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Nossa Revista do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> N°<strong>40</strong> - Ano 2011 | 1º trimestre - R$8,00<br />
GOVERNADOR<br />
GERALDO ALCKMIN<br />
FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />
DA AMÉRICA LATINA<br />
CONSELHO CURADOR<br />
PRESIDENTE<br />
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />
SECRETÁRIO DA CULTURA<br />
SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />
REITOR DA USP<br />
JOÃO GRANDINO RODAS<br />
REITOR DA UNICAMP<br />
FERNANDO FERREIRA COSTA<br />
REITOR DA UNESP<br />
HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />
PRESIDENTE DA FAPESP<br />
CELSO LAFER<br />
JOSÉ VICENTE<br />
JORGE CALDEIRA<br />
DIRETORIA EXECUTIVA<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
FERNANDO LEÇA<br />
DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />
DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />
ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />
DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />
FERNANDO CALVOZO<br />
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />
SÉRGIO JACOMINI<br />
CHEFE DE GABINETE<br />
JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
HUBERT ALQUÉRES<br />
DIRETOR INDUSTRIAL<br />
TEIJI TOMIOKA<br />
DIRETOR FINANCEIRO<br />
FLÁVIO CAPELLO<br />
DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS<br />
LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />
REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />
DIRETOR<br />
FERNANDO LEÇA<br />
EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE<br />
LEONOR AMARANTE<br />
COLABORADORA DE EDIÇÃO<br />
ANA CANDIDA VESPUCCI<br />
ASSISTENTE DE REDAÇÃO<br />
MÁRCIA FERRAZ<br />
TRADUÇÃO<br />
CLAUDIA SCHILLING<br />
PRODUÇÃO<br />
HENRIQUE DE ARAUJO<br />
DIAGRAMAÇÃO E ARTE<br />
EVERTON SANTANA<br />
PAULO JAMES WOODWARD<br />
REVISÃO - ESTAGIÁRIO<br />
ADRIANO TAKESHI MIYASATO<br />
EDITORIAL 04<br />
Fernando Leça<br />
ECONOMIA 06<br />
Claudia Forte<br />
DESCOBERTA 10<br />
Graciela Silvestri<br />
DROGAS 15<br />
Vivian Urquidi<br />
PATRIMÔNIO 18<br />
Roberto Duailibi<br />
CULTURA 22<br />
Andrés Hernández<br />
INTERVENÇÃO 27<br />
Leonor Amarante<br />
ARTE 28<br />
Leonor Amarante<br />
COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />
Adolpho José Melfi , Andrés Hernández, Carlos Guilherme Mota, Claudia Forte, Graciela<br />
Silvestri, Jacques Leenhardt, Kelly Laenia, Leo Zela<strong>da</strong>, Luis Fernando Ayerbe, Roberto<br />
Duailibi, Shozo Motoyama, Vivian Urquidi.<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano,<br />
Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo,<br />
Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano,<br />
Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />
NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />
Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />
Internet: http://www.memorial.sp.gov.br<br />
Email: publicacao@fmal.com.br.<br />
Os textos são de inteira responsabili<strong>da</strong>de dos autores, não refl etindo o pensamento <strong>da</strong> revista.<br />
É expressamente proibi<strong>da</strong> a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo <strong>da</strong> revista.<br />
CAPA - Obra L’attente à l’atelier (Vermeer et Picasso), 2009, de Herman Braun-Vega.<br />
Número <strong>40</strong><br />
ISSN 0103-6777<br />
PESQUISA 34<br />
Carlos Guilherme Mota<br />
REFLEXÃO 38<br />
Adolpho Melfi<br />
Shozo Motoyama<br />
OLHAR 44<br />
Irmãos Vargas<br />
INTEGRAÇÃO 52<br />
Kelly Laenia<br />
LITERATURA 55<br />
Jacques Leenhardt<br />
ANÁLISE 58<br />
Luis Fernando Ayerbe<br />
CURTAS 62<br />
Da Re<strong>da</strong>ção<br />
AGENDA 64<br />
Da Re<strong>da</strong>ção<br />
POESIA 66<br />
Leo Zela<strong>da</strong>
EDITORIAL Iniciando um novo ano e uma<br />
nova déca<strong>da</strong>, é gratificante constatar que<br />
o <strong>Memorial</strong> vem cumprindo e ampliando<br />
a missão integradora que lhe incumbe, tal<br />
como a preconizava seu principal formulador,<br />
o antropólogo Darcy Ribeiro. O<br />
ano de 2010 – <strong>da</strong> maiori<strong>da</strong>de – marcou<br />
de fato a consoli<strong>da</strong>ção de alguns projetos<br />
que nos são caros, como é exemplo<br />
d Cátedra Unesco/<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>, retomado agora já em sua sexta<br />
edição, avanços significativos no projeto<br />
<strong>da</strong> Biblioteca Virtual <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
já em plena ação, e um forte incremento<br />
na programação cultural e artística, nota<strong>da</strong>mente<br />
nas áreas <strong>da</strong> música, <strong>da</strong>nça, artes<br />
cênicas (cinema, teatro e circo), artes<br />
plásticas e outras, sendo de relevância os<br />
intercâmbios que se operam com outras<br />
regiões do Brasil e com países latinoamericanos.<br />
Ain<strong>da</strong> há pouco, recebemos<br />
aqui além do presidente <strong>da</strong> Colômbia,<br />
Juan Manuel Santos, boa parte do governo<br />
peruano, para a Expo Peru 2010.<br />
A ativi<strong>da</strong>de de editoração, também<br />
um fator importante de integração<br />
regional, tem tido um resultado estimulante,<br />
com novos títulos e temas que só<br />
favorecem o conhecimento recíproco,<br />
fator indispensável ao propósito <strong>da</strong> integração.<br />
A Revista Nossa <strong>América</strong> faz parte<br />
dessa estratégia e, portanto, teve melhora<strong>da</strong><br />
a sua periodici<strong>da</strong>de (agora trimestral),<br />
além de se diversificar e enriquecer<br />
continuamente o seu conteúdo.<br />
As transformações provoca<strong>da</strong>s<br />
nas socie<strong>da</strong>des latino-americanas pela<br />
oferta de crédito para as classes de baixo<br />
poder aquisitivo, cujo modelo foi<br />
tomado a partir de experiências do sudeste<br />
asiático – principalmente <strong>da</strong> Índia<br />
–, é o enfoque <strong>da</strong> professora Claudia<br />
Forte, representante do Programa <strong>da</strong>s<br />
Nações Uni<strong>da</strong>s para o Desenvolvimento,<br />
em seu artigo sobre o tema.<br />
Outra experiência bem-sucedi<strong>da</strong>,<br />
esta multidisciplinar e inédita: um grupo<br />
de cientistas desceu o rio Paraná,<br />
colhendo informações sobre os aspectos<br />
não apenas científicos, mas também<br />
<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> local ribeirinha, tudo relatado<br />
pela fotógrafa e pesquisadora argentina<br />
Graciela Silvestri.<br />
A questão do narcotráfico no México<br />
vem se agravando com o decorrer<br />
do tempo e a ausência de uma política<br />
efetiva. Ci<strong>da</strong>des inteiras têm sido abandona<strong>da</strong>s,<br />
a economia local prejudica<strong>da</strong>,<br />
e o país apontado por pesquisas como<br />
um dos mais violentos do mundo. Histórico<br />
e análise do problema que está<br />
afetando o mundo todo são <strong>da</strong> especialista<br />
Vivian Urquidi.<br />
Traço a traço, o publicitário Roberto<br />
Duailibi decodifica a arte do<br />
mestre catalão Serafin Marsal, que viveu<br />
em Buenos Aires, mas se notabilizou<br />
com a produção do tempo em<br />
que passou radicado em Assunção, no<br />
Paraguai. O articulista destaca a delica-
FOTOS: LEONOR AMARANTE<br />
deza e a técnica primorosa com que o<br />
artista criava as figuras de argila retratando<br />
o povo paraguaio.<br />
O Mali – Museu de Arte Contemporânea<br />
de Lima –, que abriga uma<br />
<strong>da</strong>s mais importantes coleções de artes<br />
clássica e moderna <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
é apresentado pelo curador cubano Andrés<br />
Hernández no contexto <strong>da</strong> atual<br />
influência <strong>da</strong> instituição no cenário latino-americano.<br />
Outro registro <strong>da</strong> arte<br />
latino-americana em Nossa <strong>América</strong> também<br />
vem do Peru: o artista contemporâneo<br />
Braun-Vega, que realiza intervenções<br />
em obras consagra<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>ndo-lhes<br />
um novo olhar, e cuja mostra esteve em<br />
cartaz na Galeria Marta Traba.<br />
Stanley Stein, professor emérito<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Princeton, analisa<br />
a influência <strong>da</strong> colonização europeia<br />
em seu livro Herança Colonial <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>. Ensaios de dependência econômica,<br />
com o qual temos o primeiro contato<br />
no Brasil por meio de uma resenha do<br />
professor Carlos Guilherme Motta.<br />
Na questão ambiental, destaque<br />
para as reflexões sobre as ativi<strong>da</strong>des<br />
mineradoras, suscita<strong>da</strong>s pelo acidente<br />
ocorrido no Chile. Os professores<br />
Adolpho José Melfi e Shozo Motoyama<br />
analisam a questão sob diferentes<br />
aspectos, do histórico ao sócio-econômico,<br />
tema que também já inspirou<br />
diretores de cinema, escritores, teatrólogos<br />
e fotógrafos.<br />
O ensaio fotográfico desta edição<br />
mostra como a lente dos famosos irmãos<br />
Vargas interage com a socie<strong>da</strong>de peruana<br />
de Arequipa no início do século XX,<br />
época em que a economia do país se alimentava<br />
<strong>da</strong> exploração de ouro e prata.<br />
Durante cinco dias o <strong>Memorial</strong> foi<br />
palco <strong>da</strong> Expo Peru, uma feira de negócios,<br />
cultura e reflexão que teve como objetivo<br />
estreitar as relações entre os dois países.<br />
Além dos aspectos econômicos ain<strong>da</strong><br />
ressaltou-se a rica gastronomia peruana,<br />
as artes plásticas, o artesanato, a mo<strong>da</strong> e<br />
a <strong>da</strong>nça contemporânea do país. Na sequência,<br />
uma oportuna homenagem de<br />
Jacques Leenhardt a Mario Vargas Llosa,<br />
o terceiro latino-americano agraciado com<br />
o Prêmio Nobel de Literatura, depois do<br />
mexicano Octavio Paz e do colombiano<br />
Gabriel García Márquez. Ain<strong>da</strong> mais<br />
oportuna porque o escritor está lançando<br />
ano que vem um novo livro no Brasil.<br />
Outra questão bastante atual e<br />
permanentemente em pauta, a dos imigrantes<br />
latino-americanos nos Estados<br />
Unidos, ganha uma reflexão do historiador<br />
argentino Luis Fernando Ayerbe,<br />
professor <strong>da</strong> Unicamp.<br />
Fecha esta edição a poesia de Leo<br />
Zela<strong>da</strong>, considerado um dos poetas peruanos<br />
malditos.<br />
Boa Leitura!<br />
Fernando Leça<br />
Presidente do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>
6<br />
ECONOMIA<br />
DO MICROCRÉDITO À<br />
MACROINCLUSÃO<br />
Quais são as vias possíveis?<br />
Claudia Forte<br />
Muito se tem discutido acerca <strong>da</strong>s microfinanças<br />
no país. A bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, desde<br />
a implantação do Comuni<strong>da</strong>de Solidária<br />
em 1995, os programas de inclusão social<br />
e econômica parecem ser pauta constante<br />
dos planos de governo. Uma boa parte <strong>da</strong>s<br />
discussões sobre microfinanças dá-se no universo do microcrédito,<br />
que muitas vezes tem em seu conceito uma concepção equivoca<strong>da</strong>.<br />
Há muito, um professor indiano, Muhamad Yunus, implementou<br />
na Índia o Banco dos Pobres – o Grameen Bank – e a experiência<br />
foi tão bem-sucedi<strong>da</strong> que, dentre outros feitos, culminou com o seu<br />
presidente, o então professor, vencendo o prêmio Nobel <strong>da</strong> Paz em<br />
2006. O sucesso desta experiência que soma mais de 3 milhões de<br />
clientes ativos, de uma esmagadora clientela feminina promovendo<br />
e incentivando o comportamento empreendedor, passou a ser
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
Muhammad Yunus,<br />
professor e banqueiro<br />
de Bangladesh, é<br />
o idealizador de<br />
experiência pioneira<br />
com microcrédito.<br />
replicado nos mais diferentes pontos do<br />
planeta, e, finalmente, podemos tecer algumas<br />
considerações sobre estes programas.<br />
A primeira delas é sobre seu ver<strong>da</strong>deiro<br />
impacto e sua capaci<strong>da</strong>de de<br />
promover a mu<strong>da</strong>nça social nas famílias<br />
atendi<strong>da</strong>s. Experiências observa<strong>da</strong>s in loco<br />
em to<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> revelam como a<br />
capaci<strong>da</strong>de distributiva de recursos, outorga<strong>da</strong><br />
pelo crédito, e a vontade de inovar<br />
e de incluir o outro, seu vizinho, amigo<br />
ou familiar, no processo de inclusão e desenvolvimento<br />
do negócio, mostram que<br />
além de autonomia o crédito gera liber<strong>da</strong>de<br />
e nas palavras de Amartya Sen, Prêmio<br />
Nobel de Economia, a liber<strong>da</strong>de de participar<br />
do intercâmbio econômico tem um<br />
papel básico na vi<strong>da</strong> social.<br />
Outra perspectiva importante<br />
para reflexão <strong>da</strong> eficácia dos programas<br />
de microcrédito é que eles precisam ser<br />
destinados a um público cuja pobreza é<br />
vista não apenas como um medidor de<br />
ren<strong>da</strong>, e sim como privação de sua capaci<strong>da</strong>de.<br />
Para sua eficácia, os programas<br />
de microcrédito precisam ser amparados<br />
7
por políticas públicas que busquem fomentar<br />
seu desenvolvimento em instituições<br />
do mercado financeiro de primeiro<br />
e segundo piso, trazendo capilari<strong>da</strong>de aos<br />
programas, já que estamos num país de<br />
dimensão continental e muitas vezes de<br />
vontade política atomiza<strong>da</strong>.<br />
Como uma última reflexão vale<br />
ressaltar a importância <strong>da</strong> figura do<br />
agente de crédito no processo de microcrédito.<br />
Os estudos sobre seu papel<br />
ain<strong>da</strong> são incipientes, mas as experiências<br />
mais exitosas mostram que sua intervenção,<br />
monitoramento e orientação<br />
são determinantes para o baixo índice<br />
de inadimplência dos programas, bem<br />
como na formalização e na alavancagem<br />
dos micronegócios para outros<br />
patamares sócio-econômicos. Aqui se<br />
O monitoramento dos agentes de<br />
crédito é determinante para o baixo<br />
índice de inadimplência.<br />
8<br />
descortina um universo enorme para<br />
vários atores profissionais – como<br />
administradores e economistas – mas<br />
precisamos desmitificar um conceito<br />
equivocado do microcrédito, aquele<br />
que nos remete ao sufixo “micro” que<br />
nos leva à interpretação pejorativa de<br />
que não há glamour nem autossustentabili<strong>da</strong>de<br />
no que é micro. O universo<br />
micro é a base <strong>da</strong> pirâmide, segundo<br />
Prahalad, conselheiro do governo indiano<br />
para o empreendedorismo, e é<br />
nele que estão as grandes forças que<br />
moverão este século. Programas de<br />
microcrédito procuram atingir um universo<br />
de bilhões de pessoas, que necessitam<br />
de dinheiro para seus negócios,<br />
mas também de orientação e apoio<br />
para se estruturarem e crescerem. Mais
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
que políticas públicas (e já avançamos<br />
significativamente neste setor: em 2003<br />
o Bacen publicou a lei N. 10.735, lei<br />
<strong>da</strong> exigibili<strong>da</strong>de, que obriga os bancos<br />
comerciais a recolherem até 2% de seu<br />
faturamento e destinar a operações de<br />
microcrédito, ou então serem sancionados<br />
e pagar multa), precisamos de<br />
vontade política e a capaci<strong>da</strong>de executora<br />
<strong>da</strong> força priva<strong>da</strong>. Um bom caminho<br />
é o claro papel que ca<strong>da</strong> um exerce<br />
neste quinhão de terras: o Estado induz<br />
e regula, e o mercado distribui e<br />
financia. Neste modelo parecem estar<br />
mais bem contempla<strong>da</strong>s as diferenças e<br />
peculiari<strong>da</strong>des que ca<strong>da</strong> região merece<br />
para que sejam realmente programas<br />
que incluam e não que somente assistam,<br />
de modo passivo. Um programa<br />
de microcrédito eficaz transforma pessoas<br />
em situação de privação em em-<br />
preendedores; saem <strong>da</strong> condição de<br />
passivi<strong>da</strong>de para serem agentes de sua<br />
condição de mu<strong>da</strong>nça. O microcrédito<br />
não é a panaceia para todos os males,<br />
mas em se tratando de Brasil poderíamos<br />
fazer melhor uso desta poderosa<br />
ferramenta de inclusão, e trazer <strong>40</strong> milhões<br />
de pessoas para uma vi<strong>da</strong> mais<br />
ci<strong>da</strong>dã, com CPF, conta bancária, um<br />
pouco de dinheiro e muitas perspectivas<br />
de um futuro melhor; assim caminhamos<br />
rumo ao êxodo do microcosmo<br />
para o macroplanetário, nas palavras de<br />
Edgar Morin, um dos principais pensadores<br />
contemporâneos.<br />
Claudia Forte é professora e pesquisadora na<br />
área de administração e relações internacionais,<br />
e assessora para Assuntos Interinstitucionais e<br />
Internacionais <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Mackenzie.<br />
9<br />
Um programa eficaz<br />
transforma pessoas em<br />
situação de privação, em<br />
empreendedores.
