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a genética do crime: perigos ocultos entre falácias ... - Panoptica.org

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

A GENÉTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE<br />

FALÁCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS E<br />

DESLUMBRAMENTOS<br />

Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos Cabette<br />

Delega<strong>do</strong> de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Gradua<strong>do</strong> com especialização<br />

em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e<br />

Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro <strong>do</strong> Grupo de<br />

Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP.<br />

“Pior <strong>do</strong> que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o <strong>do</strong>no da luz”.<br />

Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.<br />

INTRODUÇÃO<br />

“Nada se sabe, tu<strong>do</strong> se imagina”.<br />

Fernan<strong>do</strong> Pessoa, Odes de Ricar<strong>do</strong> Reis, p. 107.<br />

O mun<strong>do</strong> tem si<strong>do</strong> bombardea<strong>do</strong> pelas promessas da <strong>genética</strong> que descortinam a<br />

possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações <strong>do</strong><br />

homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.<br />

A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar<br />

imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardea<strong>do</strong>s<br />

supostos potenciais quase ilimita<strong>do</strong>s proporciona<strong>do</strong>s pelo desenvolvimento desse<br />

ramo científico.<br />

Em um estágio no qual já se reconhece com alguma <strong>do</strong>se de consenso que as<br />

simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a<br />

realidade. Quan<strong>do</strong> parece estar compreendi<strong>do</strong> que o to<strong>do</strong> não é uma singela soma<br />

das partes, emergin<strong>do</strong> o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos,<br />

surge a <strong>genética</strong>, apresentada quase invariavelmente sobre uma base<br />

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marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentan<strong>do</strong> como palavra de<br />

ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).<br />

Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas <strong>genética</strong>s<br />

pode influenciar os estu<strong>do</strong>s criminológicos, ocasionan<strong>do</strong> uma importante alteração<br />

de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória <strong>do</strong><br />

pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente <strong>perigos</strong>os,<br />

prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.<br />

Uma inicial incursão acerca da evolução histórica <strong>do</strong> pensamento criminológico, será<br />

capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da <strong>genética</strong> no campo criminológico<br />

hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de<br />

velhos paradigmas etiológicos <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, sustenta<strong>do</strong>s sobre bases que se mostraram<br />

equivocadas e ilusórias.<br />

Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder<br />

qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de<br />

alguma maneira atingir a existência humana, ensejan<strong>do</strong> vilipêndios a tu<strong>do</strong> aquilo que<br />

caracteriza o “ser” <strong>do</strong> homem.<br />

1 ESBOÇANDO UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINOLOGIA 1<br />

O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estu<strong>do</strong>s criminológicos encontra-se<br />

no surgimento <strong>do</strong> Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia<br />

Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao<br />

objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal<br />

preocupava-se com o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s jurídico – penais, procuran<strong>do</strong><br />

desenvolver uma formulação teórico – <strong>do</strong>gmática <strong>do</strong> Direito Penal, o advento da<br />

Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltan<strong>do</strong> os olhos da<br />

1 Um desenvolvimento mais aprofunda<strong>do</strong> desta temática já foi por nós leva<strong>do</strong> a efeito em outro<br />

trabalho. CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. A criminologia no século XXI. Revista Forense. Volume<br />

374, jul./ago., 2004, p. 53-78.<br />

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pesquisa científico – criminal para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> fenômeno <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e, especialmente,<br />

da figura <strong>do</strong> criminoso.<br />

O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois<br />

que defende a irradiação <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> científico para todas as áreas <strong>do</strong> saber humano,<br />

até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente<br />

o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas<br />

desse referencial teórico então <strong>do</strong>minante.<br />

O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao méto<strong>do</strong> das ciências<br />

naturais, objetivan<strong>do</strong> limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de<br />

mensuração e descrição. Por isso é que seu resulta<strong>do</strong> acaba sen<strong>do</strong> a limitação <strong>do</strong><br />

Direito às normas legais, evitan<strong>do</strong> a consideração de fatores axiológicos, metafísicos<br />

etc.<br />

O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao méto<strong>do</strong> de<br />

experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da<br />

busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o<br />

fenômeno da criminalidade.<br />

A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo méto<strong>do</strong><br />

científico, dan<strong>do</strong> destaque nunca dantes constata<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem criminoso<br />

e à pesquisa das causas da delinqüência.<br />

Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com<br />

sustentação em da<strong>do</strong>s empíricos oferta<strong>do</strong>s pela demonstração experimental de leis<br />

naturais seguras e imutáveis.<br />

O criminoso passa a ser objeto de estu<strong>do</strong>, uma fonte de pesquisas e experimentos<br />

com vistas à descoberta científica das causas <strong>do</strong> fenômeno criminal.<br />

A obstinada busca de causas explicativas <strong>do</strong> agir criminoso em oposição às<br />

condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação <strong>do</strong> “livre arbítrio”,<br />

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aponta<strong>do</strong> até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitima<strong>do</strong>r<br />

da responsabilidade criminal.<br />

É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista,<br />

pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas<br />

criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja<br />

apropriar-se de um conhecimento que propicie o <strong>do</strong>mínio seguro de leis constantes<br />

a regerem o mun<strong>do</strong> e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele<br />

desvia<strong>do</strong>.<br />

A conseqüência imediata foi a consideração <strong>do</strong> criminoso como um “anormal”. A<br />

partir daí, bastaria <strong>do</strong>tar o pesquisa<strong>do</strong>r de instrumentos hábeis a selecionar, de<br />

forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana<br />

aparentemente homogênea ou normal.<br />

O primeiro grande passo da<strong>do</strong> por um pesquisa<strong>do</strong>r nesse senti<strong>do</strong> foi a <strong>do</strong>utrina<br />

preconizada por Cesare Lombroso, destacan<strong>do</strong>-se a publicação de sua conhecida<br />

obra “O homem Delinqüente”, em 1876.<br />

Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de<br />

“homo sapiens”, o qual apresentaria determina<strong>do</strong>s sinais, denomina<strong>do</strong>s “stigmata”,<br />

de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chama<strong>do</strong> “criminoso<br />

nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões <strong>do</strong> crânio, maxilar inferior<br />

procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e<br />

deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura <strong>do</strong>s braços, mãos e pés, pouca<br />

sensibilidade à <strong>do</strong>r, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade<br />

sexual etc.). To<strong>do</strong>s esses sinais indicariam um “regresso atávico”, ten<strong>do</strong> em conta<br />

sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso<br />

intentou demonstrar uma ligação <strong>entre</strong> a epilepsia e aquilo que chamava de<br />

“insanidade moral”.<br />

Percebe-se claramente o conteú<strong>do</strong> determinista das teorias lombrosianas, o qual<br />

conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora,<br />

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se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, ten<strong>do</strong> em vista<br />

uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que<br />

fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples<br />

motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigi<strong>do</strong> por forças naturais<br />

irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sen<strong>do</strong>, jamais<br />

poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sen<strong>do</strong> as<br />

práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a<br />

sociedade legitimada a defender-se, impon<strong>do</strong>-lhe desde a prisão perpétua até a<br />

pena de morte. 2<br />

A <strong>do</strong>utrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por<br />

estu<strong>do</strong>s ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a<br />

demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica <strong>entre</strong> homens que<br />

perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpri<strong>do</strong>res da lei.<br />

Não obstante, deve ser atribuí<strong>do</strong> a Lombroso o mérito de ser o primeiro a<br />

impulsionar os estu<strong>do</strong>s que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua<br />

Antropologia Criminal, os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> homem delinqüente, razão pela qual tem si<strong>do</strong><br />

considera<strong>do</strong> o verdadeiro “Pai da Criminologia”. 3 A partir dele começam os mais<br />

diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o<br />

comportamento criminoso.<br />

Inúmeras investigações científicas nos mais varia<strong>do</strong>s campos das ciências naturais<br />

e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas <strong>do</strong> fenômeno<br />

criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.<br />

Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais<br />

destaca<strong>do</strong>s: Biologia Criminal, Criminologia Genética 4 , Psiquiatria Criminal,<br />

Psicologia Criminal, En<strong>do</strong>crinologia Criminal, Estu<strong>do</strong>s das Toxicomanias etc.<br />

2<br />

FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. São Paulo: RT, 1995, p. 75.<br />

3<br />

Op. cit., p. 82.<br />

4<br />

O tema presente será melhor desenvolvi<strong>do</strong> em itens posteriores.<br />

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Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação<br />

etiológica endógena <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e <strong>do</strong> homem criminoso. Procura-se apontar uma causa<br />

da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de<br />

anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um<br />

equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da<br />

criminalidade.<br />

Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia<br />

Sociológica”, ten<strong>do</strong> como seu mais destaca<strong>do</strong> representante Enrico Ferri.<br />

A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”,<br />

pon<strong>do</strong> a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da<br />

criminalidade, olvidava as importantes influências ambientais ou exógenas para a<br />

gênese <strong>do</strong> <strong>crime</strong>. Aliás, para os defensores da “Criminologia Sociológica”, as<br />

causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exógenas,<br />

de forma que mais relevante <strong>do</strong> que perquirir as características <strong>do</strong> homem<br />

criminoso, seria identificar o meio criminógeno em que ele se encontra.<br />

No entanto, a “Criminologia Sociológica” em nada inova no que tange à postura de<br />

procurar uma etiologia <strong>do</strong> delito. Os criminólogos ainda insistem em encontrar<br />

“causas” para o <strong>crime</strong>, somente alteran<strong>do</strong> a natureza destas, transplantan<strong>do</strong>-as <strong>do</strong><br />

criminoso para o ambiente criminógeno. Em suma, muda o “locus” da pesquisa,<br />

mas não muda a natureza claramente etiológica desta.<br />

Os estu<strong>do</strong>s relativos à atuação <strong>do</strong> ambiente na criminalidade são variega<strong>do</strong>s,<br />

poden<strong>do</strong>-se mencionar alguns ramos a título meramente exemplificativo: Geografia<br />

Criminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrição, Sistema<br />

Econômico, Mal vivência, Ambiente familiar, Profissão, Guerra, Migração e<br />

Imigração, Prisão e contágio moral, Meios de Comunicação etc.<br />

Ainda no matiz sociológico deve-se dar atenção especial às chamadas “Teorias<br />

Estrutural-Funcionalistas”, as quais podem ser tratadas como item aparta<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong><br />

em vista suas peculiaridades.<br />

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As Teorias Estrutural-Funcionalistas afirmam que o <strong>crime</strong> é produzi<strong>do</strong> pela própria<br />

estrutura social, inclusive exercen<strong>do</strong> uma certa função no interior <strong>do</strong> sistema, de<br />

maneira que não deve ser visto como uma anomalia ou moléstia social.<br />

A base teórica principal é ofertada por Émile Durkheim que dá ênfase para a<br />

normalidade <strong>do</strong> <strong>crime</strong> em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referência<br />

que “o <strong>crime</strong> é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente<br />

impossível”. 5 Mas, o autor vai além, chegan<strong>do</strong> a reconhecer que o <strong>crime</strong> não<br />

somente é normal, mas também “é necessário” para a coesão social, sen<strong>do</strong> uma<br />

sociedade sem <strong>crime</strong>s indica<strong>do</strong>ra, esta sim, de deterioração social. Durkheim indica<br />

o fenômeno criminal como reafirma<strong>do</strong>r da ordem social violada e, portanto,<br />

legitima<strong>do</strong>r de sua existência. Toda vez que acontece um <strong>crime</strong>, a reação<br />

desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigência<br />

das normas legais. 6<br />

Portanto, o desvio é funcional, somente tornan<strong>do</strong>-se <strong>perigos</strong>o ao exceder certos<br />

limites toleráveis. Em tais circunstâncias pode eclodir um esta<strong>do</strong> de des<strong>org</strong>anização<br />

e anarquia, no qual to<strong>do</strong> o ordenamento normativo perde sua efetividade. Não<br />

emergin<strong>do</strong> disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma<br />

situação de carência absoluta de normas ou regras, fican<strong>do</strong> a conduta humana à<br />

margem de qualquer orientação. A isso Durkheim dá o nome de “anomia”, efetiva<br />

causa<strong>do</strong>ra de desagregação e deterioração social. 7<br />

O conceito de “anomia” e o reconhecimento da funcionalidade <strong>do</strong> <strong>crime</strong> no meio<br />

social produzem uma revolução quanto às finalidades e fundamentos da pena, vez<br />

que estes já não devem mais ser busca<strong>do</strong>s na fantasiosa profilaxia de um suposto<br />

mal.<br />

5<br />

DURKHEIM, Émile. As regras <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martim<br />

Claret, 2001, p. 83.<br />

6<br />

Op. Cit., p. 86.<br />

7<br />

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica <strong>do</strong> Direito Penal. Trad. Juarez Cirino <strong>do</strong>s<br />

Santos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 – 60.<br />

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Outra formulação teórica relevante de matiz estrutural-funcionalista deve-se a Robert<br />

Merton. Ele se apropria <strong>do</strong> conceito de “anomia” para demonstrar que o desvio não<br />

passa de um produto da própria estrutura social. Portanto, absolutamente normal,<br />

consideran<strong>do</strong> que esta própria estrutura é que vem a compelir o indivíduo à conduta<br />

desviante. Merton expõe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o<br />

indivíduo ao <strong>crime</strong> no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas não lhe<br />

disponibiliza os meios necessários para o seu alcance legal. O indivíduo perde suas<br />

referências, sentin<strong>do</strong>-se aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> sem possibilidades “normais” de conseguir<br />

seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressiona<strong>do</strong> para a conquista de certos<br />

objetivos sociais, o indivíduo precisa preencher esse vácuo (anomia) de alguma<br />

maneira. E a única maneira disponível será a perseguição <strong>do</strong>s fins colima<strong>do</strong>s por<br />

meios ilegítimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legítimos não estão<br />

acessíveis.<br />

De acor<strong>do</strong> com Merton: “a desproporção <strong>entre</strong> os fins culturalmente reconheci<strong>do</strong>s<br />

como váli<strong>do</strong>s e os meios legítimos à disposição <strong>do</strong> indivíduo para alcançá-los, está<br />

na origem <strong>do</strong>s comportamentos desviantes”. 8 E mais: “a cultura coloca, pois, aos<br />

membros <strong>do</strong>s estratos inferiores, exigências inconciliáveis <strong>entre</strong> si. Por um la<strong>do</strong>,<br />

aqueles são solicita<strong>do</strong>s a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem<br />

– estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos,<br />

lhes são, em ampla medida, nega<strong>do</strong>s”. 9<br />

Outro referencial importante é a denominada “Teoria da Associação Diferencial”,<br />

produzida por Edwin H. Sutherland. Segun<strong>do</strong> essa construção teórica, a<br />

criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano, é<br />

aprendida conforme as convivências específicas às quais o sujeito se expõe em<br />

seu ambiente social e profissional. 10<br />

Essa linha de pensamento possibilitou a formulação da conhecida “Teoria das<br />

Subculturas Criminais”, para a qual o sujeito aprenderia o <strong>crime</strong> de acor<strong>do</strong> com sua<br />

convivência em certos ambientes, assumin<strong>do</strong> as características de determina<strong>do</strong>s<br />

8 Op. Cit., p. 63.<br />

9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65.<br />

10 Op. Cit., p. 66.<br />

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grupos aos quais estaria preso por uma aproximação voluntária, ocasional ou<br />

coercitiva.<br />

Afirma Sutherland que o processo de “associação diferencial” propicia ao sujeito, de<br />

conformidade com seu convívio, aprender e apreender as condutas desviantes<br />

respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a<br />

criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo<br />

de convívio – aprendiza<strong>do</strong> os infratores menos privilegia<strong>do</strong>s praticariam usualmente<br />

os mesmos <strong>crime</strong>s, vez que estariam conecta<strong>do</strong>s ao convívio de pessoas de seu<br />

nível social e só teriam oportunidade de aprender essas determinadas espécies de<br />

condutas delitivas, não sen<strong>do</strong>-lhes possibilita<strong>do</strong> o acesso a conhecimentos e<br />

condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De<br />

outra banda, os mais abasta<strong>do</strong>s teriam acesso ao aprendiza<strong>do</strong> de outras<br />

modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razão disso<br />

também dificilmente incidiriam nas condutas afetas às classes mais baixas.<br />

Há certo ponto de contato <strong>entre</strong> a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a<br />

modalidade de conduta atribuída aos indivíduos das classes pobres e abastadas<br />

apresentaria uma distribuição em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos<br />

para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulação de<br />

Sutherland tem a pretensão de ser mais ampla, fornecen<strong>do</strong> uma fórmula geral apta a<br />

explicar a criminalidade <strong>do</strong>s pobres e das classes altas. Para o autor sob comento,<br />

qualquer conduta desviante seria “apreendida em associação direta ou indireta com<br />

os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse<br />

comportamento criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o<br />

comportamento conforme a lei”. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou não<br />

criminosa de acor<strong>do</strong> “com o grau relativo de freqüência e intensidade de suas<br />

relações com os <strong>do</strong>is tipos de comportamento” (legal e ilegal). Isso é o que se<br />

denomina propriamente de “associação diferencial”. 11<br />

Essa maior abrangência da teoria preconizada por Sutherland a teria torna<strong>do</strong> mais<br />

completa <strong>do</strong> que aquela defendida por Merton. Segun<strong>do</strong> a maioria <strong>do</strong>s críticos, as<br />

11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.<br />

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explicações de Merton seriam bastante satisfatórias para a criminalidade <strong>do</strong>s<br />

pobres, mas não serviriam para esclarecer por que pessoas <strong>do</strong>tadas de to<strong>do</strong>s os<br />

meios institucionais e legais para a consecução de seus objetivos sociais, mesmo<br />

assim, perpetrariam ações delituosas. 12 Portanto, não é sem motivo que o termo<br />

“<strong>crime</strong> de colarinho branco” ou “white collar <strong>crime</strong>” foi cunha<strong>do</strong> e emprega<strong>do</strong><br />

originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma<br />

conferência que se passou na sede da “American Sociological Society”, com a<br />

finalidade de fazer referência a uma espécie de criminalidade praticada por pessoas<br />

de nível social eleva<strong>do</strong>, e em especial na sua atuação profissional. 13<br />

Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural – funcionalista<br />

pode-se mencionar a chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, cujos<br />

principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma<br />

“correção da Teoria das Subculturas Criminais”, mediante a complementação<br />

implementada pelo acréscimo <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s das “técnicas de neutralização”. Estas<br />

seriam maneiras de promover a racionalização da conduta marginal, as quais seriam<br />

apreendidas e usadas la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com os modelos de comportamento e valores<br />

desviantes, de forma a neutralizar a atuação eficaz <strong>do</strong>s valores e regras sociais, aos<br />

quais o delinqüente, de uma forma ou de outra, adere. 14<br />

Na verdade, mesmo aquele indivíduo que vive mergulha<strong>do</strong> em uma subcultura<br />

criminal não perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma,<br />

sobre a influência e presta reconhecimento a algumas de suas regras. É desta<br />

constatação que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usa<strong>do</strong>s<br />

pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas<br />

desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.<br />

12 Para um aprofundamento e uma discussão dessa crítica, a qual não caberia no presente trabalho,<br />

remete-se o leitor a nosso estu<strong>do</strong> anterior já menciona<strong>do</strong>: CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit.,<br />

p. 69 – 71.<br />

13 A conferência de Sutherland teve o título “White Collar Criminality” e foi publicada pela “American<br />

Sociological Review”, em seu número 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. O<br />

<strong>crime</strong> de colarinho branco: aplicação e eficácia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de<br />

Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97.<br />

14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.<br />

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São descritas algumas espécies básicas de “técnicas de neutralização”: 15<br />

a) Exclusão da própria responsabilidade – o infrator se enxerga como vítima das<br />

contingências, surgin<strong>do</strong> muito mais como sujeito passivo quanto ao seu<br />

encaminhamento para o agir criminoso.<br />

b) Negação da ilicitude – o criminoso interpreta suas atuações apenas como<br />

proibidas, mas não criminosas, imorais ou destrutivas, procuran<strong>do</strong> redefini-las com<br />

eufemismos.<br />

c) Negação da vitimização – a vítima da ação delituosa é apontada como<br />

merece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> mal ou <strong>do</strong> prejuízo que lhe foi impingi<strong>do</strong>.<br />

d) Condenação <strong>do</strong>s que condenam – atribuem-se qualidades negativas às instâncias<br />

oficiais responsáveis pela repressão criminal.<br />

e) Apelo às instâncias superiores – sobrevalorização conferida a pequenos grupos<br />

marginais a que o desvia<strong>do</strong> pertence, aderin<strong>do</strong> às suas normas e valores<br />

alternativos, em prejuízo das regras sociais normais.<br />

Note-se que a mais destacável “técnica de neutralização” é a própria criação de uma<br />

subcultura. Esta é a maior enseja<strong>do</strong>ra de abrandamentos de consciência e defesas<br />

contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovação por parte de outras<br />

pessoas integrantes <strong>do</strong> grupo, ocasionam uma tranqüilização e um sentimento de<br />

integração que não se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e<br />

valores oficiais. 16<br />

Inobstante os avanços obti<strong>do</strong>s com as “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, uma<br />

alteração verdadeiramente radical <strong>do</strong> modelo de pesquisa <strong>do</strong> fenômeno criminal<br />

somente adviria com o surgimento da chamada “Criminologia Crítica”. 17 É com ela<br />

15 Op. Cit., p. 78 – 79.<br />

16 Op. Cit., p. 81.<br />

17 Também denominada “Nova Criminologia”, “Criminologia Radical”, “Criminologia Dialética”,<br />

“Criminologia Interacionista” ou “Criminologia da reação social”.<br />

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que se leva a efeito o aban<strong>do</strong>no da mais constante premissa da Criminologia<br />

Tradicional, qual seja, aquela de ser o <strong>crime</strong> uma realidade ontologicamente<br />

reificada.<br />

A partir das idéias trazidas à tona pela revisão criminológica crítica, o <strong>crime</strong> passa a<br />

ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social<br />

responsável pela edição, vigência e aplicação das leis penais.<br />

Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encara<strong>do</strong> como um “anormal” e o <strong>crime</strong><br />

como manifestação “patológica”.<br />

A explicação para a criminalidade é agora procurada no desvelar da atuação <strong>do</strong><br />

