.<br />

SAWINSKI JÚNIOR, José. Entrevista concedida a Soeli Regina Lima em 2008.<br />

SILVA, M. A. de O. Plutarco historiador: análise das biografias espartanas. São Paulo: EDUSP, 2006.<br />

60


1. INTRODUÇÃO<br />

ANÁLISE DA PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA <strong>PESQUISA</strong> E PRODUÇÃO CIENTÍFICA<br />

54<br />

Professores Mestre de Ciências Biológicas da FAFI-UVA/PR, profclovisg@terra.com.br<br />

55<br />

Graduada em Ciências Biológicas pela FAFI-UVA/PR.<br />

61<br />

Clovis Roberto Gurski 54<br />

Carla Andréia Lorscheider 1<br />

Giseli Padilha 55<br />

Desde que se tem registro de sociedade, a mulher vem lutando por seu espaço, pela sua valorização,<br />

pela não-submissão ao homem, vem tentando mostrar que apresenta as mesmas condições e capacidade para<br />

realizar atividades em diversas áreas. Basta fazer uma pequena análise histórica para ver claramente que a<br />

discussão que as mulheres travam hoje em dia, origina-se dos primórdios da humanidade, na busca de que seus<br />

direitos sejam respeitados como seres humanos.<br />

Historicamente, a ciência sempre foi vista como uma atividade realizada por homens e foi somente após<br />

a segunda metade do século XX que ocorreram mudanças nesse quadro. Tendo em vista o crescente número de<br />

mulheres ingressando nas universidades no campo das ciências. Percebe-se que o papel destas na produção<br />

científica vem igualmente aumentando, o que torna a produção científica mais homogênea e igualitária. O motivo<br />

pelos quais poucas mulheres destacam-se neste campo foi o que despertou interesse nesta pesquisa.<br />

Diante disso, este trabalho justifica-se por contribuir no sentido da divulgação, da importância das<br />

mulheres ocuparem na sociedade um lugar merecido, visto sua dedicação em todas as atividades realizadas por<br />

elas ao longo de sua existência. Sendo assim, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar a participação<br />

da mulher na produção científica e tecnológica e sua inserção no mercado de trabalho.<br />

2. EMBASAMENTO TEÓRICO<br />

Historicamente, a ciência sempre foi vista como uma atividade realizada por homens. Os séculos XV,<br />

XVI e XVII, foram marcados por diversos eventos e mudanças na sociedade que possibilitaram o surgimento da<br />

ciência que conhecemos hoje, algumas poucas mulheres aristocráticas exerciam importantes papéis de<br />

interlocutores e tutores de renomados filósofos naturais e dos primeiros experimentalistas. Mas não lhes eram<br />

permitido o acesso às intensas e calorosas discussões que aconteciam nas sociedades e academias científicas,<br />

que se multiplicaram no século XVII por toda a Europa e tornaram-se as principais instituições de referência da<br />

ainda reduzida comunidade científica mundial. No século XVIII, essa situação pouco se modificou e o acesso das<br />

mulheres a essa atividade, com poucas exceções, deveu-se principalmente à posição familiar que elas ocupavam:<br />

se eram esposas ou filhas de algum homem da ciência podiam se dedicar aos trabalhos de suporte da ciência,<br />

tais como, cuidar das coleções, limparem vidrarias, ilustrar e/ou traduzir os experimentos e textos. O século<br />

seguinte é marcado por ganhos modestos no acesso de mulheres às atividades científicas, como a criação de<br />

colégios de mulheres, mesmo assim, elas permaneceram às margens de uma atividade que cada vez mais se<br />

profissionalizava. A mudança nesse quadro iniciou-se somente após a segunda metade no século XX, quando a<br />

necessidade crescente de recursos humanos para atividades estratégicas, como a ciência, o movimento de<br />

liberação feminina e a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres permitiram a elas o acesso, cada<br />

vez maior, à educação científica e às carreiras, tradicionalmente ocupadas por homens (LETA, 2003).<br />

De acordo com Soares (2001), duas perspectivas diferentes têm sido propostas para explicar as causas<br />

da representação desproporcional de mulheres em Ciência e Tecnologia (C&T). Uma delas atribui o problema a<br />

diferenças biológicas, cognitivas ou de socialização entre os dois sexos. Os argumentos mais comuns em favor<br />

desta hipótese são que mulheres não possuem controle emocional para suportar as pressões freqüentes em<br />

cargos de comando, que mulheres não tomam decisões objetivas e são socialmente educadas para serem<br />

protegidas e desta forma não adquirem agressividade necessária para competir. Outra perspectiva propõe que os<br />

padrões institucionais determinam as escolhas individuais, que por sua vez mantêm e reforçam estes padrões, ou<br />

seja, a estrutura das organizações não propicia o sucesso profissional do sexo feminino, sendo este o resultado<br />

de estruturas institucionais inapropriadas e não da inaptidão feminina para as áreas de C&T.<br />

Segundo Velho & León (1998), várias têm sido as tentativas de explicar porque as mulheres, mesmo<br />

depois de conseguirem vencer as barreiras de acesso à carreira acadêmica, não avançam nela da mesma<br />

maneira e velocidade que os homens. A explicação tradicional tem sido simplesmente que as mulheres produzem<br />

cientificamente menos que os homens e, sendo menos produtivas, acabam sendo menos recompensadas que


eles. As autoras comentam que esta menor produtividade das mulheres, no entanto, tem sido bastante relativizada<br />

em estudos que procuram entender os contextos, motivações e condições de produção de homens e mulheres.<br />

Há uma década Velho & León (1998) afirmavam que é uma realidade da grande maioria dos países que<br />

em algumas disciplinas das ciências da vida e em algumas subáreas, principalmente as que têm uma componente<br />

biológica forte, a participação da mulher cresceu de maneira marcante. Argumentam que estas áreas tendem a<br />

serem aquelas para as quais as mulheres são sutilmente, empurradas pelo processo de socialização que as<br />

induzem a não gostar de Matemática e a acharem que devem se interessar pelos seres vivos seja porque tais<br />

disciplinas têm menor status e/ou menor remuneração.<br />

De acordo com Velho & León (1998), em alguns países, cuja proporção feminina se equipara, ou supera<br />

a masculina na ciência (Itália e Portugal, por exemplo), o que ocorre é o menor status social e conseqüente menor<br />

salários associado ao título de doutor e à carreira na ciência induzem relativamente mais homens a buscar outras<br />

carreiras (como as profissões liberais) nas quais eles teriam melhores chances que as mulheres, e a deixar a<br />

carreira científica mais acessível para as mesmas.<br />

Por outro lado Soares (2001) afirma que as grandes maiorias das publicações relacionadas à<br />

representação feminina em áreas de C&T referem-se a estudos realizados em países europeus e norteamericanos.<br />

No Brasil é difícil avaliar a situação devido ao número restrito de publicações na área.<br />

Apesar do número restrito e pouco acessível de estudos sobre a atuação feminina<br />

em áreas de C&T, é razoável supor, com base na observação do número de<br />

mulheres ocupando posições permanentes em departamentos de engenharia,<br />

matemática, física e química brasileiros, que o Brasil não constitui uma exceção à<br />

tendência constatada em outros países. Seria surpreendente a descoberta que o<br />

Brasil, um país onde fenômenos sociais como o machismo e o marianismo estão<br />

profundamente enraivados culturalmente, constitui uma exceção à regra<br />

(SOARES, 2001).<br />

Segundo Soares (2001), a presença de mulheres em C&T é mais alta nos Estados Unidos que nos<br />

demais países onde dados estatísticos são disponíveis. Um fator decisivo para isto foi à criação em 1981 do<br />

programa Women in Science (Mulher na Ciência).<br />

Outro grande incentivo às mulheres cientistas é o Prêmio L'ORÉAL-UNESCO para Mulheres Cientistas<br />

que acontece, anualmente, desde 1999 e premia uma cientista de cada continente (África, América Latina,<br />

América do Norte, Ásia e Pacífico, e Europa). Também tem o propósito de incentivar a produção científica entre as<br />

mulheres, que recebem bolsas de estudos do Programa Internacional UNESCO-L'ORÉAL de Bolsas de Estudo<br />

(www.brasilia.unesco.org).<br />

Segundo Leta (2003), no Brasil, a expansão da comunidade científica faz parte da história recente do<br />

país. Até o século XX, o número de instituições voltadas para a ciência era muito limitado e foi no final dos anos<br />

de 1960 que a questão científica e tecnológica surgiu como presença constante no planejamento nacional.<br />

3.MATERIAL E MÉTODOS<br />

Pesquisadores de diversas áreas do conhecimento – homens e mulheres de vários países – interessaramse<br />

pelo estudo das determinações de sexo na produção científica. Alguns dos temas tratados foram, entre outros,<br />

a importância do fator social na diferenciação do comportamento científico, a influência de fatores biológicos ou<br />

fisiológicos para a descoberta da vocação, a capacidade feminina ou masculina de dedicar-se à pesquisa<br />

científica.<br />

Esta pesquisa limita-se a levantar dados referentes ao nível de escolaridade, mercado de trabalho e<br />

produção científica nacional, de acordo com a idade e gênero, visando identificar se há diferenças notáveis entre<br />

homens e mulheres, a partir de informações disponíveis em pesquisas já realizadas por outros autores e em<br />

bibliotecas eletrônicas. Todo o trabalho de pesquisa foi realizado no período de outubro a novembro de 2008.<br />

A metodologia para levantar os dados referentes ao mercado de trabalho e nível de escolaridade foi<br />

realizada através da consulta aos sites do IBGE, do CNPq, além da bibliografia científica publicada no Brasil. Os<br />

indicativos representam dados quantitativos e percentuais, divididos por ano, gênero ou área de concentração.<br />

Scielo.<br />

Para avaliar a produção científica feminina foi feita uma pesquisa junto à biblioteca eletrônica do site<br />

Com o objetivo de criar indicadores de avaliação: atividade e colaboração, por gênero da produção<br />

científica nacional, este estudo utiliza a variável número de artigos publicados, identificados e classificados<br />

62


segundo o sexo de seus (suas) autores (as), por área de conhecimento e ano de publicação. Os indicadores<br />

apresentam os dados quantitativos sobre as publicações brasileiras indexadas na base do Scielo, esses dados<br />

não expressam qualidade, mas a quantidade de resultado obtido pela pesquisa nacional, bem como a colaboração<br />

existente no meio científico.<br />

São, portanto, medidas estimadas da atividade científica do país e, no caso do objetivo deste trabalho,<br />

possibilitarão uma avaliação quantitativa e de colaboração da produção científica feminina.<br />

4. RESULTADO E DISCUSSÕES<br />

Em alguns países desenvolvidos, a mulher está começando a ter acesso aos níveis mais altos de<br />

elaboração da política científica. Esse avanço poderia estar relacionado a dois fatores: a melhor condição da<br />

mulher na sociedade, o que a impele a exigir maior participação no processo decisório e, de outro lado, a<br />

demanda da economia nacional por pessoal treinado em Pesquisa e Desenvolvimento. Além disso, Ruivo (1986)<br />

destaca ainda o importante papel dos movimentos femininos e das associações profissionais, os quais<br />

pressionaram os governos pela criação de órgãos públicos dedicados a uma política de iguais oportunidades para<br />

homens e mulheres. Os dados da Tabela 1 mostram que na área das Ciências da Saúde é enorme o número de<br />

artigos indexados junto ao site Scielo, seguida das Ciências Agrárias. Estima-se que isto se deva pelo grande<br />

número de revistas indexadas nestas áreas.<br />

TABELA 1 – Número de artigos indexados no Scielo por área do conhecimento, de 1996 a 2005, no Brasil.<br />

Ano<br />

s<br />

Ciências<br />

da Saúde<br />

Ciências<br />

Agrárias<br />

Ciências<br />

Biológica<br />

s<br />

C. Exatas<br />

e da<br />

Terra<br />

Ciências<br />

Humanas<br />

63<br />

Engenha<br />

rias<br />

C.<br />

Sociais<br />

Aplicada<br />

s<br />

Lingüíst,<br />

Letras e<br />

Arte<br />

1996 166 56 24 - 65 - - -<br />

1997 1102 172 144 155 289 63 47 19<br />

1998 1521 309 203 336 425 73 49 21<br />

1999 1673 472 322 464 400 155 73 27<br />

2000 2114 1037 425 573 498 245 103 25<br />

2001 2516 1317 598 521 743 257 103 20<br />

2002 3228 1687 634 801 808 313 130 15<br />

2003 3871 1994 866 679 941 347 148 56<br />

2004 4231 2225 1049 1035 980 385 176 53<br />

2005 3957 1645 906 825 814 290 78 23<br />

FONTE: Melo & Oliveira, 2006.<br />

Seguindo o mesmo raciocínio, analisando a participação feminina efetiva na produção científica, na Tabela<br />

2, evidencia-se o mesmo aspecto: as mulheres superam os homens apenas nas áreas das Ciências Humanas e<br />

Lingüística, Letras e Artes.<br />

TABELA 2 – Participação feminina efetiva na produção científica por ano e área do conhecimento, no Brasil.<br />

Área do Conhecimento 2000 2001 2002 2003 2004 2005<br />

Ciências da Saúde 0,41 0,41 0,43 0,42 0,43 0,43<br />

Ciências Agrárias 0,27 0,27 0,27 0,29 0,30 0,30


Ciências Ciências Biológicas<br />

Ciências Ciências Exatas e da Terra<br />

Ciências Ciências Humanas<br />

Engenharias<br />

Ciências Ciências Sociais Sociais Aplicadas<br />

Aplicadas<br />

Lingüística, Lingüística, Letras Letras e e Artes<br />

Artes<br />

FONTE: Melo & Oliveira, 2006.<br />

A análise lise lise da da evolução evolução da da participação participação feminina feminina na na produção produção científica científica ao ao longo longo do do período período considerado considerado no<br />

no<br />

no<br />

Gráfico Gráfico Gráfico 1, 1, 1, indica indica uma uma redução redução redução da da da participação participação feminina feminina feminina na na produção produção produção científica científica científica das das das Ciências Ciências Ciências Sociais Sociais Sociais e e e Lingüística,<br />

Lingüística,<br />

Lingüística,<br />

e e um aumento aumento nas nas Engenharias, Engenharias, Ciências Ciências Hum<br />

Hum Humanas anas anas e e Exatas Exatas e e uma uma certa certa estabilidade estabilidade nas nas Ciências Ciências da da Saúde,<br />

Saúde,<br />

Agrárias Agrárias Agrárias e e e Biológicas. Biológicas. Biológicas. A A A maior maior maior variação variação variação em em algumas algumas algumas áreas áreas áreas parece parece parece ser ser ser resultante resultante resultante resultante da da da variação variação variação da da da amostra amostra amostra amostra que, que, que, que, se<br />

se<br />

se<br />

se<br />

no no no início início início é é menor, menor, vai vai se se ampliando ampliando no no no decorrer decorrer do do tempo, tempo, tempo, de de de forma forma forma que que que a a a participaçã<br />

participaçã participação participaçã<br />

o nos últimos anos não se<br />

altera muito.<br />

GRÁFICO 1 – Evolução Evolução da da da participação participação participação feminina feminina feminina na na na produção produção produção científica científica científica por por por área área área do do do conhecimento, conhecimento, conhecimento, no no no Brasil.<br />

Brasil.<br />

Brasil.<br />

FONTE: Melo & Oliveira, 2006.<br />

5. 5. CONCLUSÃO<br />

CONCLUSÃO<br />

É É É notório notório o o avanço avanço da da participação participação feminina feminina na na pesquisa pesquisa e e produção produção científica, científica, mas mas é é nítido nítido também também também que<br />

que<br />

em em muitas muitas áreas áreas este este campo, embora embora aberto, aberto, aberto, encontra encontra-se encontra se se ainda ainda em em defasagem. defasagem. Certamente o o tema tratado<br />

tratado<br />

sugere sugere que ainda ainda está longe de de entender<br />

entender não não apenas apenas apenas como como se se dá dá a a incorporação incorporação da da mulher mulher nesta nesta atividade, atividade, mas<br />

mas<br />

principalmente principalmente principalmente as as as circunstâncias circunstâncias circunstâncias em em em que que que ela ela ela vem vem vem a a a ser ser ser bem bem bem ou ou ou mal mal mal mal sucedida sucedida sucedida sucedida enquanto enquanto enquanto cientista.<br />

cientista.<br />

cientista.<br />

REFERÊNCIAS<br />

0,48<br />

0,36<br />

0,52<br />

0,16<br />

0,46<br />

0,57<br />

0,42<br />

0,33<br />

0,51<br />

0,18<br />

0,45<br />

0,67<br />

ACADEMIA ACADEMIA BRASILEIRA BRASILEIRA DE DE CIÊNCIAS. CIÊNCIAS. ABC Notícias. Notícias Notícias.<br />

Consulta on on-line, line, nov. 2008, site www.abc.org.br<br />

www.abc.org.br.<br />

CNPq, CNPq, CNPq, Conselho Conselho Conselho Nacional Nacional de de Desenvolvimento Desenvolvimento Desenvolvimento Científico Científico Científico e e e Tecnológico. Tecnológico. Tecnológico. Bolsas. Bolsas. Bolsas. Consulta Consulta Consulta on<br />

on on-line, on line, nov. 2008, site<br />

www.cnpq.br.<br />

www.cnpq.b<br />

64<br />

0,43<br />

0,35<br />

0,56<br />

0,16<br />

0,35<br />

0,67<br />

0,45<br />

0,34<br />

0,53<br />

0,24<br />

0,44<br />

0,46<br />

0,44<br />

0,36<br />

0,56<br />

0,23<br />

0,42<br />

0,49<br />

0,42<br />

0,35<br />

0,56<br />

0,31<br />

0,29<br />

0,43


LETA, J. As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso. Estudos<br />

