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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
A GENÉTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE<br />
FALÁCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS E<br />
DESLUMBRAMENTOS<br />
Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos Cabette<br />
Delega<strong>do</strong> de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Gradua<strong>do</strong> com especialização<br />
em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e<br />
Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro <strong>do</strong> Grupo de<br />
Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP.<br />
“Pior <strong>do</strong> que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o <strong>do</strong>no da luz”.<br />
Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.<br />
INTRODUÇÃO<br />
“Nada se sabe, tu<strong>do</strong> se imagina”.<br />
Fernan<strong>do</strong> Pessoa, Odes de Ricar<strong>do</strong> Reis, p. 107.<br />
O mun<strong>do</strong> tem si<strong>do</strong> bombardea<strong>do</strong> pelas promessas da <strong>genética</strong> que descortinam a<br />
possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações <strong>do</strong><br />
homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.<br />
A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar<br />
imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardea<strong>do</strong>s<br />
supostos potenciais quase ilimita<strong>do</strong>s proporciona<strong>do</strong>s pelo desenvolvimento desse<br />
ramo científico.<br />
Em um estágio no qual já se reconhece com alguma <strong>do</strong>se de consenso que as<br />
simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a<br />
realidade. Quan<strong>do</strong> parece estar compreendi<strong>do</strong> que o to<strong>do</strong> não é uma singela soma<br />
das partes, emergin<strong>do</strong> o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos,<br />
surge a <strong>genética</strong>, apresentada quase invariavelmente sobre uma base<br />
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marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentan<strong>do</strong> como palavra de<br />
ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).<br />
Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas <strong>genética</strong>s<br />
pode influenciar os estu<strong>do</strong>s criminológicos, ocasionan<strong>do</strong> uma importante alteração<br />
de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória <strong>do</strong><br />
pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente <strong>perigos</strong>os,<br />
prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.<br />
Uma inicial incursão acerca da evolução histórica <strong>do</strong> pensamento criminológico, será<br />
capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da <strong>genética</strong> no campo criminológico<br />
hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de<br />
velhos paradigmas etiológicos <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, sustenta<strong>do</strong>s sobre bases que se mostraram<br />
equivocadas e ilusórias.<br />
Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder<br />
qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de<br />
alguma maneira atingir a existência humana, ensejan<strong>do</strong> vilipêndios a tu<strong>do</strong> aquilo que<br />
caracteriza o “ser” <strong>do</strong> homem.<br />
1 ESBOÇANDO UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINOLOGIA 1<br />
O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estu<strong>do</strong>s criminológicos encontra-se<br />
no surgimento <strong>do</strong> Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia<br />
Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao<br />
objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal<br />
preocupava-se com o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s jurídico – penais, procuran<strong>do</strong><br />
desenvolver uma formulação teórico – <strong>do</strong>gmática <strong>do</strong> Direito Penal, o advento da<br />
Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltan<strong>do</strong> os olhos da<br />
1 Um desenvolvimento mais aprofunda<strong>do</strong> desta temática já foi por nós leva<strong>do</strong> a efeito em outro<br />
trabalho. CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. A criminologia no século XXI. Revista Forense. Volume<br />
374, jul./ago., 2004, p. 53-78.<br />
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pesquisa científico – criminal para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> fenômeno <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e, especialmente,<br />
da figura <strong>do</strong> criminoso.<br />
O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois<br />
que defende a irradiação <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> científico para todas as áreas <strong>do</strong> saber humano,<br />
até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente<br />
o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas<br />
desse referencial teórico então <strong>do</strong>minante.<br />
O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao méto<strong>do</strong> das ciências<br />
naturais, objetivan<strong>do</strong> limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de<br />
mensuração e descrição. Por isso é que seu resulta<strong>do</strong> acaba sen<strong>do</strong> a limitação <strong>do</strong><br />
Direito às normas legais, evitan<strong>do</strong> a consideração de fatores axiológicos, metafísicos<br />
etc.<br />
O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao méto<strong>do</strong> de<br />
experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da<br />
busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o<br />
fenômeno da criminalidade.<br />
A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo méto<strong>do</strong><br />
científico, dan<strong>do</strong> destaque nunca dantes constata<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem criminoso<br />