Sistema Penal que a define e reage contra ela, inician<strong>do</strong> pelas normas<br />

abstratamente previstas, até chegar à efetiva atuação das agências oficiais de<br />

repressão e prevenção que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicação de alguém<br />

como criminoso é dependente da ação ou omissão das agências estatais<br />

responsáveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivíduos praticantes de<br />

atos desviantes não são trata<strong>do</strong>s como criminosos, até que sejam alcança<strong>do</strong>s pela<br />

atuação das referidas agências, as quais são pautadas por uma conduta e exercem<br />

um papel altamente seletivo. Ser ou não ser criminoso é algo que não está liga<strong>do</strong> à<br />

presença ou não de alguma <strong>do</strong>ença ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou<br />

não o indivíduo si<strong>do</strong> reti<strong>do</strong> pelas malhas das agências seletivas que agem<br />

baseadas em orientações normativas e sociais. 18<br />

Propõem as Teorias da Criminologia Radical o aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> velho modelo<br />

etiológico, visan<strong>do</strong> erigir uma inova<strong>do</strong>ra abordagem crítica <strong>do</strong> Sistema Penal,<br />

inclusive propician<strong>do</strong> um sério questionamento de sua legitimidade.<br />

A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia<br />

de que o Sistema Punitivo é construí<strong>do</strong> e funciona com apoio em uma ideologia da<br />

sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa<br />

social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um<br />

18 Op. Cit., p. 86.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

convívio harmônico <strong>entre</strong> as pessoas. O verdadeiro fim oculto de to<strong>do</strong> Sistema Penal<br />

seria a sustentação <strong>do</strong>s interesses das classes <strong>do</strong>minantes. Qualquer instrumento<br />

repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre<br />

as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recain<strong>do</strong> pesadamente<br />

sobre os pobres e raramente atuan<strong>do</strong> contra os integrantes das classes<br />

<strong>do</strong>minantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O<br />

Direito é visto como absolutamente despi<strong>do</strong> de qualquer finalidade de transformação<br />

social. Ao contrário, é encara<strong>do</strong> como um instrumento de manutenção e reforço <strong>do</strong><br />

“status quo” social, conservan<strong>do</strong> e alimentan<strong>do</strong> desigualdades pelo exercício de um<br />

poder de <strong>do</strong>minação e força. 19<br />

Impõe-se uma conscientização da gigantesca diferença de intensidade da atuação<br />

<strong>do</strong> Direito Penal sobre setores desvali<strong>do</strong>s da sociedade, enquanto apresenta-se<br />

bastante leniente e omisso perante condutas gravíssimas ligadas às classes<br />

<strong>do</strong>minantes.<br />

É nesse contexto que emerge a “Teoria <strong>do</strong> Labeling Approach” ou “Teoria da<br />

Reação Social”. Enquanto o pensamento criminológico até então vigente advogava a<br />

tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente<br />

natural e até era preexistente às normas penais que o definiam num mero exercício<br />

de reconhecimento, o qual, aliás, consistia em um certo acor<strong>do</strong> universal, um<br />

consenso social; a “Teoria <strong>do</strong> Labeling Approach” virá para desmistificar todas essas<br />

equivocadas convicções.<br />

O “Labeling Approach” ou “etiquetamento” indica que um fato só é toma<strong>do</strong> como<br />

criminoso após a aquisição desse “status” através da criação de uma lei que<br />

seleciona certos comportamentos como irregulares, de acor<strong>do</strong> com os interesses<br />

sociais. Em seguida, a atribuição a alguém da pecha de criminoso depende<br />

novamente da atuação seletiva das agências estatais.<br />

19 LYRA, Roberto, ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense,<br />

1992, p. 204 – 205.<br />

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Passa a ser objeto de estu<strong>do</strong> da Criminologia a descoberta <strong>do</strong>s mecanismos sociais<br />

responsáveis pela definição <strong>do</strong>s desvios e <strong>do</strong>s desviantes; os efeitos dessa definição<br />

e os atores que interagem nessas complexas relações. Deixa-se de la<strong>do</strong> a ilusão<br />

<strong>do</strong> <strong>crime</strong> como entidade natural pré – jurídica e <strong>do</strong> criminoso como porta<strong>do</strong>r de<br />

anomalias físicas ou psíquicas.<br />

Essa nova linha de reflexões produz uma derrocada no mito <strong>do</strong> Sistema Penal como<br />

recupera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s desvia<strong>do</strong>s. Contrariamente, entende-se que a atuação rotula<strong>do</strong>ra<br />

<strong>do</strong> Sistema Penal exerce forte pressão para a permanência <strong>do</strong> indivíduo no papel<br />

social (marginal e marginaliza<strong>do</strong>) que lhe é atribuí<strong>do</strong>. O sujeito estigmatiza<strong>do</strong> ao<br />

invés de se recuperar, ganharia um reforço de sua identidade desviante. Na<br />

realidade, o Sistema Penal assim concebi<strong>do</strong> passa a ser entendi<strong>do</strong> como um cria<strong>do</strong>r<br />

e reprodutor da violência e da criminalidade.<br />

Finalmente cabe expor sumariamente a relação <strong>entre</strong> a “Sociologia <strong>do</strong> Conflito” e a<br />

“Nova Criminologia”.<br />

Como já visto, a Nova Criminologia põe em cheque a idéia de que as normas de<br />

convívio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns.<br />

Aí está o ponto de contato com a “Sociologia <strong>do</strong> Conflito”, que apregoa ser uma tal<br />

concepção uma mera ficção erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na<br />

realidade, essa ordem social seria produto não de consenso, mas <strong>do</strong> conflito de<br />

interesses de grupos antagônicos, prevalecen<strong>do</strong> a vontade daqueles que lograram<br />

exercer maior <strong>do</strong>minação.<br />

Com o esboço desse quadro evolutivo da ciência criminológica, é possível<br />

determinar <strong>do</strong>is principais momentos de mudanças conceituais e epistemológicas: o<br />

primeiro deles refere-se à transição <strong>do</strong> Direito Penal Clássico para o nascimento da<br />

Criminologia, sob a égide <strong>do</strong> Positivismo, com as inaugurais pesquisas<br />

lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente aí é que o homem criminoso<br />

adquire importância central nos estu<strong>do</strong>s, que não mais se reduzem às <strong>do</strong>gmáticas<br />

jurídicas. O segun<strong>do</strong> momento relevante foi o da mudança radical <strong>do</strong> referencial<br />

teórico da Criminologia, propicia<strong>do</strong> pela emergência da chamada “Criminologia<br />

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Crítica”. Nessa oportunidade aban<strong>do</strong>na-se o modelo de pesquisa etiológico –<br />

profilático, mediante um consistente questionamento de um longo “processo de<br />

medicalização <strong>do</strong> <strong>crime</strong>”. 20 O fenômeno criminal passa a ser perquiri<strong>do</strong> como criação<br />

da própria <strong>org</strong>anização social e não mais como um ente pré – existente, passível de<br />

compreensão e apreensão pela aplicação isolada <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> das ciências naturais.<br />

A virada epistemológica propiciada pela “Criminologia Crítica” não desmerece o<br />

conjunto <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa<br />

criminológica. Tão somente faz perceber que são possíveis explicações parciais<br />

para o fenômeno criminal, mas jamais tal questão pode ser devidamente<br />

desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violência em geral<br />

são problemas complexos que somente permitem uma visão ponderada através de<br />

um conjunto de saberes e méto<strong>do</strong>s de investigação, os quais, isola<strong>do</strong>s, produzem<br />

noções fantasiosas e distorcidas. Não é por outro motivo que atualmente se fala<br />

numa “Criminologia Integrada”. 21<br />

Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evolução <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s criminológicos<br />

já anteriormente levada a efeito em outro trabalho 22 com um objetivo bastante<br />

defini<strong>do</strong>: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possível como se<br />

chegou à ponderada e racional conclusão de que o “<strong>crime</strong>” em si não existe na<br />

natureza, tratan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> de normas humanas convencionadas. O<br />

criminoso, portanto, é somente to<strong>do</strong> aquele que infringe tais normas e não o<br />

porta<strong>do</strong>r de anomalias. As pesquisas etiológico-profiláticas, que são o original<br />

impulso da Criminologia, são impregnadas de um determinismo irreal porque<br />

baseadas em uma noção ilusória <strong>do</strong> <strong>crime</strong> como ente natural pré-jurídico, que o<br />

Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quan<strong>do</strong>, na verdade, o <strong>crime</strong> é<br />

uma criação <strong>do</strong> Direito, poden<strong>do</strong> inclusive modificar-se ao longo <strong>do</strong> tempo e das<br />

mudanças sociais.<br />

20 BORELLI, Andréa. Da privação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s à legítima defesa da honra: considerações sobre o<br />

direito e a violência contra as mulheres. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun.,<br />

2005, p. 10.<br />

21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 – 618.<br />

22 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 – 78.<br />

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Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explica<strong>do</strong>s por meio de<br />

uma abordagem etiológica (v.g. o homicídio perpetra<strong>do</strong> por um esquizofrênico que<br />

acredita estar esfaquean<strong>do</strong> um monstro) 23 , deve-se ter em mente que se trata de um<br />

critério váli<strong>do</strong> somente de forma eventual e parcial. Além disso, mesmo sua validade<br />

eventual em nada atinge a conclusão inarredável de que o <strong>crime</strong> é uma criação<br />

normativa, um filho <strong>do</strong> Direito e das convenções e não um rebento da natureza. O<br />

retorno a uma noção equivocada a este respeito, devi<strong>do</strong> a qualquer espécie de<br />

descoberta científica e novas possibilidades de intervenção, constitui um enorme<br />

retrocesso <strong>do</strong> pensamento criminológico com riscos de terríveis conseqüências<br />

sociais e individuais.<br />

2 GENÉTICA: A SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E DO<br />

CRIME?<br />

2.1 A REFLEXÃO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE<br />

Há sempre uma casca envolven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> que se apresenta ao nosso conhecimento e<br />

avaliação. Se nossa análise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela<br />

superfície, jamais rompen<strong>do</strong> essa casca de aparências, corre-se o grave risco de<br />

proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em da<strong>do</strong>s e informações<br />

fantasiosas.<br />

Sobre isso nos alerta o literato José Saramago em sua crônica “Jogam as brancas e<br />

ganham”, afirman<strong>do</strong> que “por baixo ou por trás <strong>do</strong> que se vê, há sempre mais coisas<br />

que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro”. 24<br />

Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que<br />

propicia a ação ou omissão acrítica ou até mesmo bem intencionada, embora<br />

equivocada. Hannah Arendt chama a atenção para este ponto quan<strong>do</strong> destaca a<br />

23 O exemplo refere-se ao ato de “matar alguém”, ti<strong>do</strong> como criminoso, mas obviamente não se olvida<br />

a questão da inimputabilidade sob o ângulo legal. É que o fim da exemplificação consiste na<br />

discussão sob o prisma criminológico e não jurídico.<br />

24 A Bagagem <strong>do</strong> Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.<br />

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“banalidade <strong>do</strong> mal” escancarada no julgamento <strong>do</strong> medíocre funcionário <strong>do</strong><br />

nazismo, Eichmann, responsável por massacres terríveis de seres humanos. À<br />

enormidade <strong>do</strong> mal produzi<strong>do</strong> não correspondia o homem insignificante em<br />

julgamento: ele não era estúpi<strong>do</strong>, porém era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de “uma curiosa e totalmente<br />

autêntica incapacidade de pensar”. 25<br />

A capacidade de pensar é um atributo humano que não deve jamais ser despreza<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> isso ocorre, além de configurar uma deturpação <strong>do</strong> homem, pode ser a via<br />

ideal para sua autodestruição.<br />

Mas, não basta pensar, este pensar precisa ser também livre, não pode estar<br />

amarra<strong>do</strong> a idéias pré – concebidas pelo próprio pensa<strong>do</strong>r ou assimiladas de<br />

terceiros sem um necessário filtro crítico. Não é bom que idéias alheias<br />

simplesmente <strong>do</strong>minem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente não é<br />

adequa<strong>do</strong> que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o<br />

mun<strong>do</strong> a seu talante, ven<strong>do</strong> apenas aquilo que quer ver e desprezan<strong>do</strong> a<br />

realidade. 26 São respectivamente casos de submissão acrítica e esquizofrenia<br />

intelectual, os quais freqüentemente se <strong>entre</strong>laçam para conformar ideologias<br />

perniciosas.<br />

A <strong>genética</strong> na atualidade tem si<strong>do</strong> apresentada, especialmente na grande mídia,<br />

como uma espécie de panacéia para to<strong>do</strong>s os males. De outra banda, há aqueles<br />

que satanizam as pesquisas <strong>genética</strong>s, somente apontan<strong>do</strong> seus danos potenciais e<br />

<strong>perigos</strong>.<br />

Diante de tal quadro é imprescindível exercitar nossa capacidade de pensar<br />

criticamente, não acatan<strong>do</strong> simplesmente tu<strong>do</strong> aquilo que é proposto de acor<strong>do</strong> com<br />

esta ou aquela orientação.<br />

25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

2004, p. 226. Ver também sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalém. 6ª. ed. Trad. Rubens<br />

Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, “passim”.<br />

26 Desde antanho alertava Descartes sobre o <strong>perigos</strong>o erro de julgar que as idéias que estão em nós<br />

são semelhantes ou conformes as coisas que estão fora de nós. DESCARTES, René. De Deus, que<br />

Ele existe. In: SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda,<br />

2006, p. 206.<br />

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No seguimento será abordada a apresentação da <strong>genética</strong> como possível solução<br />

para a criminalidade, como já tem si<strong>do</strong> aventa<strong>do</strong> e alardea<strong>do</strong> pela imprensa na<br />

divulgação de certas pesquisas acerca de supostos “genes da violência” ou “genes<br />

<strong>do</strong> <strong>crime</strong>”.<br />

2.2 BASES DA CULPABILIDADE<br />

O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto à sua legitimidade. Uma das<br />

discussões mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da<br />

imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsável por seus atos<br />

criminosos ao ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente<br />

responsável por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a repressão <strong>do</strong><br />

criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?<br />

A tradicional fundamentação legitimante <strong>do</strong> Direito Penal encontra-se na aferição da<br />

presença de “culpabilidade”, significan<strong>do</strong> que determinada ação ou omissão pode<br />

ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejan<strong>do</strong> a reprovação jurídica em<br />

razão de sua conduta ilícita.<br />

Não obstante, a configuração teórica da culpabilidade já formalmente explicitada nos<br />

termos acima menciona<strong>do</strong>s, carecia de uma sustentação material a indicar qual<br />

seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prática criminosa.<br />

Neste passo surge a questão <strong>do</strong> “livre arbítrio” em conflito com uma concepção<br />

determinista <strong>do</strong> ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segun<strong>do</strong><br />

o qual a culpabilidade reside na liberdade <strong>do</strong> autor atuar de mo<strong>do</strong> diverso no<br />

momento <strong>do</strong> fato. Melhor dizen<strong>do</strong>, a censurabilidade <strong>do</strong> comportamento tem lastro<br />

no fato <strong>do</strong> culpa<strong>do</strong> haver deseja<strong>do</strong> agir de mo<strong>do</strong> contrário ao dever quan<strong>do</strong> podia<br />

atuar em conformidade com este. 27 Se o homem é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de certa liberdade para<br />

27 DIAS, J<strong>org</strong>e de Figueire<strong>do</strong>. Liberdade Culpa – Direito Penal. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora,<br />

1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese <strong>do</strong> livre arbítrio como pressuposto da culpabilidade<br />

há bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo senti<strong>do</strong>: IDEM, O Problema da Consciência da<br />

ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, “passim”.<br />

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agir ao ponto de tornar-se o responsável por suas condutas, solucionada estará a<br />

questão da culpabilidade. Ao reverso, se o homem é, em suas ações e omissões,<br />

apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento,<br />

entra em crise a pretensão de responsabilizá-lo por seus atos.<br />

Em “As Viagens de Gulliver”, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os<br />

Houyhnhnms) são seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por<br />

puro instinto. Não diferente <strong>do</strong> acima narra<strong>do</strong> é a postura <strong>do</strong>s Houyhnhnms perante<br />

os Yahoos, conforme se vê pelo seguinte trecho da ficção:<br />

“Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, não os culpava por suas odiosas<br />

qualidades mais <strong>do</strong> culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma<br />

pedra afiada por cortar-lhe o casco”. 28<br />

Essa antiga discussão que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas<br />

teses deterministas, não teve fim e vem permean<strong>do</strong> toda a discussão acerca da<br />

legitimidade e eficácia <strong>do</strong>s instrumentos coercitivos penais.<br />

Agora as afirmações de que talvez a <strong>genética</strong> possa apontar causas endógenas<br />

para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polêmica.<br />

Nesse diapasão manifesta-se Casabona, aduzin<strong>do</strong> que “as hipóteses geneticistas<br />

sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente<br />

importante, mas não novo, na discussão sobre o fundamento da imposição da pena<br />

no livre arbítrio ou não”. 29<br />

O geneticismo que ameaça <strong>do</strong>minar as pesquisas criminológicas apresenta traços<br />

nitidamente reducionistas e deterministas.<br />

28<br />

SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Nova<br />

Cultural, 1996, p. 278.<br />

29<br />

CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.<br />

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O criminólogo passa a assumir um caráter semelhante ao heterônimo de Pessoa,<br />

Ricar<strong>do</strong> Reis, marca<strong>do</strong> pela crença “no destino como uma lei indiscutível e imutável<br />

que dirige a vida <strong>do</strong>s homens”. 30 É isso que o leva a produzir versos como estes:<br />

“Nossa vontade e o nosso pensamento<br />

São as mãos pelas quais outros nos guiam<br />

Para onde eles querem<br />

E nós não desejamos”. 31<br />

“Contenta-te com seres quem não podes<br />

Deixar de ser”. 32<br />

Nesse contexto o homem é retrata<strong>do</strong> como um títere passivo, movi<strong>do</strong> por cordas<br />

invisíveis. Essas cordas já foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo<br />

demônio, passan<strong>do</strong> para a crença Positivista nas causas endógenas mais variadas,<br />

e chegam na atualidade às mãos invisíveis ou microscópicas da <strong>genética</strong>.<br />

Ora, se o <strong>crime</strong> é determina<strong>do</strong> pela presença de certos genes, o mal que ele<br />

representa deixa de ser “moral” para configurar um exemplo de “mal natural”. Um<br />

genocídio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espécie. Ao homem<br />

nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou solução a ser<br />

aventada deve ter um conteú<strong>do</strong> terapêutico e jamais punitivo. Até sob um ponto de<br />

vista teológico as discussões ficariam polarizadas <strong>entre</strong> argumentos como os de<br />

Bayle, apontan<strong>do</strong> Deus como “um gigantesco criminoso”, em contraposição a uma<br />

“teodicéia” de Leibniz, procuran<strong>do</strong> formular uma defesa <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r sob o argumento<br />

<strong>do</strong>s insondáveis mistérios <strong>do</strong>s desígnios divinos. 33<br />

No início <strong>do</strong> século XIX, o Marquês de Laplace, conheci<strong>do</strong> físico e matemático<br />

francês, afirmava que a natureza e o homem eram guia<strong>do</strong>s por um conjunto de leis<br />

físicas imutáveis, das quais não seria possível qualquer espécie de evasão. Essas<br />

leis guiariam os destinos das partículas mais ínfimas da matéria até a formação <strong>do</strong>s<br />

pensamentos humanos. Ele formulou a suposição de que uma vez configura<strong>do</strong><br />

inicialmente o universo, “to<strong>do</strong>s os eventos futuros, incluin<strong>do</strong> os que envolvem<br />

30<br />

PESSOA, Fernan<strong>do</strong>. Odes de Ricar<strong>do</strong> Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25.<br />

31<br />

Op. Cit., p. 68.<br />

32<br />

Op. Cit., p. 93.<br />

33<br />

NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel,<br />

2003, p. 31.<br />

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experiências humanas de passa<strong>do</strong>, presente e futuro, foram especifica<strong>do</strong>s de<br />

maneira irreversível”. Tal suposição, como é bastante límpi<strong>do</strong>, não deixa espaço<br />

para o conceito de livre arbítrio e configura “uma forma extrema de determinismo<br />

científico”. Não obstante, não foi preciso mais que um século para que o conceito<br />

determinista de Laplace fosse derruba<strong>do</strong> por descobertas científicas como as bases<br />

da física quântica e o Princípio da Incerteza <strong>do</strong> físico Werner Heisenberg. 34<br />

É preciso questionar, como faz Casabona, se as investigações <strong>genética</strong>s podem<br />

constituir no campo criminológico um verdadeiro “retorno às teorias biológicas sobre<br />

a criminalidade”. 35<br />

Não parece restar dúvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizen<strong>do</strong>,<br />

retrocesso, às teorias biológicas deterministas sobre a criminalidade, a partir <strong>do</strong><br />

momento em que se cogita da descoberta de um ou vários genes responsáveis pelo<br />

agir criminoso ou pelos vícios comportamentais humanos. Quan<strong>do</strong> se verifica esse<br />

claro retrocesso à superada visão <strong>do</strong> <strong>crime</strong> como uma entidade natural pré –<br />

jurídica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e<br />

determinista, carrega<strong>do</strong> de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuñez,<br />

“el ser humano es plenamente humano cuan<strong>do</strong> es capaz de ir mas allá de onde es<br />

‘impulsa<strong>do</strong>’ y llegar al ámbito en que és ‘libre y responsable’, <strong>do</strong>nde decide. El ser<br />

humano se deshumaniza cuan<strong>do</strong> deja de ser responsable”. 36<br />

É bem verdade que por um la<strong>do</strong> a biologização <strong>do</strong> <strong>crime</strong> retira <strong>do</strong> homem criminoso<br />

o pesa<strong>do</strong> far<strong>do</strong> da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punição, que<br />

passa a configurar uma retribuição tão injusta quanto um castigo imposto a um<br />

animal que agiu movi<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com suas naturais predisposições. Em<br />

contrapartida, não mais existe a esperança de emenda <strong>do</strong> homem criminoso, razão<br />

pela qual se não se pode mais legitimamente falar em sua punição, pode-se<br />

conceber um legítimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o<br />

34 COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. Trad. Gi<strong>org</strong>io Cappelli. São Paulo: Gente, 2007, p. 85 –<br />

86. “Esse princípio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplaciano<br />

de um só golpe, já que demonstrou que qualquer configuração inicial <strong>do</strong> universo jamais poderia de<br />

fato ser determinada com a precisão que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace”.<br />

35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 – 114.<br />

36 NUÑEZ, Juan Martín. Sabiduria China. Disponíbel em: .<br />

Acesso em: 31 mar. 2007.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

infrator não é passível de reforma, seja por sua vontade manifestada<br />

espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social<br />

podem perfeitamente atingir extremos inimagináveis em outro contexto.<br />

Consideran<strong>do</strong> o homem delinqüente como porta<strong>do</strong>r de uma anomalia que<br />

inevitavelmente o precipita à conduta desviada, somente três opções podem ser<br />

aventadas: sua cura, sua neutralização ou sua eliminação pura e simples.<br />

Se a cura não era em regra uma hipótese palpável para Lombroso, os novos<br />

biologistas criminais, sustenta<strong>do</strong>s na <strong>genética</strong>, sonham com terapias profiláticas<br />

mediante manipulações tornadas possíveis com o avanço científico. Descoberta a<br />

presença de um “gene criminógeno”, quem sabe sua extração ou sua manipulação<br />

pudesse significar a produção de um novo homem devidamente adapta<strong>do</strong> às regras<br />

