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— O céu nos restituirá a alegria, minha mãe. Ficarás junto de mim por todo<br />
o sempre.<br />
— Ainda esta noite — prosseguiu D. Margarida com ternura — sonhei que<br />
minha mãe vinha buscar-me. Apareceu como nos meus tempos de criança, a<br />
brincar descuidada às margens do Garona. Ela chegou, muito meiga, tomoume<br />
nos braços e perguntou, depois de um beijo, por que me havia demorado<br />
tanto, longe dos seus carinhos. Ah! deve haver uma estância além desta, onde<br />
nos encontremos com os mortos bem-amados. A vida é mais bela e infinita do<br />
que supomos. Deus, que nos uniu nas estradas do mundo, não poderá<br />
separar-nos para sempre...<br />
A voz tornava-se melancólica, arquejante. A evocação do sonho pareceu<br />
transportá-la a divagações diferentes. Nos olhos muito brilhantes pairavam<br />
reflexos de luz extraterrena. A filha acompanhava-lhe a mutação fisionômica,<br />
com um misto de ternura e dor indescritíveis. Recordava-lhe os sacrifícios<br />
domésticos e o heroismo maternal, que o mundo não conhecera. Lembrava<br />
suas cartas afáveis e consoladoras, ao tempo do internato. Ela, que conhecia<br />
as leviandades do pai e as dificuldades em que viviam, sempre notava que a<br />
genitora nunca tivera uma palavra de blasfêmia ou falsa virtude, em tôda a sua<br />
vida.<br />
Madalena — continuou D. Margarida, com a mesma emotividade —, se<br />
Deus te mandar uma pequenina, dá-lhe o nome de Alcione, em memória de<br />
minha mãe. Não sei por que mistério a sinto aqui ao nosso lado, esperando-me<br />
talvez no limiar do sepulcro. Desde ontem, sinto-me impressionada por deixarte<br />
sem recursos monetários que te garantam a tranqüilidade, até te reunires<br />
definitivamente a teu marido. À noite passada, muito refleti sôbre isso, porque<br />
nem mesmo as minhas velhas jóias puderam escapar no sorvedouro de nossas<br />
economias domésticas. Mas, agora, minha filha, ouço no intimo a voz de minha<br />
mãe, que me sugere deixar-te nosso velho crucifixo de madeira, confidente de<br />
nossas lágrimas.<br />
Apontou para o pequenino oratório e acentuou:<br />
— Guarda-o bem contigo, porque não haverá maior tesouro que o do<br />
coração unido ao Cristo.<br />
Madalena chorava discretamente. D. Margarida, porém, continuou falando,<br />
mas, agora, parecia responder a interpelações de uma sombra. Debalde, a filha<br />
tentou desviar-lhe a atenção para outro assunto. Seus olhos, imensamente<br />
lúcidos, davam a impressão de contemplar outros horizontes, muito além das<br />
quatro paredes do quarto lúgubre. Madalena alarmou-se, mas procurou<br />
manter-se calma, sem chamar os que repousavam de longa vigília. Todavia, de<br />
manhã despertou as criadas e chamou D. Inácio para comunicar o<br />
agravamento da situação. D. Margarida, após a última conversação, caíra em<br />
coma. Raiara a manhã em dolorosas perspectivas. Enquanto Antero segurava<br />
as mãos da agonizante, D. Inácio buscou um sacerdote que lhe ministrou os<br />
últimos sacramentos. O professor de Blois assistiu ao traspasse, em silêncio,<br />
procurando confortar a cada qual.<br />
À tarde, sem mais palavra, D. Margarida entregara a alma a Deus,<br />
perfeitamente tranqüila. A espôsa de Cirilo não saberia definir a própria dor,<br />
mas, amparada na fé, amortalhou o cadáver entre flores e orações tão doridas<br />
quão fervorosas.<br />
No dia seguinte, Jaques acompanhou o funeral e, após as cerimônias<br />
lutuosas, insistiu com Madalena para que o acompanhasse a Blois, de modo a<br />
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