e à pesquisa das causas da delinqüência.<br />
Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com<br />
sustentação em da<strong>do</strong>s empíricos oferta<strong>do</strong>s pela demonstração experimental de leis<br />
naturais seguras e imutáveis.<br />
O criminoso passa a ser objeto de estu<strong>do</strong>, uma fonte de pesquisas e experimentos<br />
com vistas à descoberta científica das causas <strong>do</strong> fenômeno criminal.<br />
A obstinada busca de causas explicativas <strong>do</strong> agir criminoso em oposição às<br />
condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação <strong>do</strong> “livre arbítrio”,<br />
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aponta<strong>do</strong> até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitima<strong>do</strong>r<br />
da responsabilidade criminal.<br />
É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista,<br />
pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas<br />
criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja<br />
apropriar-se de um conhecimento que propicie o <strong>do</strong>mínio seguro de leis constantes<br />
a regerem o mun<strong>do</strong> e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele<br />
desvia<strong>do</strong>.<br />
A conseqüência imediata foi a consideração <strong>do</strong> criminoso como um “anormal”. A<br />
partir daí, bastaria <strong>do</strong>tar o pesquisa<strong>do</strong>r de instrumentos hábeis a selecionar, de<br />
forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana<br />
aparentemente homogênea ou normal.<br />
O primeiro grande passo da<strong>do</strong> por um pesquisa<strong>do</strong>r nesse senti<strong>do</strong> foi a <strong>do</strong>utrina<br />
preconizada por Cesare Lombroso, destacan<strong>do</strong>-se a publicação de sua conhecida<br />
obra “O homem Delinqüente”, em 1876.<br />
Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de<br />
“homo sapiens”, o qual apresentaria determina<strong>do</strong>s sinais, denomina<strong>do</strong>s “stigmata”,<br />
de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chama<strong>do</strong> “criminoso<br />
nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões <strong>do</strong> crânio, maxilar inferior<br />
procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e<br />
deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura <strong>do</strong>s braços, mãos e pés, pouca<br />
sensibilidade à <strong>do</strong>r, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade<br />
sexual etc.). To<strong>do</strong>s esses sinais indicariam um “regresso atávico”, ten<strong>do</strong> em conta<br />
sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso<br />
intentou demonstrar uma ligação <strong>entre</strong> a epilepsia e aquilo que chamava de<br />
“insanidade moral”.<br />
Percebe-se claramente o conteú<strong>do</strong> determinista das teorias lombrosianas, o qual<br />
conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora,<br />
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se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, ten<strong>do</strong> em vista<br />
uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que<br />
fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples<br />
motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigi<strong>do</strong> por forças naturais<br />
irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sen<strong>do</strong>, jamais<br />
poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sen<strong>do</strong> as<br />
práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a<br />
sociedade legitimada a defender-se, impon<strong>do</strong>-lhe desde a prisão perpétua até a<br />
pena de morte. 2<br />
A <strong>do</strong>utrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por<br />
estu<strong>do</strong>s ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a<br />
demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica <strong>entre</strong> homens que<br />
perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpri<strong>do</strong>res da lei.<br />
Não obstante, deve ser atribuí<strong>do</strong> a Lombroso o mérito de ser o primeiro a<br />
impulsionar os estu<strong>do</strong>s que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua<br />
Antropologia Criminal, os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> homem delinqüente, razão pela qual tem si<strong>do</strong><br />
considera<strong>do</strong> o verdadeiro “Pai da Criminologia”. 3 A partir dele começam os mais<br />
diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o<br />
comportamento criminoso.<br />
Inúmeras investigações científicas nos mais varia<strong>do</strong>s campos das ciências naturais<br />
e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas <strong>do</strong> fenômeno<br />
criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.<br />
Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais<br />
destaca<strong>do</strong>s: Biologia Criminal, Criminologia Genética 4 , Psiquiatria Criminal,<br />
Psicologia Criminal, En<strong>do</strong>crinologia Criminal, Estu<strong>do</strong>s das Toxicomanias etc.<br />
2<br />
FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. São Paulo: RT, 1995, p. 75.<br />
3<br />
Op. cit., p. 82.<br />
4<br />
O tema presente será melhor desenvolvi<strong>do</strong> em itens posteriores.<br />
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Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação<br />
etiológica endógena <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e <strong>do</strong> homem criminoso. Procura-se apontar uma causa<br />
da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de<br />
anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um<br />
equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da<br />
criminalidade.<br />
Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia<br />
Sociológica”, ten<strong>do</strong> como seu mais destaca<strong>do</strong> representante Enrico Ferri.<br />