<strong>do</strong> convívio social? Além disso, a atuação poderia não somente ser repressiva e<br />

preventiva pós – delitual, mas realmente preventiva (pré – delitual), atuan<strong>do</strong> sobre<br />

os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham<br />

a enveredar-se pela senda <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, numa concepção algo parecida com a ficção<br />

cinematográfica de “Minority Report”.<br />

Aparentemente a <strong>genética</strong> aplicada à Criminologia seria porta<strong>do</strong>ra de grandes<br />

esperanças de um mun<strong>do</strong> melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.<br />

Não obstante, os potenciais da <strong>genética</strong> nesse e em outros campos têm si<strong>do</strong><br />

alarga<strong>do</strong>s de maneira fantasiosa, como será exposto no seguimento deste trabalho.<br />

Ademais, a manipulação <strong>genética</strong> altera<strong>do</strong>ra da personalidade humana pode ser um<br />

instrumento extremamente arbitrário, incompatível com o respeito da dignidade<br />

humana e com as concepções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito.<br />

A esperança de “recuperação”, “ressocialização”, “reforma”, “readaptação” ou<br />

“reeducação” <strong>do</strong> delinqüente permeia os sistemas normativos, mas merece<br />

questionamento quan<strong>do</strong> se aventa a autoritária “intervenção estatal na esfera da<br />

consciência” <strong>do</strong> infrator. Ao Esta<strong>do</strong> não é da<strong>do</strong> “oprimir a liberdade interna <strong>do</strong><br />

condena<strong>do</strong>, impon<strong>do</strong>-lhe concepções de vida e estilos de comportamento”. É, pois,<br />

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incompatível com o Esta<strong>do</strong> Democrático a imposição ao condena<strong>do</strong> <strong>do</strong>s valores<br />

<strong>do</strong>minantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator,<br />

o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negan<strong>do</strong>-se a adaptar-se às<br />

regras de convívio coletivo. 37<br />

É por isso que o moderno pensamento criminológico e penitenciário optou desde<br />

muito tempo pelo afastamento da “pretensão de reduzir o cumprimento da pena a<br />

um processo de transformação científica <strong>do</strong> criminoso em não criminoso”. 38<br />

Entretanto, conforme já exposto, ao criminoso determina<strong>do</strong> inevitavelmente por<br />

fatores endógenos não é somente o caminho terapêutico imaginável. Resta também,<br />

aban<strong>do</strong>nada a vã esperança em sua mudança, o caminho da neutralização por meio<br />

da prisão perpétua ou da eliminação pela pena de morte.<br />

Sabe-se que tais opções são impraticáveis no ordenamento jurídico brasileiro por<br />

força de normas constitucionais impedientes (art. 5º, XLVIII, “a” e “b”, CF). Mas, a<br />

discussão neste trabalho supera o âmbito estritamente jurídico – normativo razão<br />

pela qual se impõe a análise de todas as hipóteses.<br />

No seio de um regime orienta<strong>do</strong> por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais<br />

ou genéticos), seria natural o surgimento da idéia da eliminação <strong>do</strong>s inconvenientes<br />

ou pelo menos sua neutralização.<br />

Arendt, tratan<strong>do</strong> da configuração <strong>do</strong>s regimes totalitários, bem destaca que o<br />

“<strong>crime</strong>”, enquanto ação ou omissão deliberada é passível de “castigo”; já o “vício”,<br />

como pecha indelével e determinante <strong>do</strong> agir “só pode ser extermina<strong>do</strong>”. 39<br />

Citan<strong>do</strong> Proust, a autora lembra que a consideração de uma “predestinação<br />

<strong>genética</strong>” como motiva<strong>do</strong>ra de condutas pode produzir, até certo ponto, uma relativa<br />

tolerância para com os transgressores. Entretanto, “num certo momento essa<br />

37<br />

MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 39.<br />

38<br />

Op. Cit., p. 40.<br />

39<br />

ARENDT, Hanna. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1989, p. 109.<br />

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tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os<br />

verdadeiros criminosos, mas to<strong>do</strong>s os que estão ‘racialmente’ 40 predestina<strong>do</strong>s a<br />

cometer certos <strong>crime</strong>s, o que pode ocorrer quan<strong>do</strong> a máquina legal ou política,<br />

refletin<strong>do</strong> a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a<br />

pregarem essa necessidade de libertação social <strong>do</strong> perigo em potencial. Se for<br />

permiti<strong>do</strong> estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que<br />

liberta o homem de responsabilidade pelo <strong>crime</strong> torna<strong>do</strong> igual ao vício, ele será mais<br />

cruel e desumano <strong>do</strong> que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas<br />

respeitam e reconhecem a responsabilidade <strong>do</strong> homem por sua conduta”. 41<br />

É preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebi<strong>do</strong> como um<br />

ramo científico autônomo de caráter normativo, é altamente influencia<strong>do</strong> em sua<br />

conformação pelas concepções formuladas pela ciência criminológica. Pode-se<br />

afirmar que “a ciência penal, em data de hoje, é totalmente permeável às propostas<br />

da Criminologia”. 42<br />

Como afirma Peláez: 43<br />

La criminología y el derecho penal son <strong>do</strong>s ciencias autónomas , pero ni<br />

opuestas, ni separadas, más bien asociadas. No se resuelve ningún<br />

problema penal sin tener en cuenta los resulta<strong>do</strong>s de la criminología,<br />

convertida en base indispensable de la teoria y la práctica del derecho penal<br />

moderno, así como del derecho penitenciario y del derecho procesal.<br />

Cabe agora a seguinte indagação: qual espécie de Direito Penal seria aquele<br />

conforma<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com uma criminologia <strong>genética</strong>?<br />

A resposta evidente a esta relevante questão é a de que seria um modelo de Direito<br />

Penal Autoritário, estrutura<strong>do</strong> como um “Direito Penal <strong>do</strong> Autor” e não como um<br />

“Direito Penal <strong>do</strong> Fato”. As pessoas passariam a sofrer uma repressão criminal não<br />

por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.<br />

40<br />

Acrescentaríamos ao texto também a palavra “geneticamente”.<br />

41<br />

Op. Cit., p. 103.<br />

42<br />

NASCIMENTO, José Flávio Braga. Curso de Criminologia. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p.<br />

229.<br />

43<br />

PELÁEZ, Michelangelo. Introducción al studio de la criminología. Buenos Aires: Depalma, 1966, p.<br />

190.<br />

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Ferrajoli 44 expõe com absoluta propriedade esse modelo autoritário de Direito Penal:<br />

Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais<br />

perversas no esquema penal <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> tipo de autor, onde a hipótese<br />

normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’. A<br />

lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura<br />

status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função regula<strong>do</strong>ra, mas<br />

constitutiva <strong>do</strong>s pressupostos da pena; não é observável ou violável pela<br />

omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente<br />

observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. Está<br />

claro que ao faltar, antes inclusive da própria ação ou <strong>do</strong> fato, a proibição,<br />

todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se,<br />

com efeito, de uma técnica punitiva que, por isso, tem um caráter<br />

explicitamente discriminatório, além de antiliberal.<br />

Com referência a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, pode-se ir<br />

ainda mais longe com apoio no próprio Ferrajoli, chegan<strong>do</strong>-se à possibilidade da<br />

construção de um “modelo punitivo irracional”. Isso ten<strong>do</strong> em conta a idéia de uma<br />

prevenção especial pré – delitual, mediante a atuação sobre a pessoa, manipulan<strong>do</strong><br />

seu código genético para evitar a potencial conduta criminosa, hipótese aventada<br />

por aqueles que fazem uma profissão de fé nos poderes milagrosos da ciência<br />

<strong>genética</strong>.<br />

É o que o autor sob comento denomina de “Sistema de mera prevenção”, no qual a<br />

punição assume “a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva,<br />

não – tenha-se em conta – a função de ‘prevenção geral’, exercida por sua ameaça<br />

legal preventiva como conseqüência <strong>do</strong> delito, mas uma função de ‘prevenção<br />

especial’, ligada à sua cominação preventiva, como um prius em vez de um<br />

posterius relativamente ao fato criminoso. É evidente o caráter não igualitário,<br />

ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De<br />

conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de<br />

retribuição, dirigi<strong>do</strong> a prevenir fatos delituosos por meio da comprovação e da<br />

punição <strong>do</strong>s já ocorri<strong>do</strong>s, em sistema de pura prevenção, dirigi<strong>do</strong> a afrontar a mera<br />

suspeita de delitos cometi<strong>do</strong>s, mas não prova<strong>do</strong>s, ou o mero perigo de delitos<br />

futuros”. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a<br />

legalidade e a jurisdicionariedade, passan<strong>do</strong> a ser “informa<strong>do</strong> por meros critérios de<br />

44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et. al.” São Paulo: RT, 2002, p. 80 –<br />

81.<br />

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discricionariedade administrativa” e degeneran<strong>do</strong>-se ou perverten<strong>do</strong>-se em simples<br />

“procedimento policial de estigmatização moral, política e social”. 45<br />

É preciso refletir sobre essas conseqüências deletérias, capazes de deitar por terra<br />

conquistas seculares, antes de ceder às pressões de teorizações pseu<strong>do</strong> –<br />

científicas tenta<strong>do</strong>ras. Afinal, como adverte Carbonnier, “um manto de ilogicidade, de<br />

absur<strong>do</strong>, por intermédio <strong>do</strong> direito, tem invadi<strong>do</strong> a existência de cada ser humano.<br />

Nenhum cérebro resiste completamente a esta pressão da irracionalidade jurídica”.<br />

46<br />

2.3 O OTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENÉTICA<br />

O retrocesso que pode ocorrer com uma adesão acrítica a uma Criminologia<br />

Genética com pretensões de controle sobre a conduta humana mediante<br />

intervenções pré ou pós – delitivas, aparte estribar-se em concepções superadas <strong>do</strong><br />

<strong>crime</strong> e <strong>do</strong> criminoso como entes naturais marca<strong>do</strong>s por desvios patológicos,<br />

também apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma<br />

clara tendência para a conformação de uma estrutura totalitarista de poder.<br />

O fenômeno <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, amplia<strong>do</strong> muitas vezes de forma artificial pela mídia, com sua<br />

capacidade de comunicação nunca antes historicamente igualada ou sequer<br />

semelhante, mas também inegavelmente configura<strong>do</strong>r de uma justa preocupação<br />

social, ten<strong>do</strong> em vista a potencialização da violência real nas sociedades modernas,<br />

caracterizadas pela heterogeneidade multiplica<strong>do</strong>ra de desigualdades e conflitos,<br />

ocasiona uma constante demanda por soluções.<br />

Em meio a esse clima de terror, freqüentemente não se ponderam devidamente os<br />

custos e benefícios de certas vias apontadas como soluções para o problema da<br />

criminalidade, em especial a violenta.<br />

45 Op. Cit., p. 81 – 82.<br />

46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7ª. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: “Une nappe de<br />

déraison, d’absurdité, par l’intermédiaire du droit, a envahi l’existence de chaque homme. Aucun<br />

cerveau ne resiste complétement à cette pression de l’irrationnel juridique”.<br />

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Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais não é<br />

o <strong>crime</strong> em si mesmo, mas o perigo de que o encarniçamento na sua repressão<br />

termine por desembocar no totalitarismo. 47<br />

A Criminologia Genética nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de<br />

seus argumentos e demonstrações, o que induz à sua aparente neutralidade.<br />

É justamente essa característica de tal concepção acerca da questão criminal que<br />

pode conduzir a um terrível cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.<br />

O cientificismo é uma “ideologia daqueles que, por deterem o monopólio <strong>do</strong> saber<br />

objetivo e racional, julgam-se os detentores <strong>do</strong> verdadeiro conhecimento da<br />

realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa <strong>do</strong> saber”. 48<br />

Já foi destaca<strong>do</strong> neste trabalho como essa crença no saber científico como único<br />

detentor da verdade, sob a forma <strong>do</strong> pensamento positivista, influenciou a<br />

Criminologia, erigin<strong>do</strong> a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes<br />

etiológicas da Criminologia Clínica.<br />

É interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a<br />

possibilidade de qualquer contribuição da religião para o saber humano, também<br />

não deixa de erguer-se sobre pilares intocáveis que podem bem ser defini<strong>do</strong>s como<br />

verdadeiros “artigos de fé”: 49<br />

1) a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor <strong>do</strong>s sabe<strong>do</strong>res; 2) a<br />

ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver<br />

to<strong>do</strong>s os problemas práticos, desde que bem formula<strong>do</strong>s, quer dizer, positiva<br />

e racionalmente; 3) não somente é legítimo, mas sumamente desejável que<br />

seja confia<strong>do</strong> aos cientistas e aos técnicos o cuida<strong>do</strong> exclusivo de dirigirem<br />

to<strong>do</strong>s os negócios humanos e sociais; como somente eles sabem o que é<br />

verdadeiro, somente eles podem dizer o que é bom e justo nos planos ético,<br />

político, econômico, educacional etc.<br />

47<br />

CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Trad. Sara<br />

Costa. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24.<br />

48<br />

JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro:<br />

J<strong>org</strong>e Zahar, 1996, p. 44.<br />

49 Op. Cit., p. 44.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Como adverte Étienne Gilson 50 , os <strong>do</strong>gmas <strong>do</strong> cientificismo podem ser tão arbitrários<br />

quanto os religiosos o seriam de acor<strong>do</strong> com o ponto de vista <strong>do</strong>s cientistas. Assim<br />

sen<strong>do</strong>, se há realmente o perigo e exemplos históricos passa<strong>do</strong>s e contemporâneos<br />

de regimes totalitaristas influencia<strong>do</strong>s por concepções religiosas, igualmente pode-<br />

se temer e constatar exemplos semelhantes orienta<strong>do</strong>s pela crença desmedida nos<br />

atributos <strong>do</strong> saber científico.<br />

Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky <strong>org</strong>anizam uma coletânea de textos sobre a<br />

questão <strong>do</strong> fanatismo, chaman<strong>do</strong> a atenção para o fato de que não se deve falar em<br />

“fanatismo” (no singular), mas em “fanatismos” (no plural). 51 Dessa forma, a obra<br />

aborda o problema sob várias faces de sua manifestação, dividin<strong>do</strong> os textos em<br />

blocos que têm por temática comum o problema proposto, mas sob suas<br />

diversificadas “faces” (religiosa, racista, política e esportiva). 52<br />

A revelação divina atribuída a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos<br />

pode perfeitamente ser substituída pela crença em um suposto saber científico que<br />

acaba sen<strong>do</strong> “diviniza<strong>do</strong>”, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, é a tão<br />

decantada racionalidade científica que, levada a extremos, abre caminho para o<br />

irracionalismo característico <strong>do</strong>s fanatismos que, invariavelmente, desembocam no<br />

totalitarismo. A irracionalidade é condição para o fanatismo e também para o<br />

totalitarismo a partir <strong>do</strong> momento em que a contestação não tem espaço. 53 Certas<br />

“verdades científicas” acabam desqualifican<strong>do</strong> de tal forma seus opositores que<br />

ganham foros de intangibilidade. Se uma raça é perversa por natureza, que valor<br />

têm seus argumentos e que espécie de pessoas se dá ao trabalho de defendê-la?<br />

Se os porta<strong>do</strong>res de certos genes são maus, criminosos, pode-se dar crédito ao que<br />

dizem ou àqueles que pretendem defender seus direitos?<br />

A precaução contra essa espécie de “discurso científico” não configura um desejo de<br />

opressão à livre pesquisa e à própria liberdade de expressão na sociedade. Na<br />

50 Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Mace<strong>do</strong>. Lisboa: Edições 70, 2002, “passim”.<br />

51 Faces <strong>do</strong> Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 9.<br />

52 Op. Cit., p. 15 – 282.<br />

53 Op. Cit., p. 10.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

verdade, quan<strong>do</strong> um pensamento (científico ou não) tem a pretensão de naturalizar<br />

o mal moral, selecionan<strong>do</strong> determinadas categorias de pessoas como suas<br />

porta<strong>do</strong>ras, seja por que for (crentes de certa religião, pertencentes a uma raça,<br />

aderentes a um movimento político ou porta<strong>do</strong>res de certos genes); claro está que<br />

tais grupos é que terão seu direito de livre expressão absolutamente desrespeita<strong>do</strong>,<br />

de acor<strong>do</strong> com aquilo que Fiss denomina de “efeito silencia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> discurso”. Nessas<br />

circunstâncias o direito à livre expressão é limita<strong>do</strong> por si mesmo, pois, a partir <strong>do</strong><br />

momento em que seu exercício ilimita<strong>do</strong> implicaria no silenciar de contra –<br />

argumentos, nítida está a necessidade de impor-lhe limites. 54<br />

Embora não esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista não possa ainda<br />

cativar um número suficiente de incautos, ensejan<strong>do</strong> algo semelhante com o<br />

holocausto 55 , penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos<br />

genericamente considerada, tenha aprendi<strong>do</strong> alguma coisa com os erros <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> e não mais se deixe levar por ideologias tão grosseiras.<br />

No entanto, é fato que, como diz Bauman, “nenhuma das condições que tornaram<br />

Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada<br />

para evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a<br />

Auschwitz”. 56 Talvez o próprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento<br />

da dignidade humana no século XXI, mas se ele não convencer como antes, quem<br />

sabe uma versão mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?<br />

O nazismo se baseava em “verdades reveladas” pela “ciência”. Essas “verdades”<br />

convenceram as pessoas um dia a acreditarem que “o mais imbecil <strong>do</strong>s ‘arianos<br />

puros’ pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista”. Isso não<br />

resultava de uma “apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada<br />

pela propaganda nazista”. Tratava-se de um “<strong>do</strong>gma de fé” legitima<strong>do</strong> por<br />

argumentos pseu<strong>do</strong>científicos. 57<br />

54<br />

FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva<br />

Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 – 60.<br />

55<br />

Basta ver o que tem ocorri<strong>do</strong> na atualidade na África e Europa devi<strong>do</strong> a conflitos étnicos e raciais.<br />

56<br />

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e<br />

Zahar, 1998, p. 30.<br />

57<br />

PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (<strong>org</strong>s.). Op. Cit., p. 10.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Ainda antes disso, no século XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma<br />

sucessão de crânios que ia <strong>do</strong>s macacos, passan<strong>do</strong> pelos orangotangos até chegar<br />

aos negros e daí, seguin<strong>do</strong> num suposto processo evolutivo, até chegar à outra<br />

extremidade onde se achavam os asiáticos centrais e os europeus. Tratava-se<br />

também de uma explicação pseu<strong>do</strong>científica não só para a classificação das raças,<br />

mas também para justificar “as disparidades de poder, ordenan<strong>do</strong>-os em termos de<br />

superioridade e inferioridade”. 58<br />

Hoje a <strong>genética</strong>, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s rumos que venha a tomar, tem o potencial de<br />

engendrar uma versão mais sofisticada e sutil <strong>do</strong> racismo, com alto potencial<br />

genocida e viola<strong>do</strong>r da dignidade humana.<br />

Na extensa obra de Hannah Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato<br />

<strong>entre</strong> as características de um totalitarismo racista e segrega<strong>do</strong>r opera<strong>do</strong> no<br />

passa<strong>do</strong>, com o potencial modelo calca<strong>do</strong> no determinismo genético da atualidade.<br />

Uma primeira e importante aproximação encontra-se no fato de que o poder<br />

genético projeta<strong>do</strong> sobre o homem é muito mais profun<strong>do</strong> e opressivo <strong>do</strong> que<br />

qualquer outro exemplo de controle político antes existente e executável.<br />

É uma característica inerente aos regimes totalitários não se contentar com a<br />

simples “irradiação <strong>do</strong> poder”, controlan<strong>do</strong> os destinos exteriores das pessoas, mas<br />

pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, <strong>do</strong>nde o biopoder torna-se<br />

o sonho de qualquer burocracia totalitária com sua gana de controle absoluto,<br />

poden<strong>do</strong> interferir “com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior”. 59<br />

Não é sem razão que as utopias da biotecnologia têm evoca<strong>do</strong> a memória <strong>do</strong><br />

nazismo e de outros regimes totalitários, conforme expõe o jornalista e historia<strong>do</strong>r<br />

José Arbex Júnior em <strong>entre</strong>vista concedida a Cláudio Tognolli:<br />

58<br />

FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Trad. Rosaura Eichemberg.<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81.<br />

59<br />

ARENDT, Hanna. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1989, p. 277.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

“Toda utopia tem uma forte vocação totalitária (a perfeição de um não – lugar que<br />

projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como<br />

uma ‘nova utopia’, ela me produz uma sensação de desumanização <strong>do</strong> homem por<br />

um jogo, que tem como um <strong>do</strong>s componentes a total biologização <strong>do</strong> corpo<br />

(entendi<strong>do</strong> como máquina produtiva) e como outro componente a erradicação <strong>do</strong><br />

desejo, no senti<strong>do</strong> lacaniano, que só pode existir como resposta ao precário e ao<br />

frágil provisório que constitui a humanidade <strong>do</strong> homem; o desejo da máquina<br />

biotecnológica é substituí<strong>do</strong> por metas, por ‘vontade de potência’. Isso me cheira a<br />

nazismo”. 60<br />

Também Leão Serva 61 , em <strong>entre</strong>vista similar manifesta-se no mesmo senti<strong>do</strong>,<br />

afirman<strong>do</strong> ver a biotecnologia “como a manifestação contemporânea <strong>do</strong> modelo de<br />

medicina persegui<strong>do</strong> pelos nazistas”.<br />

Entretanto, o poder de sedução desta e de outras utopias tendencialmente<br />

totalitárias é muito grande e tem como sustentação <strong>do</strong>is pilares: o formato “científico”<br />

de apresentação das idéias e a propaganda que difunde a ideologia.<br />

A ciência funciona como um manto de segurança e neutralidade a legitimar o poder<br />

absoluto pretendi<strong>do</strong>. Nas palavras de Arendt: 62 “Tanto no caso da publicidade<br />

comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto <strong>do</strong><br />

poder. A obsessão <strong>do</strong>s movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’<br />

desaparece assim que eles assumem o poder”.<br />

As informações veiculadas pela imprensa, dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong>s supostos potenciais da<br />

<strong>genética</strong> para a solução de to<strong>do</strong>s os problemas humanos, colaboram para o reforço<br />

da crença em uma utopia que se projeta para o futuro.<br />

Além <strong>do</strong> fato de que tais informações nem mesmo retratam a realidade <strong>do</strong> estágio<br />

das pesquisas e o verdadeiro potencial das técnicas, também ensejam um clima de<br />

60 TOGNOLLI, Cláudio. A falácia da <strong>genética</strong>. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 233.<br />