Avançados, vol.17, nº 49, 2003.<br />

MELO, H.P.; OLIVEIRA, A.B. A produção científica brasileira no feminino. Cadernos Pagu nº27. Campinas<br />

Julho/ Dezembro, 2006..<br />

MELO, H.P.; RODRIGUES, L.M.C.S. Pioneiras da Ciência no Brasil. São Paulo: SBPC, 2006.<br />

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Consulta on-line, nov. 2008, site www.ibge.gov.br.<br />

RUIVO, B. A mulher e o poder profissional: a mulher em atividades de investigação científica em Portugal.<br />

Revista Análise Social, vol. XXII, 1986.<br />

SOARES, T.A. Mulheres em ciência e tecnologia: ascensão limitada. Química Nova, vol. 24, nº 2. São Paulo,<br />

março/ abril 2001.<br />

UNESCO e L'ORÉAL reconhecem mulheres cientistas. Consulta on-line, out. 2008, site www.brasilia.unesco.org.,<br />

VEIGA, A.M. Mulheres e ciência: uma história necessária. Revista Estudos Feministas, vol. 14, nº 3.<br />

Florianópolis, Set/ Dez. 2006.<br />

VELHO, L.; LEÓN, E. A construção social da produção científica por mulheres. Cadernos Pagu, nº 10. São<br />

Paulo, 1998.<br />

65


CORRELAÇÃO ENTRE CONDIÇÕES DE SANEAMENTO BÁSICO E PARASITOSES INTESTINAIS EM<br />

CRIANÇAS E ADOLESCENTES DE 0 A 15 ANOS DA VILA ESPERANÇA, DO BAIRRO RIO D’AREIA EM<br />

UNIÃO DA VITÓRIA – PARANÁ.<br />

Introdução<br />

Camila Juraszeck 56<br />

José Jaison Chaves 57<br />

As infecções por parasitas intestinais possuem uma alta prevalência em nosso país, devido a um precário<br />

saneamento básico, habitação e educação da população (REY, 2001). Está bem estabelecido que as parasitoses<br />

intestinais são mais freqüentes em regiões menos desenvolvidas, atingindo índices de até 90%, ocorrendo um<br />

aumento significativo da freqüência à medida que declina o nível socioeconômico (LUDWIG et al, 1999). Com<br />

base em dados da SANEPAR, Companhia de Saneamento do Paraná (2008), o número de domicílios atendidos<br />

pelo tratamento de esgoto em União da Vitória no estado do Paraná é de 13.422, apenas 26,13% de toda a<br />

população que se estima em 51.350 habitantes. A maior parte da população não possui destinação correta ao<br />

esgoto, sendo que este é destinado em fossas ou muitas vezes em valas a céu aberto, que em contato com<br />

humanos ou animais pode ocasionar doenças.<br />

No presente trabalho, buscou-se fazer uma correlação entre as condições de saneamento básico e a<br />

incidência de parasitoses intestinais em crianças e adolescentes da comunidade Vila Esperança. A escolha do<br />

tema desta pesquisa teve como justificativa alguns aspectos importantes como a gravidade que assumem as<br />

parasitoses intestinais principalmente na primeira infância. A Vila Esperança possui frágeis condições de<br />

saneamento com falta de rede geral de instalação sanitária, principal fator para a disseminação de<br />

enteroparasitoses.<br />

Materiais e métodos<br />

A Vila Esperança está localizada no bairro Rio D’Areia em União da Vitória no estado do Paraná, tem<br />

como objetivo acolher famílias sem condições de obter moradia própria, com o propósito de retirá-las da rua e<br />

promover atividades realizadas na própria vila, que possui aproximadamente 175 moradores.<br />

O esgotamento sanitário utilizado na área são as fossas, que nem sempre constituem uma solução<br />

seguramente sanitária, surgindo como a única opção para a deposição de dejetos.<br />

A população alvo foram crianças e adolescentes de 0 a 15 anos de idade por estarem mais expostas à<br />

contaminação em função do desconhecimento dos princípios básicos de higiene pelo contato direto com o solo,<br />

mãos contaminadas, andar com os pés descalços, entre outros fatores que propiciam a contaminação.<br />

A coleta de dados foi realizada através de exames parasitológicos de fezes para analisar a prevalência<br />

de parasitas intestinais na população e através de um questionário, para analisar as condições socioeconômicas e<br />

culturais dos moradores. Os critérios escolhidos para a participação das crianças na pesquisa foram: a faixa etária,<br />

concordância da família em participar da pesquisa e prontificação dos pais ou responsáveis em coletar as<br />

amostras de fezes.<br />

No período de maio a julho de 2008, foram entregues recipientes plásticos (coletor universal), para que<br />

os responsáveis coletassem amostras fecais das crianças. As amostras foram recolhidas diariamente e levadas ao<br />

Laboratório de Análises Clínicas da Unidade Superior Vale do Iguaçu – Uniguaçu. Todas as análises foram<br />

realizadas com a supervisão da professora especialista em parasitologia Paula Josiane Janowski Trojan,<br />

responsável pelo Laboratório de Análises Clínicas da instituição.<br />

As amostras foram coletadas, identificadas e imediatamente enviadas para análise laboratorial. Estas<br />

foram analisadas qualitativamente, através do método de Hoffmann, Pons & Janer (sedimentação espontânea),<br />

também conhecido como método de Lutz, utilizados para detecção de Helmintos e Protozoários escolhido devido<br />

às recomendações de uso e baixo custo.<br />

O procedimento do Método de Hoffmann, Pons & Janer ou Lutz segundo Rey (2001, p. 794) consiste<br />

em: Adicionar cerca de 2 gramas de fezes, coloca-los em um frasco de béquer ou Borrel e desmancha-los em<br />

água, com um bastão de vidro ou de plástico; Coar a emulsão através de gaze ou tela (de plástico ou de metal<br />

56<br />

Professora do Colegiado de Ciências Biológicas da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória –<br />

PR.Mestranda em Biologia Evolutiva pela Universidade Estadual de Ponta Grossa- UEPG<br />

57<br />

Graduado em Ciências Biológicas pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras FAFIUV PR, Pós graduando em<br />

Gestão Ambiental pela Unidade de Ensino Superior Vale do Iguaçu, União da Vitória – PR<br />

66


absolutamente limpo) para dentro de um cálice cônico); Completar o volume do cálice juntando mais água e<br />

misturando bem seu conteúdo; Deixar sedimentar por meia hora ou mais; Com uma pipeta de Pasteur, retirar<br />

pequena amostra de sedimento do vértice do cálice colocá-lo sobre uma lamina de microscópio, junto com um<br />

pouco de lugol, e cobrir com lâmina; Seguir rotina de observação.<br />

Após a realização dos exames foi realizada uma visita ao domicilio para entrega dos resultados, em um<br />

laudo para cada individuo analisado. Relataram-se então quais os tipos de parasitas que acometiam as crianças, e<br />

foi sugerido aos pais das crianças com resultado positivo a enteroparasitoses que procurassem um posto médico<br />

para realizar o tratamento. Além disso, foi elaborado um guia de prevenção das parasitoses intestinais e entregue<br />

para todas as famílias participantes da pesquisa, expondo de que forma ocorre a contaminação, quais os sintomas,<br />

e os principais métodos de prevenção.<br />

Resultados e discussão<br />

O perfil socioeconômico do grupo pesquisado apresentou uma média de cinco indivíduos por família.<br />

Com relação a renda mensal familiar, constatou-se que 13,33% dos moradores, possuem renda maior do que um<br />

salário mínimo; 46,66% apresentam renda de um salário mínimo e 40% possuem renda inferior a um salário<br />

mínimo mensalmente.<br />

Verificou-se também que todas as crianças em idade escolar freqüentam a escola. Quanto à<br />

escolaridade dos pais ou responsáveis, observou-se que a maioria possui somente o ensino fundamental<br />

incompleto (65,38%); 15,38% possuem o ensino fundamental completo; 11,53% possuem o ensino médio<br />

incompleto e apenas 7,69% concluíram o ensino médio. Não houve pessoas com nível superior de formação.<br />

Com relação às condições de saneamento, todas as residências faziam uso de água encanada (via rede<br />

pública) e 100% delas não possuíam rede de esgoto.<br />

Foram obtidas 45 amostras para a realização dos exames parasitológicos de fezes, sendo analisadas<br />

através do método de sedimentação espontânea. Desse total, 15 amostras (33,33%) apresentaram resultado<br />

positivo ao exame parasitológico de fezes, para um ou mais parasitos intestinais e 30 amostras (66,66%)<br />

apresentaram resultado negativo (gráfico 1).<br />

Gráfico 1 – Positividade das análises de fezes das crianças<br />

Fonte: CHAVES, José J. (2008)<br />

33,33%<br />

Concordando com outros estudos prévios, que relacionam alta prevalência de parasitoses com precárias<br />

condições de saneamento, socioeconômicas e culturais da população analisada, em nossa pesquisa encontramos<br />

33,33% das crianças e adolescentes parasitados. Ao se comparar com outros trabalhos os valores encontrados<br />

são semelhantes, Marinho et al, 2002, avaliou o índice de enteroparasitoses em escolares da rede pública de<br />

Seropédica-RJ, a taxa de positividade encontrada foi de 33,88%.<br />

Os parasitas intestinais encontrados foram: Ascaris lumbricoides em 11 amostras (73,33%); Endolimax<br />

nana em 5 amostras (33,33%); Trichuris trichiura em 5 amostras (33,33%); Entamoeba coli em 3 amostras (20%);<br />

Giardia lamblia em 1 amostra (6,6%); e Strongyloides stercoralis em 1 amostra (6,6%) (gráfico 2).<br />

Gráfico 2 – Incidência dos parasitos intestinais nas análises positivas<br />

67<br />

66,66%<br />

Negativos<br />

Positivos


20%<br />

33,33%<br />

6,60%<br />

Fonte: CHAVES, José J. (2008)<br />

33,33%<br />

6,60%<br />

A alta incidência encontrada nas amostras do parasita Ascaris lumbricoides, era esperada, visto que a<br />

prevalência acomete cerca de 30% da população mundial. Sendo encontrado em quase todos os países do<br />

mundo, ocorre com freqüência variada em virtude das condições climáticas, ambientais e, principalmente, do grau<br />

socioeconômico da população (REY, 2001). No Brasil, levantamentos parasitológicos têm demonstrado que o<br />

Ascaris lumbricoides é o helminto que ocorre com maior freqüência entre as diferentes comunidades estudadas<br />

(MACEDO, 2005).<br />

Os resultados evidenciaram também que 40% dos indivíduos, apresentaram protozoários não<br />

patogênicos quase sempre com algum tipo de poliparasitismo como: Endolimax nana e Entamoeba coli. Ambas as<br />

espécies são comensais não patogênicas, porém com importante implicação na epidemiologia das doenças<br />

parasitárias. Estes enterocomensais apresentam o mesmo mecanismo de transmissão de outros protozoários<br />

patogênicos como a Giardia lamblia, podendo servir como bons indicadores das condições sócio-sanitárias e da<br />

contaminação fecal a que os indivíduos estão expostos (MACEDO, 2005; SATURNINO et al., 2005).<br />

Das quinze amostras positivas, o número de associações de parasitos (poliparasitismo) nas análises foi<br />

(60%). Ocorreu associação quádrupla em uma amostra e associação dupla em oito amostras. As associações de<br />

parasitas foram às seguintes: uma amostra com Ascaris lumbricoides, Endolimax nana, Entamoeba coli e Trichuris<br />

trichiura. Três amostras de Ascaris lumbricoides e Endolimax nana. Três amostras de Ascaris lumbricoides e<br />

Trichuris trichiura. Uma amostra de Ascaris lumbricoides e Giardia lamblia. E uma amostra de Endolimax nana e<br />

Entamoeba coli.<br />

Infecções causadas por associações entre duas ou mais espécies de parasitas (poliparasitismo)<br />

apresentaram maior freqüência quando comparadas a infecções causadas por um único organismo. O ser<br />

humano pode albergar diferentes espécies de enteroparasitas e o fato de o ambiente externo apresentar graus<br />

elevados de contaminação aumenta a probabilidade de infecções com poliparasitismo (Pezzi e Tavares, 2007).<br />

Quanto à freqüência de enteroparasitas observadas em diferentes faixas etárias (gráfico 3), constatouse,<br />

a partir do primeiro ano de vida, um aumento progressivo na freqüência de enteroparasitoses, sendo que na<br />

faixa de 0 a 3 anos obtém-se a freqüência mais elevada (40%). Embora mantendo freqüências elevadas a partir<br />

de 6 anos, observa-se uma tendência à queda progressiva das freqüências, pois postula-se que o decréscimo na<br />

ocorrência com o passar da idade, ou seja, as baixas taxas de incidência e prevalência em adultos estariam<br />

condicionadas não só a uma mudança de hábitos, mas também ao desenvolvimento de imunidade progressiva e<br />

duradoura contra tais parasitos (NEVES et al. 2005).<br />

Gráfico 3 – Distribuição por faixa etária de casos positivos de parasitas intestinais<br />

68<br />

73,33%<br />

Ascaris lumbricoides<br />

Endolimax nana<br />

Thichuris thichiura<br />

Entamoeba coli<br />

Giardia lamblia<br />

Strongyloides stercoralis


Fonte: CHAVES, José J. (2008)<br />

Considerações finais<br />

O acometimento por parasitas intestinais são um dos principais fatores debilitantes da população,<br />

podendo ocasionar danos ao estado físico, nutricional e mental. Sua presença está associada, quase sempre, ao<br />

baixo desenvolvimento econômico, carência de saneamento básico e falta de higiene.<br />

Com base nos resultados obtidos e na real situação dos indivíduos, constatou-se que a condição social<br />

bem como moradia e nível de higiene, tem íntima relação com os resultados dos exames, pois a situação<br />

econômica colabora bastante para a grande suscetibilidade das doenças parasitárias.<br />

A conscientização da comunidade foi de suma importância. Através dos guias ilustrados, as crianças<br />

foram conscientizadas da importância de atos básicos de higiene. Os pais ou responsáveis puderam ensinar<br />

melhores hábitos à família e ajudar assim também a entender e diminuir a disseminação desses parasitos.<br />

Acredita-se que um trabalho em ação conjunta entre população e serviços públicos, pode possibilitar a<br />

prevenção e o controle de doenças parasitárias, que atingem principalmente as comunidades que habitam as<br />

periferias das cidades, onde se encontram condições precárias de saneamento básico, revelando-se como uma<br />

das questões urbanas de grande importância.<br />

REFERÊNCIAS<br />

13%<br />

13%<br />

7%<br />

27%<br />

CARRILLO, M. R. G. G., LIMA A. A. & R. NICOLATO, L. C. 2005. Prevalência de enteroparasitoses em escolares<br />

do bairro Morro de Santana no Município de Ouro Preto, MG. Revista Brasileira de Análises Clínicas 37: 191-193.<br />

CHAVES, E. M. S., VASQUEZ, L., LOPES, K., FLORES, J., OLIVEIRA, L., RIZZI, L., FARES, E. Y. & QUEROL, M..<br />

2006. Levantamento de protozoonoses e verminoses nas sete creches municipais de Uruguaiana, Rio Grande do<br />

Sul – Brasil. Revista Brasileira de Análises Clínicas 38: 39-41.<br />

CUTOLO, S. A.; ROCHA, A. A. Uso de Parasitas Como Indicadores Sanitários Para Análise da Qualidade das<br />

Águas de Reuso. XXVII Congresso Internacional de Engenharia Sanitária e Ambiental. 2000.<br />

LUDWIG, K. M.; FREI, F.; FILHO, F. A.; PAES, J. T. R. Correlação entre condições de saneamento básico e<br />

parasitoses intestinais na população de Assis, estado de São Paulo. Rev. Soc. Bras. Med. Trop., set-out, 1999.<br />

MACEDO, H. S. 2005. Prevalência de parasitos e comensais intestinais em crianças de escolas da rede pública<br />

municipal de Paracatu (MG). Revista Brasileira de Análises Clínicas 37: 209-213.<br />

MARINHO MS, SILVA GB, DIELE CA, CARVALHO JB. Prevalência de enteroparasitoses em escolares da rede<br />

pública de Seropédica, município do estado do Rio de Janeiro. RBAC, vol. 34(4):195-196, 2002.<br />

NEVES, D. P.; MELO, A. D.; LINARDI, P. M; VITOR. W. A. Parasitologia Humana. 11ª ed. São Paulo: Editora<br />

Atheneu, 2005.<br />

NEVES, D. P.; MELO A. L.; GENARO, O.; LINARDI, P. M. Parasitologia Humana, 9ª ed. São Paulo: Editora<br />

