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AS COISAS - Portugal Convida

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<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong><br />

Inês Fonseca Santos<br />

Ilustrações João Fazenda<br />

Janeiro 2012


Na palavra abysmo, é a forma do y<br />

que lhe dá profundidade, escuridão, mistério…<br />

Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo,<br />

é transformá-lo numa superfície banal.<br />

Teixeira de Pascoaes<br />

Edição 04<br />

Lisboa, Janeiro 2012<br />

Poemas<br />

Inês Fonseca Santos<br />

Ilustrações e logótipo convidado<br />

João Fazenda<br />

Revisão<br />

Luis Manuel Gaspar<br />

Composto em caracteres Bembo Book<br />

sobre papel Cyclus Offset de 90 g.<br />

Caderno das ilustrações em papel Igloo Offset de 140 g.<br />

Capa em papel papel KeayKo lour Liso Branco Puro de 300 g.<br />

Tiragem 500 exemplares<br />

Composição Undo<br />

Impressão e acabamento ????<br />

Depósito Legal ???<br />

ISBN 978-989-97448-3-7<br />

abysmo<br />

Av. Almirante Reis, 201, 2.º<br />

1000-048 Lisboa<br />

www.abysmo.pt


Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.<br />

Augusto Monterroso


As Coisas foram escritas em poucos dias, mas levaram<br />

anos a formar-se. Se o leitor agora lhes pega, como<br />

coisas menos irreais, a razão (ou a falta dela) habita<br />

uma perplexidade: depois de estarem escritas, As Coisas<br />

depararam-se com um poema que confirmou o seu<br />

eventual sentido. E, sim, As Coisas – tímidas, inseguras,<br />

adolescentes – procuram confirmação.<br />

As Coisas<br />

Há em todas as coisas uma mais-que-coisa<br />

fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”,<br />

algo que já lá não está ou se perdeu<br />

antes da coisa, e essa perda é que é a coisa.<br />

Em certas tardes altas, absolutas,<br />

quando o mundo por fim nos recebe<br />

como se também nós fôssemos mundo,<br />

a nossa própria ausência é uma coisa.<br />

Então acorda a casa e os livros imaginam-nos<br />

do tamanho da sua solidão.<br />

Também nós um dia tivemos um nome<br />

mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.<br />

Manuel António Pina


INTRÓITO: POEMA EM JEITO DE AGRADECIMENTO<br />

Era um poeta que só escrevia primeiras obras<br />

condenado por ter um dia escrito um poema<br />

feito com palavras conhecidas apenas pelos deuses.<br />

Queria usar agora palavras como: lírios. Ou: Eva.<br />

Considerá-las com ênfase, como lhe tinha ensinado uma amiga<br />

poeta com um amigo poeta. Fechou-se em casa.<br />

Encheu páginas de silêncio.<br />

Passados dias, os deuses devolveram-no<br />

às coisas. Com elas escreveu a segunda obra.<br />

7


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong><br />

São feitas de vidro.<br />

Partem-se quando digo em voz alta<br />

o teu nome. Nome de todas as coisas.<br />

8


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> RECUPERAD<strong>AS</strong><br />