61 Op. Cit., p. 238.<br />

62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

aposta cega numa “salvação” que a ciência (agora a <strong>genética</strong>) teria o condão de<br />

propiciar à humanidade, de forma a tornar desinteressantes considerações de ordem<br />

ética sobre os procedimentos e conseqüências.<br />

Bauman 63 alerta para o fato de que a ciência costuma ser posta à parte das<br />

considerações morais, mediante a preponderância <strong>do</strong> foco nos fins, sen<strong>do</strong> os meios<br />

relega<strong>do</strong>s a segun<strong>do</strong> plano, pelo menos quanto ao aspecto ético:<br />

(...), mais <strong>do</strong> que qualquer outra autoridade, a ciência é autorizada pela<br />

opinião pública a praticar o princípio, de outra forma eticamente odioso, de<br />

que os fins justificam os meios. A ciência é o mais completo exemplo da<br />

dissociação <strong>entre</strong> meios e fins, que é o ideal da <strong>org</strong>anização racional da<br />

conduta humana: os fins é que são submeti<strong>do</strong>s a avaliação moral, não os<br />

meios.<br />

Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento científico tem si<strong>do</strong><br />

freqüentemente utilizada justamente para protelar as discussões, geran<strong>do</strong><br />

argumentos incontestáveis no presente, já que seus efeitos promissores são sempre<br />

projeta<strong>do</strong>s para o futuro, de mo<strong>do</strong> a justificarem a atuação presente sem maiores<br />

considerações éticas sobre os meios, ten<strong>do</strong> em vista os fins que se vislumbram à<br />

frente.<br />

Eis a lição de Arendt 64 :<br />

63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187.<br />

64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.<br />

A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de<br />

afirmações proféticas a um ponto antes ignora<strong>do</strong> de eficiência metódica e<br />

absur<strong>do</strong> de conteú<strong>do</strong> porque, <strong>do</strong> ponto de vista demagógico, a melhor<br />

maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de<br />

verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos.<br />

Contu<strong>do</strong>, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse méto<strong>do</strong> e<br />

não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de<br />

massa tem si<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> tão universal na política moderna que<br />

chegou a ser identifica<strong>do</strong> como sintoma mais geral da obsessão com a<br />

ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e<br />

da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último<br />

estágio de um processo durante o qual “a ciência tornou-se um í<strong>do</strong>lo que,<br />

num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza<br />

<strong>do</strong> homem”.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Percebe-se, portanto, quão comum é que o totalitarismo se aproprie e aproveite <strong>do</strong><br />

cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultação de<br />

propósitos, inclusive sem grande preocupação com a real consistência das teorias<br />

“científicas” preconizadas.<br />

Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma “febre biocrática” 65 a<br />

ensejar um poder de caracteres absolutamente inéditos na história da humanidade.<br />

À “biocracia” corresponde a implantação de um “biopoder”, o qual apresenta um<br />

espectro de irradiação muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre<br />

os destinos de toda uma população, inclusive de gerações futuras. 66<br />

Esse biopoder, exercita<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> uma sociedade livre <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e da violência, seria<br />

<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s instrumentos necessários para atuar sobre os genes a fim de adequar o<br />

comportamento da população às regras sociais consideradas convenientes.<br />

Uma grave questão está em saber a quem seria da<strong>do</strong> o privilégio de decidir quais<br />

seriam os padrões deseja<strong>do</strong>s por tal sociedade.<br />

Talvez a suposta neutralidade científica indique que esse poder não deva<br />

concentrar-se nas mãos de uma pessoa determinada, mas ser exerci<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong><br />

com o conhecimento técnico – científico devidamente burocratiza<strong>do</strong>. Nesse contexto<br />

o exercício <strong>do</strong> poder não apresenta um centro de irradiação, tornan<strong>do</strong>-se impessoal,<br />

alicerça<strong>do</strong> em critérios técnicos praticamente incontestáveis.<br />

Essa diluição <strong>do</strong> poder, longe de enfraquecê-lo em sua atuação sobre o indivíduo,<br />

torna-o absoluto. A conversão <strong>do</strong>s governos em “burocracias” faz com que não<br />

pertençam mais ao império da lei ou <strong>do</strong>s homens, emanan<strong>do</strong> agora de “escritórios<br />

ou computa<strong>do</strong>res anônimos, cuja <strong>do</strong>minação inteiramente despersonalizada pode vir<br />

a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual<br />

65 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 94.<br />

66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvão. São Paulo: Martins Fontes,<br />

2000, p. 296.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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nenhuma vida comunitária é concebível, <strong>do</strong> que jamais foi a mais abusiva<br />

arbitrariedade <strong>do</strong>s tiranos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. 67<br />

Um <strong>do</strong>s traços que diferenciam as ditaduras <strong>do</strong>s governos totalitários está na<br />

burocratização <strong>do</strong> poder torna<strong>do</strong> impessoal e, por isso, ainda mais arbitrário,<br />

distante e atroz. A burocracia enquanto “man<strong>do</strong> de ninguém”, torna-se “a forma<br />

menos humana e mais cruel de governo”. 68<br />

Essa característica de um “governo de ninguém”, que não significa “ausência de<br />

governo”, como uma das mais “tirânicas e cruéis” versões <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder é<br />

insistentemente destacada nas obras de Arendt. 69<br />

A impessoalidade <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder sustenta-se também na crença em uma<br />

“ficção comunística”, ou seja, na suposição da existência de um interesse comum da<br />

sociedade, o qual poderia ser assegura<strong>do</strong> pela força de uma “mão invisível” que<br />

teria o condão de guiar o comportamento humano e produzir a harmonização de<br />

eventuais conflitos de interesses. 70<br />

Ora, o que mais convincente e adequa<strong>do</strong> a esse tipo de pensamento <strong>do</strong> que uma<br />

modalidade de poder exercitável sobre a humanidade, partin<strong>do</strong> de seu interior, de<br />

códigos genéticos sutilmente manipula<strong>do</strong>s para guiar de forma irresistível o<br />

comportamento e harmonizar a convivência social?<br />

É impossível não fazer a ligação de to<strong>do</strong> esse contexto com a obra de ficção, hoje<br />

nem tanto futurista, de Huxley, “Admirável Mun<strong>do</strong> Novo”, na qual um governo<br />

totalitário instrumentaliza homens e mulheres “padroniza<strong>do</strong>s em grupos uniformes”,<br />

objetivan<strong>do</strong> a consecução da “estabilidade social”. 71<br />

67<br />

ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 2004, p. 66.<br />

68<br />

Op. Cit., p. 94 – 95.<br />

69<br />

IDEM. A Condição Humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária,<br />

2004, p. 50.<br />

70<br />

Op. Cit., p. 53 – 54.<br />

71<br />

HUXLEY, Al<strong>do</strong>us. Admirável Mun<strong>do</strong> Novo. 2ª. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo:<br />

Globo, 2003, p. 14.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

2.4 A DESCONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAÇÃO DA<br />

DIGNIDADE HUMANA<br />

Quan<strong>do</strong> se trata da possibilidade de manipulação <strong>genética</strong>, especialmente<br />

levantan<strong>do</strong>-se a hipótese de alteração <strong>do</strong> genoma humano, mediante a exclusão de<br />

características consideradas negativas a critério de quem quer que seja, impossível<br />

não vislumbrar uma flagrante violação da autenticidade <strong>do</strong> homem em sua natural<br />

diversidade.<br />

Certamente uma das piores violências a serem perpetradas contra a humanidade<br />

seria a exclusão arbitrária da riqueza da diversidade, característica esta, aliás, muito<br />

claramente constatável por meio da própria <strong>genética</strong>, a qual demonstra a<br />

singularidade de cada ser humano.<br />

Talvez as gerações que não tenham conheci<strong>do</strong> o que seria viver em um mun<strong>do</strong><br />

onde as diferenças se chocavam sim, mas também surpreendiam, se completavam<br />

e libertavam, não tenham noção daquilo que perderam. Entretanto, não é justo que<br />

nós, cientes <strong>do</strong> que significa essa perda, condenemos nossos pósteros a um mun<strong>do</strong><br />

de homogeneidade monótona e arbitrária.<br />

O que nos restaria em um mun<strong>do</strong> de seres humanos pré – molda<strong>do</strong>s ao sabor de<br />

uma burocracia qualquer, detentora <strong>do</strong> poder decisório <strong>do</strong> que seja bom ou mau em<br />

relação à capacidade de conduta e à personalidade?<br />

Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofunda<strong>do</strong>, retrata<strong>do</strong> por<br />

Saramago 72 ao ver os pés de oliveira <strong>do</strong>s campos de sua terra natal expulsos pelo<br />

milho híbri<strong>do</strong> por força de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:<br />

Por cada pé de oliveira arranca<strong>do</strong>, a Comunidade Européia pagou um prêmio<br />

aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em<br />

lugar <strong>do</strong>s misteriosos e vagamente inquietantes olivais <strong>do</strong> meu tempo de<br />

criança e a<strong>do</strong>lescente, em lugar <strong>do</strong>s troncos retorci<strong>do</strong>s, cobertos de musgo e<br />

líquenes, esburaca<strong>do</strong>s de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar<br />

72 SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sséis de ramos carrega<strong>do</strong>s de azeitonas negras e de pássaros, o que<br />

se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável<br />

campo de milho híbri<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> com a mesma altura, talvez com o mesmo<br />

número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e<br />

o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo<br />

número de bagos.<br />

Jonas fala em sua obra das utopias <strong>do</strong> “homem autêntico vin<strong>do</strong>uro”, d<strong>entre</strong> as quais<br />

menciona o “super – homem” <strong>do</strong> futuro de Nietzsche, e a superioridade <strong>do</strong>s homens<br />

cria<strong>do</strong>s numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias<br />

socialistas. O primeiro não disse jamais uma palavra sobre o que se poderia<br />

concretamente fazer para o advento de seu “super – homem”. Os segun<strong>do</strong>s<br />

alicerçavam suas crenças nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida<br />

sobre um modelo econômico revolucionário. 73 Mas, ambas as teorizações têm em<br />

comum um projeto de homogeneização <strong>do</strong> humano, extirpan<strong>do</strong> as diferenças, as<br />

variações, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da própria personalidade.<br />

Quem sabe na atualidade a manipulação <strong>genética</strong> pudesse tornar tais projetos bem<br />

mais palpáveis?<br />

A questão, porém, é saber se é possível falar em um homem autêntico construí<strong>do</strong> na<br />

homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboçar a autenticidade<br />

humana, a destrói, ao pretender eliminar a diferença, o inespera<strong>do</strong> e até o ambíguo<br />

que é inerente à humanidade.<br />

Nas palavras de Jonas: 74<br />

Tendremos también que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza<br />

unívoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( en<br />

si) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidad de ser bueno o ser malo,<br />

más aún, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Cierto<br />

es que de los grandes malva<strong>do</strong>s se dice que son inhumanos, pero solo los<br />

hombres pueden ser inhumanos; y los grandes malva<strong>do</strong>s ponen de manifesto<br />

la naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habrá de<br />

rechazarse también, por tanto, la idea de una riqueza de la naturaleza<br />

humana existente, pero <strong>do</strong>rmida, que solo aguarda a ser abierta (des –<br />

encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse.<br />

Solamente existe la <strong>do</strong>tación biológico – anímica de esta naturaleza para la<br />

riqueza y pobreza del poder – ser; riqueza y pobreza son igualmente<br />

73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona:<br />

Herder, 1995, p. 258 – 263.<br />

74 Op. Cit., p. 350 – 351.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

naturales, si bien se da un pre<strong>do</strong>mínio de la última, pues la pobreza en<br />

humanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas como<br />

elegida – incluso en las circunstancias más favorables – por la pereza y la<br />

sobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riqueza<br />

del yo, además del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de la<br />

lucha contra la pereza).<br />

A extinção dessa potência <strong>do</strong> “poder – ser” humano convertida em um ser pré –<br />

fabrica<strong>do</strong> é altamente limita<strong>do</strong>ra. Se por um la<strong>do</strong>, como já visto, a crença em um<br />

determinismo biológico ou genético exime o homem de responsabilidade, também<br />

lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim também, a construção de um<br />

homem geneticamente direciona<strong>do</strong> para o “bem” (ainda que sem entrar em<br />

pormenores sobre a legitimidade desse conceito formula<strong>do</strong> por alguém ou alguns),<br />

praticamente extermina a noção <strong>do</strong> mérito da ação moral, juntamente com a<br />

liberdade e a identidade de cada ser humano.<br />

É bem verdade que a grandeza da liberdade não é isenta de riscos, inclusive<br />

altamente negativos. Mas, é preferível viver em um mun<strong>do</strong> onde a escolha é<br />

possível <strong>do</strong> que em outro onde tu<strong>do</strong> é pré – determina<strong>do</strong>. É de Viktor Frankl 75 a<br />

afirmação de que é melhor um mun<strong>do</strong> no qual seja possível, por um la<strong>do</strong>, um<br />

fenômeno como o de A<strong>do</strong>lf Hitler e, por outro, o de tantos santos que já viveram.<br />

Necessário se faz recordar que a singularidade é uma nota característica de toda<br />

existência humana. 76<br />

Há um terrível perigo que corre to<strong>do</strong> aquele que tem a pretensão de aprimorar algo,<br />

qual seja, o risco de que suas mudanças acabem por desnaturar o original,<br />

transforman<strong>do</strong>-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que<br />

inicialmente era.<br />

Um breve conto de Brecht 77 muito bem ilustra esse dilema:<br />

75 Apud, PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em:<br />

www.latautonomy.<strong>org</strong> , acesso em 31.03.07, p. 44. É bom lembrar que Frankl sofreu na pele as<br />

agruras <strong>do</strong> nazismo.<br />

76 Op. Cit., p. 46.<br />

77 BRECHT, Bertolt. Histórias <strong>do</strong> Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34,<br />

2006, p. 33.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

O personagem Sr. Keuner narra, no episódio intitula<strong>do</strong> “Forma e Conteú<strong>do</strong>”,<br />

que certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe <strong>entre</strong>gou uma tesoura e<br />

man<strong>do</strong>u aparar um loureiro, orientan<strong>do</strong>-o a fazer o corte de mo<strong>do</strong> que a<br />

árvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu início imediato ao<br />

trabalho, cortan<strong>do</strong> os brotos selvagens, mas sentin<strong>do</strong> sérias dificuldades para<br />

atingir o formato de uma bola. Finalmente a árvore tomou em suas folhagens<br />

o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por isso, quan<strong>do</strong> o<br />

jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepciona<strong>do</strong>: “Certo, isto é<br />

uma bola, mas onde está o loureiro?”.<br />

O desejo de aprimoramento <strong>do</strong> homem por meios genéticos revela um anelo de fuga<br />

da “condição humana” que nos é dada para ingressar em um novo estágio no qual o<br />

próprio homem pretende moldar sua condição. Move a humanidade um desejo<br />

inconti<strong>do</strong> de afastamento da natureza, seja pela criação de ambientes artificiais,<br />

seja, agora, pela possibilidade da criação de um “homem artificial”. É esse<br />

desiderato que se manifesta quan<strong>do</strong> se pretende criar a vida em uma proveta ou unir<br />

sob um microscópio o sêmen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir<br />

“seres humanos superiores”, mudar-lhes as dimensões, as formas, as capacidades<br />

etc. Também certamente o mesmo desejo de escapar da “condição humana” anime<br />

a “esperança de prolongar a duração da vida humana para além <strong>do</strong>s cem anos”.<br />

Realmente o homem <strong>do</strong> futuro, projeta<strong>do</strong> pelos cientistas para menos de um século,<br />

“parece motiva<strong>do</strong> por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi<br />

dada – um <strong>do</strong>m gratuito vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada (secularmente falan<strong>do</strong>), que ele deseja<br />

trocar, por assim dizer, por algo produzi<strong>do</strong> por ele mesmo. Não há razão para<br />

duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo<br />

para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida <strong>org</strong>ânica da Terra. A<br />

questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento<br />

científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é<br />

uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por<br />

cientistas profissionais nem por políticos profissionais”. 78<br />

O que Arendt propõe é que os potenciais e riscos advin<strong>do</strong>s com os novos<br />

conhecimentos científicos não sejam simplesmente “engoli<strong>do</strong>s” por to<strong>do</strong>s em silêncio<br />

respeitoso à figura <strong>do</strong> “cientista sábio”. A autora convida to<strong>do</strong>s a agirem,<br />

conceben<strong>do</strong> a ação como a efetiva participação política nas importantes decisões a<br />

78 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense<br />

Universitária, 2004, p. 10 – 11.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexão sobre os rumos a serem<br />

segui<strong>do</strong>s não são pertencentes a um grupo privilegia<strong>do</strong>, mas a toda humanidade. 79<br />

E neste ponto podemos retomar com Arendt a questão da singularidade humana<br />

como essencial para a preservação da autenticidade <strong>do</strong> homem.<br />

Lembran<strong>do</strong> Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como<br />

um <strong>do</strong>s fatores preponderantes na diferença <strong>entre</strong> o homem e o animal. Isso porque<br />

o primeiro foi cria<strong>do</strong> “unum ac singulum”, enquanto os animais foram ordena<strong>do</strong>s a<br />

existirem “vários de uma só vez” (“plura simul iussit existere”). Para Santo Agostinho,<br />

a criação demonstra que os animais vivem como “espécie”, ao passo que os<br />

homens têm uma existência singular. Resta claro que “a pluralidade é a condição da<br />

ação humana pelo fato de sermos to<strong>do</strong>s os mesmos, isto é, humanos, sem que<br />

ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existi<strong>do</strong> ou venha a<br />

existir”. 80<br />

Note-se que a ação <strong>do</strong> homem, isto é, sua participação ativa na sociedade, seus<br />

atos próprios, suas manifestações pessoais, só é viável, ten<strong>do</strong> em conta sua<br />

singularidade; o inespera<strong>do</strong> que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o<br />

homem pode ser o mesmo que o cão eterno viven<strong>do</strong> na espécie, com seus lati<strong>do</strong>s e<br />

o rabo a abanar <strong>do</strong> início ao fim <strong>do</strong>s séculos, como vislumbra Schopenhauer. 81<br />

Acontece que no homem está ínsita a novidade e “o novo sempre surge sob o<br />

disfarce <strong>do</strong> milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode<br />

esperar dele o inespera<strong>do</strong>, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E<br />

isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada<br />

nascimento, vem ao mun<strong>do</strong> algo singularmente novo”. 82 Pretender evitar essa<br />

originalidade é o mesmo que destruir um milagre.<br />

79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial ênfase à importância que Hanna Arendt dá à participação<br />

ativa <strong>do</strong> homem na sociedade (“Vita Activa”). Para a autora o que caracteriza o homem em sua<br />

condição humana é a ação, entendida como participação política, manifestação de sua personalidade<br />

e identidade no seio da sociedade. O labor e o trabalho também integram o ser <strong>do</strong> homem, sua<br />

condição, mas somente a ação é que o caracteriza realmente como humano.<br />

80 Op. Cit., p. 16.<br />

81 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte, Metafísica <strong>do</strong> Amor, Do sofrimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Trad. Pietro<br />

Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46.<br />

82 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 191.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

A singularidade necessariamente se imbrica com a liberdade, pois somente sen<strong>do</strong><br />

livre poderá o homem ser o que desejar ser e não aquilo a que seja obriga<strong>do</strong> a ser<br />

por forças naturais ou por outros homens. Não é sem razão que Max Frisch define a<br />

identidade como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja”. 83<br />

A tentativa de levar adiante a metáfora da identidade humana como um quebra –<br />

cabeças a ser monta<strong>do</strong> com peças pré – determinadas é vã e inadequada. Esse<br />

quebra – cabeças somente seria aceitável se fosse assumi<strong>do</strong> como sempre<br />

incompleto e imprevisível, deixa<strong>do</strong> nas mãos de cada homem singular para criar sua<br />

identidade livre da opressão ou limites externos. 84<br />

O homem jamais pode ser concebi<strong>do</strong> como uma espécie de massa de moldar.<br />

Somente a crueldade profunda e a megalomania ou uma inocência pueril podem<br />

levar a crer ser possível direcionar vidas humanas como brinque<strong>do</strong>s de crianças.<br />

Arendt chama a atenção para o fato de que a expressão “material humano” não<br />

deve ser percebida simplesmente como uma metáfora inofensiva.<br />

Ao seu la<strong>do</strong> seguem “inúmeras experiências científicas modernas no campo da<br />

engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral etc., todas visan<strong>do</strong> a<br />

manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro<br />

material”. Essa é uma postura “mecanicista” característica da modernidade. Na<br />

antiguidade, visan<strong>do</strong> os mesmos objetivos, o homem era concebi<strong>do</strong> “como um<br />

animal selvagem que devia ser <strong>do</strong>ma<strong>do</strong> e <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>”. O que importa é que em<br />

qualquer caso, esse tratamento implica na “morte <strong>do</strong> homem”, talvez não como<br />

“<strong>org</strong>anismo vivo, mas enquanto homem”. 85<br />

Ratzinger também alerta para o perigo inerente à tentação <strong>do</strong> homem “criar o<br />

homem”. Nada mais que uma recente “forma de poder, que aparentemente pode até<br />

parecer benéfica e digna de aprovação, mas que na realidade poderia tornar-se uma<br />

nova ameaça para o homem”. É sabi<strong>do</strong> ser possível produzir homens em tubos de<br />

83 Apud, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar,<br />

2005, p. 45.<br />

84 Op. Cit., p. 54 – 55.<br />

85 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 201.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

ensaio, mas com isso o humano “torna-se um produto”, alteran<strong>do</strong> drasticamente seu<br />

relacionamento consigo mesmo. Perde a característica de um “<strong>do</strong>m da natureza ou<br />

<strong>do</strong> Deus cria<strong>do</strong>r” para tornar-se “produto de si mesmo”, numa descida até as<br />

profundezas “da fonte de poder, até as nascentes de sua própria existência”. Daí<br />

conclui-se que “a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer<br />

experiências com o homem, a tentação de considerar como lixo os homens e livrar-<br />

se deles já não são mais fantasias de moralistas hostis ao progresso”. 86<br />

É imperativo rechaçar qualquer visão reducionista <strong>do</strong> humano capaz de<br />

instrumentalizá-lo, violan<strong>do</strong> sua dignidade e produzin<strong>do</strong> sua reificação. Viktor Frankl<br />

advoga a urgência de superar qualquer espécie de reducionismo. E há reducionismo<br />

na visão biologista, no condutivismo, no psicologismo, no sociologismo e até no<br />

antropologismo. Todas essas visões reducionistas levam ao niilismo e constroem<br />

uma falsa imagem <strong>do</strong> homem, pois o concebem como um “homúnculo”, um artefato.<br />

Dessa forma não se pode compreender o homem, mas sim estabelecer-lhe uma<br />

imagem distorcida e mutilada, extremamente pobre, a que se pode denominar de<br />