DESCOBERTA<br />
DESCIDA DO<br />
RIO PARANÁ<br />
Uma expedição repleta<br />
de contrastes<br />
Graciela Silvestri
Em março de 2010 coordenei<br />
uma expedição<br />
pelos rios Paraná<br />
e Paraguai, de Buenos<br />
Aires a Assunção. O<br />
objetivo inicial foi o de<br />
seguir as pega<strong>da</strong>s do primeiro cronista<br />
<strong>da</strong> bacia do rio <strong>da</strong> Prata, Ulrico Schmidl,<br />
embora logo tenhamos ampliado as referências<br />
às múltiplas crônicas <strong>da</strong>queles<br />
que fizeram, através dos séculos, a<br />
mesma viagem fluvial. A estas leituras<br />
foi acrescenta<strong>da</strong> a informação que os<br />
tripulantes foram apresentando, a partir<br />
de diversas disciplinas; por meio<br />
dessa acumulação de materiais podíamos<br />
verificar o contraste entre aqueles<br />
vívidos quadros do rio, quando o Paraná<br />
e seus afluentes constituíam a rota<br />
habitual dos habitantes <strong>da</strong> bacia, e a<br />
situação atual.<br />
Até a déca<strong>da</strong> de 1970, a viagem<br />
de barco era um trâmite cotidiano.<br />
Navegava-se em pequenas embarcações<br />
de uma margem à outra, antes que<br />
as grandes pontes e túneis subfluviais<br />
tornassem acessíveis outras formas<br />
de transporte; as ci<strong>da</strong>des e povoados<br />
<strong>da</strong> bacia eram unidos por barcos com<br />
ro<strong>da</strong>s que transportavam passageiros<br />
e carga. A presença <strong>da</strong> água foi um<br />
motivo fun<strong>da</strong>mental de muitas escolas<br />
pictóricas regionais; inspiração para a<br />
literatura, o cinema e a música. Atualmente,<br />
só os amantes dos veleiros sabem<br />
<strong>da</strong>s profundi<strong>da</strong>des do rio, <strong>da</strong>s cores<br />
<strong>da</strong> água e dos camalotes; e só aqueles<br />
que, desamparados, vivem nas margens<br />
inundáveis, estimam mais uma pequena<br />
canoa que uma casa. Nós, habitantes<br />
metropolitanos, só percebemos o rio<br />
como pano de fundo do passeio matinal<br />
pela Aveni<strong>da</strong> Costanera. Entretanto,<br />
a diminuição do uso social não<br />
oculta que o sistema hídrico está sendo<br />
transformado radicalmente, alterando<br />
a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>queles que dele dependiam –<br />
por seus ofícios, por sua origem, por<br />
sua cultura. As transformações podem<br />
ser visíveis – como na área do Tigre,<br />
onde a frágil formação do delta é ameaça<strong>da</strong><br />
pela construção de torres e con-<br />
11<br />
Página ao lado,<br />
Atardecer en el barco,<br />
foto de Facundo<br />
de Zuviria. Acima<br />
Detenidos por el rio,<br />
de Zuviria.
domínios fechados –, ou passam despercebi<strong>da</strong>s<br />
na vi<strong>da</strong> cotidiana – como o<br />
impacto do uso não planejado <strong>da</strong>s reservas<br />
do aquífero guarani. Há poucos<br />
meses atrás, foi assinado na Argentina<br />
um acordo interprovincial para iniciar<br />
as tarefas <strong>da</strong> hidrovia, uma megaobra<br />
de engenharia que envolve os países <strong>da</strong><br />
bacia, sem maiores debates.<br />
No limiar de tão gigantescas transformações,<br />
cabe se perguntar quais foram<br />
os resultados <strong>da</strong> nossa viagem de um<br />
mês no Crucero Paraguay; que novas interrogações<br />
a expedição suscitaria, além<br />
<strong>da</strong> informação obti<strong>da</strong>. Apostávamos,<br />
por um lado, que a viagem, amplamente<br />
coberta pela mídia, aberta a contatos<br />
locais em to<strong>da</strong>s as esferas e a projetos<br />
posteriores conjuntos, colocaria em foco<br />
as características comuns <strong>da</strong> região que<br />
agora estava desmembra<strong>da</strong> por fronteiras<br />
nacionais, provinciais e urbanas – devolvendo<br />
a dimensão social e comunicativa<br />
que uma vez a região possuíra. O debate<br />
público sobre o destino <strong>da</strong> bacia não<br />
pode ser realizado prestando-se atenção<br />
apenas no umbigo de ca<strong>da</strong> um.<br />
Para além <strong>da</strong> divulgação, a proposta<br />
se baseava na importância <strong>da</strong> experiência,<br />
impossível de ser substituí<strong>da</strong><br />
pelos múltiplos papers acadêmicos, difícil<br />
12<br />
Silos em San Pedro,<br />
aquarela de<br />
Felix Rodriguez.<br />
de ser transmiti<strong>da</strong> pelas representações<br />
plásticas ou literárias. Era central que a<br />
viagem fosse feita por barco para perceber,<br />
no lento movimento fluvial, a<br />
integrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> região; esta experiência<br />
não podia ser substituí<strong>da</strong> pelas viagens<br />
terrestres ou aéreas às quais estávamos<br />
habituados. No entanto, não imaginamos<br />
até que ponto seriam altera<strong>da</strong>s as<br />
imagens pré-forma<strong>da</strong>s quando estivéssemos<br />
imersos no espaço móvel do rio.<br />
As questões que o Paraná evoca<br />
foram encarna<strong>da</strong>s em figuras cuja metamorfose<br />
ocorria diante dos nossos<br />
olhos – concedendo outra densi<strong>da</strong>de a<br />
cartografias, estatísticas e hipóteses. Retorno<br />
à questão <strong>da</strong>s transformações tecnológicas<br />
e suas consequências, já que<br />
este (apesar de não ser o único) acabou<br />
sendo um tópico recorrente nas conversas<br />
<strong>da</strong> expedição. Contudo, em vez de<br />
estudá-lo através de argumentos lógicos<br />
que podem ser lidos na Internet, permitam-me<br />
que o apresente figurativamente<br />
através de duas paisagens em movimento:<br />
o do curso inferior do Paraná, trecho<br />
mais urbanizado, e o do curso médiolento,<br />
limoso, incerto.<br />
A paisagem do curso inferior<br />
amplia a margem direita com enormes<br />
instalações industriais e portuárias – as
tradicionais, origem <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des que<br />
tendem a se reunir em sua expansão, e<br />
os novos portos privados – onde chegam<br />
enormes navios contêiners, nome<br />
que revela que os portos não são mais<br />
os espaços francos que visitávamos aos<br />
domingos quando éramos crianças,<br />
mas estranhas ci<strong>da</strong>des de acesso limitado,<br />
com enormes caixas metálicas de<br />
cores brilhantes. A escala <strong>da</strong>s máquinas<br />
não pode ser aprecia<strong>da</strong> nas fotos: os<br />
barcos parecem maquetes no espaço<br />
neutro do rio; os silos, guin<strong>da</strong>stes, pontes<br />
e esteiras que levam os produtos<br />
ao barco só revelam sua imponência<br />
quando ela é vista <strong>da</strong> água.<br />
A vi<strong>da</strong> industriosa e o ritmo urbano<br />
distinguem esse trecho, em aberto<br />
contraste com as cenas do Paraná médio,<br />
que parece impermeável à civilização<br />
(como já tinham notado tantos<br />
viajantes no século XIX). A potência<br />
do Paraná engole tudo aquilo que não<br />
é cui<strong>da</strong>do com perseverança, o que dá<br />
a impressão de que estamos diante <strong>da</strong><br />
mesma paisagem vista por Schmidl.<br />
O rio, carregado com os sedimentos<br />
andinos trazidos pelos seus afluentes<br />
Bermejo e Pilcomayo, evoca a informe<br />
hybris que, segundo os textos clássicos,<br />
precedia quaisquer cosmos. Este barroso<br />
espaço altera a percepção do tempo:<br />
se um ritmo normal nos acompanhou<br />
no primeiro trecho, aqui, sem ci<strong>da</strong>des à<br />
vista – sem Internet nem celular –, nos<br />
regíamos pelo ciclo <strong>da</strong> natureza – os<br />
dias e as noites, as marés e as tormentas.<br />
Ambas as cenas contrastavam com<br />
a aprazível viagem pelo rio Paraguai, de<br />
águas limpas e margens cultiva<strong>da</strong>s. E as<br />
grandes obras humanas que desafiam a<br />
majestade natural também adquirem sua<br />
terribilità, quando se apresentam em uma<br />
dimensão que os homens não podem<br />
abranger. Os megaprojetos, tão desmedidos<br />
quanto a própria natureza que<br />
13<br />
Atardecer en la<br />
barranca, aquarela<br />
de Felix Rodriguez<br />
e Coco Bedoya.