Colo-as. Mesmo aos pedaços<br />

demasiado pequenos. Com sílabas<br />

de palavras caídas em desuso<br />

o teu nome volta a formar-se.<br />

As coisas recuperadas seguem-no. Partem-se de novo<br />

por raramente resistir a pronunciá-lo.<br />

Dizê-lo é uma espécie de vitória.<br />

9


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> IRREPARÁVEIS<br />

Arrumo a casa. Encontro minúsculos vestígios<br />

das coisas irreparáveis. Em cada uma, metade<br />

de uma letra do teu nome. Junto-as.<br />

Reaprendo a dizê-lo de uma forma diferente, quase nova.<br />

10


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DIFERENTES<br />

Repito o teu nome. Até lhe perder o sentido.<br />

Nas coisas forma-se outro nome.<br />

Quem me ouvirá agora ao chamar-te?<br />

Percebo então que o som dos cacos é uma coisa diferente<br />

do som dos teus passos.<br />

Contento-me com cópias como o escritor se contenta<br />

com a falta das palavras.<br />

11


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> SEMELHANTES<br />

Um dia tiveste a minha idade e tantas ou mais coisas<br />

partidas do que eu. Um coração, o fecho de um colar de pérolas,<br />

aqueles olhos vazios como o aquário verde no topo da estante,<br />

demasiadas palavras armadas em metáforas. Coisas semelhantes<br />

que mais tarde alguém tentou reparar. Tempo, amor e morte –<br />

[sobretudo<br />

os seus lugares vazios.<br />

E uma pele capaz de os alojar.<br />

14


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> MATERIAIS<br />

Com muita fome, compra-se a mais. Garantem<br />

estudos sobre o comportamento dos consumidores.<br />

Temos demasiadas coisas no frigorífico. E na mesa<br />

os lugares postos permanecem vazios.<br />

Chamam-te para os ocupares. Chamam-te pelo nome.<br />

Tens fome, mas não vens. E eu nem ouço, ocupada<br />

que estou a colar as partes do corpo com que podes regressar.<br />

15


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DO CORPO<br />

Demasiado internas para lhes conhecer os contornos.<br />

Demasiado ocultas para lhes saber as razões.<br />

Ostensivas, as coisas do corpo exibem-se perfeitas. Segundos<br />

em que cheguei a odiá-las. Estavam demasiado longe<br />

dos lugares a que devíamos regressar quando eu envelhecesse.<br />

Puxei-te pela mão. A mão soltou-se do teu corpo.<br />

Coloquei-a no lugar do coração; com as unhas<br />

construí um fecho novo para o colar de pérolas;<br />

vendi a pele e voltei a encher o frigorífico.<br />

Alguém se sentou à mesa. Tinha o teu nome gravado;<br />

um rosto sem marcas, irreconhecível,<br />

aguardava a mão capaz de lhe levar coisas à boca.<br />

Coisas de alimento às coisas do corpo. Como esta mão a bombear-<br />

-te o coração do lado errado do peito.<br />

16


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> SOBREVIVENTES<br />

Devias ter morrido naquela noite.<br />

Eu julgava que era uma história só tua até<br />

um poeta, homem de palavra, me ter dito das coisas sobreviventes<br />

de alguém tão amável que toda a vida carregou a cruz da hipocrisia.<br />

[Mas tu não<br />

querias morrer realmente. Nem mesmo apenas pelo tempo<br />

de eu percorrer uma rua, subir as escadas e recolher em casa<br />

as últimas roupas. Morrer com o quê se tanto te sobrevivia?<br />

Morrer como quem? Enganaste-te, e talvez por isso tenhas<br />

[sobrevivido.<br />

As coisas morreram. Alguém te vinha buscar e preferiu-as.<br />

Sentou-se à mesa, comeu as coisas por dentro e por fora<br />

das coisas do corpo, esvaziou o frigorífico, empurrou a estante<br />

e sobre esse alguém tombou o aquário verde, vazio.<br />

Quando entrei em casa, aguardando a tua morte, envelhecida<br />

à superfície da pele e sentada de ossos encostados à mesa,<br />

[organizei os restos,<br />

coisas que me sobreviviam.<br />

Não é exactamente o que se quer:<br />

morrer a apanhar migalhas com as pontas dos dedos.<br />

17


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> N<strong>AS</strong> PONT<strong>AS</strong> DOS DEDOS<br />