Atheneu, 1995.<br />

69<br />

40%<br />

0 a 3 Anos<br />

3 a 6 Anos<br />

6 a 9 Anos<br />

9 a 12 Anos<br />

12 a 15 Anos


PEZZI, N. C.; TAVARES, R. G. 2007 Relação de aspectos sócio-econômicos e ambientais com parasitoses<br />

intestinais e eosinofilia em crianças da Enca, Caxias do Sul-RS. Estudos, Goiânia, v. 34, n.11/12, p. 1041-1055,<br />

nov./dez. 2007.<br />

PRADO, M. S., BARRETO, M. L., STRINA, A., FARIA, J. A. S., NOBRE, A. A. & JESUS, S. R. 2001. Prevalência e<br />

intensidade da infecção por parasitas intestinais em crianças na idade escolar na Cidade de Salvador (Bahia,<br />

Brasil). Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 34:99-101.<br />

REY, L. Parasitologia: parasitos e doenças parasitárias do Homem nas Américas e na África. 3. ed. Rio de<br />

Janeiro: Guanabara, 2001.<br />

SANTOS, D. E., WIEBBELLING, A. M. P. & MEZZARI, A. 2003. Parasitoses intestinais: aspectos gerais e<br />

prevalência em uma escola de periferia de Porto Alegre – RS. News Lab 60: 118-134.<br />

SANTOS JF, CORREIA JE, GOMES SSBS, SILVA PC, BORGES, FAC. Estudo de parasitoses intestinais na<br />

comunidade carente dos bairros periféricos do município de Feira de Santana (BA), 1993-1997.<br />

SATURNINO ACRD, Marinho GJC, Nunes JFL, Silva, MAS. Enteroparasitoses em escolares do 1ºgrau da rede<br />

pública de Natal, RN. Rev. Brasileira de Análises Clínicas. 37 (2): 85-87, 2005.<br />

70


Introdução<br />

PARTÍCULAS ELEMENTARES<br />

71<br />

Célio Fernando LipinskI 58<br />

Erna Gohl 59<br />

Por volta do quinto século antes de Cristo, um filósofo grego chamado Demócrito, melhorando as idéias de<br />

seu mestre Leucipo, afirma que o universo, em seu todo, é formado por elementos invisíveis, pelo fato de serem<br />

muito pequenos, e indivisíveis, pois se fossem divisíveis ao infinito, se confundiriam com o vazio.<br />

Suas concepções foram bastante divulgadas pelo filósofo Epicuro (341-271 a.C.) e pelo também filósofo e<br />

poeta romano Lucrécio (95-52 a.C.), que as reproduziu em forma de poemas no poema “De Rerum Natura” (Sobre<br />

a Natureza das coisas), poema considerado, até os dias de hoje, o melhor de todos os tempos (MARTINS, 2007).<br />

Modelo Padrão das Partículas<br />

Um bom exemplo de teoria “construída” é o Modelo Padrão das interações fundamentais,<br />

que descreve três das quatro forças conhecidas, ou seja, a força eletromagnética, a<br />

força fraca (responsável pela radioatividade) e a força forte (responsável pela<br />

estabilidade do próton), mas não descreve a quarta força, a gravitacional. As outras duas<br />

forças descritas, a fraca e a forte, usam generalização dos conceitos presentes na teoria<br />

quântica do eletromagnetismo. A “base” do Modelo Padrão é a teoria quântica da força<br />

eletromagnética, por já ter sido testada e verificada com a precisão de uma parte em um<br />

bilhão, pode ser considerada uma base extremamente sólida (SILVA, 2007).<br />

A teoria que descreve as forças fortes, fracas e eletromagnéticas, incluindo as partículas elementares da<br />

matéria é chamada de Modelo Padrão.<br />

Formulada entre os anos de 1970 e 1973, foi se estabelecer empiricamente a partir da década de 1980.<br />

Muitos experimentos confirmaram suas previsões. Basicamente essa teoria descreve dois tipos de partículas<br />

fundamentais: férmions e bósons.<br />

Como afirma Tipler (2000, p. 152-164), no Modelo Padrão, a Cromodinâmica Quântica (estudo das<br />

interações entre quarks) combina-se com a interação eletrofraca (que é a unificação da interação fraca com a<br />

eletromagnética). Apenas a interação gravitacional ainda não é satisfatoriamente explicada por essa teoria, mas<br />

são grandes as expectativas quanto a descoberta do gráviton nos próximos anos.<br />

No grupo dos férmions existem grupos de partículas divididos com base em suas estabilidades, chamados<br />

de gerações da matéria. A teoria prevê a existência de três gerações da matéria. Na primeira geração se<br />

encontram as partículas mais estáveis: quark up, quark down, elétron e neutrino do elétron. Toda a matéria<br />

ordinária, ou seja, a matéria que é comum ao nosso meio é formada exclusivamente pela primeira geração da<br />

matéria (LEWIS, 2007).<br />

As partículas do Modelo Padrão que constituem estruturalmente a matéria são os quarks e os léptons, e<br />

as mediadoras de forças são os glúons, os fótons, os bósons W e Z e o gráviton (ainda não detectado). O quarks<br />

são: up, down, strange, charm, bottom e top. E os léptons: elétron, tau, múon e seus respectivos neutrinos.<br />

Quarks<br />

Para Tipler (2000, p. 152-164), os quarks são partículas fundamentais da matéria. Grande parte da<br />

matéria à nossa volta é formada por essas partículas. Os prótons e os nêutrons, por exemplo, são compostos por<br />

quarks. Ao todo, existem seis diferentes sabores de quarks, e para cada um desses sabores há uma antipartícula<br />

correspondente. Os sabores designam os diferentes tipos de quarks: up, down, charm, strange, top e bottom.<br />

Hamburguer (1989, p. 102-103) cita que a carga elétrica dos quarks é fracionária, diferindo das partículas<br />

mais conhecidas. Além da carga elétrica, os quarks têm uma propriedade chamada cor. Um dos motivos de se<br />

atribuir carga elétrica fracionária a essas partículas, é o fato de não serem encontradas isoladamente, apenas<br />

formando pares ou trios. Dos seis quarks que seguem o Modelo Padrão, apenas dois formam partículas estáveis<br />

58<br />

Graduado em Licenciatura Plena em Química pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória<br />

(FAFIUV).<br />

59<br />

Especialista em Ensino de Química. Prof.ª do Departamento de Química da Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e<br />

Letras de União da Vitória (FAFIUV).


como prótons e nêutrons. Os demais são instáveis, que por suas vez, dão origem a partículas também instáveis,<br />

sendo portanto, incomuns ao nosso meio. A cromodinâmica quântica é uma teoria que estuda as interações entre<br />

os quarks a partir de suas forças, chamadas forças de cor, que se apresentam de três formas ou cores: vermelho,<br />

amarelo e azul. A denominação de cor a esse tipo de carga nada tem a ver com as cores que se conhece, sendo<br />

apenas um processo de nomenclatura.<br />

Os quarks têm carga elétrica -1/3 e +2/3 em relação à do elétron. Portanto, sofrem influência direta da<br />

força forte e da força fraca. Uma prova é o decaimento “beta”, onde o nêutron decai em um próton. Esse processo<br />

pode se resumir em um quark down decaindo em um quark up.<br />

Como afirma Tipler (2000, p. 152-164), a característica dos quarks se apresentarem em pares ou em trios<br />

é chamada de confinamento, que sempre ocorrerá em um grupo de partículas denominado hádron, onde estão<br />

mésons e bárions, ambos constituídos por quarks. Os quarks se dividem em seis diferentes tipos:<br />

- Quark up: Possui spin 1/2 e número bariônico 1/3. É da primeira geração de quarks e sua carga elétrica é +2/3. É<br />

o mais leve de todos os quarks, com aproximadamente 20 vezes a massa do elétron, sendo entre 1,5 e 4 MeV.<br />

- Quark down: férmion de spin 1/2, carga elétrica -1/3 e número bariônico 1/3. Juntamente com o quark up são os<br />

mais comuns.<br />

- Quark strange: de spin 1/2, carga elétrica -1/3 e número bariônico 1/3. Juntamente com o quark charm,<br />

constituem a segunda geração de quarks.<br />

- Quark charm: spin 1/2, carga elétrica +2/3, número bariônico 1/3. Foi descoberto em 1974, logo depois do quark<br />

strange, no SLAC.<br />

- Quark bottom: Foi descoberto no FERMILAB em 1977, em uma partícula chamada upsilon.<br />

- Quark top: Foi descoberto apenas em 1995, mas já previsto pela teoria. É o quark mais pesado, com<br />

aproximadamente 35.000 vezes a massa do quark up (BIANCHI, 2007).<br />

Segundo Tipler (2000, p. 152-164), todos os quarks apresentam spin 1/2. Se os mésons são constituídos<br />

por dois quarks, terão spin inteiro, como prevê a teoria. Se os bárions apresentam spin fracionário, três quarks<br />

conferem a estabilidade dos mesmos.<br />

A existência dos quarks foi proposta em 1964 por Murray Gell-Mann e George Zweig. Trabalhando<br />

independentemente, propunham que as centenas de hádrons existentes na época seriam formados por<br />

combinações de duas ou três partículas fundamentais: os quarks, aos quais Gell-Mann atribuiu os sabores up,<br />

down e strange.<br />

Bárions<br />

Sears (1985, p. 994-998) afirma que os bárions são combinações de três quarks. Se tratando do número<br />

bariônico, três quarks, cada um como B= +1/3, fornecerão um número bariônico apropriado aos bárions: +1.<br />

Sendo três quarks, cada qual com spin igual a 1/2, teremos o número exato do spin de um barion, que é 3/2.<br />

As cargas elétricas atuam de maneira semelhante às anteriores. Por exemplo, o próton, com carga elétrica +1, é<br />

formado por dois quarks up (+2/3) e um quark down (-1/3).<br />

Hádrons<br />

Segundo Gilmore (1998, p. 155-156), todas a partículas compostas por quarks são denominadas hádrons.<br />

Este grupo de partículas é divido em dois outros grupos: bárions e mésons.<br />

Bárions: são compostos por três quarks. Ex.: prótons e nêutrons.<br />

Mésons: são compostos por um quark e um antiquark. Ex.: píon, formado por um quark up e um antiquark<br />

down. São bastante instáveis devido à suas constituições de partícula e antipartícula.<br />

Férmions<br />

Para Halliday (1995, p. 299-309), qualquer partícula que tenha spin semi-inteiro é considerada um férmion (1/2,<br />

3/2...). Quarks e léptons são férmions.<br />

Segundo o Princípio da Exclusão de Pauli, duas partículas não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo<br />

tempo. Os férmions seguem esse princípio. Porém, um grupo de partículas denominado bóson não obedece ao<br />

Princípio, ou seja, têm spin inteiro, já que o Princípio da Exclusão de Pauli está diretamente ligado ao spin: quando<br />

o spin for fracionário, obedece ao Princípio. Quando o spin for inteiro, não obedece.<br />

72


Bósons<br />

Partículas com spin inteiro (0, 1, 2...). Nesse grupo de partículas se encontram os mésons e as partículas<br />

mediadoras de força (glúons, fótons, W e Z, grávitons).<br />

Léptons<br />

Seis tipos de partículas constituem o grupo dos léptons. Algumas são dotadas de carga elétrica, como o<br />

elétron, o múon e o tau. Outros, como os neutrinos, não possuem carga elétrica.<br />

Como afirma Halliday (1995, p. 299-309), os léptons são férmions. Neste grupo, se encontram apenas<br />

partículas elementares, ou seja, não são constituídas por nenhuma outra. Essas partículas, ao contrário dos<br />

quarks, são encontradas isoladamente.<br />

Para cada uma dessas partículas, dotadas de carga elétrica, há um respectivo neutrino, ou seja, neutrino<br />

do elétron, neutrino do múon e neutrino do tau. Esta descoberta foi iniciada por Linus Pauling, no ano de 1931,<br />

quando encontrou vestígios de uma pequena partícula que acompanhava o elétron. Mas somente em 1956 foi<br />

experimentalmente comprovada a existência dessas partículas, já que sua fraca interação com a matéria<br />

impossibilitava o feito (OLIVEIRA, 2007).<br />

Como o elétron, o múon e o tau são dotadas de carga elétrica -1, porém suas massas são muito<br />

superiores às do elétron, o que faz com que essas partículas sejam instáveis, decaindo em outras mais leves.<br />

Dessa forma são pouco encontradas na matéria, mas seus respectivos neutrinos são estáveis, o que faz com que<br />

sejam tão abundantes quanto o elétron e seu respectivo neutrino.<br />

Como visto em Halliday (1995, p. 299-309), o elétron é uma partícula sub atômica de carga elétrica<br />

negativa. Proposta sua existência em 1897 por Joseph John Thomson, é responsável pela estabilidade das cargas<br />

dos átomos. Sua carga elétrica é de 1,6 x 10 -19 C, e sua massa é 9,1 x 10 -31 Kg ou 0,511 MeV/c 2 . Por praticidade,<br />

em física atômica, sua massa é atribuída como 1/1836 vezes a do próton, e sua carga elétrica sendo de uma<br />

unidade.<br />

O elétron sofre interação eletromagnética (com prótons, por exemplo), e também interação fraca, o que<br />

explica sua estreita afinidade com o neutrino. Seu spin é 1/2.<br />

O múon é uma partícula pouco estável. Sua carga elétrica e spin são iguais ao do elétron, pertence à<br />

segunda geração dos léptons segundo o Modelo Padrão. Sua antipartícula é denominada antimúon. Sendo do<br />

grupo dos léptons, também é elementar (LEWIS, 2007).<br />

Os neutrinos não têm carga forte nem elétrica, quase não interagem com a matéria, tanto que a cada<br />

segundo, bilhões ou até trilhões atravessam nosso corpo ou qualquer outra forma de matéria sem que se perceba<br />

sua existência. A massa do neutrino do elétron, por exemplo, é infinitamente menor que a massa do elétron (que<br />

por sinal já é bem pequena). Enquanto a massa do elétron é de 0,511 Mev/c 2 , a do neutrino é de<br />

aproximadamente 7 eV/c 2 . Igualmente ao elétron, possui spin 1/2 (VIEIRA, 2007).<br />

As únicas interações que afetam os neutrinos são a fraca e a gravitacional.<br />

Cada um dos neutrinos é rigorosamente diferente dos outros dois neutrinos, tato em massa quanto em<br />

interação:<br />

- neutrino do elétron: neutrino eletrônico, de número eletrônico +1 e massa de aproximadamente 7 eV/c 2 ;<br />

- neutrino do múon: neutrino muônico, de número muônico +1 e massa aproximada de 0,27 MeV/c 2 ;<br />

- neutrino do tau: neutrino tauônico, de número tauônico +1 e massa de aproximadamente 31 MeV/c 2 ;<br />

Interações da matéria<br />

Força Forte: como visto em Halliday (1995, p. 299-309), os quarks têm um tipo de carga chamada carga<br />

de cor. Todas as partículas dotadas desse tipo de carga sofrem uma interação muito intensa, denominada força<br />

forte.<br />

A força forte contribui para que quarks formem hádrons (bárions e mésons). Não diferente das demais<br />

interações, essa força também é mediada por partículas, que são chamadas glúons (do inglês to glue, que<br />

significar colar), devido à sua forte interação. Como os quarks, os glúons possuem a carga de cor. O estudo<br />

dessas interações entre quarks é denominado Cromodinâmica Quântica.<br />

Segundo Hawking (2005, p. 125):<br />

73


É responsável por ligar os quarks dentro do próton e do nêutron e por manter os prótons<br />

e nêutrons juntos no núcleo de um átomo. Sem a força forte, a repulsão elétrica entre os<br />

prótons carregados positivamente separaria todos os núcleos atômicos no universo,<br />

exceto aqueles do gás hidrogênio, cujo núcleo é formado por um único próton.<br />

Das quatro interações que regem o universo, a força forte é a mais intensa, muito mais forte que o<br />

eletromagnetismo ou a gravidade. Porém, se restringe apenas aos quarks.<br />

Força Fraca: segundo Williams (1968, p. 593-595), as interações fracas atuam no decaimento de quarks e<br />

léptons pesados. Nesses processos de decaimento, observa-se o aparecimento de duas ou mais partículas<br />

menores e mais estáveis.<br />

As partículas portadoras da interação fraca são as partículas W + , W - e Z. A partícula Z é neutra, enquanto<br />

a W + e a W - são dotadas de suas respectivas cargas elétricas. Como os glúons, essas partículas também são<br />

bósons. Foram descobertas em 1983, no CERN.<br />

Força Eletromagnética: em Gilmore (1998, p. 102-103), o fóton é um bóson de spin = 1 e mediador da<br />

interação eletromagnética. É representado pelo símbolo da radiação gama ( ). É bastante comum associar os<br />

fótons à luz visível, muito devido à sua popularmente conhecida dualidade onda-partícula, mas a luz visível é<br />

apenas uma pequena parcela do espectro eletromagnético. Os fótons estão sempre se movendo à velocidade da<br />

luz, e pelo fato de não ser atribuída massa a eles, seu momento é proporcional à sua freqüência.<br />

Força Eletrofraca: a física de partículas ou o Modelo Padrão, observou que a interação fraca e a<br />

eletromagnética se tratavam de uma mesma interação a distâncias muito curtas (10-18m). à medida que a<br />

distância aumenta, a força fraca diminuía sua intensidade em relação à eletromagnética. Essa diferença entre as<br />

duas interações deve-se à grande diferença das massas das partículas W e Z e o fóton, que não tem massa.<br />