Pescaria, foto de<br />
Andrés Louiseau.<br />
pretendem dominar, também provocam<br />
paixões desmesura<strong>da</strong>s: John Martin ilustrou<br />
o inferno do Paraíso perdido com<br />
imagens do túnel sob o Tâmisa.<br />
O conflito entre a construção humana<br />
e a legali<strong>da</strong>de natural – a ecologia<br />
e o progresso tecnológico –, tópico de<br />
apaixona<strong>da</strong>s discussões a bordo, revelou<br />
até que ponto a percepção – estética,<br />
embora não artística: conhecimento<br />
sensível – altera os princípios apreendidos.<br />
Aqueles que, como eu, apoiavam o<br />
progresso universal, não podiam evitar<br />
se deixar levar pela estranha felici<strong>da</strong>de<br />
dos entardeceres no meio do na<strong>da</strong> marrom,<br />
quando as máquinas se detinham<br />
e o céu mostrava suas cores: a profun<strong>da</strong><br />
feri<strong>da</strong> <strong>da</strong> beleza e de suas utópicas felici<strong>da</strong>des<br />
instalava-se no coração. Outros<br />
se perguntaram de que maneira a vi<strong>da</strong><br />
natural cobriria as necessi<strong>da</strong>des básicas<br />
sem alteração: a cruel<strong>da</strong>de do mundo<br />
não se deve apenas ao homem.<br />
Diante <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong>de de episódios<br />
que iam surgindo perante nós,<br />
refleti sobre as razões que nos leva-<br />
14<br />
vam a tal oscilação polar, e achei que<br />
não pouco tinha a ver com o fascínio<br />
perante aquilo que se desconhece: a<br />
natureza e a tecnologia, <strong>da</strong>s quais se<br />
descreve o funcionamento, e não sua<br />
enti<strong>da</strong>de. Assim, a discussão adquire,<br />
pela desmesura de ambas as posições,<br />
a cor masculina do adversário. Na experiência<br />
dessa viagem na qual permitimos<br />
que reinasse a percepção, não a<br />
lógica, mantive apenas uma convicção:<br />
a figura que responde a estas perguntas<br />
não se encontra nos eixos habituais<br />
disto ou <strong>da</strong>quilo.<br />
A experiência <strong>da</strong> pequena companhia<br />
navegante, às vezes sem outra<br />
comunicação com o mundo que aquela<br />
esporádica com os habitantes <strong>da</strong>s<br />
margens (os pescadores, os macacos,<br />
os pássaros, os mosquitos, os camalotes),<br />
ensinou-me que o fato de saber<br />
que todos estavam “no mesmo barco”<br />
– no mesmo mundo – permite escutar.<br />
O barco se transformou em um espaço<br />
que, sendo material e não ideal, foi diferente<br />
do cotidiano.<br />
As discussões foram resolvi<strong>da</strong>s<br />
com felici<strong>da</strong>de, e não por termos todos<br />
chegado a um acordo: a felici<strong>da</strong>de é o<br />
que todos perseguimos, sabendo que ela<br />
nunca será alcança<strong>da</strong>.<br />
Nota: a expedição multidisciplinar Paraná<br />
Ra ‘Anga (a figura do Paraná) partiu em<br />
março de 2010 de Buenos Aires. Foi financia<strong>da</strong><br />
pelos centros culturais <strong>da</strong> Espanha<br />
na Argentina e no Paraguai e pela Agência<br />
Española de Cooperación Internacional<br />
para el Desarrollo (Aecid) Está planeja<strong>da</strong><br />
uma exposição que, viajando de Assunção<br />
a Buenos Aires, dê conta dos temas e problemas<br />
debatidos e representados.<br />
Graciela Silvestri é arquiteta e doutora em<br />
História (Universi<strong>da</strong>d de Buenos Aires), professora<br />
titular de Teoria <strong>da</strong> Arquitetura (Universi<strong>da</strong>d<br />
Nacional de La Plata). Autora de<br />
diversos livros e artigos.<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
DROGAS<br />
O CONTINENTE SOB O<br />
NARCOTRÁFICO<br />
Polêmica produção boliviana<br />
no centro <strong>da</strong>s atenções<br />
Vivian Urquidi
O controle do cultivo<br />
<strong>da</strong> folha na agen<strong>da</strong><br />
do governo.<br />
Oúltimo Relatório Mundial<br />
sobre Drogas,<br />
lançado pela ONU<br />
em junho deste ano,<br />
aponta um crescimento<br />
de 44% <strong>da</strong>s<br />
plantações de coca na Bolívia, o que<br />
representa uma extensão superior a 30<br />
mil hectares, valor bem acima dos 12<br />
mil hectares permitidos pelas próprias<br />
leis bolivianas. O controle do cultivo <strong>da</strong><br />
folha entra na agen<strong>da</strong> do governo, porque<br />
o excedente ilegal de produção vai<br />
para o narcotráfico, e também porque,<br />
desde 2005, o governo é exercido pelo<br />
indígena e ex-camponês plantador <strong>da</strong><br />
folha de coca, Evo Morales, cujas bases<br />
16<br />
políticas são o amplo movimento indígena<br />
e principalmente o combativo sindicato<br />
dos produtores de coca.<br />
A defesa do cultivo <strong>da</strong> folha de<br />
coca, entretanto, não decorre apenas<br />
pelo fato de ser o sustento material<br />
dos cocaleiros. Nas últimas déca<strong>da</strong>s,<br />
a defesa <strong>da</strong> coca transformou-se em<br />
bandeira dos movimentos indígenas<br />
nacionais porque se trata de reafirmar<br />
um consumo cultural tradicional, amplamente<br />
generalizado entre os povos<br />
originários. Além disso, proteger<br />
a folha representa um ato de soberania<br />
nacional e contestação às políticas<br />
de controle intervencionistas norteamericanas<br />
na região. Lembremos que<br />
desde a organização sindical na déca<strong>da</strong><br />
de 80, os cocaleiros sob a liderança<br />
de Morales envolveram-se em diversas<br />
polêmicas contra os sucessivos governos<br />
sintonizados com as políticas repressivas<br />
norte-americanas na região,<br />
que abriram suas portas para efetivos<br />
militares norte-americanos no país.<br />
Recentemente, já no governo do Movimiento<br />
al Socialismo, a agência americana<br />
antidrogas (DEA) foi finalmente<br />
expulsa do país acusa<strong>da</strong> de trabalhar<br />
contra o processo de mu<strong>da</strong>nças introduzi<strong>da</strong>s<br />
pelo governo de Morales.<br />
Nesse contexto confrontam-se<br />
duas reali<strong>da</strong>des opostas, a do consumo<br />
tradicional <strong>da</strong> folha e de defesa de um<br />
projeto soberano de país, e a <strong>da</strong> expansão<br />
<strong>da</strong>s plantações <strong>da</strong> folha que, com<br />
um cultivo regional de quase 20%, converte<br />
o país no terceiro maior fornecedor<br />
de cocaína para o mundo – atrás <strong>da</strong><br />
Colômbia e do Peru.<br />
A origem <strong>da</strong> polêmica que subjaz<br />
esta situação, e que coloca o governo<br />
no centro <strong>da</strong> tensão entre o sindicato<br />
dos cocaleiros e as pressões internacionais<br />
por maior controle remonta a<br />
um estudo <strong>da</strong> DEA dos anos 80 concluindo<br />
que apenas 10% <strong>da</strong> produção<br />
<strong>da</strong> folha na Bolívia se destinariam ao FOTOS:<br />
REPRODUÇÃO
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
consumo tradicional. Os produtores <strong>da</strong><br />
folha, que contestam esses <strong>da</strong>dos, têm<br />
exigido não apenas estudos mais atualizados,<br />
como também participação na<br />
geração de novos <strong>da</strong>dos capazes de fun<strong>da</strong>mentar<br />
uma política de controle consequente<br />
com a reali<strong>da</strong>de local.<br />
A despeito <strong>da</strong> importância <strong>da</strong><br />
defesa de soberania nas decisões sobre<br />
a folha de coca e <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de preservação<br />
do seu valor simbólico, os <strong>da</strong>dos<br />
disponíveis indicam que o principal<br />
destino <strong>da</strong> produção é o mercado internacional<br />
de drogas ilícitas. Por outro<br />
lado, tem se constatado o aparecimento<br />
de cartéis internacionais de narcotráfico<br />
no país, o que exige do governo Morales<br />
a formulação de uma agen<strong>da</strong> política<br />
realista e urgente em relação à produção<br />
e tráfico de drogas. As estimativas do<br />
relatório <strong>da</strong> ONU indicam que os benefícios<br />
econômicos <strong>da</strong> plantação <strong>da</strong> folha<br />
correspondem a 2% do PIB do país ou<br />
o equivalente a 19% do PIB do setor<br />
agrícola nacional. Os <strong>da</strong>dos correspon-<br />
dentes à produção de cocaína são inexatos<br />
e diversos. Divergem de acordo com<br />
o tipo de estudos e as fontes utiliza<strong>da</strong>s.<br />
Entretanto, para um país cujas<br />
fontes de ren<strong>da</strong>s resultam essencialmente<br />
<strong>da</strong> exploração de recursos naturais,<br />
o peso de um negócio em expansão<br />
mundial, como o narcotráfico,<br />
pode dificultar ou inclusive inviabilizar<br />
as políticas de combate ao excedente <strong>da</strong><br />
produção de folha de coca. Nesse contexto,<br />
muito embora o governo Morales<br />
tenha se caracterizado por significativas<br />
operações de caça e apreensão <strong>da</strong> droga<br />
com os parcos recursos nacionais, o<br />
insucesso <strong>da</strong>s políticas internacionais<br />
de repressão à expansão do tráfico e ao<br />
consumo <strong>da</strong> droga tendem a neutralizar<br />
suas políticas internas de controle e<br />
a deixar o governo refém <strong>da</strong> lógica do<br />
mercado internacional.<br />
Vivian Urquidi é professora do programa de<br />
Pós-Graduação em Integração <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
17<br />
Duas reali<strong>da</strong>des<br />
opostas: o consumo<br />
tradicional e a<br />
expansão <strong>da</strong>s<br />
plantações.
18<br />
PATRIMÔNIO<br />
SERAFIN MARSAL<br />
UM MESTRE CATALÃO<br />
Roberto Duailibi<br />
Seria possível a um grande artista europeu, de<br />
aprimora<strong>da</strong> formação acadêmica, sobreviver<br />
numa pequena ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Sul no início<br />
do século passado? Seria possível renunciar<br />
às glórias dos salões e à convivência com outros<br />
grandes pintores, escultores, críticos e atores, e<br />
encontrar a realização em seu próprio trabalho, <strong>da</strong> maneira mais<br />
modesta e humilde? Foi isso que aconteceu com o escultor Serafin<br />
Marsal, um catalão nascido em 1861, que se formou, após<br />
seis anos de estudos, na Escola de Belas Artes de Barcelona.<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
Aos 36 anos, em busca de mais<br />
trabalho, mu<strong>da</strong>-se para Buenos Aires,<br />
onde já brilhavam, na escultura<br />
e na gravura de metais, vários artistas<br />
franceses, italianos e espanhóis. A<br />
capital argentina era então a grande<br />
meta, ci<strong>da</strong>de rica, que construía grandes<br />
aveni<strong>da</strong>s, edifícios gigantescos,<br />
monumentos, museus, e alimentava<br />
o mundo com sua carne e seu trigo.<br />
Marsal não seria apenas mais um<br />
artista na fervilhante Buenos Aires. Seu<br />
talento e capaci<strong>da</strong>de de criar esculturas<br />
emocionantes logo lhe garantem um<br />
honroso terceiro prêmio no Salão de<br />
Artes <strong>da</strong> Argentina, destacando-o por<br />
seu vigor figurativo e sua capaci<strong>da</strong>de de<br />
composições harmônicas e de forte impacto<br />
estético. Aos 39 anos, aceita um<br />
convite para ensinar desenho e escultura<br />
na escola de Santa Fé, ci<strong>da</strong>de onde<br />
se criava não apenas gado, mas também<br />
enormes fortunas. Santa Fé era próxima<br />
o suficiente de Buenos Aires para lhe assegurar<br />
o contato com a vi<strong>da</strong> europeia<br />
e o reconhecimento internacional. Durante<br />
sete anos, de 1900 a 1907, Serafin<br />
Marsal participou intensamente dos<br />
19<br />
Representações do<br />
povo paraguaio em<br />
figurinhas de 30cm.
Peça feita de<br />
argila com<br />
técnica e<br />
acabamento<br />
primorosos.<br />
planos urbanísticos, <strong>da</strong> produção escultórica<br />
e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> artística e educacional<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Criou um busto do educador<br />
Sarmento, até hoje na praça dedica<strong>da</strong> ao<br />
grande professor, e ain<strong>da</strong> de San Martín,<br />
Pasteur e Garibaldi; esta última uma estátua<br />
de mais de dois metros de altura,<br />
feita por encomen<strong>da</strong> <strong>da</strong> próspera socie<strong>da</strong>de<br />
italiana de Santa Fé. E continuava<br />
como professor naquela rica região<br />
austral, formando jovens artistas com o<br />
mesmo rigor clássico.<br />
Em 1907, então com 46 anos de<br />
i<strong>da</strong>de e no auge de seu reconhecimento<br />
artístico, Marsal vê sua esposa adoecer. O<br />
casal recebe a recomen<strong>da</strong>ção de mu<strong>da</strong>rse<br />
para Assunção, no Paraguai, em busca<br />
de ares mais puros. Marsal teria de começar<br />
tudo de novo, agora numa ci<strong>da</strong>de<br />
menor, mais afasta<strong>da</strong> e sem a intensa vi<strong>da</strong><br />
artística <strong>da</strong> Argentina. E, certamente,<br />
também sem as possibili<strong>da</strong>des de encomen<strong>da</strong>s<br />
que possibilitavam ao casal e aos<br />
seus filhos uma vi<strong>da</strong>, se não confortável,<br />
pelo menos sem sobressaltos.<br />
Em Assunção, Serafin Marsal<br />
foi logo admitido na Escola de<br />
Artes. Era um privilégio para a escola<br />
ter um mestre <strong>da</strong>quela categoria<br />
ensinando em suas<br />
salas. Um dos primeiros<br />
trabalhos<br />
de Marsal, realizado<br />
provavelmente<br />
sem custos, foi um<br />
presépio de cerâmica,<br />
com argila<br />
recolhi<strong>da</strong> do Rio<br />
Picolmayo, em que<br />
as figuras orientais<br />
eram substituí<strong>da</strong>s<br />
por pequenas representações<br />
de gente do<br />
povo paraguaio, camponeses<br />
e pessoas modestas<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, vendedores<br />
de legumes, frutas e do<br />
famoso pão de quei-<br />
20<br />
jo paraguaio, a “chipa”. Curiosamente,<br />
até hoje não se conhecem as figuras<br />
centrais do presépio, assim como não<br />
se conhece nenhuma imagem de santo<br />
feita por Marsal.<br />
As figurinhas paraguaias de Marsal<br />
encantavam de imediato quem as<br />
via. Pequenas, de no máximo 30 cm de<br />
altura, tinham um acabamento refinadíssimo.<br />
Representavam pessoas pobres,<br />
mas to<strong>da</strong>s bem vesti<strong>da</strong>s em seus<br />
tecidos modestos, sempre com limpeza<br />
e digni<strong>da</strong>de. Até mesmo uma pequena<br />
figura de uma mãe limpando seu bebê<br />
era apresenta<strong>da</strong> com o maior encanto.<br />
E Marsal não intitulava suas pequenas<br />
esculturas em espanhol, mas em guarani,<br />
a língua do povo.<br />
A vi<strong>da</strong> em Assunção, no entanto,<br />
mostrava-se mais difícil. Encomen<strong>da</strong>s<br />
eram raras, e Marsal teve de<br />
tomar iniciativas por conta própria.<br />
Um dos amigos que fez por lá foi o<br />
general Artigas, isolado numa casa<br />
modesta depois de uma vi<strong>da</strong> de revoluções<br />
e intrigas políticas no Uruguai;<br />
apesar de tudo, o militar continuava<br />
sendo visto como herói em sua pátria,<br />
de onde vieram correligionários para<br />
homenageá-lo e construir uma escola<br />
com seu nome, a ser manti<strong>da</strong> pelo governo<br />
de Montevidéu.<br />
A Marsal foi encomen<strong>da</strong>do o busto<br />
de seu amigo. Na comitiva que visitou<br />
Assunção encontrava-se o poeta Zorilla<br />
de San Martín, que também ficou amigo<br />
do já maduro escultor, e prometeu a ele<br />
uma exposição <strong>da</strong>s pequenas estatuetas,<br />
nunca realiza<strong>da</strong>. Dominando a técnica,<br />
Marsal fez de ca<strong>da</strong> figura um molde, de<br />
onde extraía a peça fun<strong>da</strong>mental; mas o<br />
sistema não era de múltiplos, o acabamento<br />
de ca<strong>da</strong> peça era feito à mão, e<br />
uma era diferente <strong>da</strong> outra. Porém, o material<br />