Cortam os vasos, as veias. Minúsculas,<br />

as coisas nas pontas dos dedos<br />

são feitas de vidro partido.<br />

Invisíveis aos olhos, levam com elas<br />

as nossas impressões<br />

digitais.<br />

20


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DIGITAIS<br />

Letra a letra, investigam o passado.<br />

Algumas nem formam palavras. Gaguejam, quase mudas,<br />

o seu certo e impronunciável sentido.<br />

As coisas digitais dão erro<br />

se as atiramos ao ecrã. Como barro a uma parede acrílica.<br />

Ou as tintas de Pollock se Pollock tivesse pintado na vertical.<br />

Descolam-se do teu nome obcecadas<br />

com o futuro.<br />

21


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> REMENDAD<strong>AS</strong><br />

«Nesta pequena taça de tempo», disseste, juntando<br />

os cacos com cola amarela, «um dia vais colocar gelo<br />

e, como uma actriz francesa, mergulhar aqui a cara todas<br />

[as manhãs».<br />

Respondi com o teu nome como se o quisesse exclamar<br />

e fosse ainda possível encaixar-te, seguro, nele.<br />

Gostava de te ter avisado naquele dia que o futuro,<br />

derretido com o gelo, não me traria as coisas remendadas: as rugas<br />

[das tuas mãos<br />

de velho, suaves, minuciosas, capazes até de me colar<br />

agora que a doença me desfaz em pequenas zonas isoladas,<br />

[carcomidas;<br />

agora neste futuro sem rugas, apenas<br />

demasiadas recordações – e uma certa falta de sentido.<br />

22


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> PARTID<strong>AS</strong><br />

E no entanto não existiam coisas partidas<br />

nem se avistavam cacos.<br />

Quando ela te chamava e dizia o teu nome<br />

ouvia-lo subitamente desprendido.<br />

E tudo se ordenava.<br />

Nos copos havia whisky para as visitas,<br />

mazagran para as crianças, caídas aos tombos<br />

em cima dos sofás, ignorando futuros, esquemas, mapas<br />

e caminhos. Algumas nem sabiam o teu nome.<br />

Pouco importava.<br />

Nas casas onde as coisas em vez de ignoradas<br />

são coladas perduram fiéis os retratos nas molduras.<br />

Não fantasmas, visitas. A elas, servem-se bebidas<br />

em copos remendados.<br />

O tom do whisky, antídoto da memória,<br />

disfarça os riscos de cola, as tentativas de regressar.<br />

23


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> INSIGNIFICANTES<br />

O meu dedo já serviu para muitas coisas<br />

insignificantes, já tocou alguns segredos, demasiados<br />

medos. Breves papéis feitos com a prata do maço de tabaco,<br />

outros interpretados no meio da praceta, em cima do repuxo,<br />

centro da nossa arena. O meu dedo insistente tenta<br />

imitar-te: recorda. Alguns amores terríveis guardam dentro<br />

(como reféns)<br />

bandos de pássaros recém-nascidos – insectos,<br />

se puseres os óculos e os vires ao perto.<br />

Com o meu dedo, ajustava-te as hastes,<br />

aproximava-tas dos olhos, com medo de que um dia<br />

visses demasiado próximos os dedos<br />

amarelos: cor de vela sem pavio,<br />

muito menos chama.<br />

24


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> OC<strong>AS</strong><br />

Mais uma vez quebrei a promessa<br />

num dia em que provavelmente me bateste.<br />

Faltas de educação não toleravas nunca. Mas adolescentes<br />

são bichos que desconhecem o fim e o princípio<br />

das coisas. Prometi-te: não odeio ninguém. As feridas<br />

(no coração, na razão) têm causas geralmente humanas,<br />

coisas de que me arrependo. Como daquela vez<br />

em que te atirei à cara a inversão da ordem genealógica da família.<br />

Íamos de carro, a gata a precisar de pontos, eu duvidando<br />

[da condução.<br />

Adolescentes: bichos esquisitos. A culpa não os come<br />

por dentro; abandona-os: coisas ocas. E um nome.<br />

Por dentro, há um dia de árvores altas<br />

onde vivemos: um coração olha-nos de fora<br />

como se não nos pertencesse e o seu lugar fosse<br />

o de um boneco trocado por namorados no São Valentim.<br />

Daqui de longe parece-me ter pernas. Pendem-lhe do banco<br />

onde um dia te disse que eras o mágico da rua: papéis<br />

voavam-te dos dedos ao alcançarem a ponta das unhas.<br />

Desse lugar avistei a infância, desse lugar<br />

por onde agora corre um caminho que teima:<br />

o coração é fraco, não resiste se o partilhamos<br />

como deformação congénita. É desse tamanho<br />

o buraco no peito.<br />

25


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> CONHECID<strong>AS</strong><br />