Dessa forma, chegou-se à conclusão que essas duas interações seriam essencialmente iguais, sendo então<br />

unidas e denominada eletrofraca (BIANCHI, 2007).<br />

Força Gravitacional: segundo Hawking (2005, p. 123-126), a força gravitacional ainda não foi<br />

satisfatoriamente explicada pelo Modelo Padrão. Até mesmo a partícula mediadora ainda não foi detectada, sendo<br />

somente prevista pela teoria. Um dos fatores que dificultam os estudos dessa interação é a baixa intensidade com<br />

que essa força atua no nível subatômico. Sendo assim, o estudo da força gravitacional não se faz necessário<br />

acerca das partículas, mas ainda é insistentemente pesquisada pelo fato da mecânica quântica ser muito bem<br />

sucedida nas demais áreas.<br />

Bóson de Higgs<br />

Como o gráviton, também é uma partícula hipotética. Sua existência foi predita buscando explicar a origem<br />

da massa das demais partículas elementares, como por exemplo a grande diferença de massa entre os bósons W<br />

e Z e o fóton.<br />

Para o final de 2007, está prevista a inauguração do maior acelerador de partículas já construído: o Large<br />

Hadron Collider – LHC (Grande Colisor de Hádrons). São grandes as expectativas quanto à descoberta desse<br />

bóson, entre outras partículas. Com isso, não só o bóson de Higgs seria detectado, mas todo o Modelo Padrão<br />

seria satisfatoriamente explicado.<br />

Considerações Finais<br />

Ainda há muito a ser descoberto dentro dessa área de conhecimento. Se levado em consideração o<br />

número de profissionais envolvidos, construção de equipamentos, e resultados obtidos nos últimos anos, pode-se<br />

presumir que em breve serão feitas descobertas que mais uma vez mudarão muitos conceitos do homem a<br />

respeito da estrutura da matéria, onde o experimental e o filosófico se fundem, remando no mesmo barco com<br />

sentido ao escuro da ignorância, caminho pelo qual o homem já se habituou a passar.<br />

Referências<br />

BENTO, F. R. et al . Estudo da durabilidade de postes de madeira preservados com CCA por meio do<br />

controle da retenção de As, Cu e Cr. Artigo (XV Congresso Brasileiro de Engenharia e Ciência dos Materiais).<br />

Natal, RN: 2002. 6f.<br />

BIANCHI, R. A. C. Partículas elementares: a procura das partículas W e Z. Disponível em<br />

Acesso em: 02 de julho de 2007.<br />

CHIBENI, Silvio S. O surgimento da física quântica. Disponível em<br />

Acesso em: 18 de junho de 2007.<br />

74


GILMORE, Robert. Alice no país do quantum. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998. p. 155-156; 102-103.<br />

HALLIDAY, D.; RESNICK, R.; WALKER, J. Fundamentos de física. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1995. p. 299-309.<br />

HAMBURGER, Ernest W. O que é física. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 90; 102-103.<br />

HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 123-<br />

126.<br />

KOTZ, John C.; TREICHEL, Paul Jr. Química e reações químicas. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, v. 1, 2002. p. 42-<br />

47.<br />

LEWIS, J.; GROOM, C. Aventura das partículas. Disponível em <br />

Acesso em: 28 de junho de 2007.<br />

MARTINS, Jader Benuzzi. A história do átomo: de Demócrito ao primeiro reator. Disponível em<br />

Acesso em: 20 de junho de 2007.<br />

OLIVEIRA F, K. S.; SARAIVA, M. F. O problema do neutrino solar. Disponível em<br />

Acesso em: 05 de julho de 2007.<br />

SEARS, F.; ZEMASNKI, M. W.; YOUNG, H. D. Física. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1985. p. 994-998.<br />

SILVA, Nelson Canzian da. Modelo Padrão. Disponível em<br />

Acesso em: 15 de julho de 2007.<br />

TIPLER, Paul A. Física. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2000. p. 152-164.<br />

TORRES, Fernando Rossi. Introdução de tópicos de partículas elementares para o ensino médio. Disponível<br />

em: Acesso<br />

em: 16 de junho de 2007.<br />

VIEIRA, Cássio Leite. O nascimento de uma polêmica partícula invisível. Disponível em<br />

Acesso em: 05 de julho de 2007.<br />

WILLIAMS, J. et al. Modern Physics. United States of America: Holt, Rinehrt and Winston, 1968. p. 593-595.<br />

75


EDUCAÇÃO QUÍMICA, CULTURA E SOCIEDADE: O <strong>ENSINO</strong> DE QUÍMICA E A SIGNIFICAÇÃO DA ESCOLA<br />

NO BRASIL<br />

O ensino de química e o tempo<br />

76<br />

Keller Paulo Nicolini<br />

Geronimo Wisnieswski<br />

A química começa a fazer parte do contexto científico bem depois da filosofia, que é a ciência mãe. Os<br />

primeiros fenômenos químicos foram definidos pela primeira vez pelos alquimistas que devido ao nível social de<br />

que pertenciam tornavam sua existência bem perigosa. Embora contestados os conhecimentos alquímicos, foram<br />

reconhecidos por personagens marcantes na história da ciência como Newton que, frente aos “limites restritivos”<br />

da Mecânica, justifica a atração gravitacional entre os corpos (conforme sua Mecânica), bem como a repulsão<br />

entre o éter e os corpos, que explica o fenômeno da refração (conforme sua Óptica), através de um princípio<br />

extraído da Alquimia que afirma que os corpos são constituídos de opostos (mercúrio-enxofre) que são<br />

responsáveis por sua atração-repulsão (TEIXEIRA, 2006). A necessidade de compreensão da natureza está<br />

presente em diferentes culturas. Através do conhecimento químico os homens atuam de forma específica sobre a<br />

natureza, modificando-a e modificando-se, segundo as teses do pensamento dialético (MALDANER e PIEDADE,<br />

1995). A compreensão da natureza contribuiu para a explicação de fenômenos magnéticos, explosivos, curativos<br />

a partir de substâncias animais, vegetais, orgânicas e inorgânicas, somando positivamente na construção dos<br />

conhecimentos químicos.<br />

Ensinar e contextualizar química<br />

Procurar mecanismos que venham a solucionar problemas do ensino de química é uma tarefa cotidiana do<br />

educador. Muitas iniciativas têm dado resultado, principalmente quando o aluno é levado a pensar criticamente<br />

com relação a fatos do cotidiano como o aquecimento dos alimentos, a utilização de um refrigerador para evitar<br />

que os alimentos estraguem, a seqüência adequada para a adição dos ingredientes de um bolo ou de uma pizza e<br />

ponto a ponto enumerados e caracterizados quimicamente, tão brilhantemente tem enriquecido e maravilhado os<br />

estudantes de nosso país. A aprendizagem em torno do cotidiano, através de aulas experimentais com materiais<br />

de fácil obtenção e uso comum, demonstra-se uma boa alternativa para estimular os alunos para o ensino de<br />

Química nos níveis médio e fundamental (DIAS et al., 2003). A necessidade de reagentes para as atividades<br />

laboratoriais em grande parte dos fenômenos pode ser subsidiada pelos próprios alunos que fazem parte da<br />

confecção do experimento onde quer pela culinária quer por materiais, podem, maravilhar-se com o mundo natural<br />

que os rodeia e experimentar o processo de representação e reconstrução dos conhecimentos químicos. A<br />

Química, de forma ampla, pode ser definida como o ramo da ciência dedicado à observação, transformação e<br />

construção (ANDRADE e SILVA, 2003).<br />

A química e a criticidade histórica<br />

Em se tratando de decisões relevantes aos processos químicos mais significativos para as sociedades<br />

modernas, o conhecimento de química básica e uma ferramenta fundamental para uma discussão a cerca do<br />

tema. Muito tem contribuído a química para o prolongamento da vida com a descoberta de fármacos, próteses,<br />

produção de alimentos, construção de casas, comunicação, vestuário, transporte. Uma viagem pelo tempo nos<br />

mostra documentos do século XVII nos quais se observa a preocupação com a devastação do meio ambiente em<br />

regiões do Reino Unido próximas de onde se fazia a extração do carvão. A partir dos anos 80, e até os dias de<br />

hoje, abraçada pela mídia, a questão ambiental passa a ser um tema de discussão em todos os segmentos da<br />

sociedade envolvendo questões químicas (JARDIM, 2001).<br />

Química e cidadania<br />

A busca por valores que levem aos cidadãos do mundo a uma participação responsável com relação a<br />

temática ambiental e social, passam pela química. É pelo conhecimento de fenômenos químicos que envolvem a<br />

complexidade da vida e dos sistemas que poderemos opinar de forma consciente e coerente sobre decisões<br />

políticas públicas e organizacionais. A leitura da natureza do comportamento humano e da natureza é feita a todo<br />

o momento por nós. O que leva alguns a não perceberem tais fenômenos é a não compreensão da causa de<br />

determinadas situações como o aquecimento global, onde o CO2 é visto como um vilão, mas o fato é que sem ele<br />

não sobreviveríamos e as plantas fonte de grande parte dos nutrientes de que necessitamos também não (NETO<br />

et al., 2003).<br />

A impaciência por parte do público leigo em química faz da química uma vilã, marginalizada e tida como<br />

perigosa, responsável pela poluição e destruição do planeta. Até mesmo quando se trata de medicamentos,<br />

existem sérias preocupações por parte das pessoas por não querer utilizar substâncias químicas, que fazem mal


(NICOLINI et al., 2005). Muitos personagens sociais procuram desenvolver consciência química nos indivíduos,<br />

mas dentre esses personagens o químico tem papel fundamental. A escola é um espaço cultural, de cunho<br />

coletivo que beneficia docentes e discentes com espaços de discussão e reflexão sobre temas variados, dentre<br />

eles a química que pode ser abordada na forma disciplinar, interdisciplinar, multidisciplinar e transversalmente nos<br />

diversos programas de disciplinas que foram e vem sendo construídos nos espaços educacionais brasileiros,<br />

através de projetos formais ou a partir de iniciativas de professores de química e das demais áreas do<br />

conhecimento que julgam os fenômenos naturais instrumentos de promoção da vida (NUNES e NUNES, 2007).<br />

Da simplicidade a complexidade dos conceitos: como se fez e se faz química<br />

A descoberta de novas substâncias e de mecanismos matemáticos e filosóficos para o entendimento da<br />

química como ciência surge da observação dos fenômenos naturais desde os primórdios da história pictográfica.<br />

Em paredes de cavernas os primeiros químicos se deleitavam em descrever fenômenos naturais dos quais tinha<br />

medo ou dependiam para sua sobrevivência. A presença de cores em rituais de povos marcadamente<br />

caracterizou diferentes culturas e marcou a evolução das sociedades. O fato de fazer rituais de cura a partir de<br />

fumaça, plantas maceradas, o entendimento do fogo como mecanismo de modificação da matéria como assar<br />

carne ou afugentar inimigos notoriamente são fenômenos químicos e foram identificados por observações simples<br />

e lógicas. A lógica e a observação marcadamente se mostram fundamentais para ciência química. Os laboratórios<br />

de química das escolas são espaços para a reprodução de atividades laboratoriais que promovem a integração do<br />

aluno com o conhecimento químico elaborado. A experimentação é tão importante quanto a investigação teórica<br />

dos fenômenos, sendo a reconstrução dos conhecimentos fundamental quando busca-se o fundamento do fato<br />

observado.<br />

Considerações finais<br />

A elaboração e reelaboração constante do conhecimento químico ocorre marcadamente por atividades<br />

interdisciplinares e pela ação sinérgica de várias áreas do conhecimento. Fenômenos como as variações de<br />

volume e temperatura foram observadas a muito tempo. E só descritas de maneira quantitativamente<br />

compreensível por Boyle, com a utilização de equações matemáticas para a descrição físico-química. Em se<br />

tratando do conhecimento químico construído historicamente, os laboratórios de química e espaços que se<br />

prestem a experimentação são fundamentais como complemento na formação dos estudantes. A capacitação do<br />

cidadão em ir além da mera memorização de informações, buscando o entendimento e aplicação de suas<br />

reflexões no contexto onde vive, é compromisso coletivo. Iniciativas governamentais vem sendo feitas no sentido<br />

de implementar livros didáticos e laboratórios nas escolas de todos os cantos deste país. Isso mostra que aos<br />

poucos espaços para o desenvolvimento químico vão se tornando realidade, incluindo e respeitando o diferente na<br />

formação de um cidadão consciente e responsável.<br />

Referências bibliográficas<br />

TEIXEIRA, E.S. Uma resenha do livro “A vida de Isaac Newton” de Richard S. Wistfall. Caderno de Física da<br />

UEFS 2006, 4 (01 e 02): 197-200.<br />

MALDANER, O.A.; PIEDADE, M.C.T. Repensando a química: a formação de equipes de<br />

professores/pesquisadores como forma eficaz de mudança da sala de aula de química. QUÍMICA NOVA NA<br />

ESCOLA 1995, 1, Maio, 15-19.<br />

DIAS, M.V.; GUIMARÃES, P.I.C.; MERÇON, F.M. Corantes naturais: extração e emprego como indicadores<br />

de pH. QUIMICA NOVA NA ESCOLA 2003, 17, Maio, 27-31<br />

SILVA, L.A.; ANDRADE, J.B. Química a serviço da humanidade. QUIMICA NOVA NA ESCOLA 2003, 5,<br />

Novembro, 03-06<br />

JARDIM, W.F., Introdução à química ambiental. Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola Edição<br />

especial 2001, Maio, 03-04<br />

NETO, D.D.; JÚNIOR, L.G.M.F.; VILLA NOVA, N.A.; DE LIMA, M.G.; MANFRON, P.A.; MEDEIROS, S.L.P.<br />

Modelos para estimação de assimilação de dióxido de carbono, coeficiente de extinção de radiação solar e<br />

produtividade de grãos da cultura de milho Revista Brasileira de Agrometeorologia 2004, Santa Maria, 12 (2),<br />

349-353<br />

SAÚGO, R.; GUARNIERI, E.P.; DE OLIVEIRA, J.L.; NICOLINI, J.; NICOLINI, K.P. Manchetes que envolvem a<br />

presença da química no cotidiano da sociedade. 30a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Química 2005.<br />

Nunes, A.O.; Nunes, A.O. PCN - Conhecimentos de química, um olhar sobre as orientações curriculares<br />

oficiais. Holos 2007, 2 (23)- 105-113<br />

77


VIDA E MORTE DE GALOIS<br />

VIDA E MORTE DE GALOIS<br />

60<br />

Professor da FAFIUV, mestre em Matemática pela Universidade Estadual de Maringá.<br />

61<br />

Professora da FAFIUV, mestre em Matemática pela Universidade Estadual de Maringá.<br />

78<br />

TUMELERO, Gilson 60<br />

MUSIAL, Marieli 61<br />

Évariste Galois nasceu em Bourg-la-Reine, França, no dia 25 de outubro de 1811. Quando Évariste tinha<br />

apenas quatro anos de idade, seu pai, Nicolas-Gabriel Galois, foi eleito prefeito de Bourg-la-Reine. Homem culto,<br />

amante da Filosofia e da Liberdade, cortês e durante seu mandato como prefeito conquistou o respeito da<br />

comunidade. Também fora Presidente da Câmara de Bourg-la-Reine.<br />

Évariste Galois<br />

A mãe, Adélaide Marie-Demante, descendia de uma família de Juristas e recebeu uma educação clássica<br />

e religiosa. Era uma mulher generosa, com forte carácter e pensamento independente, tendo sido responsável<br />

pela educação do seu filho até completar 11 anos de idade. Além da educação habitual, Galois recebeu da mãe<br />

formação em Grego, Latim e ensinamentos religiosos, nos quais a mãe introduzia as suas próprias ideias. Até aos<br />

11 anos Galois foi uma criança feliz, séria e responsável, pois sua família, apesar de não ser rica proporcionou isto<br />

à ele.<br />

Aos 12 anos de idade, sua vida começa mudar, e uma sucessão de acontecimentos trágicos, deixa-o um<br />

tanto quanto perturbado. Ao ingressar diretamente a quarta série no Liceu Louis-le-Grand, observou que os<br />

estudantes eram tratados de forma injusta. Nesta época, Nopelão Bonaparte, já havia sido deposto e restaurada<br />

então a monarquia na França. Galois por sua vez era declarado republicano, e muitas vezes debochava do rei.<br />

“Em um ato de homenagem na sua escola à sua majestade deixou propositadamente cair a taça na hora do brinde”<br />

(NASCIMENTO, 1999)<br />

Com 13 anos de idade, tem acesso a Geometria de Legendre, que assim como o autor, desenvolve tal<br />

geometria com muita facilidade. Por esta altura o seu gênio matemático manifestou-se, pois aprendia numa leitura<br />

aquilo que normalmente os alunos aprendiam em dois anos. Em seguida, leu independentemente, um livro<br />

avançado sobre Álgebra escrito por Lagrange. O tempo vai passando e Galois vai se aprofundando mais e mais<br />

na matemática e na política. Galois era conhecido com o “esquisito” e sua esquisitice aumentou mais quando seu<br />

pai cometeu suicídio. Ao que consta, um velho padre inventou mentiras a respeito do pai de Galois, que não<br />

agüentou a pressão e cometeu então o fato fatídico. Os liberais da cidade, amigos do falecido, fizeram uma<br />

arruaça e apedrejaram o padre pelas calunias feitas. Isso só fez com que aumentasse a revolta do jovem Galois.<br />

Pouco depois da morte do pai, Evariste se submeteu a um teste de admissão à famosa École<br />

Polytechnique, mas não foi aceito. Alguns autores relatam que por ter se dedicado muito a matemática não<br />

conhecia as outras ciências e, portanto na conseguiu obter êxito no teste. Outros ainda relatam, que pelo fato de<br />

ser um republicanos, fora injustamente reprovado. Galois não desistiu.