– a argila do Rio Picolmayo – com o<br />
tempo mostrou-se excessivamente frágil.<br />
Marsal faleceu em 1954, aos 93<br />
anos de i<strong>da</strong>de. Em notas autobiográfi-<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
cas, Marsal comenta: “Hace ya unos 18<br />
años que me dedico a hacer figuritas en barro<br />
cocido. Calculo que han salido de mi casa<br />
unas cien figuritas por mes para ser vendi<strong>da</strong>s<br />
en Norteamérica, en Centro y Su<strong>da</strong>mérica<br />
aproxima<strong>da</strong>mente cincuenta mil; en Europa<br />
cuatro o cinco mil; en Japón poco más de mil y<br />
muchas otras que habrán ido a otros lugares<br />
cuyo destino ignoro”.<br />
A vi<strong>da</strong> de Marsal nos faz refletir<br />
sobre dois aspectos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de artística:<br />
o meio onde as obras são realiza<strong>da</strong>s<br />
e o material utilizado. Se Marsal vivesse<br />
na Europa ou permanecesse em Buenos<br />
Aires, certamente seria hoje um<br />
artista consagrado; se em vez de argila<br />
tivesse criado suas estatuetas de louça<br />
ou porcelana, e não de barro cozido,<br />
teria eternizado as peças e poderia distribuí-las<br />
em maior quanti<strong>da</strong>de como<br />
excepcionais objetos de decoração.<br />
Sem pretender fazer um jogo de<br />
palavras, eu diria que Marsal foi constrangido<br />
pela pobreza do meio e pelo<br />
meio utilizado.<br />
Ain<strong>da</strong> há a possibili<strong>da</strong>de de<br />
resgatar um trabalho tão importante<br />
quanto o desse artista, que o tempo<br />
fez, de certa forma, esquecer. Ain<strong>da</strong> é<br />
possível escolher as <strong>40</strong> principais estatuetas,<br />
reproduzi-las com técnicas<br />
modernas, nas fábricas de louça e porcelana<br />
do Brasil, <strong>da</strong> Espanha, <strong>da</strong> Inglaterra,<br />
<strong>da</strong> Alemanha ou <strong>da</strong> Suécia, e<br />
criar réplicas <strong>da</strong>s suas pequenas obras.<br />
Seria uma homenagem a um grande<br />
artista, um registro fiel de como eram<br />
as pessoas em Assunção nos primeiros<br />
anos de 1900, e um prazer enorme<br />
para quem as adquirisse.<br />
Roberto Duailibi é publicitário.<br />
Marsal<br />
intitulava suas<br />
esculturas em<br />
guarani, a<br />
língua do povo.<br />
21
CULTURA<br />
MUSEU DE ARTE<br />
DE LIMA<br />
Do período inca à contemporanei<strong>da</strong>de,<br />
a coleção merece ser vista<br />
Andrés Hernández
FOTO: DIVULGAÇÃO
Na costa oeste latinoamericanalocalizamos<br />
museus de importância<br />
relevante na<br />
produção cultural do<br />
momento, e entre eles<br />
figura o Museu de Arte de Lima (Mali).<br />
O contato do autor com o Mali ocorreu<br />
através <strong>da</strong> curadora <strong>da</strong> instituição,<br />
Tatiana Cuevas, que junto com Gabriela<br />
Rangel encarregou-se <strong>da</strong> curadoria <strong>da</strong><br />
exposição Gordon Matta-Clark: Deshacer<br />
el Espacio, apresenta<strong>da</strong> no Chile e<br />
no Brasil, culminando na sede do Mali,<br />
recentemente restaura<strong>da</strong>.<br />
O Mali está localizado em um<br />
antigo edifício, construído em 1872<br />
para servir de sede <strong>da</strong> primeira grande<br />
exposição pública no Peru, por ocasião<br />
dos cinquenta anos de independência<br />
do país. Está situado dentro do<br />
Acima, Bodegón, 1945 - 1950<br />
de Ricardo Grau. À direita, a<br />
serigrafia Cojudos, 1980, de<br />
E.P.S. Huayco.<br />
24<br />
Parque <strong>da</strong> Exposição, entorno também<br />
concebido naquele momento de<br />
acordo com o modelo <strong>da</strong>s exposições<br />
universais europeias.<br />
O edifício desempenhou diversas<br />
funções: durante a guerra do Pacífico<br />
(1880-1883) foi hospital de sangue<br />
e depois quartel chileno; no início do<br />
século XX foi sede do Museu Nacional<br />
de História e de várias instâncias<br />
governamentais, incluindo a Prefeitura<br />
de Lima. Em 1954 a Prefeitura cedeu o<br />
prédio em como<strong>da</strong>to para o Patronato<br />
<strong>da</strong>s Artes, para servir como Museu<br />
de Arte. Atualmente alberga um acervo<br />
de mais de onze mil obras de arte.<br />
Destaca-se nessa coleção a produção<br />
peruana, considera<strong>da</strong> a maior e mais<br />
completa. Completa, porque no acervo<br />
do Mali encontram-se obras de todos<br />
os momentos históricos e culturais do<br />
FOTO: DIVULGAÇÃO
FOTO: DIVULGAÇÃO<br />
Peru, possibilitando ao público visitante,<br />
a pesquisadores e a estu<strong>da</strong>ntes, o<br />
contato com essa produção, reforçado<br />
pelo importante papel desempenhado<br />
pelo setor educativo do museu. A<br />
conservação e preservação <strong>da</strong> coleção<br />
como principal patrimônio do museu,<br />
assim como a responsabili<strong>da</strong>de social<br />
de preservar a história do país, constituem<br />
premissas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> direção<br />
do museu.<br />
O Mali foi fun<strong>da</strong>do em junho de<br />
1954, quando um grupo de intelectuais<br />
e empresários uniram forças e recursos<br />
e criaram o Patronato <strong>da</strong>s Artes, com<br />
o objetivo central de <strong>da</strong>r origem a um<br />
museu que pudesse colecionar, estu<strong>da</strong>r,<br />
pesquisar e divulgar a produção<br />
artística nacional, e também colocar o<br />
Peru dentro do circuito e do contexto<br />
internacionais <strong>da</strong>s artes. Possui obras<br />
representativas de todos os períodos e<br />
momentos históricos do país, que podem<br />
ser mostra<strong>da</strong>s e conheci<strong>da</strong>s e que,<br />
ao mesmo tempo, dialogam com a produção<br />
internacional de ca<strong>da</strong> período,<br />
estabelecendo nexos com o impacto<br />
desses estilos, movimentos e correntes<br />
artísticas no Peru. O museu apresenta<br />
a produção nacional a partir dessas influências<br />
e contatos dentro e fora do<br />
país, e representa sobretudo a relevância<br />
<strong>da</strong> produção dos peruanos.<br />
A partir de sua fun<strong>da</strong>ção, o Mali<br />
desempenhou um papel central na difusão<br />
<strong>da</strong> arte peruana moderna e contemporânea.<br />
No entanto, só nos anos<br />
90 começou a desenvolver uma agen<strong>da</strong><br />
25<br />
A pintura ganha<br />
destaque no acervo, com<br />
obras do modernismo à<br />
contemporanei<strong>da</strong>de.
Puka Wamani, 1968,<br />
do artista peruano<br />
Fernando de Szyslo.<br />
orienta<strong>da</strong> à apresentação de mostras<br />
itinerantes, que fomentaram a abertura<br />
do cenário peruano à arte contemporânea<br />
internacional.<br />
Como parte do compromisso<br />
de divulgar e renovar as aproximações<br />
que vieram com esse intercâmbio artístico,<br />
promoveram-se diversas revisões<br />
do acervo do museu, tendo sido convi<strong>da</strong>dos<br />
curadores locais como Gustavo<br />
Buntinx, Rodrigo Quijano, Jorge Villacorta<br />
e Augusto del Valle.<br />
Para promover redes de intercâmbio<br />
não só em nível intercontinental,<br />
mas também dentro <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>, o Mali iniciou uma série de<br />
projetos com instituições <strong>da</strong> região. O<br />
primeiro desses projetos foi a exposição<br />
Gordon Matta-Clark: Deshacer el<br />
espacio (2009-2010), desenvolvi<strong>da</strong> em<br />
colaboração com o Museo Nacional de<br />
Bellas Artes de Chile, o Museu de Arte<br />
Moderna de São Paulo e o Paço Imperial<br />
do Rio de Janeiro.<br />
O Mali tem criado parcerias com<br />
os mais importantes museus do mundo,<br />
como o Museum of Art, de Los<br />
Angeles (2008), a National Portrait<br />
Gallery, de Londres (2009) e a Abadía<br />
de Santo Domingo de Silos, e tem<br />
mantido colaboração com o Museo<br />
Nacional Centro de Arte Reina Sofía,<br />
de Madri (2009), MAM – Museu de<br />
Arte Moderna de São Paulo – e Museu<br />
de Belas Artes.<br />
Andrés I. M. Hernández é curador e produtor<br />
de projetos e exposições. Mestrando em Artes<br />
Visuais pela Facul<strong>da</strong>de Santa Marcelina.<br />
FOTOS: DIVULGAÇÃO
ACIMA, FOTO DE PABLO COSS / AO LADO, FOTO DE RAFAEL MARTINS<br />
INTERVENÇÃO<br />
PERFORMANCE AQUÁTICA<br />
NAUFRÁGIO ILUMINADO<br />
A Bahia de Todos os Santos, em<br />
Salvador, guar<strong>da</strong> em suas profundezas<br />
um rico sítio arqueológico, com carcaças<br />
de navios naufragados que <strong>da</strong>tam desde a<br />
época <strong>da</strong> colonização até a déca<strong>da</strong> de 80.<br />
A arte se adianta à arqueologia e<br />
provoca os cientistas sobre o futuro desse<br />
material histórico, com a intervenção<br />
<strong>da</strong> artista e mergulhadora Lica Moniz. A<br />
performance ocorreu sobre o que sobrou<br />
do naufrágio do navio Maraldi, que integrava<br />
a frota inglesa no século XIX. Duas<br />
linhas contínuas, ilumina<strong>da</strong>s com dezenas<br />
de lâmpa<strong>da</strong>s, se uniam no horizonte a um<br />
potente holofote e chamavam a atenção<br />
<strong>da</strong> população que passava na orla <strong>da</strong> praia.<br />
Praticamente abandona<strong>da</strong> e exposta a saques<br />
contínuos, a embarcação inspirou o<br />
projeto que abriu o debate ressaltando o<br />
papel questionador <strong>da</strong> arte. L.A.<br />
Uma engenharia marinha foi aciona<strong>da</strong><br />
para desenhar o local com luzes.<br />
27
ARTE<br />
INTERVENÇÕES RADICAIS EM<br />
ÍCONES DA ARTE<br />
Braun-Vega<br />
e seu acervo imaginário<br />
Leonor Amarante<br />
FOTOs: ângela barbOur
FOTO: DIVULGAÇÃO<br />
La leçon... a la campagne<br />
(Rembrandt), 1984.<br />
31
A<br />
obra de Braun-Vega<br />
é construí<strong>da</strong> em torno<br />
de um sincretismo<br />
artístico, étnico e político.<br />
Suas telas ativam<br />
a memória do espectador<br />
ao se apropriar <strong>da</strong> iconografia dos<br />
grandes mestres <strong>da</strong> pintura ocidental e<br />
introduzir episódios contemporâneos.<br />
Alguns problemas <strong>da</strong> hegemonia<br />
estética, imposta historicamente pelo<br />
eurocentrismo, são discutidos sob viés<br />
de descolonização. Braun é peruano,<br />
mora na França há 30 anos e pertence<br />
à geração latino-americana que era considera<strong>da</strong><br />
periferia cultural dos anos 80.<br />
Ele trabalhou duro para furar o cerco<br />
do circuito de arte parisiense e chegar<br />
aonde chegou. Com ousadia e humor,<br />
optou por um pastiche cultural que funciona<br />
como sátira também à sacralização<br />
do modelo (europeu) de arte.<br />
A mostra organiza<strong>da</strong> pela galeria<br />
Marta Traba, do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>, reuniu pinturas e trabalhos gráficos<br />
que abrangem 20 anos de trabalho,<br />
como as telas cria<strong>da</strong>s a partir de obras-<br />
32<br />
primas de Rembrandt, Ingrès, Manet,<br />
Goya. Ao materializar essa simbiose, ele<br />
coloca em foco a questão <strong>da</strong> autonomia<br />
<strong>da</strong> obra e do uso deliberado de procedimentos<br />
artísticos heterogêneos.<br />
Quando Braun-Vega começa a<br />
desenvolver seu discurso pictórico as<br />
galerias de todo o mundo estavam inun<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
por telas neoexpressionistas, com<br />
forte influência alemã e italiana. Ao<br />
evitar pintura na mo<strong>da</strong> ele opta por outro<br />
atalho e pesquisa obras de mestres<br />
antigos, colocando em prática uma diversi<strong>da</strong>de<br />
temática com novas soluções<br />
plásticas. Os temas, na ver<strong>da</strong>de, sempre<br />
foram meros pretextos para chegar a<br />
uma observação realista e solucionar<br />
problemas plásticos.<br />
Entre dezenas de obras Lição de<br />
Anatomia, de Rembrandt, foi o destaque,<br />
envolvendo a foto de Che Guevara<br />
morto e a tela do pintor holandês.<br />
Essa foto, distribuí<strong>da</strong> pelas autori<strong>da</strong>des<br />
bolivianas logo após o assassinato de<br />
Guevara, exibia o líder revolucionário<br />
deitado na mesma posição em que o<br />
mendigo foi retratado por Rembrandt.<br />
Braun-Vega<br />
em seu ateliê,<br />
em Paris.<br />
FOTOS: ÂNGELA BARBOUR
FOTO: DIVULGAÇÃO<br />
Que Tal? Don Francisco a Bordeaux ou Le rêve du novillero (Goya, Velázquez, Manet, Monet, Botan), 2007.<br />
A tela de Braun-Vega, além de ganhar<br />
uma nova força política, nos leva a refletir<br />
sobre episódios violentos em todos<br />
os tempos <strong>da</strong> história. Tudo acontece<br />
como se essas imagens fizessem parte<br />
de um ideário para se conhecer melhor<br />
a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de.<br />
Quando perguntado se é um pintor<br />
engajado, Braun-Vega prefere posicionar-<br />
se como uma testemunha <strong>da</strong> história, um<br />
artista que realiza uma obra funcional,<br />
em que a pintura se sobrepõe à qualquer<br />
tema ou conteúdo. Para ele o que importa<br />
é dizer alguma coisa, desde que seja do<br />
ponto de vista social, antropológico, crítico<br />
e – por que não? – político.<br />
Leonor Amarante é curadora e crítica de arte.<br />
33
34<br />
pesquisa<br />
brasil<br />
no foco dos<br />
latino-americanistas<br />
stanley e Barbara stein<br />
militantes em princeton<br />
Carlos Guilherme Mota<br />
Princeton University<br />
FOTOs: reprOduçãO
FOTO: ARQUIVO CARLOS GUILHERME MOTA<br />
Escrita num contexto difícil<br />
de conflitos e ditaduras<br />
em Portugal, Espanha<br />
e <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, A Herança<br />
Colonial <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>. Ensaios de dependência<br />
econômica (Paz e Terra), de Stanley e <strong>da</strong><br />
saudosa Barbara Stein foi inicialmente publica<strong>da</strong><br />
em 1970 pela prestigiosa Oxford<br />
University Press. O Professor Emérito e<br />
a bibliotecária-chefe <strong>da</strong> Princeton University<br />
dedicaram este belo ensaio “àqueles<br />
ibéricos e íbero-americanos que tiveram a<br />
coragem de falar contra a irracionali<strong>da</strong>de<br />
e a justiça”. Um grande alento naqueles<br />
anos duros… O ensaio, hoje clássico, genericamente<br />
inspirado em ideias de Marx,<br />
abriu uma nova visão de conjunto, engaja<strong>da</strong>,<br />
de enorme valor para a compreensão<br />
<strong>da</strong>s linhas gerais <strong>da</strong> História <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>, e que faltava naquele contexto em<br />
que pouquíssimas análises sobre a região<br />
mal delineavam novas dimensões de nossas<br />
problemáticas heranças históricas.<br />
Com efeito, este livro surgiu num<br />
momento em que a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> se<br />
encontrava na encruzilha<strong>da</strong> de caminhos<br />
que, pensava-se, poderiam conduzir<br />
a modelos democráticos de recorte<br />
liberal ou a regimes socialistas.<br />
O que acabou predominando em<br />
vários países foram sangrentas ditaduras,<br />
bem financia<strong>da</strong>s e orquestra<strong>da</strong>s, sob o<br />
lema “Segurança e Desenvolvimento”. A<br />
morte de Che Guevara, a que<strong>da</strong> de Allende<br />
e, no Brasil, o golpe de 1968 dentro do<br />
regime ditatorial de 1964 e o esmagamento<br />
<strong>da</strong>s esquer<strong>da</strong>s – inclusive de democratas<br />
liberais – foram episódios dessa viragem<br />
histórica, política, econômica e cultural<br />
que abrangeu to<strong>da</strong> a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Algumas obras publica<strong>da</strong>s nessa<br />
época sinalizam a forte preocupação de<br />
intelectuais latino-americanos com o que<br />
35<br />
Especialista em história<br />
ibero-americana,<br />
Stanley J. Stein é autor<br />
de algumas obras<br />
marcantes para a<br />
compreensão <strong>da</strong> história<br />
do Brasil. Barbara<br />
Stein foi bibliotecáriachefe<br />
<strong>da</strong> Princeton.