Não são coisas se lhes soubermos os limites,<br />

conhecermos as formas, o volume, a superfície.<br />

As coisas conhecidas são pedras e poemas. E o teu nome<br />

sempre infiltrado nos versos.<br />

Colecciono-as: pedras. Colecciono-os: poemas.<br />

Tenho por hábito roubá-los. E, todavia, possuo apenas uma<br />

coisa conhecida. Colhida numa praia de vidro<br />

fundido pelo ar quente do Adriático, a pedra polida<br />

é o melhor poema (o nosso melhor poema).<br />

Guardo-a no bolso, onde meto a mão;<br />

guardo-a na mão, onde se encaixa,<br />

fria, macia, perfeita, uma pedra cinzenta,<br />

a única coisa conhecida.<br />

Leio-a. Tem o teu nome.<br />

Largo-a<br />

ao sentir o peso que lhe falta.<br />

Como as andorinhas anunciam a Primavera,<br />

os papéis velhos têm outros mistérios a anunciar:<br />

o teu nome e a impossibilidade de o roubar.<br />

Não é deste tempo. Não pertence a ninguém.<br />

28


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DE NINGUÉM<br />

Levámos meses a juntá-las e, nesse momento, tinham uma morada.<br />

As coisas de ninguém viviam em hibernação forçada.<br />

Generosas, davam-nos segurança.<br />

Como se um dia tivéssemos tido uma casa aonde regressar<br />

e um caminho certo a percorrer<br />

em que antecipávamos armadilhas, subtraindo-as<br />

às dificuldades.<br />

Depois daquele momento começámos a cair. Tropeçávamos<br />

nos recantos por onde nos espreitavam as coisas de ninguém.<br />

Algumas ostentavam o teu nome como um rosto. E foram<br />

os teus olhos a tua boca os teus dentes o teu nariz os teus sinais<br />

as tuas rugas os teus cabelos as tuas feridas até as tuas mãos<br />

que arrancámos das estantes, arrastámos pela rua, atirámos<br />

para uma morada nova.<br />

Tenho ideia de estar sol e de me teres pedido<br />

para não te deixar morrer num dia de sol.<br />

Acalmei-te, na minha marcha pouco convincente<br />

de tombos: dentro do caixote<br />

do lixo, como dos caixões,<br />

nunca ninguém viu raios de luz.<br />

29


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> LAVAD<strong>AS</strong><br />

Entre os pássaros, havia sempre roupa lavada. Lençóis<br />

em que se fodia menos do que o desejável.<br />

Naquele dia ias na rua com a camisa por passar, apesar<br />

de te cobrirem o corpo tantas coisas lavadas quanto uma origem:<br />

pele pêlos dentes cabelos, mas sobretudo<br />

desejo e vontade<br />

apenas de desejo. Lavado como frutos por comer,<br />

o teu desejo: um nome completo, um nome<br />

próprio seguido de apelidos. Mãe, pai, filhos a quem o deixar.<br />

Mais tarde soube. Quando passava no meio dos lençóis,<br />

o cheiro a lavado cobria outro<br />

indecifrável, lento. Não era exactamente pecado. Ou apenas isso.<br />

Muito menos sangue ou drama. Era<br />

o medo concreto e exacto de um nome<br />

bordado, branco absolutamente branco.<br />

Assustador<br />

como papel químico encostado ao tempo.<br />

30


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> QUEIMAD<strong>AS</strong><br />