“homunculismo”, na qual o ser humano é visto como um autômato de reflexos e<br />

instintos, como um mero produto de impulsos, herança e meio ambiente. 87<br />

Para trabalhar com o que é humano é preciso acostumar-se com o imprevisível e<br />

não pretender eliminá-lo das equações; é preciso tolerar e, mais que isso, valorizar a<br />

diversidade <strong>do</strong> gênero humano. Caso contrário, o que ocorre é uma tendência ao<br />

“genocídio”, entendi<strong>do</strong> como “um ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é,<br />

a uma característica <strong>do</strong> ‘status humano’ sem a qual a simples palavra ‘humanidade’<br />

perde o senti<strong>do</strong>”. 88 Não é porque a forma de eliminação da diversidade é praticada<br />

com maior sutileza, através de manipulações microscópicas, e não por meio de<br />

massacres de milhares de pessoas em câmaras de gás, a golpes de facão ou por<br />

fuzilamento, que o ato genocida é menos gravoso ou inexiste. Ao reverso, quanto<br />

mais sutil, mais imperceptível e insidiosa a ação, maior o seu potencial destrutivo.<br />

86 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Bento XVI questões de fé, ética e pensamento na<br />

obra de Joseph Ratzinger. Trad. Roberto Cattani. São Paulo: Claridade, 2005, p. 107 – 108.<br />

87 Apud, PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em<br />

www.latautonomy.<strong>org</strong> , acesso em 31.03.07, p. 38.<br />

88 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. 6ª.ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1999, p. 291.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

A tal ponto pode chegar a atuação da ciência por meio da <strong>genética</strong>, alteran<strong>do</strong><br />

arbitrariamente o genoma humano, que caracteres podem simplesmente deixar de<br />

existir de forma irrecuperável, atingin<strong>do</strong> irreversivelmente futuras gerações.<br />

Este é um <strong>do</strong>s novos desafios da ética contemporânea, o qual produz uma<br />

“densificação da noção de responsabilidade”. A responsabilidade requerida nos dias<br />

atuais se apresenta muito mais complexa e gera<strong>do</strong>ra de maior comprometimento.<br />

Na ética tradicional a responsabilidade <strong>do</strong> ator se adstringe ao que é previsível,<br />

àquilo que é controlável no espaço <strong>do</strong> cognoscível, <strong>do</strong> imediato ou, no máximo, <strong>do</strong><br />

próximo. Mas, esse paradigma se alterou muito drástica e rapidamente, de mo<strong>do</strong><br />

que hoje “somos também responsáveis por tu<strong>do</strong> aquilo que, muito embora não seja<br />

imediatamente previsível é já expectável”. Não é à toa que se firma atualmente uma<br />

chamada “Fernethik”, ou seja, uma ética de responsabilidade que “carrega em si o<br />

elemento novo da distância longínqua”. Dessa maneira, vivemos o futuro no<br />

presente, um futuro que se mostra “não como simples e encantatória evanescência,<br />

mas como uma realidade densa que condiciona toda e qualquer decisão de hoje”.<br />

Opera-se, em verdade, uma “contração temporal” a que não estavam familiarizadas<br />

as construções éticas tradicionais. 89<br />

Retoman<strong>do</strong> a especificidade <strong>do</strong> objeto deste trabalho, deve-se considerar que a<br />

diversidade humana não se manifesta somente nas diferenças <strong>entre</strong> os homens,<br />

mas também na impermanência <strong>do</strong> homem em relação a si mesmo; no fato de que<br />

to<strong>do</strong> ser humano jamais pode ser toma<strong>do</strong> como acaba<strong>do</strong>, pronto ou definitivo. O<br />

homem é sempre um projeto, um contínuo porvir, como bem retratam as palavras <strong>do</strong><br />

poeta: 90<br />

“Quem és não o serás, que o tempo e a sorte”.<br />

Te mudarão em outro”.<br />

Portanto, é absurda a pretensão de prever ou prognosticar quem será o homem que<br />

hoje se apresenta à nossa frente, seja com base em que espécie de conhecimento<br />

89 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de Filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.<br />

200 – 201.<br />

90 PESSOA, Fernan<strong>do</strong>. Op. Cit., p. 141.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

for inclusive no genético. Não há como cortar fatores e simplificar arbitrariamente a<br />

complexa e caótica equação humana. Certamente aqui se pode falar com segurança<br />

de uma “complexidade irredutível”. Quan<strong>do</strong> essa simplificação é levada a efeito,<br />

reduz-se o homem a um ou alguns de seus aspectos isola<strong>do</strong>s, mutilan<strong>do</strong>-o e<br />

converten<strong>do</strong>-o no “homúnculo” caricato de que fala Viktor Frankl.<br />

No ano de 1959, Roberto Rosselini produziu um filme chama<strong>do</strong> “O General Della<br />

Rovere”. Segun<strong>do</strong> consta, a história é baseada em fatos reais. Conta o filme haver<br />

um homem mal caráter, um baixo vigarista, capaz de tirar dinheiro <strong>do</strong> luto alheio, da<br />

<strong>do</strong>r e da aflição das pessoas, sem pesar-lhe um momento sequer a consciência.<br />

Frente às suas vítimas, procura iludi-las a elas e a si mesmo, argumentan<strong>do</strong> haver<br />

agi<strong>do</strong> movi<strong>do</strong> pela piedade. Ora, desde que um tal sentimento possa render<br />

dinheiro, tu<strong>do</strong> bem. Seu nome é Bran<strong>do</strong>ne e segue obten<strong>do</strong> dinheiro em troca de<br />

vãs promessas de ajuda “a presos políticos, resistentes, guerrilheiros, em poder <strong>do</strong>s<br />

alemães”. É um homem sedutor, de fala macia “por natureza e necessidade <strong>do</strong><br />

ofício”, um engana<strong>do</strong>r medíocre que seguiria nessa toada até o fim de seus dias ou<br />

até um golpe de monta que o fizesse enriquecer e poder, finalmente, ingressar no<br />

grupo das pessoas que vivem honestamente. No entanto, está este homem<br />

destina<strong>do</strong> a outra conquista: “a da dignidade”.<br />

Quan<strong>do</strong> suas artimanhas são descobertas a Gestapo lhe oferece a chance de<br />

salvar-se e ainda locupletar-se com uma gorda recompensa em dinheiro. Ele aceita.<br />

Sua missão é ocupar na prisão o lugar <strong>do</strong> General Della Rovere (o qual morreu no<br />

desembarque clandestino na Itália, quan<strong>do</strong> deveria encontrar-se com Fabrizio, um<br />

líder da resistência). Bran<strong>do</strong>ne deveria agir para denunciar o líder Fabrizio, o qual<br />

também estava preso, mas cuja identidade era ignorada pela Gestapo. No<br />

seguimento natural das coisas Bran<strong>do</strong>ne iria fechar sua carreira de imoralidades<br />

como “o grande denunciante”, “o grande trai<strong>do</strong>r”. Ele que nunca passara de um<br />

estelionatário medíocre, poderia terminar na riqueza e, quem sabe, ainda usufruin<strong>do</strong><br />

alguma “honra”, como um comenda<strong>do</strong>r ou coisa semelhante ao final da guerra.<br />

Acontece que “as oportunidades e as situações é que fazem e desfazem os<br />

homens”. Disfarça<strong>do</strong> como o general, recolhi<strong>do</strong> a uma cela “cujas paredes<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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conservam ainda as palavras de despedida <strong>do</strong>s resistentes fuzila<strong>do</strong>s, força<strong>do</strong> pelos<br />

acontecimentos a mostrar-se firme e valente – acorda nele pouco a pouco um outro<br />

homem”. É confronta<strong>do</strong> com a tortura, a coragem real e um respeito que nunca<br />

merecera e nem recebera de ninguém. Tu<strong>do</strong> isso o converte profundamente no<br />

General Della Rovere, “toman<strong>do</strong> atitudes e dizen<strong>do</strong> palavras que <strong>do</strong> general se<br />

esperavam”. Ao final, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se perde e ele é submeti<strong>do</strong> a torturas, mas ainda<br />

lhe acena a oportunidade de salvar a própria vida delatan<strong>do</strong> Fabrizio, ele opta<br />

livremente por caminhar com os outros detentos para o poste da execução. “São<br />

dele as palavras corajosas que honram a pátria e reclamam a derrota <strong>do</strong>s inimigos.<br />

Aos olhos de to<strong>do</strong>s é o General Della Rovere que morre”. No entanto, os<br />

especta<strong>do</strong>res sabem que “quem vai morrer é um pobre homem, fraco, burlão,<br />

joga<strong>do</strong>r sem sorte, chama<strong>do</strong> Bran<strong>do</strong>ne, que aprendeu a ser corajoso, honra<strong>do</strong> e<br />

digno. Esta morte é uma vitória”.<br />

Novamente é José Saramago quem nos brinda com sua sensibilidade ao captar e<br />

descrever a mensagem de um filme que chega à profundidade da alma humana<br />

mutável e surpreendente, acrescentan<strong>do</strong> ainda que “talvez a fraqueza de cada um<br />

de nós não seja irremediável. A vida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar<br />

a prova real <strong>do</strong> que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”. 91<br />

A eventual intervenção ou influência exercida sobre o homem, visan<strong>do</strong> seu<br />

aprimoramento moral não pode basear-se na alteração arbitrária de sua<br />

personalidade, acomodan<strong>do</strong>-a a padrões alheios. Isso seria uma forma de<br />

padronizar os seres humanos, instrumentalizan<strong>do</strong>-os e tratan<strong>do</strong>-os como coisas e<br />

não como pessoas. Também seria desconsiderar sua diversidade e impermanência,<br />

sua liberdade de expressão e pensamento, que merecem respeito sempre, somente<br />

comportan<strong>do</strong> limitações quan<strong>do</strong> por condutas exteriores venham a prejudicar os<br />

direitos correlatos <strong>do</strong>s outros.<br />

O homem vive em relação contínua com as coisas e com os outros homens no<br />

mun<strong>do</strong>. Esses “entes” são tu<strong>do</strong> aquilo que “existe concretamente”, “designan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong><br />

o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos<br />

91 A Bagagem <strong>do</strong> Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 133 – 135.<br />

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preenche, nos exalta e nos decepciona”. 92 No entanto, a relação <strong>do</strong> homem para<br />

com os “entes – envolventes”, ou seja, “a presença simples e objetivada” das coisas<br />

e da natureza não é a mesma que mantém com o “ser – aí” (“Dasein”) <strong>do</strong>s outros<br />

(homens). “Estes entes não são jamais meros objetos ou entes – envolventes; ao<br />

contrário, são como é o verdadeiro ser – aí que os desvela, ‘são aí também’ e ‘aí<br />

com’”. 93<br />

O “eu” <strong>do</strong> homem em relação aos “outros” não deve ser compreendi<strong>do</strong><br />

isoladamente. Esses “outros” não são todas as demais pessoas com exceção de<br />

mim mesmo. Na verdade, “esses ‘outros’ são aqueles de quem, na maioria das<br />

vezes, alguém não pode se distinguir – aqueles no meio <strong>do</strong>s quais alguém também<br />

está”. Dessa forma, não se trata de mera presença objetivada junto com os outros.<br />

Trata-se de um “ser – lá – também – com eles dentro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, de tal maneira que<br />

“o mun<strong>do</strong> é sempre algo que eu partilho com os outros”. 94<br />

Observe-se que a nossa maneira de atuar perante os “entes – envolventes” pode ser<br />

definida como o “cuidar”. Não obstante, o “cuidar” não serve para descrever a<br />

relação <strong>entre</strong> o “Dasein” e o “ser – aí – com”, ou seja, <strong>entre</strong> as pessoas. Os outros<br />

“com os quais o ser – aí como ser – com se comporta não têm o mesmo mo<strong>do</strong> de<br />

ser que pertence à ‘totalidade <strong>do</strong>s entes – envolventes’”, pois eles próprios são ser –<br />

aí e não mera presença objetivada. Assim, a eles não está reserva<strong>do</strong> o “cuidar”, mas<br />

sim a “solicitude”. Os entes com que o “ser – aí é com, não são objetos de cuida<strong>do</strong>,<br />

mas de solicitude”. 95<br />

Entretanto, a própria solicitude pode desvirtuar-se no extremo <strong>do</strong> “tomar conta <strong>do</strong><br />

outro”, aproximan<strong>do</strong>-se de um mo<strong>do</strong> de “cuidar”, como se faz com as coisas.<br />

Assume-se o encargo <strong>do</strong> outro que é o de cuidar de si mesmo. Isso produz uma<br />

retirada <strong>do</strong> outro de seu lugar próprio, poden<strong>do</strong> torná-lo alguém <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> e<br />

dependente. Nesse contexto ocorre um “saltar sobre o outro” que, na realidade, é<br />

próprio de nossa relação de cuida<strong>do</strong> para com os entes – envolventes (coisas).<br />

92 HEIDEGGER, Martin, Apud, JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Op. Cit., p. 82.<br />

93 HEIDEGGER, Martin. To<strong>do</strong>s nós...ninguém. Trad. Dulce Maria Critelli. São Paulo: Moraes, 1981, p.<br />

34.<br />

94 Op. Cit., p. 34 – 35.<br />

95 Op. Cit., p. 40.<br />

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Resta claro que essa atuação sobre o outro o reifica e instrumentaliza. Portanto, a<br />

relação não deve ser esta, não se deve “saltar sobre o outro”, “mas antecipar-se a<br />

ele em sua existencial possibilidade – para – ser” de forma a salvá-lo para “torná-lo<br />

transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo livre para si”. 96<br />

A relação <strong>entre</strong> os homens não deve ser orientada pelo salto sobre o outro que o<br />

<strong>do</strong>mina, mas sim pelo salto “diante <strong>do</strong> outro, que o liberta”. 97<br />

Percebe-se que a <strong>genética</strong> tem o potencial de invalidar o existencialismo, que<br />

descreve a vida humana como “um projeto de realização pessoal, de<br />

‘transformação’” (grifo nosso), de maneira que quem somos vai mudan<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong><br />

com o desenrolar <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> projeto. 98 Segun<strong>do</strong> Sartre, “o homem é apenas uma<br />

situação” ou “nada mais <strong>do</strong> que aquilo que ele faz de si mesmo (...) o ser que se<br />

lança para o futuro e que tem consciência de se imaginar como ser no futuro”. Para<br />

ele “a modelagem de si mesmo” é um ato afirmativo da humanidade que não se<br />

sujeita a qualquer espécie de determinismo, “o homem é livre, o homem é<br />

liberdade”. 99<br />

É claro que essa liberdade não é isenta de <strong>perigos</strong> e responsabilidades. Em anexo à<br />

obra de seleção de textos de Heidegger antes examinada, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema da<br />

educação, Dulce Critelli bem destaca que o “saltar sobre o outro” o alivia e alija “da<br />

responsabilidade de seu próprio ser” na medida em que lhe tolhe a liberdade. De<br />

outra banda, o “liberta<strong>do</strong>r”, que “salta diante <strong>do</strong> outro” e lhe <strong>entre</strong>ga “à sua própria<br />

transparência e responsabilidade”, permite-lhe tomar as rédeas <strong>do</strong> próprio destino,<br />

com to<strong>do</strong>s os prazeres e <strong>do</strong>res daí advin<strong>do</strong>s. Parece muito claro que o “outro”,<br />

enquanto ser humano <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de dignidade, somente poderia ser trata<strong>do</strong> com essa<br />

autonomia. No entanto, é fato que uma das mais duras dificuldades que<br />

encontramos em nossa relação com os outros “é a de sermos capazes de confiar ao<br />

outro o seu destino, de confiar no destino que ele descobre, de confiarmos na<br />

96 Op. Cit., p. 41.<br />

97 Op. Cit., p. 42.<br />

98 FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 151.<br />

99 SARTRE, Jean – Paul, Apud, Op. Cit., p. 151 – 152.<br />

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possibilidade <strong>do</strong> outro responsabilizar-se por ele mesmo, pela possibilidade desse<br />

destino escapar à nossa determinação”. 100<br />

Este é um <strong>do</strong>s fortes motivos que tornam tão tenta<strong>do</strong>ra a eventual possibilidade da<br />

programação <strong>genética</strong> de seres humanos, em especial no âmbito criminológico.<br />

Nossa tendência a pretender <strong>do</strong>minar os outros nos impele ao objetivo e à crença da<br />

determinação e controle absoluto das personalidades e condutas alheias.<br />

Quan<strong>do</strong> a ciência e a técnica nos acenam com a possibilidade prática desse projeto,<br />

o agir parece correr adiante <strong>do</strong> pensar, deixan<strong>do</strong> no caminho, despreza<strong>do</strong>s,<br />

aspectos sumamente relevantes para a preservação (ou conquista paulatina) da<br />

dignidade da pessoa humana.<br />

Infelizmente, a dinâmica veloz da sociedade contemporânea vem ocasionan<strong>do</strong> com<br />

freqüência essa perversão da ordem <strong>entre</strong> o pensar e o agir, na qual o segun<strong>do</strong> se<br />

antecipa ao primeiro que resta simplesmente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Afinal, “a uma civilização<br />

que se consuma e se consome ao nível exclusivo <strong>do</strong> ‘fazer’, o compreender torna-se<br />

obsoleto e sem senti<strong>do</strong>”. 101<br />

É preciso perceber o quanto essa perversão pode ser deletéria e recuperar o pensar<br />

como pressuposto <strong>do</strong> agir, especialmente quan<strong>do</strong> se trata de questões que<br />

envolvem o “status dignitatis” <strong>do</strong> humano. Aí se destaca a missão da bioética e da<br />

filosofia como veículos <strong>do</strong> pensar. O pensamento ético – filosófico não remete<br />

somente ao pragmatismo de um agir, mas também o abrange e supera. Conforme<br />

afirma Critelli, “o fazer e o pensar, enquanto possibilidades existenciais e<br />

eqüiprimordiais <strong>do</strong> homem, imbricam-se mutuamente. Muito embora fazer e pensar<br />

não sejam excludentes um <strong>do</strong> outro, a recuperação da ação de pensar implica que,<br />

num primeiro momento, possamos nos <strong>entre</strong>gar à ação de pensar o pensamento,<br />

independen<strong>do</strong> <strong>do</strong> vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos<br />

pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmático não catalise nossas<br />

atenções. Precisamos permitir que um novo fazer emerja de um novo horizonte. O<br />

100 CRITELLI, Dulce Mara. Para recuperar a educação. In: HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., p. 70 – 71.<br />

101 Op. Cit., p. 60.<br />

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pensar abre o fazer, mas só se confiarmos no vigor <strong>do</strong> próprio pensamento. Se a<br />

única coisa que podemos querer é a prontidade das respostas, das fórmulas, das<br />

regras, nesse querer o pensar não pode se presentificar como sen<strong>do</strong> fundamental.<br />

A difícil tarefa <strong>do</strong>s que querem ir mais além de um fazer pragmático sem se sentirem<br />

sufoca<strong>do</strong>s pela ‘incerteza imediata’ de um ‘o que’ fazer e pela segurança <strong>do</strong> já<br />

convenciona<strong>do</strong>, é poder deixar o fazer no ‘vazio’, aban<strong>do</strong>nar sua prioridade e,<br />

concomitantemente, poder aban<strong>do</strong>nar-se à verdade de um fim ainda não da<strong>do</strong>”. 102<br />

Em suma, é preciso compreender que a ciência e a técnica podem nos dizer<br />

claramente tu<strong>do</strong> aquilo que “podemos” fazer, mas nada podem esclarecer quanto<br />

àquilo que “devemos ou não devemos” fazer.<br />

2.5 CRIMINOLOGA GENÉTICA: UMA PERIGOSA MISTURA DE<br />

FANTASIAS, INTOLERÂNCIA E EXCLUSÃO<br />

É comum deparar com a divulgação de “estu<strong>do</strong>s científicos” que afirmam poder<br />

detectar “genes da esquizofrenia, genes sensíveis aos poluentes industriais e a<br />

condições insalubres de trabalho, genes da criminalidade, genes da violência, genes<br />

<strong>do</strong> divórcio e genes <strong>do</strong>s marginais”. Para Daniel Kleves 103 , cita<strong>do</strong> por Cláudio<br />

Tognolli, “o racismo <strong>do</strong>s nazistas agora se converte em clínicas <strong>genética</strong>s”.<br />

O grande problema relaciona<strong>do</strong> a essas ilusões reducionistas é que elas podem<br />

fomentar toda uma mentalidade destrutiva, a qual, depois de posta em movimento,<br />

torna-se muito difícil de conter.<br />

Questões como alcoolismo, desagregação familiar, violência e criminalidade são<br />

extremamente complexas e esse reconhecimento (da complexidade) não é<br />

alenta<strong>do</strong>r. Ele nos joga muitas vezes em meio à indeterminação, a um universo de<br />

perguntas sem respostas ou com respostas sujeitas a inúmeras variáveis. A<br />

sensação é desagradável e então se tende a buscar alguma solução simplista ou<br />

102 Op. Cit., p. 60 – 61.<br />

103 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 84.<br />

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simplificada, ainda que isso implique na mutilação da verdade com todas as suas<br />

terríveis conseqüências. 104<br />

A pretensão de descobrir algo que guia o agir humano, obliteran<strong>do</strong> a<br />

intencionalidade, não é novidade. O inconsciente em Freud, a “vontade de<br />

representação” como um “querer cego e irracional” em Schopenhauer, são exemplos<br />

desse intento leva<strong>do</strong> a efeito anteriormente. De acor<strong>do</strong> com essas concepções<br />

somente conhecemos o agir humano como uma “casca” de algo oculto que o<br />

determina e que não está no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> “querer” livre <strong>do</strong> homem. As teorias<br />

<strong>genética</strong>s, sem inovar muito no cerne <strong>do</strong> pensamento, apenas apresentam algo mais<br />

concreto como explicação. Ao invés da “vontade” ou <strong>do</strong> “inconsciente” como fatores<br />

extremamente imateriais e intangíveis, a ciência agora apresenta, sob as lentes<br />

microscópicas, a materialização daquilo que determina e conduz o homem, ou seja,<br />

os genes. 105<br />

Sem negar o fato de que a <strong>genética</strong> pode oferecer respostas e benefícios, é<br />

necessário perceber que ela, como qualquer outro ramo <strong>do</strong> saber, somente pode<br />

deter parte da verdade.<br />

Invariavelmente, quan<strong>do</strong> a verdade é atribuída exclusivamente a algum ramo <strong>do</strong><br />

saber, da atividade humana ou <strong>do</strong> pensamento, advém a intolerância, a arrogância e<br />

a exclusão.<br />

Os exemplos, inclusive liga<strong>do</strong>s ao tema discuti<strong>do</strong>, não são difíceis de encontrar.<br />