ocorria. Citem-se a Formação Econômica <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> (1969), de Celso Furtado, a<br />
História Contemporânea <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, do<br />
argentino Tulio Halperín Donghi (1967)<br />
e Capitalismo Dependente e Classes Sociais na<br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> (1973), de Florestan Fernandes.<br />
Na esteira dessas obras, editaramse<br />
estudos como <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>: As Ci<strong>da</strong>des<br />
e as Ideias, do argentino José Luís Romero<br />
(1976), todos hoje considerados clássicos e<br />
referenciais, de leitura obrigatória.<br />
Especialista na história ibero-americana,<br />
Stanley J. Stein é autor de algumas<br />
obras marcantes para a compreensão <strong>da</strong><br />
história do Brasil. Tal é o caso de Vassouras,<br />
um município brasileiro do café, 1850-1900,<br />
publicado originalmente em 1957, depois<br />
republicado por Caio Prado Júnior na<br />
Editora Brasiliense com o título Grandeza e<br />
Decadência do Café, e novamente republicado<br />
em 1990 pela Editora Nova Fronteira,<br />
com o título original. É também autor de<br />
Origens e Evolução <strong>da</strong> Indústria Têxtil no Brasil<br />
(1850-1950), editado também em 1957<br />
pela Harvard University Press. Esteve no<br />
Brasil nos anos 19<strong>40</strong>.<br />
Foi em São Paulo, nos jardins <strong>da</strong><br />
Universi<strong>da</strong>de Mackenzie, que conheceu<br />
Barbara, que se tornaria sua mulher, além<br />
de notável bibliotecária universitária,<br />
mais tarde responsável pela importante<br />
Firestone Library, de Princeton. Não foram<br />
poucos os brazilianists que lhes devem<br />
auxílio e orientação, como Kenneth<br />
Maxwell, Warren Dean, Richard Graham<br />
e Stuart B. Schwartz.<br />
A obra do harvardiano Stein, entretanto,<br />
se destaca, pois seu estudo sobre<br />
Vassouras representou um modelo para<br />
numerosos estudos e monografias bem<br />
calibra<strong>da</strong>s que se seguiram (algumas sob<br />
sua orientação) de comuni<strong>da</strong>des urbanorurais,<br />
naquele período crucial de transição<br />
para o capitalismo industrial. Rigor metodológico<br />
e visão sistêmica se combinaram<br />
nessa obra de modo exemplar, mostrando<br />
as especifici<strong>da</strong>des sócio-econômicas e culturais<br />
latu sensu no Vale do Paraíba, ante-<br />
36<br />
sala <strong>da</strong> urbanização e <strong>da</strong> industrialização<br />
de São Paulo.<br />
Nessa perspectiva é que Stanley<br />
e Barbara foram buscar, já maduros, o<br />
sentido <strong>da</strong> História <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
tema deste pequeno livro sobre a herança<br />
colonial, preocupados com as persistências<br />
de estruturas sócio-econômicas<br />
coloniais e imperiais que sempre impediram<br />
o desenvolvimento. Desenvolvimento<br />
é uma <strong>da</strong>s palavras-chave do<br />
ensaio, embora, para os autores, o traço<br />
marcante seja a dependência econômica.<br />
As “heranças” é que definiriam nosso<br />
“subdesenvolvimento ou atraso em<br />
face <strong>da</strong>s nações do Atlântico Norte”.<br />
Sobrevoando a história destas <strong>América</strong>s<br />
latino-americanas, os autores começam<br />
por examinar a história europeia em<br />
suas conexões econômicas e políticas com<br />
este subcontinente, no período de 1550<br />
a 1700, analisando as relações entre socie<strong>da</strong>de<br />
e Estado. Em segui<strong>da</strong>, focalizam<br />
a questão <strong>da</strong> internacionalização e seus<br />
efeitos nas colônias ibéricas <strong>da</strong> <strong>América</strong>,<br />
abrangendo os séculos XVIII e XIX. Utilizam,<br />
mas também aprimoram, o conceito<br />
de neocolonialismo, em suas dimensões<br />
política e social, detectando inquietante<br />
harmonia entre os dois níveis. Apresentam<br />
ao leitor os movimentos de independência<br />
política e os conflitos que se traduziam em<br />
insurreições, levantes e tumultos, detendose,<br />
no caso do Brasil, no movimento abolicionista.<br />
Porém, fazem notar que “a estabili<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong>s instituições básicas <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> ao longo do século XIX não entra<br />
em contradição com a observação quanto<br />
ao caráter volátil, impredizível e disruptivo<br />
<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de política”. A atuali<strong>da</strong>de dos<br />
problemas diagnosticados e esmiuçados<br />
é chocante, ao constatarem que eventuais<br />
conflitos expressam a existência de “facções<br />
dentro <strong>da</strong> elite, uma excrescência <strong>da</strong><br />
herança colonial <strong>da</strong>s oligarquias regionais e<br />
interesses familiares.”<br />
A conclusão, após examinarem as<br />
principais correntes atuantes na <strong>América</strong>
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
<strong>Latina</strong> do século XX, leva-os a afirmar<br />
que “a área, como um bloco, ain<strong>da</strong> não<br />
superou as barreiras de estrutura social,<br />
econômica e política que a caracterizavam<br />
no final do século XIX. Na ver<strong>da</strong>de, podemos<br />
afirmar com segurança que a área,<br />
em sua globali<strong>da</strong>de, atravessa uma fase de<br />
neocolonialismo amadurecido” (p. 148).<br />
Fazem-nos pensar que, nesta segun<strong>da</strong><br />
déca<strong>da</strong> do século XXI, mu<strong>da</strong>ramse<br />
os termos, mas não os conteúdos dos<br />
conceitos com os quais operaram o casal<br />
Stein. Uma História, enfim, com poucas<br />
rupturas, pois na região podem ser aplicados<br />
à maravilha alguns conceitos de Marx,<br />
para quem por vezes “os estamentos pretéritos<br />
se combinam com as classes futuras”.<br />
Ou seja, amplos contingentes <strong>da</strong>s<br />
oligarquias centenárias se compõem com<br />
as novas classes, burguesas ou proletárias,<br />
no melhor modelo <strong>da</strong> Conciliação, ou <strong>da</strong><br />
“costura por cima”, cimentando os sucessivos<br />
blocos no poder. Não é a isso que<br />
Aníbal Quijano, o notável historiador-sociólogo<br />
peruano, denomina de “coloniali<strong>da</strong>de<br />
do poder”?<br />
Vale, pois, retomar as discussões<br />
sobre quem somos, e o que valemos<br />
enquanto povo, a partir de um clássico<br />
como é este pequeno, denso e preocupante<br />
ensaio.<br />
Carlos Guilherme Mota é professor de História<br />
<strong>da</strong> Cultura na Facul<strong>da</strong>de de Arquitetura e Urbanismo<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Mackenzie e autor de<br />
História e Contra-História.<br />
37<br />
Os autores<br />
começaram<br />
por examinar<br />
a história<br />
europeia.
REFLEXÃO<br />
MINAS<br />
ALTO RISCO<br />
Acidente no Chile<br />
provoca debates<br />
Adolpho José Melfi<br />
Shozo Motoyama<br />
Nos meados deste ano, a mineração recebeu<br />
um inesperado destaque em to<strong>da</strong> mídia<br />
do planeta. No dia cinco de agosto,<br />
no deserto de Atacama, Chile, um desmoronamento<br />
na mina de São José deixou<br />
33 trabalhadores soterrados. Por sorte,<br />
as son<strong>da</strong>gens de 17 dias indicaram que todos estavam<br />
vivos. Mas, como resgatá-los? Eles estavam em uma galeria<br />
altamente instável de 688 metros de profundi<strong>da</strong>de. Qualquer<br />
movimento em falso significaria a morte dos mineiros.<br />
Após 69 dias de cui<strong>da</strong>dosos preparativos, o resgate se<br />
realizou com sucesso. O mundo suspirou aliviado. A tragédia<br />
fora evita<strong>da</strong>. Porém, muitos perguntavam por que<br />
se continua a realizar uma ativi<strong>da</strong>de de alto risco como a<br />
mineração subterrânea – vale a pena?<br />
38
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
De fato, acidentes deste tipo<br />
sempre ocorreram e na<strong>da</strong> indica que<br />
irão acabar. Basta lembrar o caso <strong>da</strong>s<br />
minas de carvão <strong>da</strong> China, maior produtor<br />
do mundo desse recurso mineral<br />
e detentor do 1º lugar no ranking mundial<br />
de acidentes com vítimas fatais<br />
nessa ativi<strong>da</strong>de. Tais acontecimentos,<br />
que vão desde o desabamento do teto<br />
e/ou <strong>da</strong>s paredes até a explosão provoca<strong>da</strong><br />
pelo acúmulo de gases, passando<br />
pela asfixia por gases tóxicos, provocaram<br />
no ano de 2002 a morte de 6.995<br />
mineradores. As condições de segurança,<br />
apesar <strong>da</strong>s recentes melhorias, ain<strong>da</strong><br />
estão longe de atingir um alto grau de<br />
confiança, tanto que no ano de 2009<br />
mais de 2.600 mortes foram contabiliza<strong>da</strong>s,<br />
a maior parte delas por falta de<br />
condições adequa<strong>da</strong>s de trabalho ofereci<strong>da</strong>s<br />
aos mineiros.<br />
Situação igualmente preocupante<br />
pode ser encontra<strong>da</strong> nos garimpos<br />
de metais e pedras preciosas, sobretudo<br />
quando sua exploração necessita de<br />
abertura de poços profundos ou galerias.<br />
A procura de ouro, pedras preciosas e<br />
semipreciosas (diamante, rubi, esmeral<strong>da</strong>,<br />
turmalina, água-marinha e outras)<br />
tem levado à morte milhares de pessoas,<br />
principalmente na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e na<br />
África. Um exemplo que ilustra bem esse<br />
caso foi a exploração de ouro em Serra<br />
Pela<strong>da</strong>, no Pará, onde centenas de garimpeiros<br />
perderam a vi<strong>da</strong> numa ativi<strong>da</strong>de<br />
totalmente desordena<strong>da</strong> e pre<strong>da</strong>dora.<br />
A mineração, qualquer que seja o<br />
método empregado na extração dos minérios<br />
(na superfície <strong>da</strong> Terra ou em profundi<strong>da</strong>de),<br />
constitui uma ativi<strong>da</strong>de perigosa<br />
e de alto risco para o ser humano,<br />
além de provocar grandes impactos am-<br />
39<br />
Mineração a céu<br />
aberto: mina de cobre<br />
em Chiquicamata,<br />
no Chile.