Fumava-se muito na casa.<br />

As crianças puxavam do cigarro<br />

enquanto procuravam o teu nome debaixo<br />

da estante debaixo dos escombros.<br />

Na alcatifa, demasiados buracos: antigas cabeças<br />

ardendo lentamente de significado. Porém:<br />

o fogo da casa ardia do lado de dentro interior à casa.<br />

Eram centenas de palavras-fósforos raspadas contra as lombadas<br />

dos livros, palavras queimadas pela inclinação do sol.<br />

Capas por dentro de capas por dentro da casa; por dentro<br />

dos livros, palavras misturadas com as coisas queimadas<br />

[sobreviviam-te,<br />

sobreviviam às chamas: peixes-palavras<br />

por dentro do aquário verde, no topo da estante.<br />

31


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DIFÍCEIS<br />

Nada mais definitivo do que terem fechado a casa.<br />

O senhorio esfregava as mãos de contente e, em contraluz,<br />

via-se-lhe o coração gelado. Há lá felicidade maior<br />

do que a de um imóvel desocupado...<br />

O teu nome desceu então às ruas<br />

e não foram precisos assim tantos dias para te ver<br />

na companhia afável de outros sem-abrigo.<br />

(Afinal, a felicidade maior é fazer amigos à transparência<br />

[e na eternidade.)<br />

Deixei de ver-te depois, quando contratámos os fotógrafos.<br />

Avisei: nada de flashes. Queria manter-te perto,<br />

receber de braços subexpostos a tua nova família.<br />

Avisaram: lugar tão escuro não se fotografa<br />

sem luz artificial. Desconheciam:<br />

estavam obrigados a fixar a tua ausência.<br />

Durante três dias tiraram os retratos (ficaram os das molduras<br />

em novas moradas): cada milímetro da casa eternizado<br />

com precisão matemática. Mas a verdade (a nossa verdade)<br />

fazia-se com palavras, e as nossas contas aritméticas<br />

em momento algum deram em alguma coisa,<br />

muito menos em coisas difíceis como um resultado<br />

certo, real.<br />

Talvez por isso, nas fotografias, o teu nome<br />

nem vislumbrá-lo. Nem sequer as sombras dos teus passos,<br />

tão exactos, de lado a lado percorrendo<br />

o corredor; os braços,<br />

com precisão geográfica.<br />

Recusei-me a pagar o serviço. A reclamação seguiu<br />

em teu nome.<br />

34


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> MAIS DIFÍCEIS<br />

Mascava pastilha elástica<br />

até me doer o maxilar. O desejo: impressionar<br />

o vizinho de baixo. Também ele tinha um aquário.<br />

Era azul e nunca mo mostrou. Eu mascava com fúria<br />

a pastilha elástica – e corria:<br />

o pulmão aberto (um deles, explicaste-me tu),<br />

a barriga a inchar com o vento.<br />

Hoje, seria cancro. Naquele lugar gigante, era apenas<br />

demasiada energia ou outra coisa mais difícil chamada<br />

infância.<br />

As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.<br />

Pouco se pensava no tempo. Nenhuma consciência dele, menos ainda<br />

do modo de contá-lo. Não pela falta de relógio<br />

(o encarnado mostrava os números por debaixo de um arco-íris<br />

[de cinco cores).<br />

Era a falta de: as palavras. Pareciam-se com<br />

o teu nome. O jogo – a guerra de procurá-las,<br />

quanto mais dizê-las, fazia-nos de tempo (na pele, nos ossos).<br />

Invencíveis, as coisas mais difíceis. Sobretudo<br />

nos dias de sol:<br />

com o som audível dos peixes no aquário verde,<br />

a estante prestes a cair.<br />

Dentro da casa, instalava-se a tempestade.<br />

35


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> FRÁGEIS<br />

Pegava-te no nome como no aquário<br />

verde, quando era ainda cidade de peixes –<br />

bichos de alimento diário e morte mensal,<br />