A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”,<br />
pon<strong>do</strong> a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da<br />
criminalidade, olvidava as importantes influências ambientais ou exógenas para a<br />
gênese <strong>do</strong> <strong>crime</strong>. Aliás, para os defensores da “Criminologia Sociológica”, as<br />
causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exógenas,<br />
de forma que mais relevante <strong>do</strong> que perquirir as características <strong>do</strong> homem<br />
criminoso, seria identificar o meio criminógeno em que ele se encontra.<br />
No entanto, a “Criminologia Sociológica” em nada inova no que tange à postura de<br />
procurar uma etiologia <strong>do</strong> delito. Os criminólogos ainda insistem em encontrar<br />
“causas” para o <strong>crime</strong>, somente alteran<strong>do</strong> a natureza destas, transplantan<strong>do</strong>-as <strong>do</strong><br />
criminoso para o ambiente criminógeno. Em suma, muda o “locus” da pesquisa,<br />
mas não muda a natureza claramente etiológica desta.<br />
Os estu<strong>do</strong>s relativos à atuação <strong>do</strong> ambiente na criminalidade são variega<strong>do</strong>s,<br />
poden<strong>do</strong>-se mencionar alguns ramos a título meramente exemplificativo: Geografia<br />
Criminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrição, Sistema<br />
Econômico, Mal vivência, Ambiente familiar, Profissão, Guerra, Migração e<br />
Imigração, Prisão e contágio moral, Meios de Comunicação etc.<br />
Ainda no matiz sociológico deve-se dar atenção especial às chamadas “Teorias<br />
Estrutural-Funcionalistas”, as quais podem ser tratadas como item aparta<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong><br />
em vista suas peculiaridades.<br />
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As Teorias Estrutural-Funcionalistas afirmam que o <strong>crime</strong> é produzi<strong>do</strong> pela própria<br />
estrutura social, inclusive exercen<strong>do</strong> uma certa função no interior <strong>do</strong> sistema, de<br />
maneira que não deve ser visto como uma anomalia ou moléstia social.<br />
A base teórica principal é ofertada por Émile Durkheim que dá ênfase para a<br />
normalidade <strong>do</strong> <strong>crime</strong> em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referência<br />
que “o <strong>crime</strong> é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente<br />
impossível”. 5 Mas, o autor vai além, chegan<strong>do</strong> a reconhecer que o <strong>crime</strong> não<br />
somente é normal, mas também “é necessário” para a coesão social, sen<strong>do</strong> uma<br />
sociedade sem <strong>crime</strong>s indica<strong>do</strong>ra, esta sim, de deterioração social. Durkheim indica<br />
o fenômeno criminal como reafirma<strong>do</strong>r da ordem social violada e, portanto,<br />
legitima<strong>do</strong>r de sua existência. Toda vez que acontece um <strong>crime</strong>, a reação<br />
desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigência<br />
das normas legais. 6<br />
Portanto, o desvio é funcional, somente tornan<strong>do</strong>-se <strong>perigos</strong>o ao exceder certos<br />
limites toleráveis. Em tais circunstâncias pode eclodir um esta<strong>do</strong> de des<strong>org</strong>anização<br />
e anarquia, no qual to<strong>do</strong> o ordenamento normativo perde sua efetividade. Não<br />
emergin<strong>do</strong> disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma<br />
situação de carência absoluta de normas ou regras, fican<strong>do</strong> a conduta humana à<br />
margem de qualquer orientação. A isso Durkheim dá o nome de “anomia”, efetiva<br />
causa<strong>do</strong>ra de desagregação e deterioração social. 7<br />
O conceito de “anomia” e o reconhecimento da funcionalidade <strong>do</strong> <strong>crime</strong> no meio<br />
social produzem uma revolução quanto às finalidades e fundamentos da pena, vez<br />
que estes já não devem mais ser busca<strong>do</strong>s na fantasiosa profilaxia de um suposto<br />
mal.<br />
5<br />
DURKHEIM, Émile. As regras <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martim<br />
Claret, 2001, p. 83.<br />
6<br />
Op. Cit., p. 86.<br />
7<br />
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica <strong>do</strong> Direito Penal. Trad. Juarez Cirino <strong>do</strong>s<br />
Santos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 – 60.<br />
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Outra formulação teórica relevante de matiz estrutural-funcionalista deve-se a Robert<br />
Merton. Ele se apropria <strong>do</strong> conceito de “anomia” para demonstrar que o desvio não<br />
passa de um produto da própria estrutura social. Portanto, absolutamente normal,<br />
consideran<strong>do</strong> que esta própria estrutura é que vem a compelir o indivíduo à conduta<br />
desviante. Merton expõe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o<br />
indivíduo ao <strong>crime</strong> no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas não lhe<br />
disponibiliza os meios necessários para o seu alcance legal. O indivíduo perde suas<br />
referências, sentin<strong>do</strong>-se aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> sem possibilidades “normais” de conseguir<br />
seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressiona<strong>do</strong> para a conquista de certos<br />
objetivos sociais, o indivíduo precisa preencher esse vácuo (anomia) de alguma<br />
maneira. E a única maneira disponível será a perseguição <strong>do</strong>s fins colima<strong>do</strong>s por<br />
meios ilegítimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legítimos não estão<br />
acessíveis.<br />
De acor<strong>do</strong> com Merton: “a desproporção <strong>entre</strong> os fins culturalmente reconheci<strong>do</strong>s<br />
como váli<strong>do</strong>s e os meios legítimos à disposição <strong>do</strong> indivíduo para alcançá-los, está<br />
na origem <strong>do</strong>s comportamentos desviantes”. 8 E mais: “a cultura coloca, pois, aos<br />