Sabe-se que em 1907, no Esta<strong>do</strong> de Indiana, nos EUA, promulgou-se a “primeira lei<br />

de esterilização compulsória”, que visava impedir a procriação de “criminosos,<br />

idiotas, estupra<strong>do</strong>res e imbecis”. O Esta<strong>do</strong> passava então, de forma arbitrária, a<br />

decidir quem podia ou não ter filhos, e pior, quem podia ou não nascer. Por esta<br />

razão a legislação chegou a ser contestada na Justiça. Mas, em 1927, a Suprema<br />

Corte confirmou lei similar <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Virgínia, dan<strong>do</strong> ênfase ao pragmatismo <strong>do</strong><br />

104<br />

BURTT, Edwin. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. José Viegas Filho e Orlan<strong>do</strong><br />

Araújo Henriques. Brasília: UNB, 1984, p. 195.<br />

105<br />

TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 85 – 86.<br />

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procedimento seletivo – preventivo. Foram as seguintes as palavras <strong>do</strong> relator da<br />

decisão, Oliver Wendell Holmes: 106<br />

“Será melhor para o mun<strong>do</strong> inteiro que, em vez de esperar para executar<br />

uma prole degenerada pelos <strong>crime</strong>s que cometeu ou deixá-la morrer à<br />

míngua por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os manifestamente<br />

inaptos de perpetuarem a própria espécie (...). Três gerações de imbecis é o<br />

suficiente”.<br />

É impossível deixar de fazer o elo <strong>entre</strong> a realidade <strong>do</strong> fato histórico acima exposto e<br />

a obra de ficção satírica de Swift 107 , que toca a ferida da exclusão e da indiferença:<br />

“Algumas pessoas de espírito desalenta<strong>do</strong> estão bastante preocupadas com<br />

o grande número de pobres, i<strong>do</strong>sos, <strong>do</strong>entes e mutila<strong>do</strong>s e tenho si<strong>do</strong><br />

solicita<strong>do</strong> a empregar meu pensamento para encontrar alguma possível<br />

solução que alivie a nação de tão pesa<strong>do</strong> far<strong>do</strong>. Mas essa questão não me<br />

preocupa nem um pouco, pois é bem sabi<strong>do</strong> que eles estão a cada dia<br />

morren<strong>do</strong> e apodrecen<strong>do</strong>, de frio e de fome, e de sujeira e de vermes, tão<br />

rapidamente como se possa razoavelmente esperar. E, quanto aos<br />

trabalha<strong>do</strong>res mais jovens, eles estão agora em situação quase tão<br />

promissora: não conseguem trabalho e, conseqüentemente, estão<br />

desfalecen<strong>do</strong> por falta de alimento, a tal ponto que, se fossem, por acaso,<br />

contrata<strong>do</strong>s para algum serviço ordinário, não teriam forças para executá-lo,<br />

estan<strong>do</strong> assim o país e eles próprios, felizmente, livres <strong>do</strong>s males que estão<br />

por vir”.<br />

É dessa lógica exclusiva cruel que devemos nos precaver, e é ela que ameaça<br />

conduzir os rumos de uma Criminologia Genética desatenta (intencionalmente ou<br />

não) para com a complexidade <strong>do</strong> ser humano.<br />

Collins 108 bem destaca essa premente necessidade frente aos potenciais da<br />

<strong>genética</strong>, asseveran<strong>do</strong> que, “embora contenha uma promessa estimulante no<br />

aprimoramento de intervenções em <strong>do</strong>enças psiquiátricas, a pesquisa <strong>genética</strong><br />

sobre comportamentos humanos, de algum mo<strong>do</strong>, é perturba<strong>do</strong>ra, pois parece trilhar<br />

perto demais como uma ameaça ao nosso livre arbítrio, a nossa individualidade e<br />

talvez mesmo a nossa espiritualidade”.<br />

106 WATSON, James D., BERRY, Andrew. DNA o segre<strong>do</strong> da vida. Trad. Carlos Afonso Malferrari.<br />

São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40 – 41.<br />

107 SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. Trad. José Oscar de Almeida<br />

Marques e Dorothée de Bruchard. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29.<br />

108 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 262.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Mister se faz “confrontar a promessa e a ameaça da <strong>genética</strong>”. 109 É bem verdade<br />

que as potencialidades vislumbradas com o seu advento produziram um “efeito<br />

inebriante”, levan<strong>do</strong> os mais entusiasma<strong>do</strong>s a aventar a hipótese de que os genes<br />

poderiam fornecer explicações seguras para vários ou mesmo a totalidade <strong>do</strong><br />

comportamento humano e que este poderia ser controla<strong>do</strong> mediante intervenções e<br />

manipulações precisas <strong>do</strong> código genético. 110<br />

A tentação de aperfeiçoar a natureza é inerente ao espírito humano e não é<br />

apanágio da ciência. Na arte já se pretendeu superar o mero retrato <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, de<br />

mo<strong>do</strong> que “to<strong>do</strong> artista era um idealista” que pretendia superar a natureza. Na<br />

ciência e na técnica os esforços para o aperfeiçoamento da natureza, especialmente<br />

ten<strong>do</strong> em vista os fins humanos, têm pelo menos “dez mil anos de história atrás de<br />

si”. Esse esforço tem suas origens nas técnicas de acasalamento de animais de<br />

diferentes espécies, visan<strong>do</strong> obter espécimes mais dóceis no trato, de carne melhor<br />

e mais saborosa etc. Também a botânica pode ser apontada como uma das<br />

atividades pioneiras desse intento humano, logran<strong>do</strong> produzir vegetais comestíveis,<br />

ornamentais etc. 111<br />

Nenhum susto pode provocar que essa perspectiva se espraiasse e chegasse à<br />

intenção de aperfeiçoar os próprios seres humanos. Esse objetivo é antigo, poden<strong>do</strong><br />

ser constata<strong>do</strong> já no pensamento de Platão, e possivelmente tais idéias não eram<br />

originais dele, mas resulta<strong>do</strong> de observações comuns em sua época. Encontramos<br />

nele o ideal da busca de uma sociedade perfeita constituída de homens perfeitos,<br />

os quais deveriam ser incentiva<strong>do</strong>s a reproduzir, enquanto os imperfeitos deveriam<br />

ser extermina<strong>do</strong>s. Nota-se que muito antes <strong>do</strong>s conhecimentos genéticos<br />

sofistica<strong>do</strong>s estarem disponíveis a idéia da hereditariedade determinista já produzia<br />

seus frutos. 112<br />

Vejamos o que o filósofo fala pela boca de Sócrates 113 em “A República”:<br />

109<br />

FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 134.<br />

110<br />

Op. Cit., p. 135.<br />

111<br />

Op. Cit., p. 140.<br />

112<br />

Op. Cit., p. 141.<br />

113<br />

PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 162.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

“De acor<strong>do</strong> com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito<br />

freqüentes <strong>entre</strong> os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante<br />

raras <strong>entre</strong> os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além <strong>do</strong> mais, é<br />

necessário educar os filhos <strong>do</strong>s primeiros, e não os <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s, se<br />

quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição; e todas estas<br />

medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistra<strong>do</strong>s, a fim de<br />

que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue <strong>entre</strong> os guerreiros”.<br />

O ideal de Platão estava na harmonia que impregnava suas concepções desde a<br />

cosmologia até a política. Ele pretendeu desconsiderar as irregularidades <strong>do</strong>s<br />

movimentos <strong>do</strong>s corpos celestes, idealizan<strong>do</strong> sua movimentação em círculos<br />

regulares. Intentou comprovar sua tese com um misto de matemática e teologia que<br />

poderia comprovar o caráter divino <strong>do</strong>s corpos celestes pela inalterável regularidade<br />

de seus movimentos circulares e perfeitos. Com isso pretendia banir as alterações e<br />

irregularidades <strong>do</strong>s céus. De forma análoga, idealizará em sua República uma utopia<br />

“totalitária, puritana e inquisitorial” da qual serão bani<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os desvia<strong>do</strong>s,<br />

irregulares ou dissonantes. 114<br />

Uma nova roupagem para as mesmas idéias surge no século XIX na Europa e na<br />

América <strong>do</strong> Norte sob o signo <strong>do</strong> racismo. Francis Galton, primo de Darwin, em<br />

1885, faz a proposta indecente da “eugenia”, segun<strong>do</strong> a qual “a espécie humana<br />

poderia ser aperfeiçoada pela eliminação de qualidades mentais e morais<br />

indesejáveis”, o que poderia ser leva<strong>do</strong> a efeito por meio de “uma fertilidade<br />

seletivamente controlada”. 115 É de Galton a seguinte manifestação entusiasmada,<br />

datada de 1865:<br />

“Se a vigésima parte <strong>do</strong>s custos e esforços que são despendi<strong>do</strong>s para o<br />

aperfeiçoamento da reprodução de cavalos e ga<strong>do</strong> fosse gasta em medidas<br />

para o aperfeiçoamento da raça humana, que galáxia de gênios não<br />

poderíamos criar!” 116<br />

Essa ideologia <strong>do</strong>minou o pensamento de uma época, reforçada pelo racismo. A<br />

Rússia Soviética, em seus primórdios, e certas regiões <strong>do</strong>s EUA a<strong>do</strong>tavam a<br />

proibição <strong>do</strong> casamento para pessoas “oficialmente classificadas como débeis<br />

mentais, criminosos e até (em alguns casos) alcoólatras”. No ano de 1926, em<br />

114 PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 16 – 17.<br />

115 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 141.<br />

116 Apud, Op. Cit., p. 141. Parece que Galton “apenas” esqueceu que homens não são ga<strong>do</strong> e que a<br />

humanidade não é um rebanho.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

algumas regiões <strong>do</strong>s EUA (quase metade) a<strong>do</strong>tou-se a “esterilização compulsória”<br />

dessas categorias de pessoas. 117 Nem é preciso dizer que a eugenia foi<br />

recepcionada com o mais vivo entusiasmo na Alemanha Nazista, onde atingiu o seu<br />

ápice de desumanidade. Ali não só o controle da procriação foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, mas<br />

também, e principalmente, o extermínio de to<strong>do</strong>s aqueles considera<strong>do</strong>s<br />

geneticamente inferiores (judeus, ciganos e até os homossexuais). Por outro la<strong>do</strong>,<br />

buscava-se o aprimoramento da “raça ariana pura”, através da reprodução seletiva<br />

<strong>entre</strong> pessoas supostamente porta<strong>do</strong>ras de caracteres considera<strong>do</strong>s excelentes. 118<br />

A crueldade <strong>do</strong> regime nazista acabou emprestan<strong>do</strong> à eugenia um estigma<br />

extremamente repulsivo. No entanto, deparamos hoje com o seu retorno sob vestes<br />

bem mais sutis. A engenharia <strong>genética</strong> pode tomar rumos muito similares aos das<br />

ideologias eugênicas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />

Deparamos nos dias de hoje com manuais de Direito Penal publica<strong>do</strong>s anualmente e<br />

alegadamente “atualiza<strong>do</strong>s”, nos quais podemos encontrar verdadeiros resquícios<br />

de uma eugenia preconceituosa e cruel. Mirabete 119 , ao comentar os fundamentos<br />

<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “aborto sentimental, humanitário ou ético”, afirma que, além <strong>do</strong> respeito<br />

à dignidade humana da mulher, justificaria essa espécie de aborto a prevenção<br />

quanto à transmissão de certos traços criminosos pela hereditariedade.<br />

Textualmente: “Além disso, freqüentemente o autor <strong>do</strong> estupro é uma pessoa<br />

degenerada, anormal, poden<strong>do</strong> ocorrer problemas liga<strong>do</strong>s à hereditariedade”. 120<br />

Assim como já se falou em “raça pura” ou <strong>do</strong> “super – homem”, tem-se detecta<strong>do</strong><br />

aquilo que Francis Fukuyama 121 denominou de “um futuro pós–humano”. 122 E se<br />

falamos em algo “pós – humano”, falamos em algo “não – humano”, relegan<strong>do</strong> o<br />

“humano” ao passa<strong>do</strong>, como uma peça de museu ou um conceito obsoleto. Por isso<br />

117 Para maior aprofundamento sobre a eugenia norte – americana, ver: BLACK, Edwin. A guerra<br />

contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, “passim”.<br />

118 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 142.<br />

119 Trata-se, como sabi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> aborto legal previsto na legislação brasileira quan<strong>do</strong> a gravidez é<br />

resultante de estupro (art. 128, II, CP).<br />

120 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.<br />

69.<br />

121 Apud, FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 143.<br />

122 Nosso futuro pós – humano. Trad. Maria Luiza X. de A. B<strong>org</strong>es. Rio de Janeiro: Rocco, 2003,<br />

“passim”.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

o autor em comento alega que “a biotecnologia vai fazer que de algum mo<strong>do</strong><br />

percamos a nossa humanidade (...). Ainda pior, poderíamos fazer essa mudança<br />

sem reconhecer que havíamos perdi<strong>do</strong> algo de grande valor. Poderíamos assim<br />

aparecer <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> de uma grande divisória <strong>entre</strong> a história humana e pós –<br />

humana, sem sequer perceber que o divisor de águas fora rompi<strong>do</strong>”.<br />

Portanto, é de extrema relevância tomar consciência <strong>do</strong>s problemas éticos e<br />

políticos relativos à manipulação <strong>genética</strong> e, principalmente, às concepções<br />

<strong>genética</strong>s reducionistas. Também é imprescindível firmar um núcleo duro de direitos<br />

e garantias referentes à contínua proteção e preservação da dignidade humana.<br />

Pressuposto disso é, certamente, a conceituação segura daquilo em que consiste a<br />

humanidade <strong>do</strong> homem, sob pena de realmente nem nos darmos conta de a<br />

havermos perdi<strong>do</strong>. 123<br />

Efetivamente, o insidioso desgaste <strong>do</strong> conceito de “humano” e de “humanidade” tem<br />

propicia<strong>do</strong> um correlato risco de seu desvanecimento, permitin<strong>do</strong> sua perda nas<br />

veredas <strong>do</strong> relativismo, com nefastas conseqüências no presente e, especialmente,<br />

para o futuro.<br />

Armesto Fernández 124 bem destaca a para<strong>do</strong>xal situação <strong>do</strong> atual estágio da<br />

humanidade, que tanto esforço despendeu e despende para preservar o humano,<br />

mas vai, aos poucos, perden<strong>do</strong> a noção daquilo por que tem luta<strong>do</strong> ao longo de<br />

tanto tempo:<br />

123 Op. Cit., p. 143.<br />

124 Op. Cit., p. 9.<br />

Aqui está um para<strong>do</strong>xo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos<br />

investi<strong>do</strong> muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que<br />

chamamos de valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade<br />

humana e da vida humana. Ao longo <strong>do</strong> mesmo perío<strong>do</strong>, silenciosa, mas<br />

devasta<strong>do</strong>ramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o<br />

nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência<br />

<strong>do</strong> nosso entendimento <strong>do</strong> que significa ser humano está agora em<br />

discussão. E se o termo ‘humano’ é incoerente, o que acontecerá com os<br />

valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar<br />

da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça<br />

conceitual.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Debaten<strong>do</strong>-nos em densas trevas e trilhan<strong>do</strong> caminhos tortuosos, podemos ao<br />

menos <strong>entre</strong>ver um norte a indicar o traço comum que revela um início ou<br />

pressuposto para a construção de uma atuação ética perante a humanidade. Esse<br />

traço é o fato de que somos to<strong>do</strong>s “humanos”, independentemente das variadas<br />

diversidades. Somos desiguais sim, mas temos sempre de nos lembrar <strong>do</strong> laço<br />

comum a unir-nos. É a nossa “humanidade” que, em primeiro plano, consiste em<br />

que somos to<strong>do</strong>s (brancos, negros, católicos, judeus, pobres, ricos, deficientes,<br />

criminosos ou santos) “humanos”, que configura o primeiro fundamento para que as<br />

pessoas não possam ser categorizadas, selecionadas e excluídas. O atributo da<br />

humanidade, inerente a to<strong>do</strong> homem ou mulher, independente de sua condição, não<br />

permite gradações. Em suma, jamais uns podem ser mais humanos que outros.<br />

Pode parecer que esse pressuposto seja algo por demais óbvio, mas é preciso<br />

atentar que por boa parte da história da humanidade e ainda hoje, as pessoas<br />

sentem certa dificuldade para admitir esse traço comum de humanidade em to<strong>do</strong>s os<br />

seres humanos indistintamente. 125 E mesmo quan<strong>do</strong> em dada sociedade isso é<br />

admiti<strong>do</strong>, em teoria, sem muita contestação, a aplicação prática <strong>do</strong> conceito não se<br />

perfaz sem grandes obstáculos. 126<br />

A verdade é que existe sempre uma tendência a selecionar certas categorias, por<br />

meio de critérios diversos (v.g. origem, religião, posição social e, quem sabe, código<br />

genético), as quais acabam integran<strong>do</strong> a categoria <strong>do</strong>s humanos ou “mais<br />

humanos”, enquanto outras parcelas são simplesmente excluídas, tratadas como<br />

“outsiders”, marginais, pertencentes a alguma outra classe que acaba reduzida a<br />

“status” semelhantes aos de coisas ou animais, sofren<strong>do</strong> ainda um verdadeiro<br />

processo de demonização 127<br />

A partir da identificação de certas pessoas como pertencentes a determinadas<br />

categorias, opera-se uma poderosa “estratificação” a atribuir diferentes tratamentos<br />

a camadas consideráveis da população. No cerne desse mecanismo diferencia<strong>do</strong>r<br />

125 Op. Cit., p. 14.<br />

126 Por que outra razão seria necessário que nossa Constituição Federal mande, por exemplo,<br />

reprimir com rigor a prática <strong>do</strong> racismo e a lei ordinária regule essa repressão?<br />

127 Op. Cit., p. 14.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

encontra-se o fato de que alguns podem livremente escolher sua própria identidade<br />

individual e social, enquanto outros são simplesmente compeli<strong>do</strong>s a assumir uma<br />

certa identidade imposta de fora para dentro. Normalmente essas espécies de<br />

identidades impostas são daquelas que “estereotipam, humilham, desumanizam,<br />

estigmatizam...” 128 Mas, ainda não é o fato mais grave essa falta de direito de<br />

escolha, essa imposição. Há ainda quem possa ser impeli<strong>do</strong> para um degrau ainda<br />

mais baixo. Tratan<strong>do</strong>-se de pessoas que, uma vez estigmatizadas, perdem total e<br />

definitivamente o direito de “reivindicar” uma nova identidade. “Pessoas cuja súplica<br />

não será aceita e cujos protestos não serão ouvi<strong>do</strong>s, ainda que pleiteiem a anulação<br />

<strong>do</strong> veredicto”. Estas estão destinadas a formar aquilo que Bauman 129 denomina de<br />

“subclasses”, ou seja, o conjunto de todas aquelas pessoas “exiladas nas<br />

profundezas além <strong>do</strong>s limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior <strong>do</strong><br />

qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade)<br />

podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas”.<br />

A partir <strong>do</strong> momento em que alguém é destina<strong>do</strong> à composição de uma subclasse<br />

(devi<strong>do</strong> à baixa escolaridade, à pobreza, vício de drogas, falta de moradia,<br />

mendicância ou outras categorias inadequadas, agora, talvez, aqueles porta<strong>do</strong>res de<br />

um código genético indesejável), ocorre uma negação apriorística de qualquer<br />

identidade aceitável, em suma, fecham-se as portas. “O significa<strong>do</strong> da ‘identidade da<br />

subclasse’ é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, <strong>do</strong><br />

‘rosto’ – esse objeto <strong>do</strong> dever ético e da preocupação moral”. Opera-se uma<br />

exclusão “<strong>do</strong> espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas,<br />

construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”. 130<br />

Gi<strong>org</strong>io Agamben, cita<strong>do</strong> por Bauman, chama a atenção para que a subclasse é um<br />

“grupo heterogêneo de pessoas” que sofreram a redução de seu “bios” (vida como<br />

“sujeito socialmente reconheci<strong>do</strong>”) a mero “zoë" (vida somente animal, “com todas<br />

as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas”). 131<br />

128 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar, 2005,<br />

p. 44.<br />

129 Op. Cit., p. 45.<br />

130 Op. Cit., p. 46.<br />

131 Op. Cit., p. 46.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Note-se que quase nada pode ser mais conveniente para exacerbar um quadro<br />

como este ora apresenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma ciência <strong>genética</strong> seletiva e determinista,<br />

inclusive e muito especialmente, no que tange às suas irradiações para o campo<br />

criminológico.<br />

Esse conjunto de fatores que alimentam a exclusão e a estratificação social, conflui<br />

para a tendência <strong>do</strong> processo neoliberal de globalização econômica, com sua<br />

interminável “produção de lixo humano” ou, melhor dizen<strong>do</strong>, de “pessoas rejeitadas”,<br />

que se tornam desnecessárias e até disfuncionais para o bom andamento <strong>do</strong> “ciclo<br />

econômico”. O Capitalismo Contemporâneo troca o modelo de “exploração” pelo da<br />

“exclusão”, e esse modelo é bem mais cruel <strong>do</strong> que o anterior, constituin<strong>do</strong><br />

atualmente a “base <strong>do</strong>s casos mais evidentes de polarização social, de<br />

aprofundamento da desigualdade e de aumento <strong>do</strong> volume de pobreza, miséria e<br />

humilhação”. 132<br />

Não há dúvida de que o modelo econômico tem enorme influência na conformação<br />

<strong>do</strong> paradigma de Direito Penal e, principalmente, na construção <strong>do</strong> discurso<br />

referente à finalidade da pena. Em um contexto no qual a mão de obra humana é um<br />

valor na dinâmica <strong>do</strong> processo econômico, é fácil reconhecer a pertinência <strong>do</strong><br />

discurso “ressocializa<strong>do</strong>r”. A coisa muda de figura quan<strong>do</strong> essa mesma mão de obra<br />

passa a ser muito abundante frente à mecanização proporcionada pela tecnologia, a<br />

substituir com vantagens a força de trabalho humana. Nessas circunstâncias um<br />

indivíduo desgarra<strong>do</strong> não é mais considera<strong>do</strong> uma peça relevante na sociedade.<br />

Seu descarte passa a ser uma solução e até um objetivo a ser persegui<strong>do</strong> em prol<br />

da funcionalidade <strong>do</strong> sistema. Este é certamente um efeito daquela substituição das<br />

relações explora<strong>do</strong>res/explora<strong>do</strong>s pelas relações incluí<strong>do</strong>s/excluí<strong>do</strong>s. Agora, já não<br />

há valor algum, nem mesmo comercial ou econômico, atribuí<strong>do</strong> pelos ocupantes <strong>do</strong><br />

topo da escala social aos que estão em sua base. Se a relação vertical<br />

anteriormente se processava como uma opressão que visava o <strong>do</strong>mínio das massas<br />

exploradas, hoje tal <strong>do</strong>mínio não é tão atraente e a relação vertical tende a ser<br />

transmudada para uma pressão no senti<strong>do</strong> de “esmagar” e descartar os excluí<strong>do</strong>s, já<br />