silenciosa, sem desgosto ou pânico,<br />

indiferente à vida. (As nossas, as deles.)<br />

Hoje caminho, como todas as manhãs, com a tua existência<br />

nas mãos (na cabeça, nos pés), seguro-a como coisa frágil,<br />

quebradiça – coisa morta do dia em que morreste.<br />

Recordo apenas o pássaro. Tinha no nome ruivo<br />

e no bico o som atenuado de uma canção.<br />

36


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> INAUDÍVEIS<br />

Beethoven. Bach. Compositores colocados lado a lado na estante<br />

por baixo do aquário verde. Sabias pouco de música,<br />

era uma questão de pôr as coisas em ordem.<br />

Da tua falta de ouvido e de talento (para a música)<br />

terá nascido o tom monocórdico e inocente do teu nome.<br />

Se até os pássaros o chamavam de dentro das gaiolas.<br />

Mas era o outro: o nome visível, audível. As coisas inaudíveis<br />

seguiam-se ocultas, frágeis, repetitivas como o som das moscas<br />

encostadas aos cantos das janelas.<br />

Podíamos tê-las libertado. Preferimos deixá-las zumbir em desespero.<br />

Ocasionalmente esmagá-las, se o ruído se começasse a afastar<br />

do teu nome inaudível.<br />

Nunca se abriam as janelas.<br />

As moscas continuavam a entrar.<br />

Lá fora, aguardava-me um castigo:<br />

a condenação de memorizar o tempo, de saber de cor<br />

o número de moscas sobre os teus restos.<br />

37


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> EM MOVIMENTO<br />

Pré-adolescentes, as coisas em movimento<br />

chegavam depressa demais a todo o lado.<br />

Durante semanas, penduraram-se na árvore, lembrando<br />

a insistência das moscas nos cantos dos vidros.<br />

Era tudo demasiado delas, e a árvore cedia<br />

ao peso que levava a passar a hora de furo na escola.<br />

Se estava entre elas, ou, antes, se as observava, é tão difícil de dizer<br />

como o teu nome. Elas eram cinco coisas em movimento<br />

procurando novas coisas em movimento: o sol a pique ao meio-dia,<br />

os gatos pretos e brancos nas marquises, o homem ejaculando<br />

à janela todas as santas terças-feiras de observação, iniciação.<br />

Naquele tempo, alguém dizia o teu nome esperando a salvação.<br />

40


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> LENT<strong>AS</strong><br />

Fumo demasiado depressa<br />

o meu cigarro apagado.<br />

Os cigarros fumam-se lentamente<br />

ao espelho fixando um único dos nossos rostos.<br />

Pois bem: na casa só nos cacos há reflexos. Os rostos suspendem-se<br />

entre nós e nós, as letras das palavras. Os rostos aguardam-se,<br />

observam-se, ao longe. E não há fumo que os evole.<br />

Talvez por isso: nunca aprendi a acender um cigarro<br />

por ser absolutamente desnecessário aprender a aprender a acender<br />

um cigarro. Na casa onde tu fumavas<br />

cada cigarro era uma letra. De cada vez que o filtro te tocava<br />

os lábios eu perguntava: como te chamas? À superfície<br />

do espelho, o teu vagar respondia-me<br />

até ao esquecimento de nós.<br />

Talvez por isso: tento acender um cigarro. Apago-o antes<br />

que me chegue aos lábios.<br />

Está frio neste lugar. A boca abre-se<br />

como uma coisa lenta em forma de espanto.<br />

41


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> LIVRES<br />

Havia várias formas de chamar-te.<br />

Chamar-te não era apenas dizer o teu nome.<br />

Muito menos fazer-te virar a cabeça na direcção da casa.<br />

Era conhecer-te o rosto – dedicado, disponível, raro.<br />

As coisas livres ficaram escritas no chão.<br />

42


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> ESCRIT<strong>AS</strong><br />