ientais. Entretanto, o homem necessita<br />
ca<strong>da</strong> vez mais dos recursos minerais para<br />
seu desenvolvimento, conforto e lazer<br />
em um mundo altamente industrializado<br />
e de uso intensivo de tecnologia.<br />
Na busca de tais recursos, cuja<br />
extração pode ocorrer na superfície <strong>da</strong><br />
terra ou por meio <strong>da</strong> abertura de poços<br />
e galerias, o homem está exposto a desabamento,<br />
soterramento, asfixia por<br />
gases, explosões etc.<br />
Mesmo assim a procura por bens<br />
minerais é ca<strong>da</strong> vez mais intensa, o que<br />
leva o homem – na ânsia de atingir mais<br />
rapi<strong>da</strong>mente seus objetivos – a cometer<br />
imprudências ou negligenciar a segurança,<br />
na perspectiva de obter lucros maiores<br />
e mais rápidos, com a redução dos<br />
custos de produção. Com isso, o risco<br />
<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de de mineração se multiplica<br />
e explica a maior parte de acidentes<br />
ocorridos, principalmente em pequenas<br />
e médias mineradoras, onde a segurança<br />
de trabalho nem sempre é observa<strong>da</strong><br />
adequa<strong>da</strong>mente. É o que aconteceu<br />
com a mina de São José no Chile, menciona<strong>da</strong><br />
acima. Trata-se de um exemplo<br />
emblemático de um acidente que poderia<br />
ter sido evitado, se os preceitos de<br />
segurança fossem seguidos como man<strong>da</strong><br />
a legislação existente em muitos países,<br />
inclusive no Chile. A mina de São José<br />
não possuía uma rota de fuga, o que é<br />
obrigatório em to<strong>da</strong> a mineração subterrânea,<br />
para possibilitar a saí<strong>da</strong> dos<br />
mineradores em casos de desabamentos<br />
que obstruam a saí<strong>da</strong> principal.<br />
Apesar do acidente não ter, felizmente,<br />
provocado vítimas fatais, e nem<br />
apresentado a extensão de outras dezenas<br />
de desastres do mesmo tipo que<br />
ocorrem corriqueiramente no mundo, a<br />
repercussão midiática em nível planetário<br />
provocou uma comoção nunca antes vista<br />
na socie<strong>da</strong>de, e serviu para trazer a baila,<br />
uma vez mais, o debate sobre a segurança<br />
na ativi<strong>da</strong>de de mineração, levando<br />
autori<strong>da</strong>des governamentais e empresa-<br />
<strong>40</strong><br />
riais a declarar medi<strong>da</strong>s para aumentar a<br />
segurança de trabalho dos mineradores.<br />
A história <strong>da</strong> mineração se perde<br />
na bruma dos tempos confundindo-se<br />
com a <strong>da</strong> própria civilização. Ao que tudo<br />
indica ela antecedeu a agricultura, denotando<br />
a sua importância na vi<strong>da</strong> humana.<br />
Os primeiros materiais extraídos <strong>da</strong><br />
Terra foram substâncias não metálicas,<br />
como argila, sílex, calcedônia, calcário,<br />
quartzo e outros, usados na fabricação<br />
de utensílios domésticos, ferramentas e<br />
armas. Essas substâncias minerais eram<br />
extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> Terra por meio<br />
de técnicas rudimentares.<br />
Já nesta época o homem mostrava<br />
grande interesse pelos metais (principalmente<br />
ouro, prata e cobre), os quais,<br />
em seu estado nativo, eram extraídos<br />
dos leitos de rios e posteriormente por<br />
meio de poços e galerias escavados no<br />
interior <strong>da</strong> Terra.<br />
Juntamente com as pedras preciosas<br />
e semipreciosas (turquesa, malaquita,<br />
lapis lazuli, ametista, jaspe etc.)<br />
estes metais passaram a ser procurados,<br />
pois seu uso como joias era muito<br />
apreciado pelos povos antigos, como<br />
os primitivos egípcios, babilônios e assírios,<br />
que adornavam os corpos tanto<br />
dos vivos como dos mortos.<br />
A metalurgia, por meio <strong>da</strong> técnica<br />
<strong>da</strong> pirometalurgia, apareceu pela primeira<br />
vez no Oriente Médio por volta<br />
de 6.000 a.C., emprega<strong>da</strong> na fundição<br />
do cobre para a fabricação de ligas<br />
metálicas, responsável pelo primeiro<br />
grande impulso do que viria ser a indústria<br />
mineira. Muito contribuiu para<br />
o estudo de minerologia os trabalhos<br />
de Georgius Agrícola (1494-1555), médico,<br />
nascido na Saxônia, e profundo<br />
conhecedor dos minerais.<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> pode se considerar<br />
privilegia<strong>da</strong> em termos de recursos<br />
minerais, tendo em vista suas imensas<br />
reservas em petróleo, ouro, cobre, prata,<br />
ferro, alumínio, estanho. Este potencial
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
foi alvo <strong>da</strong> cobiça <strong>da</strong>s coroas espanhola e<br />
portuguesa, que ain<strong>da</strong> no início do século<br />
16 passaram a enviar missões exploratórias<br />
em sua busca. Os espanhóis conseguiram<br />
achá-las primeiro, ain<strong>da</strong> no século<br />
XVI, sobretudo nos Andes, em grande<br />
abundância. Se esses metais preciosos<br />
proporcionavam a riqueza e o poderio do<br />
império espanhol de Felipe II, a sua extração<br />
transformava a vi<strong>da</strong> de muitos índios<br />
andinos em ver<strong>da</strong>deiro inferno.<br />
Eles eram obrigados a trabalhar de<br />
forma compulsória 16 horas por dia nas<br />
minas, sob o olhar vigilante dos capatazes.<br />
Quantos deles morreram de modo<br />
trágico nas tão fala<strong>da</strong>s minas de Potosí<br />
(Bolívia) durante o período colonial? As<br />
estimativas variam grandemente: de alguns<br />
milhares a milhões. Hoje, parece ser<br />
mais crível que essa cifra esteja em torno<br />
de 15.000, no período compreendido entre<br />
1545 a 1625, época áurea <strong>da</strong> extração<br />
<strong>da</strong> prata na região. As mortes aconteciam<br />
não só por causa dos frequentes desabamentos<br />
e explosões, mas também pelas<br />
inúmeras rebeliões e sublevações sufoca<strong>da</strong>s<br />
a ferro e a fogo, sem nenhuma clemência.<br />
Na<strong>da</strong> havia de glamour na vi<strong>da</strong><br />
dos mineiros, só risco de vi<strong>da</strong> e as condições<br />
desumanas de trabalho. Porém, o<br />
fascínio do inusitado e do perplexo perdido<br />
na escuridão <strong>da</strong>s galerias subterrâneas<br />
continuava a sobreviver entre os leigos.<br />
Muitos de nossos países, como<br />
Brasil, Peru, Chile, Venezuela, Bolívia,<br />
México têm suas economias fortemente<br />
liga<strong>da</strong>s à extração mineral. No Chile<br />
temos a maior mina a céu aberto do<br />
mundo, a mina de cobre de Chuquicamata,<br />
a Venezuela é o 7º maior produtor<br />
de petróleo, e, entre as maiores reserva<br />
de ferro e de alumínio do planeta, estão<br />
as jazi<strong>da</strong>s do Brasil, que dentro em breve<br />
deverá se tornar, com o petróleo do<br />
pré-sal, um dos maiores produtores deste<br />
importante bem mineral. A Bolívia é famosa<br />
pelas suas minas de estanho, o Peru<br />
pelas reservas em prata e o México por<br />
suas reservas em ouro e prata. As pedras<br />
preciosas e semipreciosas também mostram<br />
importância econômica para países<br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, como, por exemplo,<br />
as esmeral<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Colômbia, diamante,<br />
topázio, turmalina, água marinha, ametista<br />
do Brasil, opala do México.<br />
O trabalho duro e de alto risco,<br />
os acidentes com mortes, a entra<strong>da</strong> no<br />
interior <strong>da</strong> Terra em busca de riquezas,<br />
as condições por vezes sub-humanas<br />
<strong>da</strong> rotina mineira, tudo isso desperta<br />
nas pessoas fascínio e pavor, provocado<br />
pelo desconhecido e pelo perigo. Esse<br />
fato tem levado dezenas de escritores e<br />
cineastas a dedicar livros e filmes sobre<br />
essa ativi<strong>da</strong>de, quase sempre explorando<br />
acidentes e desgraças, dramatizando as<br />
ocorrências que na maioria <strong>da</strong>s vezes refletem<br />
a dura reali<strong>da</strong>de vivi<strong>da</strong> no interior<br />
<strong>da</strong>s minas. Entretanto, não é apenas no<br />
imaginário <strong>da</strong> população que isso acontece.<br />
A própria história se torna repositório<br />
desse fascínio, pavor e necessi<strong>da</strong>de.<br />
Adolpho José Melfi é doutor em geociências e<br />
professor titular <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo;<br />
Shozo Motoyama é doutor em História Social e<br />
professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
41<br />
Trabalho duro<br />
e acidentes com<br />
mortes, é assim a<br />
entra<strong>da</strong> no interior<br />
<strong>da</strong> Terra em busca<br />
de riquezas.
MINERAÇÃO INSPIRA<br />
INDÚSTRIA CULTURAL<br />
LITERATURA<br />
Germinal, de Émile Zola<br />
A história tem lugar no norte <strong>da</strong> França,<br />
durante uma greve provoca<strong>da</strong> pela<br />
redução dos sálarios. Além dos aspectos<br />
técnicos <strong>da</strong>s extrações minerais e as condições<br />
de vi<strong>da</strong> nos agrupamentos dos<br />
mineiros, Zola também descreve o princípio<br />
<strong>da</strong> organização política e sindical <strong>da</strong><br />
classe operária, tais como as divisões já<br />
existentes entre marxistas e anarquistas.<br />
Metal do Diabo, de Augusto Céspedes<br />
História dos trabalhadores <strong>da</strong>s minas<br />
bolivianas, vale como espelho <strong>da</strong> servidão,<br />
do desespero e <strong>da</strong>s reivindicações<br />
de todos os homens espoliados. É fácil<br />
identificar nos seus mineiros a exploração<br />
do trabalho humano na <strong>América</strong>.<br />
O filme The Devil’s Miner não tem título<br />
em português e parte <strong>da</strong> arreca<strong>da</strong>ção<br />
<strong>da</strong> bilheteria, 1 milhão de euros, foi doa<strong>da</strong><br />
para as crianças de Potosí.<br />
Bom dia para os Defuntos,<br />
de Manuel Scorza<br />
Acontecimentos <strong>da</strong> luta do povo peruano,<br />
entre os anos de 1950 e 1962, em<br />
que os camponeses se organizaram para<br />
recuperar suas terras que foram rouba<strong>da</strong>s<br />
por latifundiários e por uma empresa<br />
norte-americana, a Cerro de Pasco<br />
Corporation, que estavam explorando<br />
as jazi<strong>da</strong>s ricas em minérios <strong>da</strong> região<br />
do altiplano do Peru.<br />
42<br />
FOTO: REPRODUÇÃO
FOTO: DIVULGAÇÃO<br />
FILMES<br />
O Tesouro de Sierra Madre<br />
Baseado na obra de B. Traven, é a história<br />
de Dobbs e Curtin, que se conheceram<br />
no México, onde fizeram juntos<br />
um trabalho temporário. Um velho minerador<br />
os convence a gastar o dinheiro<br />
comprando equipamentos para mineração,<br />
pois com sua experiência eles poderiam<br />
ganhar muito mais do que tinham.<br />
É um filme sobre a ganância e o que<br />
as pessoas fazem por dinheiro. Oscar<br />
de Melhor Direção, Ator Coadjuvante<br />
(Walter Huston) e Roteiro A<strong>da</strong>ptado.<br />
Billy Elliot<br />
Conta a história de um garoto (Jamie Bell)<br />
de onze anos que vive numa pequena ci<strong>da</strong>de<br />
inglesa, onde o principal meio de<br />
sustento são as minas de carvão.<br />
Diamante de Sangue<br />
Tendo como pano de fundo o caos e<br />
a guerra civil que dominou Serra Leoa,<br />
África, na déca<strong>da</strong> de 1990 conta a história<br />
de Danny Archer, um ex-mercenário do<br />
Zimbábue, ex-Rodésia, que contrabandeava<br />
os diamantes de sangue.<br />
Sub Terra<br />
Em 1897, em Lota, Chile, diante <strong>da</strong>s longas<br />
jorna<strong>da</strong>s, baixos salários, dívi<strong>da</strong>s na<br />
cantina <strong>da</strong> mina e péssimas condições de<br />
trabalho com frequentes mortes, os trabalhadores<br />
tentam estabelecer uma associação<br />
de mineiros, em uma <strong>da</strong>s maiores<br />
minas de carvão no mundo.<br />
43<br />
Cenas de<br />
O Tesouro de<br />
Sierra Madre,<br />
Billy Elliot e<br />
Diamante de<br />
Sangue.
OLHAR<br />
O expeRimentALismO dOs<br />
irmãos vargas<br />
Atores, poetas e <strong>da</strong>nçarinos<br />
animavam o famoso estúdio<br />
Dois dos mais notáveis fotógrafos latinoamericanos,<br />
Carlos e Miguel, fizeram de<br />
Arequipa um lugar especial para sua ousadia.<br />
Um conjunto de 75 fotos reuni<strong>da</strong>s na<br />
Pinacoteca do Estado deu a dimensão <strong>da</strong><br />
efervescência cultural <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de peruana<br />
dos anos 1920, no auge <strong>da</strong> extração do ouro. Suas mulheres<br />
vão além dos hábitos cotidianos e se misturam a atores, poetas,<br />
escritores, <strong>da</strong>nçarinos, que mais parecem viver na irreverente<br />
Berlin <strong>da</strong> mesma época. O estúdio <strong>da</strong> dupla foi referência dentro<br />
e fora do Peru, onde se organizavam debates, recitais e exposições<br />
transformando o local em balão de ensaio permanente.<br />
44
52<br />
integração<br />
Muito aLéM<br />
DO PISCO<br />
brasiL e Peru estreitaM intercâMbio<br />
<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> américa <strong>Latina</strong><br />
recebe expo Peru<br />
Kelly Laenia<br />
Durante quatro dias o <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> foi palco <strong>da</strong> Expo Peru, uma<br />
feira de negócios, cultura e reflexão. A<br />
economia peruana é uma <strong>da</strong>s que registram<br />
maior crescimento na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
atualmente. Este cenário positivo de<br />
2010, com crescimento de 8,4% registrado até agosto, foi apresentado<br />
pelo ministro Ferreyros na inauguração do evento.<br />
A Expo Peru trouxe estilistas peruanos como Sergio<br />
Davila e Meche Correa e a designer de joias Ilaria Peru<br />
para um ba<strong>da</strong>lado desfile de mo<strong>da</strong>. A maciez do Algodão<br />
Pima peruano e a fibra longa são matérias-primas reconheci<strong>da</strong>s<br />
internacionalmente e, por isso, são utiliza<strong>da</strong>s<br />
por marcas exclusivas. Além disso, a fibra <strong>da</strong> alpaca<br />
peruana é um cobiçado recurso aliado <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de e design.