No mesmo ano, 1828, ele entrou no curso de Louis Paul Emile Richard, um distinto<br />

professor de matemática. Richard o encorajou e até defendeu a idéia de que Galois<br />

deveria ser admitido sem a necessidade de um exame. Os resultados deste<br />

encorajamento foram espetaculares e Galois publicou seu primeiro trabalho ("Prova de<br />

um Teorema sobre Frações Periódicas Contínuas") em abril de 1829 no "Annales de<br />

Gergonne". Um ano após a primeira tentativa, Galois novamente realiza o exame de<br />

admissão para a Polytechnique e mais uma vez seus saltos lógicos na prova oral só<br />

confundiram seu examinador, Monsieur Dinet. Sentindo que estava a ponto de ser<br />

reprovado pela segunda vez, e frustrado por sua inteligência não estar sendo<br />

reconhecida, Galois perdeu a calma e jogou um apagador em Dinet, acertando em<br />

cheio. Nunca mais ele voltaria a entrar na Polytechnique. (NASCIMENTO, 1999)<br />

Mas isso não abalou Galois. Confiante em seu talento matemático, prosseguiu nas pesquisas sobre a<br />

teoria das equações (hoje teoria de Galois). Aos 17 anos, submeteu a Academia suas primeiras pesquisas sobre a<br />

solubilidade de equações de grau primo. O avaliador da época era Augustin Louis Cauchy. Alguns autores<br />

afirmam que Cauchy perdeu os papeis e nunca deu uma resposta a Galois, ocasionando assim um dos maiores<br />

desastres na história da matemática. Recentemente, surgiram fatos levantados por pesquisadores, sugerindo que<br />

Cauchy tinha planejado apresentar o trabalho de Galois na Academia em janeiro de 1830 e que ainda o tinha<br />

incentivado.<br />

Galois então tenta novamente o reconhecimento de seu talento, enviando para o secretário da Academia,<br />

Joseph Fourier, uma nova versão de seus trabalhos. Fourier por sua vez deveria entregá-lo para o comitê<br />

avaliador. Outra tragédia ocorre e Fourier morre algumas semanas antes da data da decisão dos juizes, e embora<br />

um maço de trabalhos tivesse sido entregue ao comitê, o de Galois não estava dentre eles. Galois achou que seu<br />

trabalho fora propositadamente perdido devido às orientações políticas da Academia. Uma crença que foi<br />

reforçada no ano seguinte, quando a Academia rejeitou seu manuscrito seguinte, alegando que "seus argumentos<br />

não eram suficientemente claros nem suficientemente desenvolvidos para que possamos julgá-lo com rigor".<br />

(BOYER, p. 365, 1996). O autor ainda relata que uma terceira tentativa de apresentar um artigo junto a Academia<br />

resultou em que Poison o devolvesse com pedido de demonstrações. Completamente desiludido e acreditando<br />

que havia uma conspiração para excluí-lo da comunidade matemática, Galois passou a negligenciar suas<br />

pesquisas em favor da luta pela causa republicana.<br />

Em dezembro de 1830 Galois tentou se tornar um rebelde profissional alistando-se na Artilharia da Guarda<br />

Nacional. Tratava-se de um ramo da milícia conhecido também como "Amigos do Povo". Antes do fim do mês o rei<br />

extinguiu a Artilharia da Guarda Nacional e Galois se viu desamparado e sem lar. Enquanto a paixão de Galois<br />

pela política continuava, era inevitável que sua sorte deteriorasse ainda mais. Galois ficou detido por um mês na<br />

prisão de Sainte-Pélagie após ser apanhado segurando um punhal e realizando um brinde ameaçador ao rei em<br />

um banquete republicano. No Dia da Bastilha Galois marchou através de Paris vestido com o uniforme da<br />

proscrita Guarda da Artilharia. Galois foi então sentenciado a seis meses de prisão e então voltou para Sainte-<br />

Pélagie.<br />

Em março de 1832, um mês antes do final da sentença, irrompeu uma epidemia de cólera em Paris e os<br />

prisioneiros foram libertados. O que aconteceu com Galois nas semanas seguintes tem motivado muita<br />

especulação, mas o que se sabe com certeza é que a tragédia foi o resultado de um romance com uma mulher<br />

misteriosa, chamada Stéphanie-Félicie Poterine du Motel. Stéphanie estava comprometida com um cidadão<br />

chamado Pescheux d'Herbinville, que descobriu a infidelidade de sua noiva e desafiou Galois para um duelo ao<br />

raiar do dia. Galois conhecia muito bem a perícia de seu desafiante com a pistola.<br />

Em uma tentativa desesperada para conseguir um reconhecimento, Galois trabalhou a noite toda,<br />

escrevendo o teorema que acreditava explicaria o enigma da equação de quinto grau. As páginas eram, na maior<br />

parte, uma transcrição das idéias que ele já enviara a Cauchy e Fourier. No final da noite, quando seus cálculos<br />

estavam completos, ele escreveu uma carta explicativa ao seu amigo Auguste Chevalier, pedindo que, caso<br />

morresse, aquelas páginas fossem enviadas aos grandes matemáticos da Europa. Segundo EVES,<br />

Na noite que precedeu o duelo, percebendo plenamente que com toda certeza seria<br />

morto, escreveu um testamento científico na forma de uma carta a um amigo. Esse<br />

testamento diz respeito a algumas de suas descobertas não-publicadas que, para<br />

serem esmiuçadas posteriormente exigiriam o talento de grandes matemáticos: elas<br />

revelaram conter a teoria dos grupos e a teoria de Galois (como é chamada agora).<br />

(p.535, 2004).<br />

79


Na manhã seguinte, 30 de maio de 1832, num campo isolado, Galois e d'Herbinville se enfrentaram<br />

armados com pistolas. D'Herbinville viera acompanhado de dois assistentes. Galois estava sozinho. Ele não<br />

contara a ninguém sobre seu drama. Um mensageiro que enviara ao seu irmão, Alfred, só entregaria a notícia<br />

depois do duelo terminado. E as cartas que escrevera na noite anterior só chegariam aos seus amigos vários dias<br />

depois.<br />

As pistolas foram erguidas e disparadas. D'herbinville continuou de pé. Galois foi atingido no estômago.<br />

Ficou agonizando no chão. Não havia nenhum cirurgião por perto e o vencedor foi embora calmamente, deixando<br />

seu oponente ferido para morrer. Algumas horas depois Galois foi levado para o hospital Cochin. Era muito tarde,<br />

já ocorrera uma peritonite e no dia seguinte Évariste Galois faleceu.<br />

As cartas de Galois escrevera na véspera de sua morte só tiveram uma avaliação completa, 40 anos após<br />

a sua morte. EVES relata que<br />

Várias memórias e manuscritos de Galois, encontrados entre seus papéis após sua<br />

morte, foram publicados por Joseph Lioville (1809-1882) em 1946 em seu Jornal de<br />

Mathématique. Porém, uma avaliação completa das realizações de Galois só<br />

aconteceria em 1870, quando Camille Jordan (1838-1902) as expôs em seu livro Traité<br />

dês Substitutions e mais tarde ainda, quando Felix Klein (1838-1902) e Saphus Lie<br />

(1842-1899) brilhantemente fizeram uso delas na geometria. (p. 535, 2004)<br />

Não sabe-se o que passava na cabeça de Galois para ser republicano revolto e para duelar desta forma,<br />

mas sabe-se da sua genialidade. Bravo foi este homem, que as véspera de sua morte não deixou que se<br />

perdesse tanta riqueza da matemática. Mesmo desacreditado por muitos, Galois estava certo, deixou todo seu<br />

conhecimento. Quisera nós que tal fato fatídico não tivesse ocorrido, quisera nós sabermos o que mais este gênio<br />

poderia ter descoberto.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BOYER, C.B. História da Matemática. Revista por Uta C. Merzbach; Tradução de Elza F. Gomide, 2ª ed. São<br />

Paulo: Blücher, 1996.<br />

EVES, H. Introdução à História da Matemática. Tradução de hygino H. Domingues. Campinas: Editora da<br />

UNICAMP, 2004.<br />

NASCIMENTO, M. Evariste Galois. Experimentos Legais. 1999. Disponível em<br />

http://www.geocities.com/CollegePark/Bookstore/2334/matematica/galois1.html acesso em 29/05/<strong>2009</strong>.<br />

80


1 INTRODUÇÃO<br />

CURRÍCULO ESCOLAR X PRÁTICA ESCOLAR<br />

62<br />

Licenciada em Letras pela FAFIUV, Pesquisadora do Grupo GenTE.<br />

81<br />

Viviane Maria Forstner Matozzo 62<br />

É interessante enfatizar, que a cada ano que passa o currículo, se torna cópia do currículo, e nada mais.<br />

Aumentam alguma “coisa” aqui, tiram ou diminuem dali, e assim vai. Costura de remendos nas quais podemos<br />

identificar frizando as leis que, obviamente deve ser posto, mesmo não a cumprindo. E assim vai, uma turbulência<br />

de idéias no papel, mas que na prática não se realiza.<br />

Aí é importante nos perguntarmos como está o nosso papel enquanto agentes de transformação. O que<br />

estamos transformando, e no que? Qual é o nosso objetivo enquanto professores, educadores, mestres?<br />

É tão mais fácil adequar os alunos aos conteúdos, do que partirmos do que os alunos sabem, olhando e<br />

verificando aquela velha frase: “... devemos partir da realidade que a criança traz...”.<br />

Mas, até que ponto se dá o mesmo? Não vamos generalizar, mas a grande maioria dos professores passada<br />

algum tempo dando aula, nem renova o seu “diário”, assim carinhosamente chamado, caderno na qual se relata<br />

planos de aula. E o currículo?<br />

Bem a essas alturas deve estar guardado a sete chaves, bem dentro de uma gaveta pedindo socorro,<br />

esperando para ser refeito, conforme a realidade da escola, da criança (comunidade escolar), e acima de tudo<br />

para ser usado. E muitas vezes vemos professores que nem se quer conhecem o dito famoso ”currículo”.<br />

É tão mais fácil direção e supervisão refazê-lo, pra que discutir com os professores? Neste artigo quero<br />

enfatizar a questão da importância do currículo. Mas não como o currículo, propriamente dito, mas sim um<br />

currículo “visível” a todos os olhos. Sua história, seus objetivos, e outras questões importantes sobre o mesmo.<br />

2 CURRÍCULO ESCOLAR X LEI 5692/71<br />

Segundo Samuel Rocha Barros (apud PILETTI, 1987, p.65), o currículo escolar abrange todas as<br />

experiências escolares que são planejadas pela escola, as experiências dos alunos são aceitas pela<br />

responsabilidade própria e são atividades das quais o aluno aprende.<br />

O currículo também abrange outros conceitos como o de plano de estudos e o programa de ensino. A<br />

primeira diz respeito às listas de matérias que devem ser ensinadas a cada ano escolar. A segunda seria a<br />

relação de conteúdos que correspondem a cada matéria do plano de estudos, com objetivos, atividades sugeridas<br />

para um melhor desenvolvimento de programa metodológico.<br />

De acordo com Libâneo et al (2003, p. 362):<br />

Currículo é o conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos (saberes, competências,<br />

representações, tendências e valores) transmitidos (de modo explícito e implícito) nas<br />

práticas pedagógicas e nas situações de escolarização, isto é, tudo aquilo a que<br />

poderíamos chamar de dimensão cognitiva e cultural da educação escolar.<br />

Segundo o artigo 4º da Lei nº 5692/71, “os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão uns núcleos comuns,<br />

obrigatórios em âmbito nacional, e uma parte diversificada para atender conforme as necessidades e<br />

possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos de ensino e às diferenças<br />

individuais dos alunos”.<br />

No que diz respeito a esse artigo, a lei se faz clara, porque além de todas as matérias obrigatórias o<br />

currículo também deve ter uma parte diversificada para que possa atender as peculiaridades locais, aos planos de<br />

estabelecimento de ensino e as diferenças individuais de cada educando.<br />

Essas matérias da parte diversificada acima citada são escolhidas pelos Conselhos Estaduais de<br />

Educação e pelos estabelecimentos, que no caso, pode diferenciar em cada Estado e em cada escola, devido a<br />

realidade local.<br />

De acordo com a Resolução nº 8, de 1º/12/71 que acompanhou o Parecer 853/71, os currículos de 1º e 2º<br />

graus devem abranger as matérias de comunicação e expressão, ente outras, além disso, de acordo com o artigo<br />

7º da Lei 5692/71, também são obrigatórias educação física, artística, moral e cívica entre outros.


Com todas estas matérias obrigatórias, que somam dez, o professor se pergunta se ainda sobra tempo<br />

para atender aquela “parte diversificada”, lembra?<br />

Pois é, diferenças individuais, peculiaridades locais... Bom, se sobrar um “tempinho”, será muito pouco,<br />

insuficiente. A partir de todas essas “obrigações” se faz outra pergunta: Será o currículo escolar uma estrada<br />

coerente que leva ao desenvolvimento global da personalidade do educando ou um emanharado de caminhos<br />

estranhos, em que geralmente o educando se perde?<br />

Importante enfatizar e destacar que todas essas matérias devem desenvolver no aluno uma reflexão, uma<br />

criação, discriminação de valores, convívio, cooperação entre outros.<br />

Sabemos que o currículo, de acordo com a legislação, deve ser constituído por matérias, áreas de estudo<br />

e disciplinas. Quando nos referimos por matérias, nos referimos ao conjunto de conhecimentos, ou seja, é<br />

importante destacar que as atividades devem resultar das vivências das crianças, e que o conhecimento jamais,<br />

deve ser passado como algo pronto e acabado. É preciso fazer os alunos refletirem.<br />

Com relação as área de estudo, sabemos que a aprendizagem resulta do equilíbrio entre as situações de<br />

experiência e conhecimentos sistemáticos obtidos em livros e transmitidos pelo professor. E por último, as<br />

disciplinas, que por serem um conjunto de conhecimentos, devem ser apreendidos também de forma sistemática.<br />

Segundo o artigo 4º da Lei nº 5692/71, em seu parágrafo 1º, pode se concluir que todos os alunos do 1º<br />

grau devem receber ensinamentos teóricos e práticos que os preparem para o trabalho, e que pelo menos 90%<br />

dos alunos saiam qualificados para ter uma profissão.<br />

Como já foi dito, é importante enfatizar que o papel da escola deve promover o desenvolvimento global do<br />

aluno, o que não pode deixar de lado o desenvolvimento emocional, social, esportivo, artístico, etc., que no caso,<br />

muitas vezes não se dá ênfase.<br />

Em suma, o currículo pode ser entendido como uma prática e expressão socializadas, de uma constituição<br />

no conjunto de atividades mediante as quais um grupo assegura que seus membros adquiram a experiência social.<br />

2.1 O CURRÍCULO OCULTO E O LIVRO DIDÁTICO.<br />

O currículo oculto, assim nomeado, seria tudo aquilo que não está no “currículo” propriamente dito. Seria o<br />

trabalho com o aluno que tem problemas de aprendizagem, a questão do respeito, da valorização, da<br />

solidariedade.<br />

De acordo com Piletti (1987 p.74):<br />

“O currículo oculto” abrange ainda as experiências que a criança traz de<br />

fora da escola. É claro que essas experiências variam de criança ara<br />

criança. Como conseqüência, em alguns casos podem favorecer o êxito nas<br />

atividades escolares, enquanto em outros podem levar ao fracasso, já que a<br />

escola, geralmente desenvolvem atividades tendo como base experiências<br />

que não coincidem com as da maioria das crianças, que muitas das vezes<br />

enfrentam problemas de sobrevivência.<br />

Enfim, o currículo oculto é implícito, inconsciente, acompanhante das matérias escolares, refere-se às<br />

atitudes e comportamentos.<br />

Com relação aos livros didáticos, sabemos que podem transmitir conteúdos que infelizmente promovem a<br />

dominação dos poderosos sobre os fracos. Portanto, cabe ao professor saber aproveitar o livro, trabalhar com ele,<br />

exercendo o senso crítico, por exemplo, estimulando os alunos, não aceitando tudo que sta no livro didático. Por<br />

que nem tudo é real aos olhos de quem lê.<br />

2.2 OBJETIVOS E CONTEÚDOS ESCOLARES<br />

De acordo com Coll (1987, p. 13):<br />

Os conteúdos são sete: fatos, conceitos, princípios, atitudes, normas, valores e<br />

procedimentos. Fatos, conceitos, princípios correspondem ao compromisso científico da<br />

escola... Atitudes, normas e valores correspondem ao compromisso filosófico da<br />

escola... Procedimentos, isto é, habilidades, estratégias e outras formas de ação<br />

articulam esses conteúdos... Fora do qual nenhuma aprendizagem da criança ou<br />

intenção pedagógica do professor serão concretizadas.<br />

82


Percebemos com este, uma proposta construtivista e psicopedagógica, porque, valoriza uma<br />

aprendizagem significativa e uma memorização compreensiva.<br />

Sabemos que a formação do nosso educando, não se dá só na escola, porém sistematicamente se<br />

trabalha com o conhecimento. Um dos objetivos primordiais da escola é trabalhar partido da comunicação das<br />

idéias das crianças, deixá-las se expressar, já que vemos que no Tradicional, não podia expressar-se e que a<br />

idéia do professor era somente a verdade e nada mais.<br />

É importante a aplicabilidade da teoria, propriamente dita, trabalhar participando das idéias, das tarefas da<br />

escola, compreendendo a realidade que nos cerca.<br />

Precisamos ensinar nossos alunos a raciocinarem (com base em conhecimentos sólidos e valores sociais),<br />