Tenho as coisas escritas<br />

no peito, o teu nome. Nada tem que ver<br />

com o coração, muito menos com sentimentos.<br />

O teu nome está-me escrito nos sinais, sobre a pele.<br />

A tinta, desenhos de círculos castanhos<br />

assinalando lugares.<br />

O meu mapa genético tem uma única localidade.<br />

Dizer o nome dela é chamar-te.<br />

Chamar-te é encontrar a minha morada.<br />

43


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> EM IMAGENS<br />

Cortam-me o cabelo à tigela.<br />

Sentam-me no banco do jardim<br />

sem flores, só cabos que ligam máquinas<br />

como órgãos: o coração aos pulmões, o estômago ao útero.<br />

Devia ter escrito: «Entre as coisas em palavras e as coisas<br />

em imagens há uma distância longa como um túnel em forma<br />

[de cone.<br />

No vértice, eu, despida do teu nome – coisas, palavras, imagens.»<br />

O vento incomoda as árvores<br />

enquanto procuro o caminho de casa.<br />

44


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> INANIMAD<strong>AS</strong><br />

Os meus dedos morrem muitas vezes.<br />

Começa pelas pontas e, de minuto em minuto,<br />

pequenos insectos descem à palma da mão.<br />

Como o exército de um país em guerra,<br />

avisam ser possível – até aceitável – desaprender<br />

o teu nome. Insisto<br />

em escrevê-lo. De minuto em minuto,<br />

os dedos são os meus, os teus,<br />

outros no fecho dos caixões e<br />

mais: aqueles com que fumas<br />

as coisas inanimadas.<br />

Se é isto a morte?<br />

Tenho poucas dúvidas<br />

e ainda a impossibilidade<br />

e o tempo de as anotar.<br />

45


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> ETERN<strong>AS</strong><br />

Quando acordou,<br />

o teu nome ainda estava lá.<br />

Com o dinossauro de Monterroso.<br />

46


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> DO UNIVERSO<br />

São também feitas de vidro,<br />

mas soprado. As coisas do universo habitam<br />

o espaço frio de um nome redondo. Chamam-lhe<br />

esfera. Nenhuma palavra, nenhuma lembrança a parte.<br />

Ensinou-me o poeta a teoria das cordas. Espreito<br />

à transparência da esfera. Os sons não me dão o entendimento<br />

[das coisas<br />

do universo, apenas do teu nome. Guardo na boca<br />

o gelo da língua<br />

ao pronunciá-lo.<br />

Assim me calo.<br />

47


<strong>AS</strong> COIS<strong>AS</strong> INQUEBRÁVEIS<br />

Não me lembro de outras<br />

que não as palavras.<br />

48


ÍNDICE<br />

Intróito: poema em jeito de agradecimento 7<br />

As coisas 8<br />

As coisas recuperadas 9<br />

As coisas irreparáveis 10<br />

As coisas diferentes 11<br />

As coisas semelhantes 14<br />

As coisas materiais 15<br />

As coisas do corpo 16<br />

As coisas sobreviventes 17<br />

As coisas nas pontas dos dedos 20<br />

As coisas digitais 21<br />

As coisas remendadas 22<br />

As coisas partidas 23<br />

As coisas insignificantes 24<br />

As coisas ocas 25<br />

As coisas conhecidas 28<br />

As coisas de ninguém 29<br />

As coisas lavadas 30<br />

As coisas queimadas 31<br />

As coisas difíceis 34<br />

As coisas mais difíceis 35<br />

As coisas frágeis 36<br />

As coisas inaudíveis 37<br />

As coisas em movimento 38<br />

As coisas lentas 39<br />

As coisas livres 40<br />

As coisas escritas 41<br />

As coisas em imagens 42<br />

As coisas inanimadas 43<br />

As coisas eternas 44<br />

As coisas do universo 45<br />

As coisas inquebráveis 46

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