FOTOS: DANI AGOSTINI<br />
Plateia lota<strong>da</strong> para assistir às<br />
exposições sobre a economia peruana;<br />
na feira de negócios, presença<br />
marcante <strong>da</strong> indústria têxtil.<br />
A Feira dividi<strong>da</strong> em vários segmentos<br />
atraiu não apenas a comuni<strong>da</strong>de<br />
peruana, mas também os admiradores<br />
<strong>da</strong> cultura <strong>da</strong>quele país. Foram expostas<br />
obras de seis mestres artesãos vencedores<br />
dos Prêmios Nacionais <strong>da</strong> Arte<br />
Popular Peruano, assim como tecidos<br />
feitos com técnicas ancestrais do Centro<br />
de Tecidos Tradicionais de Cusco.<br />
A comi<strong>da</strong> peruana, que ganha espaço<br />
em todo o mundo ficou por conta<br />
do restaurante La Mar, encarregado de<br />
coman<strong>da</strong>r o Festival Peruano de Gastronomia<br />
e Pisco. Os pratos tradicionais<br />
como ceviches, tiraditos, anticuchos e<br />
outras iguarias impressionaram os mais<br />
exigentes pala<strong>da</strong>res. E, uma degustação<br />
de pisco – a bebi<strong>da</strong> típica do Peru – foi<br />
53
servido para chefs de cozinha, gerente<br />
de hotéis e importadoras interessa<strong>da</strong>s<br />
em comercializar a bebi<strong>da</strong> no Brasil.<br />
O bom desempenho econômico<br />
do país é fruto do reaquecimento<br />
<strong>da</strong> deman<strong>da</strong> interna do Peru após um<br />
crescimento de 1% registrado no ano<br />
passado – número que contrasta o<br />
avanço de 9,8% observado em 2008.<br />
Essa recuperação permite esperar um<br />
crescimento médio de 8% até o final<br />
do ano. Para efeito de comparação, o<br />
avanço mundial em 2010 deve ficar em<br />
torno de 4,8%, segundo o FMI. Além<br />
<strong>da</strong> deman<strong>da</strong> interna, a recuperação <strong>da</strong><br />
economia peruana se deve ao investimento<br />
em política macroeconômica.<br />
54<br />
A parte cultural <strong>da</strong> Expo<br />
Peru contou com shows<br />
musicais (acima), <strong>da</strong>nça<br />
folclórica, além de exposições<br />
do artesanato típico de<br />
várias regiões do país.<br />
Foi graças à solidez alcança<strong>da</strong> em dez<br />
anos de investimentos que a crise econômica<br />
mundial desacelerou o país, mas<br />
não conseguiu colocá-lo em recessão.<br />
O amadurecimento econômico<br />
pode ser percebido especialmente<br />
no setor de Comércio Exterior. As<br />
exportações e importações demonstraram<br />
tendência de crescimento nos<br />
últimos meses. Nas ven<strong>da</strong>s para outros<br />
países, houve aumento de 293%<br />
entre 2000 e 2009, enquanto o crescimento<br />
<strong>da</strong>s importações foi de 193%.<br />
Kelly Laenia é gerente <strong>da</strong> Uni<strong>da</strong>de de Negócios<br />
de B2B e Serviços <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>mento Comunicação<br />
Corporativa.<br />
FOTOS: DANI AGOSTINI
FOTO: REPRODUÇÃO<br />
LITERATURA<br />
VARGAS LLOSA<br />
PRÊMIO NOBEL<br />
Jacques Leenhardt<br />
Quem ganhou o prêmio Nobel de Literatura,<br />
o polemista de centro direita ou o notável<br />
autor de tantos ensaios de crítica literária e<br />
romances? Com certeza os dois, já que nunca<br />
deve-se separar as atuações de um intelectual<br />
comprometido. Mas, além do papel político<br />
que Mario Vargas Llosa assume há vários anos, é preciso<br />
lembrar que este prêmio destaca uma obra dedica<strong>da</strong> à questão<br />
<strong>da</strong> violência dos tenentes do poder.<br />
Mario participou <strong>da</strong> emergência <strong>da</strong> literatura latino-americana<br />
nos anos sessenta e setenta com livros tão significativos<br />
como A Ci<strong>da</strong>de e os Cachorros (1962) e A Casa Verde (1966).<br />
55
Num estilo mais clássico que<br />
García Márquez, mas com jogos de<br />
temporali<strong>da</strong>des que abrem sobre o<br />
tema <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> representação<br />
dos fatos históricos, ele retrata um<br />
mundo desespera<strong>da</strong>mente violento.<br />
Como todo ver<strong>da</strong>deiro escritor, apesar<br />
<strong>da</strong>s desilusões, ele ain<strong>da</strong> acredita<br />
no poder de contradição que caracteriza<br />
a obra literária. Ela abre o olhar e<br />
a sensibili<strong>da</strong>de do leitor para mundos<br />
além do dia a dia tão limitado e frustrante,<br />
afirma.<br />
Com a publicação mais recente<br />
de A Festa do bode (2000), Mario nos<br />
precipita no mundo trágico <strong>da</strong> ditadura<br />
de Rafael Leôni<strong>da</strong>s Trujillo, que<br />
durou de 1939 a 1961 em Santo Domingo.<br />
A multiplicação dos pontos de<br />
vista sobre os abusos e as manipulações<br />
por parte do poder absoluto, dão<br />
conta <strong>da</strong>s dores e perturbações desencadea<strong>da</strong>s<br />
pelo processo ditatorial. Daí<br />
se entende o caráter quase mítico que<br />
reveste o poder nestas circunstâncias.<br />
A mistura de ficção e de fatos históricos<br />
permite ao autor <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong><br />
56<br />
complexi<strong>da</strong>de dos chamados “fatos<br />
históricos”, que na<strong>da</strong> são senão reconstruções<br />
partidárias, o que podemos<br />
também verificar no seu romance<br />
A guerra do fim do mundo (1981), em que<br />
ele põe em ficção o desenvolvimento<br />
<strong>da</strong> guerra implacável contra Antonio<br />
Conselheiro e seus seguidores em Canudos,<br />
outrora genialmente descrita<br />
por Euclides <strong>da</strong> Cunha.<br />
O último romance, O sonho do<br />
Celta, que sai agora em língua espanhola,<br />
está dedicado ao percurso do<br />
irlandês Roger Casement, exemplar<br />
mesmo nas suas próprias ambivalências.<br />
Em dois relatórios sem ameni<strong>da</strong>des,<br />
Casement mostra os excessos <strong>da</strong><br />
colonização belga no Congo, e a lógica<br />
comercial que a orienta. Por meio <strong>da</strong><br />
figura de um dos primeiros críticos do<br />
sistema colonial europeu, Vargas Llosa<br />
volta ao tema <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de do mal<br />
como característica do poder.<br />
Jacques Leenhardt é francês, professor, filósofo e<br />
crítico de arte.<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
TRAGÉDIA INDÍGENA<br />
EM NOVO ROMANCE DO ESCRITOR<br />
Para John Updike, um dos<br />
mais importantes escritores<br />
norte-americanos, Vargas<br />
Llosa não é apenas<br />
um grande romancista,<br />
mas “um dos melhores<br />
do mundo”. Seu novo livro El Sueño del<br />
Celta, que a editora Objetiva lança em<br />
meados de 2011, é mais um exemplo de<br />
sua obra nesse aspecto. Retoma o caso<br />
de um genocídio de índios no vilarejo de<br />
La Chorrera, na Amazônia, entre o Peru<br />
e a Colômbia, que sediava a central de<br />
operações <strong>da</strong> Peruvian Amazon Company,<br />
de extração de borracha, cujo capital<br />
era negociado na Bolsa de Londres.<br />
Llosa trabalhou quatro anos no<br />
novo livro, já publicado na Espanha, pela<br />
Alfaguara, com tiragem de 500 mil exemplares.<br />
Chegou ao tema casualmente,<br />
pesquisando outros assuntos, quando se<br />
deparou com uma menção a Roger Casement<br />
(1864-1916), cônsul geral <strong>da</strong> Inglaterra<br />
no Brasil, em princípios do século<br />
XX, convocado pelo governo inglês para<br />
investigar o caso. “Era um personagem<br />
Vilarejo de La Chorrera:<br />
cerca de 30 mil índios foram<br />
mortos, a tiros, por afogamento,<br />
de inanição e outras formas<br />
cruéis de sacrifício.<br />
pronto para um romance”, disse o escritor,<br />
que repassou a tempora<strong>da</strong> de investigações<br />
de Casement nessa remota região<br />
encrava<strong>da</strong> às margens do rio Putucuayo.<br />
A esta<strong>da</strong> do cônsul rendeu ao governo<br />
inglês, e ao romance de Llosa, várias cartas,<br />
diários e um dossiê de 136 páginas<br />
que foi enviado ao rei em 1912. Cerca de<br />
30 mil índios foram mortos, a tiros, por<br />
afogamento, de inanição e outras formas<br />
cruéis de sacrifício; e, se sobreviviam,<br />
eram mais uma vez torturados.<br />
A história que Llosa abor<strong>da</strong> em<br />
seu romance é duplamente trágica. Além<br />
do massacre dos índios, e <strong>da</strong> inutili<strong>da</strong>de<br />
<strong>da</strong> missão, já que não evitou que o genocídio<br />
continuasse, há também o drama<br />
pessoal de Casement. Logo após voltar à<br />
Inglaterra, ele se desligou do governo e<br />
passou a lutar pelos separatistas <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong>,<br />
onde nascera. Foi condenado à morte,<br />
em 1916, por traição à pátria, e também<br />
por sodomia – na época inadmissível –,<br />
suspeita que jamais se confirmou.<br />
Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci é jornalista <strong>da</strong> área cultural.<br />
57
58<br />
ANÁLISE<br />
ESTADOS UNIDOS<br />
&<br />
AMÉRICA LATINA<br />
Um caso antigo e complexo<br />
Luis Fernando Ayerbe<br />
Estudos recentes do Pew Hispanic Center<br />
apontam as eleições de novembro nos Estados<br />
Unidos como históricas para os hispânicos,<br />
destacando entre os exemplos a<br />
vitória de candi<strong>da</strong>tos Republicanos como Susana<br />
Martínez, no governo do Novo México,<br />
Brian Sandoval no Estado de Neva<strong>da</strong> e Marco Rubio, senador<br />
pela Flóri<strong>da</strong>, cujo nome ganhou destaque como expressão<br />
de uma liderança emergente altamente promissora. Para<br />
Damien Cave, do New York Times, Rubio desperta na sua<br />
comuni<strong>da</strong>de de origem e nos seus correligionários conservadores,<br />
especialmente do Tea Party, a esperança de que esteja<br />
em processo um fenômeno parecido com o de Barack Obama:<br />
“A direita finalmente tem um herói de ação: jovem, dinâmico,<br />
sério sobre as questões de governo”, escreveu o jornalista.
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
Num plano menos conjuntural,<br />
esse avanço hispânico estaria materializando<br />
no âmbito do poder político um<br />
processo de várias déca<strong>da</strong>s de latinoamericanização<br />
dos Estados Unidos.<br />
Como mostram projeções feitas pelo<br />
U.S. Census Bureau, a população dessa<br />
origem tende a ampliar-se de 49 milhões<br />
e 726 mil em 2010, para 75 milhões<br />
e 772 mil em 2025 e 132 milhões<br />
e 792 mil em 2050, contra 260 milhões<br />
e 507 mil, 282 milhões e 680 mil e 306<br />
milhões e 218 mil, respectivamente, <strong>da</strong><br />
população não hispânica.<br />
Esse fenômeno vem despertando<br />
importantes controvérsias em termos<br />
do seu impacto na definição <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de<br />
estadunidense. Na próxima seção,<br />
discutimos três autores representativos,<br />
por um lado dos receios <strong>da</strong>queles que vi-<br />
Capa do livro do<br />
jornalista mexicano Jorge<br />
Ramos, conceituado<br />
comentarista político<br />
dos Estados Unidos,<br />
considerado um dos vinte<br />
e cinco hispânicos mais<br />
influentes <strong>da</strong>quele país.<br />
sualizam na “invasão” do norte pelo sul<br />
uma ameaça de terceiromundização do<br />
Ocidente, atingindo especialmente Europa<br />
e os Estados Unidos, e por outro,<br />
do otimismo <strong>da</strong>queles que propõem uma<br />
agen<strong>da</strong> capaz de projetar novos atores<br />
que se tornaram parte inevitável e construtiva<br />
<strong>da</strong> nação americana.<br />
“Um dia milhões de homens<br />
abandonarão o hemisfério sul para irromper<br />
no hemisfério norte. E não o farão<br />
precisamente como amigos. Porque<br />
irromperão para conquistá-lo. E o conquistarão<br />
povoando-o com seus filhos.<br />
Será o ventre <strong>da</strong>s nossas mulheres o que<br />
nos <strong>da</strong>rá a vitória.” disse Huari Bumedián<br />
em 1974, em discurso na Assembleia<br />
Geral <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s.<br />
As palavras proferi<strong>da</strong>s por Bumedián,<br />
nesse momento presidente <strong>da</strong> Ar-<br />
59
gélia, são apresenta<strong>da</strong>s por Oriana Fallaci,<br />
jornalista e escritora italiana faleci<strong>da</strong> em<br />
2006, como exemplo de uma estratégia de<br />
expansionismo islâmico que já leva várias<br />
déca<strong>da</strong>s. Fallaci adquiriu notorie<strong>da</strong>de nos<br />
anos 1960 por seus artigos críticos <strong>da</strong> intervenção<br />
dos Estados Unidos no Vietnã,<br />
passando a adotar nos últimos anos <strong>da</strong><br />
sua vi<strong>da</strong> uma postura militante a favor <strong>da</strong><br />
política de George W. Bush no Oriente<br />
Médio, expondo os medos que acossam<br />
parte importante <strong>da</strong>s elites do Ocidente<br />
com a emergência de fun<strong>da</strong>mentalismos<br />
associados aos ressentimentos dos “perdedores”<br />
<strong>da</strong> nova ordem global.<br />
No caso do Islã, Fallaci denuncia<br />
um projeto que combina a violência<br />
política por meio do terrorismo, <strong>da</strong> migração<br />
e <strong>da</strong> expansão demográfica. Essa<br />
última dimensão, que exemplifica com<br />
<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> ONU que mostram uma taxa<br />
de crescimento anual <strong>da</strong>s populações<br />
de origem muçulmana entre 4,6 e 6,4%,<br />
contra 1,4% <strong>da</strong>s de origem cristã, contribui<br />
com o contingente de massa de uma<br />
“guerra que se faz roubando um país<br />
dos seus ci<strong>da</strong>dãos”. O elemento de vanguar<strong>da</strong><br />
seriam as ações afirmativas dos<br />
líderes religiosos em favor de direitos especiais<br />
que legalizem a prática de hábitos<br />
culturais <strong>da</strong>s suas comuni<strong>da</strong>des, ain<strong>da</strong><br />
que se contraponham às leis do país anfitrião,<br />
como as que tratam <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de<br />
dos sexos, a monogamia e a formação<br />
religiosa nas escolas. Para a autora, tornou-se<br />
claro que o ocidente enfrenta um<br />
novo desafio, que não vem <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>,<br />
mas de uma direita que floresce nos países<br />
mais retrógrados do mundo:<br />
“Fora a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, onde a<br />
civilização ocidental é um sonho nunca<br />
realizado, ou nem sequer perseguido, esses<br />
países são todos países do Oriente<br />
Médio e do Extremo Oriente e <strong>da</strong> África.<br />
Países muçulmanos. Países subjugados<br />
por séculos e séculos pelo Islã. A<br />
Direita ruim, reacionária, obtusa, feu<strong>da</strong>l<br />
hoje se encontra somente no Islã. É o<br />
60<br />
Islã”, registrou a jornalista em seu livro<br />
La Fuerza de la Razón.<br />
Transpondo essa concepção para o<br />
cenário estadunidense, o cientista político<br />
Samuel Huntington, falecido em 2008,<br />
considera o crescimento <strong>da</strong> população de<br />
origem hispânica uma <strong>da</strong>s ameaças à continui<strong>da</strong>de<br />
cultural dos Estados Unidos<br />
como nação, expondo uma <strong>da</strong>s faces domésticas<br />
do “choque de civilizações”, sua<br />
famosa tese que atribui a esse fator a principal<br />
fonte de conflito na ordem mundial<br />
pós-Guerra Fria.<br />
Desde uma perspectiva oposta,<br />
Jorge Ramos, jornalista mexicano radicado<br />
nos Estados Unidos, considera<br />
que a transformação que a On<strong>da</strong> <strong>Latina</strong><br />
está trazendo para a socie<strong>da</strong>de e a política<br />
nacional deve avançar na direção de<br />
uma agen<strong>da</strong> própria capaz de promover<br />
a identi<strong>da</strong>de e os interesses <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des<br />
de origem hispânica. Não se trata<br />
de separatismo na linha de “uma nação<br />
dentro de outra nação”, mas de afirmar<br />
a legitimi<strong>da</strong>de e a riqueza <strong>da</strong> diferença<br />
como uma “parte desse país”, como ele<br />
destacou em seu livro La Ola <strong>Latina</strong>.<br />
A agen<strong>da</strong> para as comuni<strong>da</strong>des latinas<br />
pensa<strong>da</strong> por Ramos apresenta dez<br />
recomen<strong>da</strong>ções: ampliar a representação<br />
política; promover a reforma migratória<br />
e a legalização dos imigrantes indocumentados;<br />
apoiar a educação bilíngue<br />
inglês-espanhol; combater a pobreza<br />
e melhorar as condições de trabalho e<br />
saúde; enfrentar a desistência escolar;<br />
melhorar a segurança combatendo o crime,<br />
especialmente <strong>da</strong>s gangues; se aliar<br />
a outras minorias para enfrentar problemas<br />
como o racismo, a discriminação e<br />
a dupla identi<strong>da</strong>de; transformar a <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong> em priori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> política<br />
externa dos Estados Unidos; estimular<br />
o interesse dos latinos de se tornarem<br />
ci<strong>da</strong>dãos e assim poder exercer direitos<br />
civis como votar; valorizar e promover<br />
o conhecimento e a compreensão do caráter<br />
peculiar <strong>da</strong> experiência histórica e
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
<strong>da</strong> trajetória hispânica como fator a ser<br />
considerado por aqueles que procuram<br />
o apoio político dessa comuni<strong>da</strong>de.<br />
Se bem existe a preocupação em<br />
deixar clara a inexistência de uma pregação<br />
autonomista, valorizando nessa<br />
agen<strong>da</strong> um sentido de pertença “indiscutivelmente<br />
americano”, sua concepção se<br />
contrapõe à ideia de assimilação defendi<strong>da</strong><br />
por Huntington. Os latinos “estão se<br />
integrando rapi<strong>da</strong>mente a esta socie<strong>da</strong>de<br />
– sobretudo em nível econômico e político<br />
– mas não acabarão se assimilando por<br />
completo em nível cultural”.<br />
Concluindo sua análise, Ramos<br />
ilustra o otimismo com a On<strong>da</strong> <strong>Latina</strong> ao<br />
descrever uma apresentação do seu livro<br />
frequenta<strong>da</strong> por hispânicos de diversos<br />
lugares dos Estados Unidos, quando vários<br />
deles, ao lhe apresentarem seus filhos<br />
pequenos, acrescentavam tratar-se do<br />
futuro presidente do país, convencendo<br />
Ramos de que essa confiança demonstrava<br />
“que o primeiro presidente latino já<br />
tinha nascido”.<br />
Voltando ao início deste artigo, seria<br />
Marco Rubio a expressão dos sonhos<br />
de Ramos e dos pesadelos de Huntington?<br />
Difícilmente. Sua plataforma eleitoral<br />
não se concentrou na identi<strong>da</strong>de de<br />
origem, diluindo-se no conservadorismo<br />
mais radical do Partido Republicano que<br />
ameaçou reverter políticas “estatizantes”<br />
e “socializantes” de Obama, como a reforma<br />
<strong>da</strong> saúde. Rubio chegou inclusive<br />
a abdicar <strong>da</strong> sua oposição às perseguições<br />
dos imigrantes hispânicos no Estado do<br />
Arizona. Por outro lado, apesar <strong>da</strong>s vitórias<br />
de candi<strong>da</strong>tos republicanos, os<br />
votantes latinos tenderam a manter seu<br />
histórico apoio majoritário aos democratas.<br />
Aqui também não se tratou de ação<br />
afirmativa de raiz comunitária, mas de<br />
uma percepção de custo-benefício centra<strong>da</strong><br />
na vi<strong>da</strong> material.<br />
Contrariamente a essas manifestações<br />
de preferência pauta<strong>da</strong>s na inserção<br />
sócio-econômica dos ci<strong>da</strong>dãos, e a despeito<br />
<strong>da</strong>s críticas aos fun<strong>da</strong>mentalismos<br />
separatistas, as etnici<strong>da</strong>des impulsiona<strong>da</strong>s<br />
pelo “Orgulho Ocidental” de Fallaci, o<br />
“Orgulho Anglo-Protestante” de Huntington<br />
e o “Orgulho Latino” de Ramos,<br />
alimentam os particularismos essencialistas<br />
que invadem a política contemporânea,<br />
com o conhecido risco de derivar em<br />
antagonismo e intolerância.<br />
Luis Fernando Ayerbe é Coordenador do Instituto<br />
de Estudos Econômicos e Internacionais <strong>da</strong> Unesp.<br />
61<br />
O conflito entre Estados<br />
Unidos e México se<br />
acirrou depois <strong>da</strong><br />
construção do muro que<br />
divide os dois países.