é necessário que ele pense, reflita, tenha idéias novas, critique, que tenha sua opinião própria. E a forma como o<br />

professor vai trabalhar pode favorecer e muito o aprendizado dos conteúdos escolares. Trabalhar nas séries<br />

iniciais com o concreto é necessário para que ele possa entender, raciocinar sem dificuldades nas séries adiantes.<br />

Muitas vezes nosso aluno precisa de um trabalho diferenciado, para que antes de tudo, ele tome gosto<br />

pelo que está aprendendo. É muito importante o professor motivar, estimular o gosto pelo que está sendo<br />

ensinado ao aluno.<br />

A amabilidade, o carinho, o trabalho respeitoso fazem com que as pessoas se sintam valorizadas acima<br />

de tudo. Respeitar o ritmo dos nossos alunos, cada aluno é diferente. Aprende diferente, pensa diferente, uns<br />

aprendem mais rápido, outros mais devagar, enfim, se o professor não respeitar o ritmo de aprendizagem do<br />

aluno, pode sim levar o mesmo ao fracasso escolar, a repetição da mesma série e até uma desistência. Porque<br />

cada criança tem um grau de dificuldade e de avanço na aprendizagem. Portanto, basta respeitar e ajudar.<br />

3 O PLANEJAMENTO E O PROJETO PEDAGÓGICO-CURRICULAR E SUA ORGANIZAÇÃO<br />

O planejamento de ensino iniciou nos anos 60 e desenvolveu-se em 70. Mas, em outras palavras, o que<br />

seria o projeto pedagógico-curricular? É um documento que reflete as intenções, objetivos, aspirações e idéias da<br />

equipe docente.<br />

Faz-se conveniente à elaboração do projeto desenvolvida com base em esboço prévio formulado por uma<br />

comissão escolhida pela equipe escolar, para que a escola melhore, favorecendo uma aprendizagem mais eficaz.<br />

O êxito da escola não depende apenas da gestão participativa, mas da qualidade cognitiva das<br />

aprendizagens, referente aos alunos em condições iguais. A organização do ensino depende do projeto<br />

pedagógico-curricular e plano de trabalho bem definido, orientação metodológica, materiais de estudo, livros<br />

didáticos, sistema de avaliação de aprendizagem e também de acompanhamento dos alunos com dificuldades de<br />

aprendizagem.<br />

Cabe ao professor, dispor das condições como, por exemplo, domínio dos conteúdos, adequação destes<br />

aos conhecimentos que o aluno já possui, ou seja, adequar o conteúdo ao nível da turma, levando em<br />

consideração o ritmo de aprendizagem de cada aluno, a partir do conhecimento que o aluno já possui, em outras<br />

palavras, trabalhar com a realidade do aluno, a partir da bagagem de conhecimentos que esse aluno traz para a<br />

escola, não o tratando como uma “tábula rasa”, desenvolvendo as capacidades cognitivas e as habilidades de<br />

pensar e aprender. E deve-se ter (no caso do professor) plano de aula definida, classe organizada e é lógico,<br />

aluno motivado, sem que o professor deixe-os tensos, entre outros.<br />

A avaliação deve ser encarada de forma diferente, não como no tradicional, que era obrigado, uma<br />

pressão, mas sim como requisito para melhoria das condições que afetam diretamente a qualidade do ensino.<br />

Temos três elementos relacionados entre si, que são a aprendizagem, o desenvolvimento e o ensino: o<br />

nível de desenvolvimento afetivo condiciona o aprendizado que ele realiza.<br />

Segundo Coll (1987, p. 53): “Assim, o ensino eficaz é o que parte do nível do desenvolvimento do aluno,<br />

não para se acomodar, mas para fazê-lo progredir através da sua zona de desenvolvimento proximal”.<br />

As finalidades do sistema educacional são afirmações do princípio sobre as funções do sistema<br />

educacional recolhidas na Constituição e nas Leis que a seguem. Os objetivos gerais do ensino obrigatório são as<br />

finalidades do sistema educacional que competem ao conjunto do ensino obrigatório.<br />

83


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

É de suma importância a investigação que se faz em torno do currículo. Como é feito, por quem é<br />

organizado, para quem estamos fazendo, qual é a realidade dessa comunidade escolar, entre outras questões<br />

que podem ser levantadas.<br />

O currículo não é brinquedo nas mãos de ninguém, e muitas vezes (na maioria) é tratada como algo<br />

superficial. Quando definimos currículo, descrevemos a concretização das funções da escola, dentro de um<br />

momento histórico e social.<br />

Porque o aluno é o sujeito que está inserido dentro de um espaço onde sempre está em transformação.<br />

Por exemplo, quando éramos alunos, a nossa realidade era uma, nosso espaço, tempo era outro. Hoje já é<br />

diferente, ou seja, devemos tratar nossos alunos e seus problemas de forma diferente com que formos tratados.<br />

Muita coisa mudou, então certas ações que foram feitas, realizados antes (no nosso tempo de criança) hoje já não<br />

dá mais certo, não tem um resultado positivo, muitas vezes.<br />

5 REFERÊNCIAS<br />

PILETTI, N. Estrutura de funcionamento do ensino de 1º grau. São Paulo: Ática, 1987.<br />

COLL, C. Psicologia e currículo. São Paulo: Ática, 2002.<br />

LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. S. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São<br />

Paulo: Cortez, 2003.<br />

84


1 INTRODUÇÃO<br />

AS PORTAS DO TEMPO E O BESTIÁRIO DE JULIO CORTÁZAR<br />

Maria Cristina Ferreira dos Santos 63<br />

Cabe sugerir com alguma malícia que<br />

o que chamamos História é a presa<br />

mais certa e completa da linguagem.<br />

Julio Cortázar.<br />

Os bestiários atravessam os Tempos e sofrem influências dos múltiplos agoras. A priori, Bestiário significa,<br />

na esparrela-dicionário, “Livro da Idade Média que narra histórias sobre animais reais ou fabulosos” ou<br />

“Compartimento dos antigos circos, onde se guardavam as feras” (OLIVEIRA, 1967, p. 368). O que me interessa,<br />

aqui, é a presença dos bestiários enquanto “livros de seres” no fluxo da História.<br />

Umberto Eco (2007), tratando da incompletude essencial dos textos, adverte que nos Bestiários, livros da<br />

Idade Média, havia a descrição do significado das figuras alegóricas e dos emblemas na tentativa de fixá-los e<br />

unificá-los.<br />

Uma vez que o meu intuito é pensar sobre o fluxo da História no Bestiário do escritor argentino Julio<br />

Cortázar, travarei, primeiro, uma discussão sobre o Tempo.<br />

Ao discorrer sobre o Tempo, lembro de um livro de Erico Veríssimo cujo enredo e imagens podem ser<br />

úteis para a discussão e que, à propósito, também é um Bestiário de seres antediluvianos, a saber, Viagem à<br />

Aurora do mundo. Essa lembrança se faz pulsante porque, no primeiro capítulo do livro, o personagem-escritor<br />

Dagoberto Prata inicia a narrativa de sua sina de escritor em que conta que escrevera um livro, intitulado As<br />

portas do Tempo, em que idealizava a vida de um escritor que estava, tranqüilamente, caminhando na rua e, sem<br />

perceber, cruza por uma porta – a qual é A porta do Tempo – e, espantosamente, está na Idade Média:<br />

Viveu aventuras emocionantes, amou uma castelã, andou em guerras sangrentas e um<br />

dia, distraído a correr atrás duma borboleta, tornou a enveredar por uma das portas<br />

misteriosas e se viu de novo em sua rua, a caminho de casa, como se nada de anormal<br />

lhe tivesse acontecido (VERISSIMO, 1962, p. 2).<br />

O problema foi que os leitores, como afirma Dagoberto, não aceitaram a idéia, defendida também por<br />

Martin Heidegger (2002, p.183) de que “A história não significa tanto o “passado” no sentido do que passou, mas<br />

a sua proveniência”, ou seja, os leitores, acostumados com enredos lineares e com a diacronia, rejeitaram a idéia<br />

de que o passado está no presente e este está prefigurado naquele. O escritor, acerca de seu livro e do fracasso<br />

perante a crítica, admoesta:<br />

Não fiz ironia, não fiz sátira e nem por um instante dei a entender que estava contando<br />

uma história fantástica e inverossímil. Foi esse cinismo, penso, que irritou os críticos.<br />

Achavam todos que o Tempo não tem portas e se tem não é possível a gente<br />

entrar por elas e voltar ao passado ou embarafustar futuro adentro. (Grifos meus)<br />

(VERISSIMO, 1963, p. 2).<br />

Por causo do fracasso, Dagoberto foi para São Silvestre, o tipo de cidade-arquétipo: calma, pequena, com<br />

uma pracinha, as românticas moçoilas janeleiras e o chefe político. Além de descansar, ele tinha como intuito<br />

escrever um novo livro, mas desta vez, nas suas palavras, “verossímil”, “realista”. Uma vez em São Silvestre, foi<br />

para a famosa Vila do Destino, onde encontrou Magnólia, uma menina que, à moda dos leitores de Jorge Luis<br />

Borges, estava lendo seu livro As portas do Tempo e, ao mirá-lo, afirma que já o esperava na medida em que tudo<br />

devia acontecer como no livro. Dessa forma, ela era a castelã e Dagoberto, por sua vez, o poeta que perdeu-se<br />

nas encruzilhadas do Tempo.<br />

Logo, os dois começam a conversar e Magnólia conta-lhe que mora com seus tios que são,<br />

respectivamente: Fabrícius, um físico; Aristobulus, um filósofo; Calamar, um naturalista; Serena, a teóloga; e<br />

Colibri, um músico. Dagoberto acompanha a menina até sua casa e lá ela conta-lhe o que seu tio físico está<br />

fazendo:<br />

63<br />

Graduada em Letras-Espanhol (FAFIUV). Especialista em Língua Portuguesa e Literaturas (FAFIUV). Graduanda em<br />

Letras/Inglês e pós-graduanda em Línguas Estrangeiras Modernas – Língua Espanhola (FAFIUV).<br />

85


Ao cabo de longos anos de pesquisa, com o sacrifício da saúde e da fortuna particular, o<br />

prof. Fabrícius chegou ao fim de suas experiências com êxito absoluto. Está construído<br />

e em pleno funcionamento o mais surpreendente aparelho que a mente humana jamais<br />

concebeu. Tem ele a mágica virtude de poder fazer passar num grande quadro de cristal<br />

toda história do universo (VERISSIMO, 1962, p. 73).<br />

Então, o professor Fabrícius, Magnólia e os demais tios convidam Dagoberto para contemplar as imagens<br />

que o aparelho vai caçar no espaço em uma aparente linha diacrônica, a saber, desde o Período Cambriano até<br />

os tempos recentes. Eles chamam a busca de imagens de Viagem à Aurora do mundo.<br />

As imagens vão sendo caçadas diacronicamente até o momento em que se confrontam seres de distintas<br />

eras e o professor Calamar, naturalista, afirma: “Não presta (...) Há aí um grande anacronismo”. (VERISSIMO,<br />

1962, p. 231).<br />

Dagoberto conclui que dentro da máquina dormia um mundo de possibilidades. Ele havia ido para a Vila<br />

do Destino para escrever um livro de enredo diacrônico, em que não há confusão de tempos, e acabou vivendo a<br />

mais insana aventura pelo fluxo da História.<br />

A Viagem à Aurora do mundo serve para ilustrar a idéia de Walter Benjamin (1994) de que a História não é<br />

apenas uma imagem eterna do passado, tampouco uma teoria do progresso, mas é, também, uma experiência<br />

com o passado. O pensador (1994, p. 37) afirma: “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na<br />

esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o<br />

que veio antes e depois”.<br />

É nessa medida que discuto a idéia de Bestiário, um conjunto de textos que abarcam uma colisão de<br />

Tempos e que abrangem múltiplas possibilidades de sentidos.<br />

2 OS BESTIÁRIOS E A IDADE MÉDIA<br />

Os Bestiários da Idade Média eram escritos com intenção semântica hermética, assim cada criatura<br />

assumia uma mensagem de redenção. Ao falar em Idade Média, na “contemporaneidade” dessa Era, lembro-me<br />

de um excerto de Império Caboclo, de Donaldo Schüler:<br />

Faltaram-nos duas revoluções: a Renascença e o Iluminismo. Portugal, quando<br />

descobriu o Brasil, era ainda um país medieval, a Renascença veio a Portugal só vinte<br />

anos mais tarde. Saltando da Idade Média ao Barroco, a restauração da Idade Média. A<br />

Idade Média, a dos milagres, misturou-se aqui com a idade da pedra precambriana, esta<br />

é a originalidade do nosso Barroco. O Barroco outra coisa não é do que a fuga da<br />

realidade, a persistência obsessiva do milagre. Não tivemos Iluminismo (SCHÜLER,<br />

1994, p. 92).<br />

Realmente, a Idade Média está palpitando, especialmente nos trópicos, lugar apropriado para as<br />

investigações dos bestialógicos. Em O nome da rosa, de Umberto Eco, o personagem Adso, noviço que é<br />

encarregado de auxiliar Guilherme de Baskervile a desvendar o porquê de inúmeras mortes na Abadia em 1327,<br />

uma vez no labirinto-biblioteca, encontra um Bestiário em confecção:<br />

Aproximamo-nos daquele que fora o local de trabalho de Adelmo, onde estavam ainda<br />

as folhas de um saltério de ricas iluminuras (...) e olhando para elas nem eu nem<br />

Guilherme conseguimos conter um grito de admiração. Tratava-se de um saltério às<br />

margens do qual se delineava um mundo ao avesso em relação com que se habituavam<br />

os nossos sentidos. Como se à margem de um discurso que por definição é o discurso<br />

da verdade, se desenvolvesse ligado a ele, um discurso mentiroso sobre um universo<br />

virado de cabeça para baixo, em que os cães fogem das lebres e os cervos caçam o<br />

leão. Pequenas cabeças em forma de pés de pássaro, animais com mãos humanas nas<br />

costas (...) (ECO, 1986, p.97).<br />

Logo, Jorge, o bibliotecário, afirma que os Bestiários, com suas iluminuras disformes, são profanos.<br />

Guilherme, com sua sabedoria, declara: “Mas a Aeropagita ensina, disse Guilherme humildemente, que Deus só<br />

pode ser nomeado através das coisas mais disformes” (ECO, 1986, p. 101).<br />

Então, ao abrir outro “De bestiis”, Adso contempla um unicórnio e se estarrece quando seu mestre afirma<br />

que, no agora, unicórnio não existe. Adso, por sua vez, pensa que as escrituras sagradas não podem ser fiáveis,<br />

pois contam com a descrição de seres imaginários. Guilherme, quando à veracidade dos escrituras, responde:<br />

“Não a revelação, mas a experiência. Tiveram a sorte de nascer em terras em que viviam unicórnios ou em<br />

tempos em que os unicórnios viviam nessas mesmas terras” (ECO, 1986, p. 361). E, logo depois de falar que o<br />

86


unicórnio encerra uma verdade alegórica, Guilherme acrescenta: “Serve como me serviu a pegada dos pés de<br />

Venâncio na neve, arrastado à tira dos porcos. O unicórnio dos livros é como uma marca. Se há marca deve ter<br />

havido algo de que é a marca” (ECO, 1986, p. 362).<br />

A idéia de alegoria, conforme Walter Benjamin (1984), está intimamente ligada à idéia de ruína: “o gesto<br />

barroco de extrair, pela violência, um fragmento da intemporalidade do fluxo da história-destino se assemelha ao<br />

do historiador dialético, que extrai do continum da história linear um passado oprimido” (ECO, 1984, p. 69). O<br />

enredo de O nome da rosa é uma alegoria que renasce das ruínas. Ao fim, Adso descreve que, após o incêndio<br />

que a Biblioteca sofrera, ele retornou a ela e: “No final de minha paciente recomposição desenhou-se para mim<br />

como que uma biblioteca menor, signo daquela maior, desaparecida, uma biblioteca feita de trechos, citações,<br />

períodos incompletos, aleijões de livros” (ECO, 1986, p.561).<br />

Assim como o unicórnio do bestiário da Antigüidade que Adso encontrou no labirinto é o resultado do que<br />

restou desse ser depois que a história-natureza exerceu sobre ele os seus direitos, a biblioteca “morre” para<br />

encerrar seu vir-a-ser, e renasce, alegoricamente, das cinzas, com outro sentido, quando pré e pós-história se<br />

fundem. Esse fenômeno ocorre com toda arte literária, no Bestiário de Cortázar os sentidos insólitos renascem<br />

das ruínas que o narrador ocasionou ao destruir os significados da cotidianidade.<br />