membros <strong>do</strong>s estratos inferiores, exigências inconciliáveis <strong>entre</strong> si. Por um la<strong>do</strong>,<br />
aqueles são solicita<strong>do</strong>s a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem<br />
– estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos,<br />
lhes são, em ampla medida, nega<strong>do</strong>s”. 9<br />
Outro referencial importante é a denominada “Teoria da Associação Diferencial”,<br />
produzida por Edwin H. Sutherland. Segun<strong>do</strong> essa construção teórica, a<br />
criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano, é<br />
aprendida conforme as convivências específicas às quais o sujeito se expõe em<br />
seu ambiente social e profissional. 10<br />
Essa linha de pensamento possibilitou a formulação da conhecida “Teoria das<br />
Subculturas Criminais”, para a qual o sujeito aprenderia o <strong>crime</strong> de acor<strong>do</strong> com sua<br />
convivência em certos ambientes, assumin<strong>do</strong> as características de determina<strong>do</strong>s<br />
8 Op. Cit., p. 63.<br />
9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65.<br />
10 Op. Cit., p. 66.<br />
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grupos aos quais estaria preso por uma aproximação voluntária, ocasional ou<br />
coercitiva.<br />
Afirma Sutherland que o processo de “associação diferencial” propicia ao sujeito, de<br />
conformidade com seu convívio, aprender e apreender as condutas desviantes<br />
respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a<br />
criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo<br />
de convívio – aprendiza<strong>do</strong> os infratores menos privilegia<strong>do</strong>s praticariam usualmente<br />
os mesmos <strong>crime</strong>s, vez que estariam conecta<strong>do</strong>s ao convívio de pessoas de seu<br />
nível social e só teriam oportunidade de aprender essas determinadas espécies de<br />
condutas delitivas, não sen<strong>do</strong>-lhes possibilita<strong>do</strong> o acesso a conhecimentos e<br />
condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De<br />
outra banda, os mais abasta<strong>do</strong>s teriam acesso ao aprendiza<strong>do</strong> de outras<br />
modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razão disso<br />
também dificilmente incidiriam nas condutas afetas às classes mais baixas.<br />
Há certo ponto de contato <strong>entre</strong> a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a<br />
modalidade de conduta atribuída aos indivíduos das classes pobres e abastadas<br />
apresentaria uma distribuição em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos<br />
para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulação de<br />
Sutherland tem a pretensão de ser mais ampla, fornecen<strong>do</strong> uma fórmula geral apta a<br />
explicar a criminalidade <strong>do</strong>s pobres e das classes altas. Para o autor sob comento,<br />
qualquer conduta desviante seria “apreendida em associação direta ou indireta com<br />
os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse<br />
comportamento criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o<br />
comportamento conforme a lei”. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou não<br />
criminosa de acor<strong>do</strong> “com o grau relativo de freqüência e intensidade de suas<br />
relações com os <strong>do</strong>is tipos de comportamento” (legal e ilegal). Isso é o que se<br />
denomina propriamente de “associação diferencial”. 11<br />
Essa maior abrangência da teoria preconizada por Sutherland a teria torna<strong>do</strong> mais<br />
completa <strong>do</strong> que aquela defendida por Merton. Segun<strong>do</strong> a maioria <strong>do</strong>s críticos, as<br />
11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.<br />
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explicações de Merton seriam bastante satisfatórias para a criminalidade <strong>do</strong>s<br />
pobres, mas não serviriam para esclarecer por que pessoas <strong>do</strong>tadas de to<strong>do</strong>s os<br />
meios institucionais e legais para a consecução de seus objetivos sociais, mesmo<br />
assim, perpetrariam ações delituosas. 12 Portanto, não é sem motivo que o termo<br />
“<strong>crime</strong> de colarinho branco” ou “white collar <strong>crime</strong>” foi cunha<strong>do</strong> e emprega<strong>do</strong><br />
originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma<br />
conferência que se passou na sede da “American Sociological Society”, com a<br />
finalidade de fazer referência a uma espécie de criminalidade praticada por pessoas<br />
de nível social eleva<strong>do</strong>, e em especial na sua atuação profissional. 13<br />
Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural – funcionalista<br />
pode-se mencionar a chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, cujos<br />
principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma<br />
“correção da Teoria das Subculturas Criminais”, mediante a complementação<br />
implementada pelo acréscimo <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s das “técnicas de neutralização”. Estas<br />
seriam maneiras de promover a racionalização da conduta marginal, as quais seriam<br />
apreendidas e usadas la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com os modelos de comportamento e valores<br />
desviantes, de forma a neutralizar a atuação eficaz <strong>do</strong>s valores e regras sociais, aos<br />
quais o delinqüente, de uma forma ou de outra, adere. 14<br />
Na verdade, mesmo aquele indivíduo que vive mergulha<strong>do</strong> em uma subcultura<br />
criminal não perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma,<br />
sobre a influência e presta reconhecimento a algumas de suas regras. É desta<br />
constatação que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usa<strong>do</strong>s<br />
pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas<br />
desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.<br />
12 Para um aprofundamento e uma discussão dessa crítica, a qual não caberia no presente trabalho,<br />