132 Op. Cit., p. 47.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

que eles não interessam ao sistema e até constituem entraves que precisam ser<br />

expurga<strong>do</strong>s por vias diretas e indiretas. 133<br />

Tu<strong>do</strong> isso é um caldeirão onde pode muito bem ser prepara<strong>do</strong> o prato amargo de um<br />

novo holocausto, com bem adverte Arendt: 134<br />

Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração<br />

de <strong>crime</strong>s. Ao contrário, a despeito <strong>do</strong> castigo, uma vez que um <strong>crime</strong><br />

específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável <strong>do</strong><br />

que poderia ter si<strong>do</strong> a sua emergência inicial. As razões particulares que<br />

falam pela possibilidade de repetição <strong>do</strong>s <strong>crime</strong>s cometi<strong>do</strong>s pelos nazistas<br />

são ainda mais plausíveis. A assusta<strong>do</strong>ra coincidência da explosão<br />

populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graças à<br />

automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos setores da população até mesmo em<br />

termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com<br />

essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s quais as<br />

instalações de gás de Hitler pareciam brinque<strong>do</strong>s de uma criança mal<strong>do</strong>sa –<br />

tu<strong>do</strong> isso deve bastar para nos fazer tremer”. 135 [E mais adiante, na mesma<br />

obra, a autora acrescenta:] É bem concebível que na economia automatizada<br />

de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar to<strong>do</strong>s<br />

aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determina<strong>do</strong> nível.<br />

Para que isso ocorra, ao contrário <strong>do</strong> que comumente se imagina, não seria<br />

necessário o surgimento de um novo Hitler ou algo pareci<strong>do</strong>. Basta que cada um de<br />

nós permita esvaecer o conceito de humanidade, “pois é perfeitamente concebível e<br />

mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma<br />

humanidade altamente <strong>org</strong>anizada e mecanizada chegue, de maneira democrática –<br />

isto é, por decisão da maioria - à conclusão de que, para a humanidade como um<br />

to<strong>do</strong>, convém liquidar certas partes de si mesma”. 136<br />

Também Zaffaroni 137 faz essa constatação, dissertan<strong>do</strong> especificamente sobre os<br />

efeitos da globalização econômica na América Latina:<br />

133 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999,<br />

p. 4.<br />

134 Op. Cit., p. 312. E que instrumento seletivo não seria a <strong>genética</strong> (mal direcionada) para tal<br />

desiderato.<br />

135 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jersualém. 6ª. Ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1999, p. 296.<br />

136 IDEM. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1989, p. 332. E para aqueles que pensam que esse dia esteja muito longe, basta meditarem um<br />

pouco sobre o rumo que têm toma<strong>do</strong> as discussões sobre as questões previdenciárias no mun<strong>do</strong><br />

moderno.<br />

137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y Sistema Penal en América Latina: de la seguridad<br />

nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez, 1997, p. 22.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

El fenômeno tiene a crear en los paises latinoamericanos una massa<br />

excluída que no responde a la dialética explota<strong>do</strong>r/explota<strong>do</strong>, sino a una no<br />

relation <strong>entre</strong> excluí<strong>do</strong>/incluí<strong>do</strong>. El explota<strong>do</strong> contaba, era teni<strong>do</strong> en cuenta y<br />

estaba dentro del sistema, como explota<strong>do</strong> pero dentro, el excluí<strong>do</strong> no<br />

cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica<br />

de este esquema, si no se le interrumpe, es el genocídio.<br />

Neste contexto o Direito Penal pode surgir como um instrumento direto de seleção e<br />

destruição <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s, servin<strong>do</strong> a contento aos desígnios inconfessáveis <strong>do</strong> novo<br />

modelo. É notável que o discurso da recuperação vai ceden<strong>do</strong> espaço para as<br />

soluções extremas, como a pena de morte e a redução da menoridade penal. 138<br />

Bem pode encaixar-se aqui a concepção de uma Criminologia Genética seletiva e<br />

determinista, tendente a eliminar arbitrariamente caracteres presentes na<br />

constituição <strong>genética</strong> das pessoas, seja em sua geração ou posteriormente<br />

mediante intervenções forçadas a desconfigurarem suas personalidades. Isso sem<br />

falar no reforço que teses deterministas concedem às hipóteses anteriormente<br />

mencionadas da pena de morte e da redução da menoridade penal. Quem sabe até<br />

mesmo se cogite um dia a completa eliminação da questão da imputabilidade, já que<br />

mesmo em um feto poder-se-ia encontrar e abrir a caixa – preta onde se ocultam os<br />

segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> futuro criminoso.<br />

Mas, não é só no Sistema Penal que se pode constatar a insidiosa e <strong>perigos</strong>a<br />

influência <strong>do</strong> Capitalismo Globaliza<strong>do</strong>. Ela se faz sentir, por exemplo, no crescente<br />

aban<strong>do</strong>no das questões previdenciárias, de saúde e educação públicas. Tu<strong>do</strong> isso<br />

empurra a massa excluída para as garras <strong>do</strong> Sistema Penal ou diretamente para a<br />

morte devi<strong>do</strong> ao mais absoluto aban<strong>do</strong>no e falência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como entidade<br />

assistencial e promotora da igualdade. 139<br />

Retoman<strong>do</strong> a perspectiva criminal, percebe-se que na sociedade a infração penal é<br />

concebida como um mal, a criminalidade como uma <strong>do</strong>ença infecciosa e o infrator<br />

como um ser daninho. Isso fomenta uma tomada de posição belicosa em relação ao<br />

138 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit., p. 4.<br />

139 Op. Cit., p. 4. Relembremos neste ponto o texto satírico de Jonathan Swift, exposto linhas<br />

volvidas, “Modesta Proposta”.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

<strong>crime</strong>, a qual influi na construção de toda a política referente ao “combate” à<br />

criminalidade. 140<br />

Este é um campo fértil para as divisões e polarizações, a tal ponto que já se cogita a<br />

formulação <strong>do</strong> que se convencionou chamar de um “Direito Penal <strong>do</strong> Inimigo”, em<br />

oposição ou contraste com um “Direito Penal <strong>do</strong> Cidadão”, conforme teoriza<strong>do</strong> por<br />

Jakobs. 141<br />

Hoje pode-se constatar um processo razoavelmente generaliza<strong>do</strong> daquilo que se<br />

poderia chamar de “paradigma <strong>do</strong> inimigo”, pelo qual a pessoa é julgada em virtude<br />

<strong>do</strong> que é ou <strong>do</strong> que acredita ser; com base em sua periculosidade supostamente<br />

inerente à sua personalidade, muito mais <strong>do</strong> que por aquilo que efetivamente tenha<br />

cometi<strong>do</strong>. 142<br />

No seio desse paradigma a tendência é que se consolide um modelo de Direito<br />

Penal que empreste gradativamente mais e mais destaque à prevenção,<br />

configuran<strong>do</strong> um inova<strong>do</strong>r e mais sofistica<strong>do</strong> “panoptismo social” marca<strong>do</strong> pela<br />

descoberta seletiva da figura <strong>do</strong> “inimigo”. 143<br />

Acontece que agora a idéia original de Bentham 144 não precisa mais da parafernália<br />

arquitetônica por ele concebida e nem fica restrita aos ambientes prisionais. A<br />

tecnologia permite uma vigilância muito mais ampla e invasiva, cogitan<strong>do</strong>-se não só<br />

o controle absoluto da conduta humana exteriorizada, mas, quem sabe, de suas<br />

tendências ou potencialidades internas por meio <strong>do</strong>s conhecimentos genéticos.<br />

140<br />

MUÑOZ CONDE, Francisco, HASSEMER, Winfried. Introducción al derecho penal. Barcelona:<br />

Bosch, 1995, p. 37.<br />

141<br />

JAKOBS, Günther. Fundamentos <strong>do</strong> Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: RT,<br />

2003, p. 142 – 143.<br />

142<br />

APONTE, Alejandro. Derecho penal de enemigo versus derecho penal del ciudadano. Günther<br />

Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Ciências Criminais.<br />

n. 51, nov./dez, 2004, p. 16.<br />

143<br />

Op. Cit., p. 17.<br />

144<br />

BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Trad. Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu da<br />

Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, “passim”.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

Para Tognolli 145 , “a nova ideologia <strong>do</strong> DNA lastrearia, em longo prazo, a idéia <strong>do</strong>s<br />

‘novos inimigos’ da saúde perfeita: os porta<strong>do</strong>res de genes ‘deficientes’. (...). O<br />

mesmo processo que movimenta a sociedade em torno <strong>do</strong>s ‘novos inimigos’<br />

geopolíticos é o que agrega, (...), a to<strong>do</strong>s na busca e encontro <strong>do</strong>s ‘genes<br />

culpa<strong>do</strong>s’”.<br />

Acontece que, para além de que essa seleção <strong>do</strong>s “inimigos” através da <strong>genética</strong><br />

configure um arbitrário, totalitário e desumanizante “Direito Penal <strong>do</strong> Autor”, lastreia-<br />

se em um referencial teórico há muito tempo supera<strong>do</strong>. Nada mais, nada menos <strong>do</strong><br />

que aquilo que com razão se poderia denominar, como o fez José Nêumanne 146 , de<br />

um “neolombrosianismo”.<br />

Seguiria dizen<strong>do</strong> que se ressuscita a tese <strong>do</strong> “determinismo biológico”, mas parece<br />

mais adequa<strong>do</strong> constatar que ela jamais feneceu realmente, sen<strong>do</strong> mais correto<br />

admitir que <strong>do</strong>rmitasse sempre latente nos meandros <strong>do</strong> imaginário popular e até<br />

<strong>do</strong>s cientistas.<br />

Conforme alerta Lewontin 147 , “tu<strong>do</strong> isso é um grande nonsense”, que se baseia<br />

numa terrível confusão <strong>entre</strong> fantasias e realidade, ocasionada por uma mistura<br />

<strong>entre</strong> aquilo que é representa<strong>do</strong> em uma simples metáfora com o objeto ou fato real.<br />

Em suas palavras:<br />

A ideologia <strong>do</strong> determinismo biológico usa muitas metáforas retiradas <strong>do</strong><br />

modelo de máquina de Descartes e agora <strong>do</strong>s modelos computacionais.<br />

Essas metáforas permitem então ‘jogos de linguagem’ porque elas são<br />

levadas a sério e assim as conseqüências lógicas de se levar metáforas a<br />

sério são levadas à última instância. To<strong>do</strong>s os cientistas empregam<br />

metáforas, mas as metáforas podem ser os maiores inimigos de se<br />

compreender adequadamente o mun<strong>do</strong> material. As pessoas confundem as<br />

metáforas com os objetos reais. Norbert Wiener e Arturo Rosenblith<br />

escreveram que ‘ o preço da metáfora é a eterna vigilância. 148<br />

Realmente, o fato de que alguém se utilize da imagem de um “chip” de computa<strong>do</strong>r<br />

em comparação com os genes, falan<strong>do</strong> no código genético como uma espécie de<br />

145 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 215.<br />

146 Apud, Op. Cit., p. 265.<br />

147 Op. Cit., p. 265.<br />

148 LEWONTIN, Richard. Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. cit., p. 267.<br />

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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />

“programação”, não pode ser acata<strong>do</strong> além <strong>do</strong> mero senti<strong>do</strong> metafórico para levar à<br />

conclusão de que o homem pode, na realidade, ser equipara<strong>do</strong> a uma máquina pré<br />

– programada. Da mesma forma a metáfora não pode extravasar para reabilitar a<br />

absurda e superada crença de que o <strong>crime</strong> possa ser considera<strong>do</strong> como um ente<br />

natural e não como um conceito normativo cria<strong>do</strong> pela sociedade humana, produto<br />

de seus artifícios.<br />

Com bem observa Karam 149 , é comum o equívoco de falar “genericamente em <strong>crime</strong><br />

como se tal expressão pudesse traduzir um conceito natural, que partisse de um<br />

denomina<strong>do</strong>r comum, presente em to<strong>do</strong> tempo ou em to<strong>do</strong> lugar. Mas, na realidade,<br />

<strong>crime</strong>s são meras criações da lei penal, não existin<strong>do</strong> um conceito natural que os<br />

possa genericamente definir. O que é <strong>crime</strong> em um determina<strong>do</strong> lugar, pode não ser<br />

em outro; o que hoje é <strong>crime</strong>, amanhã poderá não ser”.<br />

A Criminologia Genética reducionista e determinista parte, portanto, de duas<br />

premissas equivocadas: nem o homem é um sistema fecha<strong>do</strong> (é, na verdade,<br />

caracteriza<strong>do</strong> pela constante abertura); nem o <strong>crime</strong> é um conceito natural,<br />

independente da normatização da conduta humana operada pelas leis penais.<br />

Mesmo consideran<strong>do</strong> isoladamente o conhecimento genético, não se pode afirmar a<br />

existência de consenso quanto a serem os genes em si “estruturas fechadas”. Para<br />

Richard Lewontin 150 , os genes são passíveis de alterações pelas “condições de<br />

trabalho, psicológicas, sociais, antropológicas” etc., e defini-los como sistemas<br />

fecha<strong>do</strong>s não passaria de mera ideologia. Lembra o autor que a ciência não é tão<br />

objetiva como se costuma apregoar, ela, “como outras atividades produtivas, como o<br />

Esta<strong>do</strong>, a família, o esporte, é uma instituição social completamente integrada e<br />

influenciada pela estrutura de todas as nossas outras instituições sociais. O<br />

problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses<br />

problemas, até mesmo os resulta<strong>do</strong>s científicos, tão alardea<strong>do</strong>s, decorrentes da<br />

investigação científica, são to<strong>do</strong>s profundamente influencia<strong>do</strong>s por predisposições<br />

que derivam da sociedade na qual vivemos. Os cientistas não começam as suas<br />

149<br />

KARAM, Maria Lúcia. Sistema Penal e publicidade enganosa. Revista Brasileira de Ciências<br />

Criminais. n. 52, jan./fev., 2005, p. 159 – 160.<br />

150<br />

Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 137 – 138.<br />

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vidas como cientistas e sim como seres sociais imersos na família, no Esta<strong>do</strong>, na<br />

estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que<br />

foram moldadas por suas experiências sociais. Acima <strong>do</strong> nível pessoal da<br />

percepção, a ciência é moldada pela sociedade porque ela é uma atividade<br />

produtiva humana que demanda tempo e dinheiro. A ciência usa dinheiro e<br />

‘comodities’. Muitas pessoas ganham dinheiro e sobrevivem da ciência, e como<br />

conseqüência as forças sociais econômica e socialmente <strong>do</strong>minantes determinam<br />

em larga medida o que a ciência faz e como ela faz. Mais que isso, tais forças têm a<br />

força de se apropriar das idéias científicas que são particularmente úteis para a<br />

manutenção e continuidade da prosperidade das estruturas sociais das quais elas<br />

são parte. Então outras instituições sociais têm um ‘imput’ sobre a ciência, tanto<br />

sobre o que é feito como sobre o que é pensa<strong>do</strong>, eles tiram da ciência conceitos e<br />

idéias que suportem as suas instituições e façam-nas parecer legitimamente<br />

naturais. É um processo duplo – por um la<strong>do</strong>, da influência social e controle <strong>do</strong> que<br />

os cientistas fazem e dizem para mais à frente apoiarem as instituições da<br />

sociedade – o que é explica<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> falamos da ciência como ideologia”.<br />

Não é sustentável a tese de que “a seqüência <strong>do</strong> Genoma Humano seja o ‘Graal’<br />

que irá revelar tu<strong>do</strong> o que é o ser humano”. Mas, é fácil de compreender como essa<br />

tese reducionista encontra tanto eco na sociedade capitalista globalizada. Ela<br />

permite ocultar as reais causas <strong>do</strong>s problemas sociais (alcoolismo, drogas,<br />

criminalidade, violência, desequilíbrio nervoso, desagregação familiar etc.),<br />

satanizan<strong>do</strong> os genes e os seus porta<strong>do</strong>res, como é interessante para perpetuar o<br />

“status quo”. Lewontin compara a atual condenação <strong>do</strong>s genes anti-sociais com a<br />

satanização ocorrida no século XIX contra o “Bacilo de Koch”, levada a efeito,<br />

evitan<strong>do</strong> a discussão sobre as condições sociais (moradia, higiene, condições<br />

insalubres de trabalho) que realmente levavam à proliferação da tuberculose. 151<br />

Trata-se verdadeiramente de um “marca<strong>do</strong>r substituto”, ou seja, uma variável<br />

relacionada com outra que é a causa real.<br />

Fato é que tal concepção, se levada a sério, inobstante partin<strong>do</strong> de premissas<br />

insustentáveis, vai nos conduzir à intolerância ou ao preconceito para com pessoas<br />

151 Op. Cit., p. 140.<br />

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porta<strong>do</strong>ras de códigos genéticos que apontem para certas “tendências” negativas.<br />

Mais uma vez veremos a segregação, o preconceito e a exclusão sen<strong>do</strong><br />

chancela<strong>do</strong>s pela i<strong>do</strong>neidade e neutralidade (altamente contestáveis) da ciência. 152<br />

Afinal, o próprio Diretor <strong>do</strong> Projeto Genoma Humano, Francis S. Collins 153 , não<br />

corrobora qualquer concepção determinista ou premonitória da <strong>genética</strong>, no que<br />

tange ao comportamento humano. Segun<strong>do</strong> suas palavras:<br />

Para muitas características comportamentais humanas, existe um<br />

componente da hereditariedade <strong>do</strong> qual não se pode escapar. Em<br />

praticamente nenhuma delas a hereditariedade chega perto <strong>do</strong> profético. O<br />

ambiente, em especial as experiências da infância, e o papel de destaque<br />

das chances <strong>do</strong> livre – arbítrio individual têm sobre nós um efeito profun<strong>do</strong>.<br />

Os cientistas descobrirão um nível crescente de detalhes moleculares sobre<br />

os fatores herda<strong>do</strong>s que se encontram subjacentes à nossa personalidade.<br />

Isso, porém, não deve nos levar a superestimar sua contribuição quantitativa.<br />

Sim, a to<strong>do</strong>s nós foi da<strong>do</strong> um conjunto de cartas com as quais lidar, e essas<br />

cartas serão, enfim, reveladas. Contu<strong>do</strong>, a forma como jogamos com elas<br />

depende de nós.<br />

E mais adiante o autor afasta qualquer possibilidade real de uma programação<br />

infalível da <strong>genética</strong> acerca da personalidade e agir humanos: 154<br />

A importância crucial da criação, da instrução e da disciplina na infância não<br />

seria evitada por um lance de da<strong>do</strong>s levemente aprimora<strong>do</strong>. O casal<br />

narcisista que insistiu no uso dessa tecnologia <strong>genética</strong> para produzir um<br />

filho que poderia ser zagueiro de um time de futebol, tocar violino na<br />

orquestra da escola e tirar A+ em matemática poderia muito bem encontra-lo,<br />

em vez disso, em seu quarto, jogan<strong>do</strong> videogame, queiman<strong>do</strong> uma erva e<br />

escutan<strong>do</strong> heavy metal.<br />

Outro fator que não pode passar despercebi<strong>do</strong> é o papel representa<strong>do</strong> pela mídia,<br />

em especial a imprensa na divulgação das notícias sobre as descobertas e<br />

potencialidades da <strong>genética</strong>.<br />

Como salienta Cláudio Tognolli 155 , em sua grande maioria as notícias sobre <strong>genética</strong><br />

veiculadas pela imprensa são contaminadas por ideologia e carentes de um maior<br />

embasamento científico.<br />

152 Op. Cit., p. 302.<br />

153 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 266.<br />

154 Op. Cit., p. 273.<br />

155 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 174.<br />

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Pesquisan<strong>do</strong> as notícias veiculadas sobre o tema, num perío<strong>do</strong> de sete anos (de<br />

1994 a 2000), constatou o autor que menos de 3% delas trazia algum conteú<strong>do</strong><br />

crítico quanto às descobertas biotecnológicas. 156 A tendência da imprensa tem si<strong>do</strong>,<br />

infelizmente, reforçar o caráter estigmatizante das descobertas <strong>genética</strong>s, bem como<br />

acoroçoar o paradigma reducionista, determinista e simplista de encarar o ser<br />

humano, mediante o abuso de expressões características como: “isolamento de<br />

genes” (juntamente com a metáfora cibernética); além da suposta descoberta de<br />

“qualidades”, “disfunções”, “defeitos” e “tendências” individuais e indeléveis “que<br />

cada um traz dentro de si”. 157<br />

Leão Serva 158 , em <strong>entre</strong>vista a Cláudio Tognolli, chama a atenção para o fato de que<br />

a sociedade passa a depositar sua fé em um mun<strong>do</strong> melhor pela intervenção de um<br />

novo “deus moderno que é a biotecnologia”. E arremata, afirman<strong>do</strong> que a imprensa<br />

reflete esse ideário de forma acrítica, sen<strong>do</strong> que “o material jornalístico nunca nos<br />

leva a supor que alguém esteja pensan<strong>do</strong> diferentemente dessas novidades<br />

biotecnológicas. Isso é vendi<strong>do</strong> como se fosse pura técnica despida de uma<br />

ideologia na sua condução. É uma carga muito grande de informações sobre<br />

biotecnologia, mas em nenhum momento isso vem para permitir uma visão mais<br />

completa ou mais complexa <strong>do</strong> que está acontecen<strong>do</strong>”. Enfim, o biologismo, seja por<br />

razões ideológicas ou por pura desinformação ou pressa no fechamento de edições,<br />

acabou ganhan<strong>do</strong> campo na imprensa em detrimento de uma visão crítica e realista<br />

<strong>do</strong>s fatos. 159 Isso certamente empobrece ou até inviabiliza o cumprimento daquilo<br />

que Fiss refere como “a missão democrática da imprensa” 160 , enquanto legítimo<br />

veículo possibilita<strong>do</strong>r de que as pessoas formem informada e livremente as suas<br />

opiniões, e não sejam simplesmente conduzidas ou influenciadas tendenciosamente<br />

por determinada corrente ideológica.<br />

Não se pretende apregoar uma satanização da <strong>genética</strong>, mas apenas uma visão<br />

equilibrada que também não a divinize ou lhe atribua poderes milagrosos, passan<strong>do</strong><br />

156 Op. Cit., p. 183.<br />

157 Op. Cit., p. 186.<br />

158 Op. Cit., p. 239.<br />

159 Op. Cit., p. 290.<br />

160 FISS, Owen M. Op. Cit., p. 99.<br />

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por cima de valores inalienáveis <strong>do</strong> ser humano e construin<strong>do</strong> teorias mirabolantes<br />

sustentadas em falsas premissas.<br />

A <strong>genética</strong> pode muito bem ser veículo para grandes conquistas, inclusive quanto à<br />

solidariedade humana, a tolerância e a convivência pacífica <strong>entre</strong> as pessoas.<br />