3 TEMPO E MEMÓRIA NOS TEXTOS DO BESTIÁRIO DE CORTÁZAR<br />

Na arte de narrar, conforme Walter Benjamin (1994), as lembranças são a trama e o esquecimento é a<br />

urdidura. Ao discorrer sobre o olvido, lembro de um texto de Valêncio Xavier, Mistério do menino morto, em que o<br />

narrador, após fotografar um menino, sabe que ele morreu de meningite. Para ele, a inquietação é saber se, no<br />

instante da morte, as lembranças do menino vieram à tona em uma só lufada: “E será que tudo passou com o<br />

mesmo peso de tempo? (...) Lembrou o menino daquela história do Pedro Malazartes que a mãe contou então?”<br />

(XAVIER, 1998, p. 256).<br />

Conforme Henri Bergson (1999), as lembranças “a todo instante completam a experiência presente<br />

enriquecendo-o com a experiência adquirida” (BERGSON, 1999, p. 30). Lembrar é a forma de prolongar o<br />

passado no presente, ou seja “Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o<br />

inapreensível avanço do passado a roer o futuro” (BERGSON, 1999, p. 176).<br />

Nesse esquema, lembrança nenhuma é subtraída, há somente ruptura no equilíbrio, ou um declínio para<br />

ascensão de novas conexões das remenbranças. É o ato de lembrar que faz com que pertençamos a todos os<br />

Tempos, e, como afirma Deleuze (1999), o passado é contemporâneo do presente que ele foi.<br />

O livro O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, segue a idéia do tabuleiro da rememoração. É uma obra<br />

experimental em que os fragmentos vão sendo justapostos a medida que as percepções-memória (BERGSON,<br />

1999) das personagens suscitam lembranças: “Por fim, cinco mil anos me puxam outra vez para trás, e é preciso<br />

recomeçar” (CORTÁZAR, 1985, p. 76). Neste jogo de rememoração, um dos personagens reflete sobre o Tempo<br />

na arte:<br />

Assim, sem que o saiba, está efetivando como que um regresso da arte moderna à<br />

Idade Média. Esta entendera a arte como uma série de imagens, substituídas durante a<br />

Renascença e a época moderna pela representação da realidade. (...) Mas não se trata<br />

de um regresso à Idade Média, nem coisa parecida. Erro de postular um tempo histórico<br />

absoluto: há tempos diferentes, embora paralelos. Nesse sentido, um dos tempos da<br />

chamada Idade Média pode coincidir com um dos tempos da Idade Moderna<br />

(CORTÁZAR, 1985, p.212).<br />

Este excerto é profícuo para se discutir sobre outro livro de Cortázar, o Bestiário, que deixa fluir, com mais<br />

ênfase, a Era Média. O Bestiário, conforme Damazio, é uma equação narrativa em que se tangenciam realidades<br />

paralelas que se multiplicam e se refletem como num labirinto de espelhos. Ele segue o esquema de Octaedro e<br />

Todos os fogos o fogo de conter oito textos que abarcam pares temáticos: dois tratam de literatura, dois de<br />

doença, dois de jogos no metrô e dois de relacionamentos.<br />

Além de seguir a tradição de compilar seres, as inquietações propostas por Cortázar em seu Bestiário são<br />

as relativas às relações marcadas por uma comunicação truncada, o jogo com o Tempo, a metalinguagem, ou<br />

como ele denomina, “A teoria do túnel 64 ”.<br />

O texto A casa tomada trata de um relacionamento interrompido pela linguagem truncada. A casa, que<br />

estabelece uma atmosfera claustrofóbica, impede os irmãos de se comunicarem entre si e de se comunicaram<br />

64<br />

O texto “La teorá del túnel” está disponível em: www.ciudadseva.com<br />

87


com o mundo. O enredo não é linear, vai do presente ao passado e deste àquele, e o desfecho não é hermético,<br />

os irmãos acabam abandonando a casa e ninguém sabe o que acontecerá com ambos, o que reitera a idéia da<br />

Teoria del Túnel: “Esta agresión contra el lenguaje literário, la destrucción de formas tradicionales, tiene la<br />

característica propia del túnel, destruye para construir”.<br />

Em Carta a uma senhorita em Paris, o relacionamento se torna difícil devido à sina do protagonista de<br />

vomitar coelhinhos. Seres estes que são alegóricos, uma vez que foram desapropriados do seu vir-a-ser de<br />

animais mamíferos e tornaram-se, à força do saber do alegorista, um estorvo, uma obsessão do mundo de<br />

Cortázar. Os coelhinhos de Cortázar são intemporais porque são idéias, e, de acordo com a concepção de Walter<br />

Benjamin (1984), as idéias carregam a sua pré-história, ou seja, o fluxo do devenir, e a pós-história, a origem do<br />

novo sentido.<br />

A comunicação, no texto, é truncada: “Nunca lhe contara antes, não acredite que por deslealdade, mas<br />

naturalmente a gente não vai ficar explicando a todos que, de quando em quando, vomita um coelhinho”<br />

(CORTÁZAR, 1951, p.16). A falta de interação, devido aos coelhinhos alegóricos, é extrema na medida em que<br />

ela ocorre por intermédio de uma Carta à Senhorita de Paris, a Andrée. Por causa dos coelhinhos, o personagem<br />

vive isolado, demonstra o declínio na História. O que temos dos coelhinhos são resíduos de Seres depois que a<br />

Natureza-História exerceu suas funções. Segundo Heidegger (2002), a presença é sempre decadente, abarca o<br />

jogo de ascensão e declínio do Ser, e esta dialética constitui a História.<br />

Depois do ápice de ser surpreendido com a façanha de poder vomitar coelhos, o personagem tende a<br />

decair, a se estabelecer na cotidianidade: “Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a cota do<br />

ritmo que nos ajuda a viver” (CORTÁZAR, 1951, 18). Neste excerto, os seres já estão no devenir.<br />

Quando o personagem resolve matar um coelhinho, a consciência da complementação do Ser acontece.<br />

Segundo Heidegger (2002, p. 23) “Há na presença uma “não-totalidade” contínua e ineliminável, que encontra seu<br />

fim com a morte”. No texto de Cortázar, temos: “Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes:<br />

que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e<br />

cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno” (CORTÁZAR, 1951, p. 18-19).<br />

No jogo do texto A distante, de acompanhar o ritmo do metrô ao ritmo da escritura, vemos a preocupação<br />

com a inapreensibilidade do Tempo. Neste texto, fica evidente a idéia de Henri Bergson (1999), de que “É próprio<br />

do tempo decorrer; o tempo já decorrido é o passado, e chamamos presente o instante em que ele decorre”<br />

(BERGSON, 1999, p.161).<br />

O presente é o passado em sua proveniência. Ao escrever um momento em movimento, deixa-se, sem<br />

dúvida, em evidência as Portas do Tempo. Neste excerto, vemos:<br />

Começa, continua. Entre o final do concerto e o primeiro bis achei seu nome e o caminho.<br />

A Praça Vladas, a Ponte dos Mercados. Pela Praça Vladas segui até o nascimento da<br />

ponte, um pouco andando segui até o nascimento, um pouco andando e querendo às<br />

vezes parar em casas ou vitrinas, em meninos abrigadíssimos e monumentos com altos<br />

heróis embranquecidos (...) (CORTÁZAR, 1951, p. 30).<br />

Em Ônibus, o jogo com a Temporalidade, o outrora no agora, persiste. Clara está em um ônibus e<br />

observa os demais passageiros, todos, por sua vez, a observam: “O senhor da terceira janelinha (olhava-me,<br />

agora não, agora de novo)” (CORTÁZAR, 1951, p. 39). No instante da mirada, o agora já é outro “aqui”. O enredo<br />

flui entre circunlóquios dos passageiros e observações, não há desfecho definitivo, o que demonstra a força<br />

inexorável do Capitalismo que não nos permite trocar experiências (BENJAMIN, 1994). A viagem de ônibus é o<br />

próprio relato, uma viagem de reconhecimento e catalogação ao redor dos personagens, assim como os<br />

Bestiários Medievais etiquetavam animais.<br />

Em Cefaléia, além da compilação do Ser Mancuspia, há a descrição de uma doença, mostrando o mundo<br />

claustrofóbico que Cortázar nos enreda em sua literatura. As mancuspias-doença no devenir do relato fazem parte<br />

da cotidianidade, ou seja, a presença do Ser está em decadência, são alegorias, elas nascem da morte da saúde<br />

das personagens: “Parece-nos cada vez mais penoso continuar, seguir a rotina; desconfiamos de que uma só<br />

noite de desatenção seria funesta para as mancuspias, a ruína irreparável de nossa vida” (CORTÁZAR, 1951, p.<br />

47). A despeito do trabalho de cuidar das mancuspias ser monótono, este também sofre as desventuras do Tempo:<br />

“Talvez isto que dizemos seja monótono e inútil se não estivesse mudando dentro de sua repetição” (CORTÁZAR,<br />

1951, p.50).<br />

As mancuspias, que a priori parecem ser aves porque têm penas e porque vão embora voando quando o<br />

inverno chega, foram exiladas deste significado e ressurgiram como alegoria para cefaléia: “Assim se vai o sonho,<br />

ninguém dorme com os olhos abertos, morremos de cansaço, mas basta um leve abandono para sentir a vertigem<br />

88


que desafia, um vaivém no crânio, como se a cabeça estivesse cheia de coisas vivas que giram a seu redor.<br />

Como as mancuspias” (CORTÁZAR, 1951, p. 50-51).<br />

As cefaléias-mancuspias se chocam para a explosão do novo sentido alegórico:<br />

Sim, as cefaléias chegam com tal violência que mal se pode descrevê-la. Sensação de<br />

rompimento, de queimadura no cérebro, no couro cabeludo, com medo, com febre, com<br />

angústia. Suor e dor na testa, como se ali houvesse um peso que pressionasse para fora:<br />

como se tudo fosse arrancado pela testa. Acotinum é repentino; selvagem; pior pelos<br />

ventos frios, com inquietação, angústia, medo. As mancuspias rondam a casa, inútil<br />

repetir que estão nos currais, que os cadeados resistem (CORTÁZAR, 1951, p. 56).<br />

Em Circe há a catalogação de Délia, personagem que ocasiona a morte de seus noivos e, sadicamente,<br />

sente-se satisfeita com isso. Délia, à moda de um copista medieval, classifica seus noivos como se fossem plantas<br />

ou animais que servem apenas para a complementação final, a saber, a morte. Neste excerto, ela trata das suas<br />

mortes com indiferença: “Muita gente morre em Buenos Aires de ataques cardíacos ou asfixia por imersão. Muitos<br />

coelhos adoecem e morrem nas casas, nos pátios” (CORTÁZAR, 1951, p.64).<br />

Délia pode ser vista como alegoria para a História-natureza, uma vez que todos os seus animais de<br />

estimação e todos os seus noivos se complementam, com a morte, ao conviver com ela: “O peixe colorido que<br />

morrera no dia anunciado por Déilia” (CORTÁZAR, 1951, p.73).<br />

O texto As Portas do Céu inicia com a morte de Celina e com a descrição de seu velório. A vida da moça<br />

parece que foi apenas uma passagem para a complementação final. As Portas do Céu é um metatexto e, como<br />

toda arte de Cortázar, joga com o Tempo. O narrador descreve a história e adverte: “Agora (agora que escrevo)”<br />

(CORTÁZAR, 1951, p.90).<br />

O último texto, Bestiário, pode ser visto como uma alegoria para a Literatura, ou seja, esta sendo uma<br />

eterna busca e classificação de seres e coisas cujos sentidos são nômades. Os escritores, à moda de Nino e<br />

Rema, personagens do texto, fogem do tigre, metáfora para o esquecimento, na catalogação de suas lembrançasformigas.<br />

Como compiladora de um herbário, a Nina aborrecem-lhe as plantas “Enjoava-a um pouco que quase<br />

todas as folhas fossem verdes, quase todas lisas, quase todas lanceoladas” (CORTÁZAR, p.98).<br />

Então, ela decide caçar novos sentidos, desapropriando os Seres dos significados de outrora, e origina, ou<br />

seja, retira do fluxo do vir-a-ser, o formicário, uma coleção em que coexistem formigas, cascudos, gafanhotos e<br />

caracóis.<br />

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

No texto Bestiário, durante toda a catalogação do formicário, os personagens fogem do tigre, ser este que<br />

é alegoria para o esquecimento. No entanto ele não impede que os enredos abarquem a colisão de Tempos e de<br />

lembranças. Catalogar Bestiário, conforme o texto de Cortázar, é sinônimo de viagem de reconhecimento, como<br />

fora, outrora, com os descobridores do Novo Mundo, os quais prolongaram a supremacia da Idade Média ao se<br />

depararem, quando pisaram em solo americano, com o almejado “Paraíso” terrestre. Os Seres e enredos dos<br />

Bestiários a cada “agora” ampliam-se e confundem-se com os catalogadores, como uma das personagens do<br />

texto de Cortázar:<br />

“E Rema que tocava em um caracol com a ponta do dedo, tão delicadamente que também seu dedo tinha algo de<br />

caracol (CORTÁZAR, 1977, p. 108).”<br />

REFERÊNCIAS<br />

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Vol I. 7ed. São Paulo: Brasiliense,<br />

1994.<br />

_____. Origem do drama Barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.<br />

BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 2 ed. São<br />

Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

CORTÁZAR, J. Bestiário. 2 ed. São Paulo: Edibolso, 1951.<br />

_____. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. São Paulo: Abril Cultural, 1985.<br />

DAMAZIO, R. O Poliedro Cortázar. Cult 39. Revista Brasileira de Literatura. Ano IV. São Paulo: Lemos Editorial.<br />

89


ECO, U. Obra aberta. 9 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.<br />

_____. O nome da rosa. Trad. Aurora F. Bernardini. São Pau,o: Record, 1986.<br />

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Parte 1. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

_____. Ser e Tempo. Parte 2. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2002.<br />

OLIVEIRA, C. Dicionário Mor da Língua Portuguesa Ilustrado. 1 Vol. São Paulo: Livro’Mor Ltda, 1967.<br />

SCHÜLER, D. Império caboclo. Florianópolis: Editora UFSC, 1994.<br />

VERISSIMO, E. Viagem à Aurora do mundo. 2 ed.Porto Alegre: Globo, 1962.<br />

XAVIER, V. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.<br />

90


INTRODUÇÃO<br />

AGROECOLOGIA, QUEBRANDO PARADIGMAS SOCIAIS E AMBIENTAIS<br />

João A. Scaramella Silva 65<br />

Secas no Sul, enchentes no Nordeste, ciclones, deslizamentos de terra, mudanças climáticas repentinas,<br />

alterações nas condições de cultivo e produção, são alguns dos problemas referentes às condições ambientais,<br />

acarretando mudanças sérias e danosas. O que está acontecendo? Serão esses fenômenos aleatórios, obras do<br />

acaso, coincidências, ou problemas decorrentes de algum tipo de alteração provocada por erros e pela ganância<br />

humana?<br />

A resposta parece simples e óbvia, e não deixa de ser, porém, não basta respondê-la e ignorar suas<br />

causas e suas necessidades de mudar os modelos de desenvolvimento que culminaram com todos esses fatores<br />

e que, a cada dia, agravam-se e causam danos maiores a populações, que, em geral, pouca culpa tem nesse<br />

processo. È necessário estabelecer novos parâmetros e práticas diferenciadas para que soluções possam dar<br />

início a um novo modelo de desenvolvimento.<br />

HISTÓRIA DA AGRICULTURA<br />

Uma visão produtivista e irracional construiu no século XX, sobretudo após as duas grandes guerras, um<br />

modelo da agricultura baseado em práticas agrícolas que tomam para si a incumbência de, em primeiro lugar, dar<br />

conta de criar um mercado para tecnologias e produtos excedentes destes confrontos militares.<br />

Exemplos simples, como a utilização de tecnologia de tanques e equipamentos bélicos para construção de<br />

tratores e maquinários agrícolas, bem como venenos e produtos químicos utilizados como agrotóxicos, mas, o<br />

maior excedente da industrialização resultante da militarização são os dejetos petroquímicos empregados na<br />

formulação de adubos industrializados solúveis. Esse novo modelo, chamado de revolução verde, estava<br />

amparado por uma teoria de que os níveis de produção, crescentes em progressão aritmética, não dariam conta<br />

de atender as necessidades da população, que crescia de forme geométrica. É a Teoria de Malthus, que nunca se<br />

concretizou, porém deu conta de transformar o processo de produção agrícola em um grande mercado,<br />

caracterizado pela concentração dos insumos em poucas multinacionais e a total dependência dos produtores a<br />

essas empresas quando vinculados a um modelo hoje conhecido como convencional de agricultura, criando o<br />

“agribusiness”, ou agronegócio. Hoje convivemos com a continuidade desse modelo imoral e exploratório, com<br />

plantas transgênicas, nanotecnologias e outros “avanços” que logo tentaram iludir produtores e consumidores.<br />