remete-se o leitor a nosso estu<strong>do</strong> anterior já menciona<strong>do</strong>: CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit.,<br />
p. 69 – 71.<br />
13 A conferência de Sutherland teve o título “White Collar Criminality” e foi publicada pela “American<br />
Sociological Review”, em seu número 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. O<br />
<strong>crime</strong> de colarinho branco: aplicação e eficácia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de<br />
Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97.<br />
14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.<br />
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São descritas algumas espécies básicas de “técnicas de neutralização”: 15<br />
a) Exclusão da própria responsabilidade – o infrator se enxerga como vítima das<br />
contingências, surgin<strong>do</strong> muito mais como sujeito passivo quanto ao seu<br />
encaminhamento para o agir criminoso.<br />
b) Negação da ilicitude – o criminoso interpreta suas atuações apenas como<br />
proibidas, mas não criminosas, imorais ou destrutivas, procuran<strong>do</strong> redefini-las com<br />
eufemismos.<br />
c) Negação da vitimização – a vítima da ação delituosa é apontada como<br />
merece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> mal ou <strong>do</strong> prejuízo que lhe foi impingi<strong>do</strong>.<br />
d) Condenação <strong>do</strong>s que condenam – atribuem-se qualidades negativas às instâncias<br />
oficiais responsáveis pela repressão criminal.<br />
e) Apelo às instâncias superiores – sobrevalorização conferida a pequenos grupos<br />
marginais a que o desvia<strong>do</strong> pertence, aderin<strong>do</strong> às suas normas e valores<br />
alternativos, em prejuízo das regras sociais normais.<br />
Note-se que a mais destacável “técnica de neutralização” é a própria criação de uma<br />
subcultura. Esta é a maior enseja<strong>do</strong>ra de abrandamentos de consciência e defesas<br />
contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovação por parte de outras<br />
pessoas integrantes <strong>do</strong> grupo, ocasionam uma tranqüilização e um sentimento de<br />
integração que não se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e<br />
valores oficiais. 16<br />
Inobstante os avanços obti<strong>do</strong>s com as “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, uma<br />
alteração verdadeiramente radical <strong>do</strong> modelo de pesquisa <strong>do</strong> fenômeno criminal<br />
somente adviria com o surgimento da chamada “Criminologia Crítica”. 17 É com ela<br />
15 Op. Cit., p. 78 – 79.<br />
16 Op. Cit., p. 81.<br />
17 Também denominada “Nova Criminologia”, “Criminologia Radical”, “Criminologia Dialética”,<br />
“Criminologia Interacionista” ou “Criminologia da reação social”.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
que se leva a efeito o aban<strong>do</strong>no da mais constante premissa da Criminologia<br />
Tradicional, qual seja, aquela de ser o <strong>crime</strong> uma realidade ontologicamente<br />
reificada.<br />
A partir das idéias trazidas à tona pela revisão criminológica crítica, o <strong>crime</strong> passa a<br />
ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social<br />
responsável pela edição, vigência e aplicação das leis penais.<br />
Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encara<strong>do</strong> como um “anormal” e o <strong>crime</strong><br />
como manifestação “patológica”.<br />
A explicação para a criminalidade é agora procurada no desvelar da atuação <strong>do</strong><br />
Sistema Penal que a define e reage contra ela, inician<strong>do</strong> pelas normas<br />
abstratamente previstas, até chegar à efetiva atuação das agências oficiais de<br />
repressão e prevenção que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicação de alguém<br />
como criminoso é dependente da ação ou omissão das agências estatais<br />
responsáveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivíduos praticantes de<br />
atos desviantes não são trata<strong>do</strong>s como criminosos, até que sejam alcança<strong>do</strong>s pela<br />
atuação das referidas agências, as quais são pautadas por uma conduta e exercem<br />
um papel altamente seletivo. Ser ou não ser criminoso é algo que não está liga<strong>do</strong> à<br />
presença ou não de alguma <strong>do</strong>ença ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou<br />
não o indivíduo si<strong>do</strong> reti<strong>do</strong> pelas malhas das agências seletivas que agem<br />
baseadas em orientações normativas e sociais. 18<br />
Propõem as Teorias da Criminologia Radical o aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> velho modelo<br />
etiológico, visan<strong>do</strong> erigir uma inova<strong>do</strong>ra abordagem crítica <strong>do</strong> Sistema Penal,<br />
inclusive propician<strong>do</strong> um sério questionamento de sua legitimidade.<br />
A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia<br />
de que o Sistema Punitivo é construí<strong>do</strong> e funciona com apoio em uma ideologia da<br />
sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa<br />
social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um<br />
18 Op. Cit., p. 86.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
273
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
convívio harmônico <strong>entre</strong> as pessoas. O verdadeiro fim oculto de to<strong>do</strong> Sistema Penal<br />
seria a sustentação <strong>do</strong>s interesses das classes <strong>do</strong>minantes. Qualquer instrumento<br />
repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre<br />
as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recain<strong>do</strong> pesadamente<br />
sobre os pobres e raramente atuan<strong>do</strong> contra os integrantes das classes<br />
<strong>do</strong>minantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O<br />
Direito é visto como absolutamente despi<strong>do</strong> de qualquer finalidade de transformação<br />