Poucos aspectos <strong>do</strong> saber e da atividade humana podem contribuir e já contribuíram<br />

de forma tão valiosa para tornar o racismo algo visivelmente indefensável. A biologia<br />

comprovou que não só não existem “raças inferiores” como sequer há “raças”, pois<br />

que “não há praticamente nenhuma diferenciação racial <strong>entre</strong> os humanos”. As<br />

diferenças físicas constatáveis não se refletem em diferenças <strong>genética</strong>s, já que<br />

“<strong>entre</strong> os humanos mais amplamente separa<strong>do</strong>s é minúscula” a variação <strong>genética</strong><br />

em cotejo com outras espécies. 161<br />

No campo penal certamente a <strong>genética</strong> pode dar sua contribuição, a qual não é<br />

desprezível. É claro que, em parte, certas condutas criminosas admitem uma<br />

explicação etiológica, que bem pode ser explorada no campo genético. Deve-se,<br />

porém, ter o cuida<strong>do</strong> de não assentar conclusões sobre fantasias e de não procurar<br />

simplificar o complexo a qualquer custo, apenas para tranqüilizar nossa perturbação<br />

diante <strong>do</strong>s mistérios da humanidade.<br />

Proceden<strong>do</strong> a uma breve digressão em relação ao tema central deste trabalho,<br />

considera-se oportuno lembrar que a ciência <strong>genética</strong> pode colaborar imensamente<br />

e já o faz, na apuração da autoria de <strong>crime</strong>s. Trata-se de sua aplicação em outro<br />

campo das ciências criminais, qual seja, o da “criminalística”.<br />

Zarzuela 162 conceitua a criminalística como:<br />

o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos, artísticos etc., destina<strong>do</strong>s<br />

à apreciação, interpretação e descrição escrita <strong>do</strong>s elementos de ordem<br />

material encontra<strong>do</strong>s no local <strong>do</strong> fato, no instrumento <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e na peça de<br />

exame, de mo<strong>do</strong> a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um<br />

evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de<br />

presumível ou de evidente interesse judiciário.<br />

161 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 88.<br />

162 ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto,<br />

1996, p. 15.<br />

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Os exames de DNA em vestígios deixa<strong>do</strong>s em locais e instrumentos de <strong>crime</strong>,<br />

vestes e corpos de vítimas e suspeitos, colaboram muitas vezes decisivamente para<br />

o esclarecimento de eventos criminosos, especialmente no que tange à sua autoria.<br />

Watson cogita a possibilidade da criação de um banco de da<strong>do</strong>s genéticos, a<br />

exemplo <strong>do</strong> que já existe com relação às digitais, a fim de facilitar a atuação da<br />

investigação criminal. É claro que a amplitude informativa <strong>do</strong>s códigos genéticos<br />

pode gerar questionamentos quanto a essa invasão estatal da privacidade. Isso<br />

porque, diversamente das digitais, o código genético contém muito mais informações<br />

sobre uma pessoa <strong>do</strong> que sua simples identificação (v.g. <strong>do</strong>enças congênitas). 163 No<br />

entanto, pensamos que algumas precauções legais e práticas, impon<strong>do</strong> um controle<br />

rígi<strong>do</strong> <strong>do</strong> uso das informações genômicas restrito aos fins de investigação criminal,<br />

poderiam promover um saudável equilíbrio <strong>entre</strong> as garantias individuais e o<br />

interesse social na apuração <strong>do</strong>s <strong>crime</strong>s e punição <strong>do</strong>s criminosos. 164 Oportuno,<br />

portanto, transcrever a observação de Watson: 165<br />

Conclusão<br />

Embora a legislação não deva atrapalhar nossa ambição de explorar o pleno<br />

potencial <strong>do</strong> DNA em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem somos e<br />

de onde viemos, ou em identificar quais d<strong>entre</strong> nós são culpa<strong>do</strong>s de algum<br />

<strong>crime</strong>, ela deve no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja priva<strong>do</strong> de<br />

seus direitos civis ou humanos com base no que porventura estiver inscrito<br />

em seus genes.<br />

No decorrer deste trabalho foi discutida a questão da viabilidade da construção de<br />

um saber criminológico calca<strong>do</strong> nas modernas pesquisas <strong>genética</strong>s.<br />

Por intermédio de um esboço da evolução histórica da Criminologia, logrou-se<br />

demonstrar como esta passou de um estágio em que se buscava uma explicação<br />

etiológica <strong>do</strong> fenômeno criminoso, entenden<strong>do</strong> este como um ente natural e o<br />

infrator como porta<strong>do</strong>r de uma anomalia, até chegar às questiona<strong>do</strong>ras concepções<br />

da Criminologia Crítica, e o ponto de equilíbrio que vem a ensejar a compreensão da<br />

163 WATSON, James D. Op. Cit., p. 296.<br />

164 Neste senti<strong>do</strong>: Op. Cit., p. 314.<br />

165 Op. Cit., p. 383.<br />

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complexidade <strong>do</strong> tema pesquisa<strong>do</strong>, propon<strong>do</strong>-se o paradigma da Criminologia<br />

Integrada.<br />

Finalmente, abor<strong>do</strong>u-se o ponto sensível deste estu<strong>do</strong>, ou seja, o papel da <strong>genética</strong><br />

na Criminologia contemporânea. Principiou-se pela defesa da importância da<br />

reflexão como pressuposto para a tomada de qualquer decisão, especialmente<br />

daquelas que se referem à intervenção no “status” <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> e na<br />

sociedade. A seguir, foram expostas as discussões acerca da legitimação da<br />

culpabilidade como pressuposto da punição, fazen<strong>do</strong>-se notar que a<br />

responsabilidade está atrelada de forma inseparável à liberdade. Por outro la<strong>do</strong>,<br />

afastada a responsabilidade por influência de teses deterministas, não se pode mais<br />

legitimamente falar em punição. Não obstante, resta viável a tese da defesa social,<br />

que pode tornar defensáveis os usos de medidas extremas de contenção ou mesmo<br />

de eliminação daqueles aos quais é atribuída, por algum critério, a pecha da<br />

periculosidade.<br />

Analisou-se também a questão <strong>do</strong> totalitarismo oculto na conformação de uma<br />

criminologia <strong>genética</strong> reducionista e determinista. Em seu contexto parece inevitável<br />

uma constante intervenção sobre o indivíduo, controlan<strong>do</strong> profundamente não só as<br />

suas condutas, mas também aquilo que ele seja ou pretenda ser. Isso certamente<br />

conflui para uma desconstrução da autenticidade, extremamente viola<strong>do</strong>ra da<br />

dignidade humana. Há numa Criminologia ou em qualquer teoria ou ideologia que<br />

apregoe a intervenção profunda no “ser” <strong>do</strong> homem um intento de recriar<br />

(destruin<strong>do</strong>) o humano, que é essencialmente “abertura”, para transforma-lo em um<br />

sistema fecha<strong>do</strong>, molda<strong>do</strong> ao bel prazer de alguma elite ilegitimamente detentora <strong>do</strong><br />

poder de decidir como deve ser o “ser” <strong>do</strong> homem.<br />

Por derradeiro, foram apreciadas as fantasias e falsas bases que dão sustento a<br />

uma Criminologia Genética reducionista e determinista, bem como suas naturais<br />

confluências com a conformação intolerante, excludente e cruel de um Capitalismo<br />

Globaliza<strong>do</strong>. Verifica-se muito claramente que aquilo que hoje se apresenta como<br />

uma novidade capaz de revolucionar os estu<strong>do</strong>s criminológicos, não passa de uma<br />

repristinação, acrescida de certa sofisticação e sutileza, de antigas teorias<br />

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etiológicas <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, configuran<strong>do</strong> nada mais <strong>do</strong> que um “neolombrosianismo” tosco,<br />

mal disfarça<strong>do</strong> na pele sedutora da suposta vanguarda científica.<br />

É fato incontestável que a ciência pode ou poderá em breve alterar o patrimônio<br />

genético da humanidade. Mas, o fato de ser detentor de um poder ou conhecimento,<br />

nada diz a respeito da conveniência de seu uso. Em primeiro lugar deve-se saber<br />

“quem, de que mo<strong>do</strong> e com que finalidade pode levar a cabo tais alterações”. Depois<br />

é preciso ir ainda mais fun<strong>do</strong> e decidir se essas mudanças devem sequer ser<br />

levadas a efeito. 166<br />

A história nos ensina que sempre que alguma mudança pode operar-se, ainda que<br />

seja <strong>perigos</strong>a e sofra resistências, acaba acontecen<strong>do</strong>. Neste caso, consideran<strong>do</strong><br />

que a decisão seja pela intervenção modifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> genoma humano, ainda nos<br />

resta discutir a legitimidade das alterações porventura pretendidas. Mister se faz<br />

“encontrar a vontade consensual que possa dar um rumo límpi<strong>do</strong>, claro e<br />

transparente à via ou caminho que se quer prosseguir”. É aqui que reside a missão<br />

<strong>do</strong> Direito. A ele não é da<strong>do</strong> <strong>do</strong>minar e oprimir a pesquisa científica, pretenden<strong>do</strong><br />

impor uma verdade normativa em oposição à verdade aferível pela dialética própria<br />

da atividade da ciência. Afinal, como consta da célebre frase ora atribuída a Francis<br />

Bacon, ora a Galileu Galilei, “a verdade é filha <strong>do</strong> tempo, não da autoridade”.<br />

Portanto, o Direito, alia<strong>do</strong> à ética, deve regular com bom senso os limites da<br />

aplicação <strong>do</strong>s conhecimentos científicos, sem contu<strong>do</strong> constituir uma barreira<br />

autoritária à livre pesquisa. Caberá, portanto, ao Direito (Biodireito) a árdua missão<br />

de encontrar um consenso, orienta<strong>do</strong> por valores éticos, legitiman<strong>do</strong> os<br />

comportamentos altamente relevantes da aplicação da <strong>genética</strong> sob os prismas<br />

comunitário e individual. 167<br />

Note-se, porém, que o caminho a ser trilha<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> pela discussão ética para<br />

chegar à normatização jurídica, não pode ser produto de uma ou outra categoria de<br />

pessoas (juristas, cientistas, religiosos etc.). Muitas vezes os cientistas se arrogam o<br />

direito de apropriação <strong>do</strong> discurso acerca da <strong>genética</strong>, isso com base no fato de<br />

166 COSTA, José de Faria. Op. Cit., p. 103.<br />

167 Op. Cit., p. 103 – 104.<br />

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serem detentores <strong>do</strong> conhecimento técnico. Não obstante, como já se disse, o<br />

<strong>do</strong>mínio de um conhecimento ou poder nada significa a respeito <strong>do</strong> bom ou mau uso<br />

que se fará dele. Para a discussão de questões de alta indagação que suplantam<br />

em muito o mero saber técnico – científico, exigin<strong>do</strong> decisões informadas não<br />

somente pelo conhecimento, mas, principalmente, pela sabe<strong>do</strong>ria, torna-se<br />

imprescindível a confluência democrática e pluralista. Cabe ao cientista a<br />

manifestação e até o esclarecimento sobre as questões técnicas, mas devem ser<br />

chama<strong>do</strong>s à baila o sociólogo, o criminólogo, o jurista, o filósofo, o teólogo, em<br />

suma, a sociedade representada da forma mais ampla e esclarecida possível. Afinal,<br />

como aduz Gilson, a ciência pode fornecer muitas respostas no que diz respeito ao<br />

mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fenômenos, mas, afora isso, nem sequer sabe fazer as perguntas. 168<br />

Diverso não é o entendimento de um cientista esclareci<strong>do</strong> e equilibra<strong>do</strong> como<br />

Collins 169 , que afirma:<br />

Sobre esses assuntos que representam desafios éticos verdadeiros, que não<br />

são situações artificiais e irreais, como nossa sociedade poderá tirar<br />

conclusões?<br />

Primeiramente, seria erra<strong>do</strong> simplesmente deixar os cientistas tomarem<br />

essas decisões. Eles têm uma função crucial nesses debates, já que sua<br />

especialidade pode permitir uma distinção clara <strong>do</strong> que é e <strong>do</strong> que não é<br />

possível. No entanto, os cientistas não podem ser os únicos nesse debate.<br />

Por sua própria natureza, eles têm fome de explorar o desconheci<strong>do</strong>. Seu<br />

senso moral, geralmente, não é nem mais nem menos desenvolvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o<br />

de outros grupos, e eles não conseguem evitar sua aflição diante de um<br />

conflito de interesses que pode fazer com que fiquem indigna<strong>do</strong>s com os<br />

limites estabeleci<strong>do</strong>s por quem não é da comunidade científica. Portanto,<br />

uma ampla variedade de outras perspectivas deve ser representada nesse<br />

debate.<br />

Eis onde emerge a importante função da bioética. O termo foi cunha<strong>do</strong> em 1970 pelo<br />

cancerologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitula<strong>do</strong> “Bioethics, the<br />

Science of Survival” e corrobora<strong>do</strong> em um livro de título “Bioethics, Bridge to the<br />

future”. 170 A “Encyclopedia of Bioethics” a define como o “estu<strong>do</strong> sistemático da<br />

168 GILSON, Etienne. Op. Cit., p. 98.<br />

169 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 273 – 274.<br />

170 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 275.<br />

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conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de<br />

valores e princípios morais”. 171<br />

A Bioética não é uma ideologia reacionária que pretende atravancar os avanços<br />

científicos, mediante sutilezas morais e/ou teológicas. Na verdade, ela é porta<strong>do</strong>ra<br />

de uma clara mensagem de que a ciência e a técnica não prescindem de uma<br />

“razão regula<strong>do</strong>ra” que deve pautar-se por princípios éticos. 172<br />

Afirma Ratzinger que “a ciência pode servir à humanidade, mas pode também se<br />

tornar instrumento <strong>do</strong> mal, dan<strong>do</strong>-lhe os meios para desenvolver plenamente sua<br />

terribilidade; ela pode realizar sua verdadeira essência somente se for sustentada<br />

pela responsabilidade moral”. No entanto, “a força moral não cresceu junto com o<br />

desenvolvimento da ciência; pelo contrário, até diminuiu, porque a mentalidade<br />

técnica relega a moral ao âmbito subjetivo, enquanto seria justamente necessária<br />

uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pairam sobre a<br />

existência de to<strong>do</strong>s nós”. Efetivamente, “a questão moral é hoje, mais <strong>do</strong> que nunca,<br />

manifestamente uma questão de sobrevivência para a humanidade. Na civilização<br />

tecnicista, que já se estendeu ao mun<strong>do</strong> contemporâneo to<strong>do</strong>, as antigas certezas<br />

morais, que sustentavam as várias grandes culturas, foram amplamente destruídas.<br />

A visão tecnicista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dispensa os valores, e se questiona sobre a<br />

possibilidade prática, não sobre o que é lícito. Para muitos, a questão <strong>do</strong> que é lícito<br />

parece até ultrapassada, não mais compatível com a emancipação <strong>do</strong> homem de<br />

to<strong>do</strong>s os vínculos. O que é possível fazer é também lícito fazer: é assim que se<br />

pensa hoje, cada vez mais.<br />

Mas o verdadeiro problema coloca-se em um nível mais profun<strong>do</strong> ainda.<br />

Defrontadas com a certeza indiscutível que caracteriza as matérias técnicas, todas<br />

as certezas morais parecem algo frágeis e discutíveis. Muitos acham que só é<br />

razoável o que posso verificar de forma tão incontrovertível quanto às fórmulas<br />

matemáticas ou técnicas. Mas onde encontrar essa verificabilidade nas realidades<br />

tipicamente humanas, nas questões da moral e <strong>do</strong> reto viver humano? O fato de as<br />

171 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Volume I. 2ª. ed. Trad. Orlan<strong>do</strong> Soares Moreira. São<br />

Paulo: Loyola, 2002, p. 43.<br />

172 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 274.<br />

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />

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grandes culturas, apesar <strong>do</strong>s importantes elementos comuns, darem nesse contexto<br />

resposta diferentes faz com que o relativismo se torne cada vez mais a opinião<br />

<strong>do</strong>minante. No âmbito da moral e da religião, não há nenhuma certeza partilhável;<br />

cada um deve achar por si mesmo como solucionar o problema. Cada um deve<br />

seguir suas próprias convicções”. Esse relativismo tem até certa coerência no cotejo<br />

com a realidade plural, mas destrói a segurança de qualquer critério ético e deixa o<br />

homem sem limites ao seu arbítrio. Nesse quadro, “a ciência se torna patológica e<br />

<strong>perigos</strong>a para a vida, quan<strong>do</strong> se desobriga <strong>do</strong> contexto da ordem moral própria <strong>do</strong><br />

ser – homens, e permite-se admitir unicamente suas próprias possibilidades como<br />

único critério admissível”. A pergunta crucial, porém, não é aquela que se refere ao<br />

que se “pode fazer”, mas aquela que se volta para o que se “deve fazer”, abrin<strong>do</strong>-se<br />

para a “voz da verdade e a seu chama<strong>do</strong>”. 173<br />

Um <strong>do</strong>s aspectos que a Bioética deve preservar no que tange à dignidade humana<br />

perante as descobertas científicas é a vedação absoluta à instrumentalização, sob<br />

quaisquer pretextos.<br />

É neste ponto que uma <strong>genética</strong> determinista, seja em sua aplicação criminológica<br />

ou em geral, é problemática. Isso porque ela reduz o homem a uma espécie de<br />

marionete guiada por mãos invisíveis, que seriam agora os genes. 174<br />

Quan<strong>do</strong> se perde de vista a noção básica de que somos sistemas abertos e não<br />

fecha<strong>do</strong>s abre-se campo para uma reificação <strong>do</strong> humano, que passa a confundir-se<br />

com as coisas e animais incapazes de autoconsciência e de contínua abertura para<br />

um “ser” que se constrói em processo sempre inconcluso.<br />

A liberdade e a responsabilidade são traços fundamentais da existência humana. O<br />

homem escolhe sua existência e toma posição frente aos valores. Por isso é o<br />

responsável pela escrita de sua própria história, a qual não é o mero resulta<strong>do</strong> da<br />

preponderância <strong>do</strong>s instintos sobre o agir consciente, já que o homem tem a<br />

173 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Op. cit., p. 101 – 102.<br />

174 Ver neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. Cit., p. 408. “Não somos meros<br />

marionetes cujos cordões são manipula<strong>do</strong>s por nossos genes”.<br />

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capacidade de superar os impulsos mais poderosos, a não ser que esteja sofren<strong>do</strong><br />

de alguma patologia psíquica. 175<br />

Desse mo<strong>do</strong>, desde que não se perca de vista essa noção básica da liberdade,<br />

responsabilidade e dignidade humanas, as pesquisas sobre <strong>genética</strong> para aplicação<br />

médica ou criminológica não devem ser descartadas ou impedidas.<br />

Trata-se de uma tecnologia de altíssimo potencial para o mal e para o bem, de mo<strong>do</strong><br />

que os povos que virarem as costas para o seu estu<strong>do</strong> criteriosamente pauta<strong>do</strong> pela<br />

ética, correm o risco de serem surpreendi<strong>do</strong>s pelo seu uso descontrola<strong>do</strong> por parte<br />

de pessoas mal intencionadas e pouco ou nada preocupadas com princípios<br />

éticos. 176<br />

O aprimoramento <strong>do</strong>s conhecimentos liga<strong>do</strong>s à <strong>genética</strong> traz em si terríveis riscos,<br />

sempre que não for pauta<strong>do</strong> por princípios éticos e uma visão antropológica que<br />

preserve a dignidade humana. No entanto, não se deve satanizar a <strong>genética</strong> e<br />

somente antever em seu desenvolvimento conseqüências catastróficas para a<br />

humanidade. A precaução é sempre uma virtude, mas o me<strong>do</strong> irracional nunca foi<br />

um bom conselheiro.<br />

É preciso regular os potenciais da <strong>genética</strong>, mas não se pode crer que um<br />

instrumento como esse somente possa ser utiliza<strong>do</strong> com fins egoístas e destrutivos.<br />

Mister se faz dar algum crédito à capacidade humana para o altruísmo e o<br />

sentimento comunitário, que podem tornar os potenciais dessa ciência altamente<br />

produtivos para o bem da humanidade. 177<br />

A mesma ambivalência pode ser constatada num <strong>do</strong>s fatores capazes de fomentar<br />

uma aplicação até mesmo genocida e excludente <strong>do</strong> conhecimento genético, qual<br />

seja, a globalização.<br />

175 PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Op. Cit., p. 42.<br />

176 Neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 429.<br />

177 Neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 426.<br />

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Embora pululem por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> os chama<strong>do</strong>s “movimentos antiglobalização”,<br />

sabe-se o quanto quixotesco é ser “contra a globalização”. Essa postura assemelha-<br />

se a ser contra, por exemplo, uma tempestade. A globalização é um fenômeno<br />

inevitável no atual estágio da humanidade, de mo<strong>do</strong> que a questão não está em<br />

impedi-la, mas em controlar seus processos “selvagens” e converte-los “de ameaça<br />

em oportunidade para a humanidade”. 178<br />

Assim como a <strong>genética</strong> pode ser usada com vistas ao sentimento de solidariedade e<br />

solicitude para com o outro, também a globalização pode ser um elemento de<br />

aproximação e de união da humanidade em torno de um projeto solidário. Ela<br />

permite uma visão <strong>do</strong> “outro” que jamais existiu. Desde que esse “outro” em face <strong>do</strong><br />

qual nos colocamos seja toma<strong>do</strong> como sujeito de nossas obrigações éticas e não<br />

como inimigo ou obstáculo, a globalização pode produzir bons frutos.<br />

Nas palavras de Bauman 179 :<br />

Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela<br />

primeira vez na história da humanidade o auto – interesse e os princípios<br />

éticos de respeito e atenção mútuos de to<strong>do</strong>s os seres humanos apontam na<br />

mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização<br />

pode até transformar-se em benção: a ‘humanidade’ nunca teve uma<br />

oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance será aproveitada<br />

antes que se perca, é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende<br />

de nós.<br />

Enfim, uma lição deve ser aprendida por to<strong>do</strong>s, em especial com a questão <strong>do</strong>s<br />

errôneos fundamentos de uma Criminologia Genética determinista, a reviver um<br />

lombrosianismo, cujo valor é atualmente somente histórico:<br />

Um <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s que devemos sempre tomar, cientes de que errar é inevitável em<br />

nossa condição humana, é, pelo menos, evitar repetir os erros passa<strong>do</strong>s, ainda que<br />

sob novas roupagens.<br />

178 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar, 2005,<br />

p. 94.<br />

179 Op. Cit., p. 95.<br />

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Afinal, como bem lembrava Paulo César da Silva em sua fala final na Reunião <strong>do</strong><br />

Grupo de Pesquisas de Bioética e Biodireito da Unisal 180 : “o erro sempre é velho, só<br />

a verdade é nova”.<br />

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