INDONÉSIA FALA PORTUGUÊS<br />
Existem cerca de 2.000 vocábulos portugueses ain<strong>da</strong> vivos na<br />
língua indonésia e em papiás e dialetos locais além de vários<br />
pontos em comum com as duas culturas. No entanto, a<br />
invasão do Timor-Leste em 1975 interrompeu esse relacionamento,<br />
só reatado em 1999, quando o país foi incorporado<br />
ao processo de independência <strong>da</strong> antiga colônia portuguesa,<br />
a 20 de Maio de 2002. No entender do embaixador António<br />
Pinto <strong>da</strong> França, último representante diplomático de Portugal<br />
na Indonésia antes <strong>da</strong> invasão do Timor pelas forças de<br />
Jacarta, em 1975, e um especialista na região, “a prevalência<br />
<strong>da</strong> influência portuguesa na Indonésia constituirá singular<br />
fenômeno no mundo <strong>da</strong> lusofonia”.<br />
CURTAS<br />
1<br />
“Se ca<strong>da</strong> dia cai, dentro de ca<strong>da</strong> noite<br />
há um poço<br />
onde a clari<strong>da</strong>de está presa.”<br />
Pablo Neru<strong>da</strong><br />
2<br />
POETAS CHILENOS<br />
NO METRÔ RUSSO<br />
O bicentenário do Chile foi lembrado no metrô de Moscou,<br />
que brindou os passageiros com belos poemas de<br />
Pablo Neru<strong>da</strong>, Gabriela Mistral, Vicente García Huidobro,<br />
Gonzalo Rojas e Nicanor Parra; ca<strong>da</strong> um teve seu próprio<br />
vagão, com seus versos impressos nas línguas natal e local,<br />
além de informações biográficas e relativas aos clássicos<br />
<strong>da</strong> poesia chilena. A iniciativa rendeu uma megaexposição<br />
dos autores, já que, em Moscou, 8 milhões de pessoas<br />
usam o metrô todos os dias – boa parte delas entrou em<br />
contato com a literatura latino-americana e a língua espanhola<br />
pela primeira vez.<br />
3<br />
ATRÁS DAS GRADES, E DO DIPLOMA<br />
Atualmente, na Grande Buenos Aires, cerca de<br />
300 detentos, entre homens e mulheres, correm<br />
atrás do diploma superior. A uni<strong>da</strong>de Centro Universitário<br />
Devoto, no subsolo do único presídio portenho, tem salas de<br />
aula, biblioteca e diretório acadêmico. Ela foi cria<strong>da</strong> a pedido<br />
<strong>da</strong> mãe de um detento, numa parceria entre UBA (Universi<strong>da</strong>de<br />
de Buenos Aires) e SPF (Serviço Penitenciário Federal).<br />
Segundo <strong>da</strong>dos do programa <strong>da</strong> UBA, apenas 5% dos que<br />
se formaram na prisão voltam a cometer delitos, enquanto<br />
o índice geral de reincidência no país chega a 26%.<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
FOTOS: REPRODUÇÃO<br />
4<br />
TRÁFICO DE PESSOAS<br />
A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> é uma região emissora e receptora de<br />
tráfico de seres humanos, crime que afeta principalmente<br />
Brasil, República Dominicana e Colômbia. O combate ao<br />
tráfico de pessoas é ineficaz e derivou na criação de mercados<br />
intrarregionais, segundo especialistas reunidos na ci<strong>da</strong>de<br />
do México em setembro de 2010. Para Ana Hi<strong>da</strong>lgo, do<br />
escritório na Costa Rica <strong>da</strong> Organização Internacional para<br />
as Migrações (OIM), instituição intergovernamental que<br />
promove uma migração ordena<strong>da</strong>, o “combate terminou<br />
em respostas mais formais do que reais, como as mu<strong>da</strong>nças<br />
legais. Já o anfitrião do Congresso, o reitor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
Ibero-Americana de Puebla, David Fernández Dávalos, disse<br />
na abertura do evento que o tráfico humano “é a versão<br />
contemporânea e especialmente maligna <strong>da</strong> escravidão, mas<br />
muito mais oculta e dissimula<strong>da</strong>”.<br />
BRASIL PARTILHA SEGURANÇA ENERGÉTICA<br />
Nos próximos anos o Brasil vai bancar projetos de segurança<br />
e integração energética de países vizinhos: estão em pauta<br />
questões gerais de integração, empreendimentos bilaterais e<br />
a intenção de fortalecer a prática de fornecimento momentâneo<br />
de energia, a energia ininterruptível. Entre os projetos<br />
bilaterais em análise, o mais estratégico é a construção <strong>da</strong>s<br />
hidrelétricas de Garabi e Panambi, fronteira com a Argentina.<br />
O governo estu<strong>da</strong> também exportar para seus vizinhos o<br />
modelo tido como ‘confiável’ do setor, com leilões de energia<br />
e contratos de 30 anos. Peru, Bolívia e Uruguai mostraram<br />
interesse em incorporar o esquema energético brasileiro.<br />
YMA SUMAC,<br />
DO POPULAR AO LÍRICO<br />
5<br />
Yma Sumac foi uma <strong>da</strong>s cantoras líricas mais respeita<strong>da</strong>s e admira<strong>da</strong>s<br />
de todos os tempos. Em suas performances inesquecíveis<br />
era capaz de emitir notas agudíssimas que soavam como o<br />
canto dos pássaros e graves que iam abaixo <strong>da</strong> tessitura de um<br />
barítono. Sua apresentação no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
em 12 de maio de 1989, lotou o Auditório Simón Bolívar em<br />
noite marcante, com uma programação que abrangeu desde<br />
músicas populares a temas líricos. Yma, que morreu em 2008,<br />
é a única peruana com nome impresso no hall <strong>da</strong> fama em<br />
Holywood, onde atuou por algumas vezes.<br />
6
DA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AG<br />
AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEND<br />
Em uma mesma ocasião, o <strong>Memorial</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> lançou dois livros<br />
igualmente oportunos: <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> 21 Anos<br />
e Liber<strong>da</strong>de de Expressão,<br />
Direito à Informação nas<br />
Socie<strong>da</strong>des Latino-Americanas.<br />
O primeiro, de<br />
autoria de Shozo Motoyama<br />
e Rafael Yamin,<br />
faz um resgate <strong>da</strong><br />
história <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção,<br />
desde a elaboração do<br />
projeto (tanto conceitual,<br />
de Darcy Ribeiro,<br />
Chegou à quarta etapa o ciclo de palestras<br />
Entre a Diversi<strong>da</strong>de e a Identi<strong>da</strong>de:<br />
Encontros com a Literatura Brasileira.<br />
Com a participação de autores e<br />
críticos, o projeto tem como propósito<br />
analisar aspectos sociais, linguísticos<br />
e estéticos <strong>da</strong> produção literária atual,<br />
O NOVO CINEMA BRASILEIRO<br />
A retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong> produção cinematográfica<br />
brasileira, que deu impulso e traçou<br />
um novo perfil do cinema nacional, foi<br />
o tema de um debate bastante atual. As<br />
reflexões reuniram nomes como Philippe<br />
Barcinski, Tata Amaral (cena de O Rei do<br />
Carimã) e Ricardo Elias, que discutiram<br />
entre outros aspectos a dimensão política<br />
<strong>da</strong> cinematografia recente, com um olhar<br />
especial sobre a ci<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />
64<br />
LANÇAMENTOS<br />
quanto físico-espacial, de Oscar Niemeyer)<br />
até os dias de hoje. O segundo,<br />
organizado pela jornalista e professora<br />
Cremil<strong>da</strong> Medina,<br />
trata essencialmente<br />
<strong>da</strong> questão do cerceamento<br />
à liber<strong>da</strong>de de<br />
expressão. Seu lançamento<br />
contou com<br />
uma palestra do cientista<br />
social e jornalista<br />
Demétrio Magnoli, que<br />
discorreu sobre eventuais<br />
indícios “<strong>da</strong> volta de<br />
uma censura prévia”.<br />
LITERATURA CONTEMPORÂNEA<br />
bem como suas relações com outras<br />
mídias. A coordenação acadêmica coube<br />
aos professores Rita Couto, Murilo<br />
Jardelino e Maurício Silva, que reuniram<br />
nomes como o ensaísta Gustavo<br />
Bernardo Krause e a jornalista Anita<br />
Costa Malufe.<br />
FOTOS: REPRODUÇÃO
ENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA<br />
A AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEN<br />
FOTOs: divulgaçãO<br />
A salsa contagiante <strong>da</strong> Orquestra Lyra<br />
<strong>Latina</strong> conectou-se ao caloroso samba<br />
de Jair Rodrigues (foto) no último<br />
programa Conexão <strong>Latina</strong> do ano passado.<br />
O público vibrou com as interpretações<br />
do grupo coman<strong>da</strong>do por<br />
Sérgio Lyra, que se formou inspirado<br />
na fase clássica <strong>da</strong> salsa, e agora dividiu<br />
o palco com um dos maiores intérpretes<br />
de MPB, capaz de sucessos<br />
como Dispara<strong>da</strong> e Deixa Isso Prá Lá.<br />
Tensão Entre Justiça Ambiental e Justiça<br />
Social na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>: o Caso<br />
<strong>da</strong> Gestão <strong>da</strong> Água, foi o tema <strong>da</strong> Conferência<br />
Internacional <strong>da</strong> rede Waterlat,<br />
que reúne pesquisadores voltados para<br />
a questão ambiental. Promovi<strong>da</strong> pela<br />
Escola de Geografia, Ciência Política<br />
e Sociologia, pela Universi<strong>da</strong>d Newcastle,<br />
pelo Instituto de Estudos Avan-<br />
dOIS ÍCONES LATINOS<br />
HOMENAGEM A AdONIRAN<br />
ÁGUA EM RISCO<br />
O <strong>Memorial</strong> encerrou a tempora<strong>da</strong> de<br />
2010 do Projeto Adoniran Barbosa<br />
com muito brilho: convidou os demônios<br />
<strong>da</strong> Garoa para fazer o último<br />
show do ano em que se comemora o<br />
centenário de nascimento do cantor e<br />
compositor que é a cara de São Paulo.<br />
O projeto também contou com a voz<br />
potente e interpretação cheia de suingue<br />
de Paula Lima (foto). A cantora<br />
enfeitiçou o público com seu balanço<br />
temperado com pita<strong>da</strong>s de bossa-nova,<br />
soul, funk, jazz, MPB e rock.<br />
çados <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo e<br />
pelo Centro de Estudos Brasileiros para<br />
a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, contou com o apoio<br />
<strong>da</strong> Cátedra Unesco <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>. A conferência tratou de vários<br />
aspectos ligados à questão central,<br />
como as grandes obras de infraestrutura,<br />
os riscos, as ameaças e a vulnerabili<strong>da</strong>de<br />
dos recursos hídricos.<br />
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66<br />
III<br />
I<br />
Ciervo azul.<br />
La <strong>da</strong>nza de la noche<br />
Rozó el cielo<br />
Cae el dragón<br />
Anuncias los otoños<br />
Flor del durazno<br />
POESIA<br />
Haikus de la noche<br />
Leo Zela<strong>da</strong><br />
II<br />
Cabellos blancos<br />
Despides al invierno<br />
Danza la luna<br />
IV<br />
Rugen los dioses<br />
La lira del poeta<br />
Acalla el hielo<br />
Descendente de incas, Leo Zela<strong>da</strong> estudou filosofia na Universi<strong>da</strong>de Nacional Mayor de San<br />
Marcos e é conhecido pela imprensa latino-americana como o último poeta maldito. Atualmente é<br />
diretor e docente do ateliê permanente de poesia Carpe Diem.