Em contraponto a esse modelo, agricultores e pesquisadores vêm ao longo de décadas construindo um<br />

modelo capaz de resgatar a agricultura tradicional 66 , unindo a isso práticas de sustentabilidade e preservação dos<br />

recursos naturais. Inicialmente chamaram esse novo modelo de agricultura(s) alternativa(s), termo hoje em desuso,<br />

pois em pouco esclarece a realidade dos métodos e confundem com modelos convencionais, como transgênia e<br />

nanotecnologia.<br />

AGRICULTURA DE BASE ECOLÓGICA<br />

Assim surge. Alemanha**, França**, Inglaterra**, Estados Unidos**, Japão**, Austrália** 67 , nações onde os<br />

conceitos do agronegócio surgiram e se desenvolveram são os marcos iniciais dos processos de síntese deste<br />

novo campo cientifico, hoje conhecido como agroecologia. Vale ressaltar aqui o termo “campo científico”, pois em<br />

momento algum trataremos a agroecologia como um apanhado de técnicas que buscam simplesmente contrapor<br />

o modelo convencional, mas sim uma forma de pensamento científico que compila diversas áreas de<br />

conhecimento, como agronomia, economia, sociologia, antropologia, física, química, astronomia e muitos outros<br />

65<br />

Engenheiro Agrônomo, Pós Graduando em Biodiversidade: Conservação e Manejo de Recursos Naturais, FAFIUV. E-mail:<br />

joaoscaramella@yahoo.com.br.<br />

66<br />

Vale aqui uma diferenciação, quando citamos agricultura convencional, nos referimos ao modelo tecnificado, exploratório e<br />

predador dominante na produção agrícola atual, agricultura tradicional são as técnicas onde pequenos produtores rurais<br />

lançam mão de técnicas e conhecimentos empíricos de conservacionismo e adequação do uso dos recursos naturais (como<br />

sementes crioulas, compostos orgânicos entre outras técnicas) para sobreviverem ao avanço capitalista do agronegócio.<br />

67<br />

Cita-se aqui os países onde as vertentes da agricultura ecológica, a biodinâmica, surgida na Alemanha em 1924 através dos<br />

estudos do filosofo Rudolf Steiner; a Agricultura orgânica, surgida na Inglaterra entre 1925 e 1930, tendo como idealizados<br />

Albert Houvard; a Agric. Natural, que surge a partir do mestre Mokiti Okada, entre 1930 e 1940; a Agric. Biológica, na Suíça em<br />

1930; a permacultura, na Austrália, idealizada por Bil Mollisson e a Agroecologia propriamente dita que surge na América<br />

Latina através do Prof. Miguel Altieri e outros cientistas latino americanos, como a Professora Ana Primavesi e o Professor<br />

Miguel Baltazar.<br />

91


campos onde o conhecimento converge em pensamentos que buscam a integração social e a preservação<br />

ambiental e cultural; as técnicas agroecológicas fazem parte deste contexto, mas não podem de forma isolada<br />

serem pensadas como fundamentos dessa compilação científica.<br />

Podemos tomar como marco desse processo a obra “Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos, a Teoria da<br />

Trofobiose” de Francis Chaboussou 68 , onde nessa obra, Chaboussou comprova a influência de agrotóxicos e<br />

adubos solúveis no aparecimento e propagação de pragas e doenças. Simplificando essa teoria, podemos dizer<br />

que através do uso desses componentes químicos disponibilizamos os nutrientes à planta, mas de forma e nas<br />

quantidades erradas, na forma, por que ao disponibilizarmos em formas altamente solúveis os nutrientes entram<br />

“quebrados” nas plantas, em forma de aminoácidos, que são os alimentos de insetos, fungos, bactéria e vírus,<br />

criando assim um ambiente ideal a esses patógenos, essas comprovação compiladas na obra demonstram que o<br />

processo convencional da agricultura transforma as relações físicas e químicas em dependência econômica, pois<br />

os trabalhadores rurais compram sementes e adubos, que produzem plantas que inevitavelmente necessitaram de<br />

defensivos e venenos.<br />

A partir dos princípios ensinados pela agroecologia passaria a ser estabelecido um novo caminho para a<br />

construção de agriculturas de base ecológica ou sustentável (CAPORAL E COSTABEBER, 2003). O conceito<br />

usado por estes autores, agricultura de base ecológica, busca a distinção entre os estilos de agricultura<br />

resultantes das aplicações dos princípios e conceitos da agroecologia, em graus diferenciados de sustentabilidade<br />

e aplicação. Cabe ressaltar que o uso de técnicas de incorporação de princípios conservacionistas em sistemas<br />

convencionais são apenas tentativas de uma “recauchutagem” do modelo convencional, sem a menor intenção de<br />

alterar significativamente esse modelo predatório.<br />

Podemos dizer que as técnicas e métodos aplicados na agricultura ecológica e agricultura orgânica, bem<br />

como nas outras denominações e direcionamentos existentes são apenas substituições aos insumos sintéticos,<br />

porém, isso não significa uma real adequação a princípios agroecológicos. Podemos substituir Nitrogênio, Fósforo<br />

e Potássio inorgânicos de adubos sintetizados por Nitrogênio, Fósforo e Potássio de um adubo orgânico sem que<br />

se altere significativamente os danos e a contaminação ambiental, exemplos facilmente observado no plantio<br />

orgânico de olerícolas, potenciais poluidores de lençóis freático devido ao excesso de matéria orgânica depositada<br />

no solo.<br />

Além dos componentes ambientais, necessário se faz considerar também que dentro das práticas<br />

agroecológicas existe um grande envolvimento social, integrando fatores econômicos a produção ambientalmente<br />

adequada e socialmente justa. De grande importância nos processos agroecológicos são as etapas pós-colheita,<br />

onde o beneficiamento, preparo e adequação dos produtos para comercialização priorizam as relações humanas,<br />

com organização em cooperativas e associações, mercados de economia solidária e outras atividades<br />

integradoras ou que agreguem valor aos produtos “ecológicos”. “... idéia segundo a qual os contextos de<br />

agricultura e desenvolvimento rural sustentáveis exigem um tratamento mais eqüitativo a todos os atores<br />

envolvidos, especialmente em termos das oportunidades a eles estendidas-, buscando-se uma melhoria crescente<br />

e equilibrada daqueles elementos ou aspectos que expressam os avanços positivos em cada uma das dimensões<br />

da sustentabilidade (COSTABEBER E CAPORAL, 2003).”<br />

A partir de um enfoque sistêmico, a agroecologia aborda os agroecossistemas como unidade de análise,<br />

buscando em bases cientificas o apoio aos processos de transição. Chegamos aqui a um ponto fundamental nos<br />

processos agroecológicos: o conceito de transição agroecológica. Entendida como um processo gradual e<br />

multilinear, que ocorre através do tempo nas formas de manejo do agroecossistemas, que, na agricultura, tem<br />

como meta a passagem de um modelo agroquímico de produção (que pode ser mais ou menos intensivo no uso<br />

de imputs industriais) a estilos de agriculturas que incorporem princípios e tecnologias de base ecológica<br />

(CAPORAL E COSTABEBER 2003). Este é um processo continuo de evolução, influenciado não só por aspectos<br />

técnicos, econômico-produtivos, mas trata de um processo social, e a intervenção humana deve ser sempre<br />

considerada como preponderante em qualquer análise dos processos de transição. Isso implica não só na<br />

racionalização de recursos econômicos, ambientais e produtivos, mas é importante construir também a mudança<br />

de atitude e valores dos atores sociais em suas relações com esses aspectos da transição.<br />

A agroecologia é consolidada a partir de seu enfoque cientifico, nutrido por outras áreas das ciências bem<br />

como por saberes populares e o conhecimento empírico dos próprios agricultores, permitindo estabelecer marcos<br />

conceituas diferenciados que proporcionam uma integração de fatores que coloca a realidade de cada vivência<br />

pessoal como o fundamento técnico dos trabalhos, porém, não oferece um modelo de Desenvolvimento Rural,<br />

68<br />

Chaboussou, Francis. Plantas doentes pelo usos de agrotóxicos: novas bases de uma prevenção contra doenças e parasitas:<br />

a Teoria da Trofobiose, Francis Chaboussou; Trad. Maria J. Guazzelli, São Paulo: Expressão Popular; 2006, Titulo original: Les<br />

plantes malades des pesticides.<br />

92


mas busca através de metodologias participativas, como de Diagnóstico Rural Participativo, intervir positivamente<br />

nos processos de desenvolvimento sem perder suas bases epistemológicas, contribuindo na promoção das<br />

transformações sociais necessárias.<br />

As técnicas da agroecologia para a produção e preservação ambiental partem do fundamento básico da<br />

existência de organismos vivos em nosso planeta, as trocas energéticas. Se fosse possível resumir a uma palavra<br />

todos os processos naturais, talvez energia conseguisse expressar de melhor forma. A partir disso, observamos<br />

os fenômenos que envolvem as atividades agrícolas: em um sistema convencional de produção obtemos<br />

resultados altamente positivos em produção brutas de biomassa, seja alimentar, fibras ou geradoras de energia,<br />

mas ao observarmos o conjunto das ações e reações de trocas de energia, resumidas em interação catiônicas<br />

dentro do processo químico de nutrição das plantas, observaremos uma brutal desconformidade entre a produção<br />

agrícola e o consumo de recursos naturais envolvidos.<br />

Assim, observamos um grande necessidade de aporte nutricional e energético, com pesadas doses de<br />

adubos sintético provindos de lugares diversos e de tecnologias que encarecem os produtos, causam danos<br />

severos ao ambiente e tornam os trabalhadores rurais dependentes de pacotes tecnológicos monopolizados por<br />

grandes conglomerados financeiros que capitalizam esses recursos e manipulam as necessidades dos<br />

trabalhadores de acordo com suas próprias vontades. Já em um sistema agroecológico ou sustentável,<br />

estabelecemos como principio a capacidade de trocas energéticas de cada sistema, buscando então um equilíbrio<br />

entre produção e gastos energéticos, necessitando o mínimo ou nenhuma influência externa, construindo assim<br />

um processo sustentável.<br />

Nesse modelo respeita-se a capacidade energética bem como a qualidade nutricional para o<br />

desenvolvimento de plantas e animais, como visto anteriormente na descrição da Teoria da Trofobiose, poupando<br />

o agroecossistema de defensivos químicos e outros agentes nocivos ao ambiente.<br />

Dentro das técnicas agroecológicas temos o aporte de uma série de produtos oriundos do conhecimento<br />

empírico e científico das inter-relações já descritas, sendo que esses produtos ou tecnologias surgem da premissa<br />

básica da proteção e interação dos elementos, buscando soluções não agressivas aos problemas rotineiros dos<br />

agroecossistemas, entre eles, caldas protetoras, interações alopáticas, compostagem, consorciação de culturas,<br />

entre outras, que proporcionam a melhoria das condições produtivas nos agroecossistemas. Além de técnicas<br />

sustentáveis na produção, o pós-colheita também merece atenção, considerando assim de suma importância<br />

processos adequados de colheita, armazenagem e beneficiamento dos produtos.<br />

Na realização de atividades que visem a sustentabilidade do agroecossistema, o manejo agroecológico do<br />

solo nos mostra uma grande diferenciação em relação a outros modelos de manejo. “Atualmente existem três<br />

formas de manejar o solo agrícola: o manejo convencional (ou químico) o orgânico e o agroecológico.”<br />

(PRIMAVESI, 2006). No manejo convencional temos o solo apenas como suporte físico para as plantas, bastando<br />

apenas, por esta visão, dar o aporte químico necessário, provocando assim a morte deste solo, Na agricultura<br />

orgânica, que indiscutivelmente produz alimentos mais saudáveis que no sistema convencional, ocorre apenas<br />

uma substituição de insumos, e sua base é o uso intensivo de compostos orgânicos e esterco, que nem sempre<br />

tem origem em sistemas ecológico, podendo trazer agentes nocivos junto a estes compostos. Os solos nesse<br />

modelo, continuam mortos mesmo com a aplicação abusiva dos compostos, que apenas substituem os elementos<br />

químicos, podem, de forma acentuada causar danos ambientais, pois utilizados inadequadamente esses<br />

compostos liberam grandes quantidades de matéria orgânica que é facilmente lixiviada para lençóis freáticos, rios<br />

e mananciais, provocando contaminação e mortandade de espécies nesses curso d´água. Esse sistema também<br />

implica em custos altos, pois a produtividade geralmente é baixa e o aporte de insumos externos é alto, elevando<br />

os custos de produção e criando o estigma de que produtos isentos de agroquímicos são caros. O sistema<br />

agroecológico procura “copiar” a natureza através da interação entre solo, seres vivos, clima e sua inter-relações,<br />

a base é o respeito à teia da vida.<br />

Na agroecologia procura-se respeitar as características locais do ambiente e alterar o mínimo possível<br />

suas inter-relações. As necessidades de intervenção estão ligadas a correções em processos de transição<br />

agroecológica, onde o a adição de elementos externos ao sistema permitem retomar as condições o mais<br />

próximas das originais. Intervenções maiores estão ligadas às possibilidades de cada sistema e ao uso da vida<br />

como agente regulador. Tratamos aqui como vida, plantas, animais, fungos e bactérias do solo e todo esse<br />

conjunto que proporciona ao sistema um solo vivo, bem estruturado, rico, na medida e na qualidade certa, em<br />

nutrientes. ‘“Essa dinâmica exerce uma função essencial na agregação do solo, de modo a torná-lo grumoso e<br />

permeável para o ar e a água”. Além disso são esses organismos que mobilizam os nutrientes e os disponibilizam<br />

para as plantas (PRIMAVESI, 2006).<br />

93


Outro item fundamental no manejo em sistema agroecológico é o respeito à biodiversidade, onde a<br />

manutenção da grande diversidade biológica nos cultivos é uma estratégia fundamental para a estabilidade nos<br />

sistemas produtivos. Em sistemas de mono cultivo a ocorrência de pragas e doenças causa danos severos devido<br />

à falta de interação e adaptação do sistema, as plantas se desenvolvem sob estresse e estão sujeitas a patógenos<br />

e doenças de forma drástica, além disso, tendo apenas uma cultura, cada infestação ou proliferação de patógenos<br />

poderá dizimar toda a produção, assim se faz necessário cada vez mais o uso de interferências químicas, nocivas<br />

à qualidade dos produtos, da biodiversidade e a saúde dos trabalhadores. No manejo agroecológico a<br />

variabilidade respeita características locais e proporciona uma interação entre os elementos ao invés de uma<br />

profunda adaptação desses. A interferência de patógenos é reduzida a níveis não impactantes ao sistema<br />

produtivo, pois o equilíbrio nutricional, de acordo com a Teoria da Trofobiose, impede o desenvolvimento dos<br />

patógenos e a diversificação nos produtos proporciona níveis de risco de perdas na produtividade e,<br />

consequentemente, na economia, menores.<br />

Vários são os métodos e formas utilizadas na difusões dos diferentes enfoques conceituais e operativos<br />

das correntes que buscam a sustentabilidade na agricultura. De um lado a corrente agroecológica, que busca a<br />

massificação dos processos de manejo e o desenho de agroecossistemas sustentáveis, de outro, temos correntes<br />

que se orientam e atuam de acordo com nichos de mercado e pela simples substituição de insumos químicos por<br />

orgânicos. Dentro disso podemos denominar de agricultura ecologizada, pois busca apenas essas alterações sem<br />

considerar a complexidade dos agroecossistemas. Podemos aqui até pensar em monoculturas orgânicas, de larga<br />

escala, baseadas em mão de obra assalariada, com baixa remuneração e condições subumanas, servindo apenas<br />

para atender caprichos de consumidores não esclarecidos das reais condições de produção e alheios às questões<br />

sociais do campo, agravando ainda mais a desigualdade social e a capitalização do campo. Essa descrição é uma<br />

simplificação das realidades envolvidas nesses modelos que devem servir como início de discussão que envolve<br />

um arcabouço de teses, teorias e dados científicos. A agroecologia proporciona a base científica e metodológica a<br />

ser considerada na formação e organização de agroecossistemas, visando a sustentabilidade e a partir dessa<br />

base, a produção de alimentos, em quantidade e qualidade adequadas a população, à preservação dos recursos<br />

naturais e os benefícios sociais aos trabalhadores rurais são os alicerces fundamentais objetivados pela<br />

agroecologia. Por fim, podemos concluir que os resultados das aplicações dos princípios agroecológicos visam<br />

alcançar e estabelecer estilos e modelos de agriculturas de base ecológica, obtendo produtos de qualidade<br />

biológica superior em todos os níveis de produção.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ALTIERI, M. A. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/FASE, 1989<br />

CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, v.1, n.1, p.16-37,<br />

jan./mar. 2000a.<br />

CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: conceitos e princípios para a construção de estilos de<br />

agriculturas sustentáveis, MDA 2003.<br />

CHABOUSSOU, F. Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos (A Teoria da Trofobiose). Porto Alegre: L&PM<br />

Editores, 1987.<br />

LEFF, E. Saber ambiental. Petrópolis: Vozes, 2001.<br />

LEFF, E. Ecologia, capital e cultura. Blumenau: FURB Editora, 2000.<br />

PINHEIRO, S. & BARRETO, S. B. MB4. -Agricultura sustentável, trofobiose e biofertilizantes. Porto Alegre:<br />

Junquira Candiru, 1996.<br />

PRIMAVESI, A. Manejo ecológico do solo. 18 ed. São Paulo: Nobel, 2006.<br />

PRIMAVESI, O; ARZABE, C; PEDREIRA, M. dos S. Aquecimento global e mudanças climáticas. São Carlos:<br />

EMBRAPA, 2007.<br />

VOISIN, André. Dinâmica das pastagens. Editora Mestre Jou. 1.979.<br />

94

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!