social. Ao contrário, é encara<strong>do</strong> como um instrumento de manutenção e reforço <strong>do</strong><br />
“status quo” social, conservan<strong>do</strong> e alimentan<strong>do</strong> desigualdades pelo exercício de um<br />
poder de <strong>do</strong>minação e força. 19<br />
Impõe-se uma conscientização da gigantesca diferença de intensidade da atuação<br />
<strong>do</strong> Direito Penal sobre setores desvali<strong>do</strong>s da sociedade, enquanto apresenta-se<br />
bastante leniente e omisso perante condutas gravíssimas ligadas às classes<br />
<strong>do</strong>minantes.<br />
É nesse contexto que emerge a “Teoria <strong>do</strong> Labeling Approach” ou “Teoria da<br />
Reação Social”. Enquanto o pensamento criminológico até então vigente advogava a<br />
tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente<br />
natural e até era preexistente às normas penais que o definiam num mero exercício<br />
de reconhecimento, o qual, aliás, consistia em um certo acor<strong>do</strong> universal, um<br />
consenso social; a “Teoria <strong>do</strong> Labeling Approach” virá para desmistificar todas essas<br />
equivocadas convicções.<br />
O “Labeling Approach” ou “etiquetamento” indica que um fato só é toma<strong>do</strong> como<br />
criminoso após a aquisição desse “status” através da criação de uma lei que<br />
seleciona certos comportamentos como irregulares, de acor<strong>do</strong> com os interesses<br />
sociais. Em seguida, a atribuição a alguém da pecha de criminoso depende<br />
novamente da atuação seletiva das agências estatais.<br />
19 LYRA, Roberto, ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense,<br />
1992, p. 204 – 205.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Passa a ser objeto de estu<strong>do</strong> da Criminologia a descoberta <strong>do</strong>s mecanismos sociais<br />
responsáveis pela definição <strong>do</strong>s desvios e <strong>do</strong>s desviantes; os efeitos dessa definição<br />
e os atores que interagem nessas complexas relações. Deixa-se de la<strong>do</strong> a ilusão<br />
<strong>do</strong> <strong>crime</strong> como entidade natural pré – jurídica e <strong>do</strong> criminoso como porta<strong>do</strong>r de<br />
anomalias físicas ou psíquicas.<br />
Essa nova linha de reflexões produz uma derrocada no mito <strong>do</strong> Sistema Penal como<br />
recupera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s desvia<strong>do</strong>s. Contrariamente, entende-se que a atuação rotula<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> Sistema Penal exerce forte pressão para a permanência <strong>do</strong> indivíduo no papel<br />
social (marginal e marginaliza<strong>do</strong>) que lhe é atribuí<strong>do</strong>. O sujeito estigmatiza<strong>do</strong> ao<br />
invés de se recuperar, ganharia um reforço de sua identidade desviante. Na<br />
realidade, o Sistema Penal assim concebi<strong>do</strong> passa a ser entendi<strong>do</strong> como um cria<strong>do</strong>r<br />
e reprodutor da violência e da criminalidade.<br />
Finalmente cabe expor sumariamente a relação <strong>entre</strong> a “Sociologia <strong>do</strong> Conflito” e a<br />
“Nova Criminologia”.<br />
Como já visto, a Nova Criminologia põe em cheque a idéia de que as normas de<br />
convívio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns.<br />
Aí está o ponto de contato com a “Sociologia <strong>do</strong> Conflito”, que apregoa ser uma tal<br />
concepção uma mera ficção erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na<br />
realidade, essa ordem social seria produto não de consenso, mas <strong>do</strong> conflito de<br />
interesses de grupos antagônicos, prevalecen<strong>do</strong> a vontade daqueles que lograram<br />
exercer maior <strong>do</strong>minação.<br />
Com o esboço desse quadro evolutivo da ciência criminológica, é possível<br />
determinar <strong>do</strong>is principais momentos de mudanças conceituais e epistemológicas: o<br />
primeiro deles refere-se à transição <strong>do</strong> Direito Penal Clássico para o nascimento da<br />
Criminologia, sob a égide <strong>do</strong> Positivismo, com as inaugurais pesquisas<br />
lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente aí é que o homem criminoso<br />
adquire importância central nos estu<strong>do</strong>s, que não mais se reduzem às <strong>do</strong>gmáticas<br />
jurídicas. O segun<strong>do</strong> momento relevante foi o da mudança radical <strong>do</strong> referencial<br />
teórico da Criminologia, propicia<strong>do</strong> pela emergência da chamada “Criminologia<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Crítica”. Nessa oportunidade aban<strong>do</strong>na-se o modelo de pesquisa etiológico –<br />
profilático, mediante um consistente questionamento de um longo “processo de<br />
medicalização <strong>do</strong> <strong>crime</strong>”. 20 O fenômeno criminal passa a ser perquiri<strong>do</strong> como criação<br />
da própria <strong>org</strong>anização social e não mais como um ente pré – existente, passível de<br />
compreensão e apreensão pela aplicação isolada <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> das ciências naturais.<br />
A virada epistemológica propiciada pela “Criminologia Crítica” não desmerece o<br />
conjunto <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa<br />
criminológica. Tão somente faz perceber que são possíveis explicações parciais<br />
para o fenômeno criminal, mas jamais tal questão pode ser devidamente<br />
desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violência em geral<br />
são problemas complexos que somente permitem uma visão ponderada através de<br />
um conjunto de saberes e méto<strong>do</strong>s de investigação, os quais, isola<strong>do</strong>s, produzem<br />
noções fantasiosas e distorcidas. Não é por outro motivo que atualmente se fala<br />
numa “Criminologia Integrada”. 21<br />
Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evolução <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s criminológicos<br />
já anteriormente levada a efeito em outro trabalho 22 com um objetivo bastante<br />
defini<strong>do</strong>: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possível como se<br />
chegou à ponderada e racional conclusão de que o “<strong>crime</strong>” em si não existe na<br />
natureza, tratan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> de normas humanas convencionadas. O<br />
criminoso, portanto, é somente to<strong>do</strong> aquele que infringe tais normas e não o<br />
porta<strong>do</strong>r de anomalias. As pesquisas etiológico-profiláticas, que são o original<br />
impulso da Criminologia, são impregnadas de um determinismo irreal porque<br />
baseadas em uma noção ilusória <strong>do</strong> <strong>crime</strong> como ente natural pré-jurídico, que o<br />
Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quan<strong>do</strong>, na verdade, o <strong>crime</strong> é<br />
uma criação <strong>do</strong> Direito, poden<strong>do</strong> inclusive modificar-se ao longo <strong>do</strong> tempo e das<br />
mudanças sociais.<br />
20 BORELLI, Andréa. Da privação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s à legítima defesa da honra: considerações sobre o<br />
direito e a violência contra as mulheres. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun.,<br />
2005, p. 10.<br />
21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 – 618.<br />
22 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 – 78.<br />
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276
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explica<strong>do</strong>s por meio de<br />
uma abordagem etiológica (v.g. o homicídio perpetra<strong>do</strong> por um esquizofrênico que<br />
acredita estar esfaquean<strong>do</strong> um monstro) 23 , deve-se ter em mente que se trata de um<br />
critério váli<strong>do</strong> somente de forma eventual e parcial. Além disso, mesmo sua validade<br />
eventual em nada atinge a conclusão inarredável de que o <strong>crime</strong> é uma criação<br />
normativa, um filho <strong>do</strong> Direito e das convenções e não um rebento da natureza. O<br />
retorno a uma noção equivocada a este respeito, devi<strong>do</strong> a qualquer espécie de<br />
descoberta científica e novas possibilidades de intervenção, constitui um enorme<br />
retrocesso <strong>do</strong> pensamento criminológico com riscos de terríveis conseqüências<br />
sociais e individuais.<br />
2 GENÉTICA: A SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E DO<br />
CRIME?<br />
2.1 A REFLEXÃO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE<br />
Há sempre uma casca envolven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> que se apresenta ao nosso conhecimento e<br />
avaliação. Se nossa análise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela<br />
superfície, jamais rompen<strong>do</strong> essa casca de aparências, corre-se o grave risco de<br />
proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em da<strong>do</strong>s e informações<br />
fantasiosas.<br />
Sobre isso nos alerta o literato José Saramago em sua crônica “Jogam as brancas e<br />
ganham”, afirman<strong>do</strong> que “por baixo ou por trás <strong>do</strong> que se vê, há sempre mais coisas<br />
que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro”. 24<br />
Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que<br />
propicia a ação ou omissão acrítica ou até mesmo bem intencionada, embora<br />
equivocada. Hannah Arendt chama a atenção para este ponto quan<strong>do</strong> destaca a<br />
23 O exemplo refere-se ao ato de “matar alguém”, ti<strong>do</strong> como criminoso, mas obviamente não se olvida<br />
a questão da inimputabilidade sob o ângulo legal. É que o fim da exemplificação consiste na<br />
discussão sob o prisma criminológico e não jurídico.<br />
24 A Bagagem <strong>do</strong> Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.<br />
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“banalidade <strong>do</strong> mal” escancarada no julgamento <strong>do</strong> medíocre funcionário <strong>do</strong><br />
nazismo, Eichmann, responsável por massacres terríveis de seres humanos. À<br />
enormidade <strong>do</strong> mal produzi<strong>do</strong> não correspondia o homem insignificante em<br />
julgamento: ele não era estúpi<strong>do</strong>, porém era <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de “uma curiosa e totalmente<br />
autêntica incapacidade de pensar”. 25<br />
A capacidade de pensar é um atributo humano que não deve jamais ser despreza<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> isso ocorre, além de configurar uma deturpação <strong>do</strong> homem, pode ser a via<br />
ideal para sua autodestruição.<br />
Mas, não basta pensar, este pensar precisa ser também livre, não pode estar<br />
amarra<strong>do</strong> a idéias pré – concebidas pelo próprio pensa<strong>do</strong>r ou assimiladas de<br />
terceiros sem um necessário filtro crítico. Não é bom que idéias alheias<br />
simplesmente <strong>do</strong>minem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente não é<br />
adequa<strong>do</strong> que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o<br />
mun<strong>do</strong> a seu talante, ven<strong>do</strong> apenas aquilo que quer ver e desprezan<strong>do</strong> a<br />
realidade. 26 São respectivamente casos de submissão acrítica e esquizofrenia<br />
intelectual, os quais freqüentemente se <strong>entre</strong>laçam para conformar ideologias<br />
perniciosas.<br />
A <strong>genética</strong> na atualidade tem si<strong>do</strong> apresentada, especialmente na grande mídia,<br />
como uma espécie de panacéia para to<strong>do</strong>s os males. De outra banda, há aqueles<br />
que satanizam as pesquisas <strong>genética</strong>s, somente apontan<strong>do</strong> seus danos potenciais e<br />
<strong>perigos</strong>.<br />
Diante de tal quadro é imprescindível exercitar nossa capacidade de pensar<br />
criticamente, não acatan<strong>do</strong> simplesmente tu<strong>do</strong> aquilo que é proposto de acor<strong>do</strong> com<br />
esta ou aquela orientação.<br />
25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
2004, p. 226. Ver também sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalém. 6ª. ed. Trad. Rubens<br />
Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, “passim”.<br />
26 Desde antanho alertava Descartes sobre o <strong>perigos</strong>o erro de julgar que as idéias que estão em nós<br />
são semelhantes ou conformes as coisas que estão fora de nós. DESCARTES, René. De Deus, que<br />
Ele existe. In: SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda,<br />
2006, p. 206.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
No seguimento será abordada a apresentação da <strong>genética</strong> como possível solução<br />
para a criminalidade, como já tem si<strong>do</strong> aventa<strong>do</strong> e alardea<strong>do</strong> pela imprensa na<br />
divulgação de certas pesquisas acerca de supostos “genes da violência” ou “genes<br />
<strong>do</strong> <strong>crime</strong>”.<br />
2.2 BASES DA CULPABILIDADE<br />
O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto à sua legitimidade. Uma das<br />
discussões mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da<br />
imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsável por seus atos<br />
criminosos ao ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente<br />
responsável por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a repressão <strong>do</strong><br />
criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?<br />
A tradicional fundamentação legitimante <strong>do</strong> Direito Penal encontra-se na aferição da<br />
presença de “culpabilidade”, significan<strong>do</strong> que determinada ação ou omissão pode<br />
ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejan<strong>do</strong> a reprovação jurídica em<br />
razão de sua conduta ilícita.<br />
Não obstante, a configuração teórica da culpabilidade já formalmente explicitada nos<br />
termos acima menciona<strong>do</strong>s, carecia de uma sustentação material a indicar qual<br />
seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prática criminosa.<br />
Neste passo surge a questão <strong>do</strong> “livre arbítrio” em conflito com uma concepção<br />
determinista <strong>do</strong> ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segun<strong>do</strong><br />
o qual a culpabilidade reside na liberdade <strong>do</strong> autor atuar de mo<strong>do</strong> diverso no<br />
momento <strong>do</strong> fato. Melhor dizen<strong>do</strong>, a censurabilidade <strong>do</strong> comportamento tem lastro<br />
no fato <strong>do</strong> culpa<strong>do</strong> haver deseja<strong>do</strong> agir de mo<strong>do</strong> contrário ao dever quan<strong>do</strong> podia<br />
atuar em conformidade com este. 27 Se o homem é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de certa liberdade para<br />
27 DIAS, J<strong>org</strong>e de Figueire<strong>do</strong>. Liberdade Culpa – Direito Penal. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora,<br />
1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese <strong>do</strong> livre arbítrio como pressuposto da culpabilidade<br />
há bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo senti<strong>do</strong>: IDEM, O Problema da Consciência da<br />
ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, “passim”.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
agir ao ponto de tornar-se o responsável por suas condutas, solucionada estará a<br />
questão da culpabilidade. Ao reverso, se o homem é, em suas ações e omissões,<br />
apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento,<br />
entra em crise a pretensão de responsabilizá-lo por seus atos.<br />
Em “As Viagens de Gulliver”, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os<br />
Houyhnhnms) são seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por<br />
puro instinto. Não diferente <strong>do</strong> acima narra<strong>do</strong> é a postura <strong>do</strong>s Houyhnhnms perante<br />
os Yahoos, conforme se vê pelo seguinte trecho da ficção:<br />
“Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, não os culpava por suas odiosas<br />
qualidades mais <strong>do</strong> culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma<br />
pedra afiada por cortar-lhe o casco”. 28<br />
Essa antiga discussão que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas<br />
teses deterministas, não teve fim e vem permean<strong>do</strong> toda a discussão acerca da<br />
legitimidade e eficácia <strong>do</strong>s instrumentos coercitivos penais.<br />
Agora as afirmações de que talvez a <strong>genética</strong> possa apontar causas endógenas<br />
para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polêmica.<br />
Nesse diapasão manifesta-se Casabona, aduzin<strong>do</strong> que “as hipóteses geneticistas<br />
sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente<br />
importante, mas não novo, na discussão sobre o fundamento da imposição da pena<br />
no livre arbítrio ou não”. 29<br />
O geneticismo que ameaça <strong>do</strong>minar as pesquisas criminológicas apresenta traços<br />
nitidamente reducionistas e deterministas.<br />
28<br />
SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Nova<br />
Cultural, 1996, p. 278.<br />
29<br />
CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
O criminólogo passa a assumir um caráter semelhante ao heterônimo de Pessoa,<br />
Ricar<strong>do</strong> Reis, marca<strong>do</strong> pela crença “no destino como uma lei indiscutível e imutável<br />
que dirige a vida <strong>do</strong>s homens”. 30 É isso que o leva a produzir versos como estes:<br />
“Nossa vontade e o nosso pensamento<br />
São as mãos pelas quais outros nos guiam<br />
Para onde eles querem<br />
E nós não desejamos”. 31<br />
“Contenta-te com seres quem não podes<br />
Deixar de ser”. 32<br />
Nesse contexto o homem é retrata<strong>do</strong> como um títere passivo, movi<strong>do</strong> por cordas<br />
invisíveis. Essas cordas já foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo<br />
demônio, passan<strong>do</strong> para a crença Positivista nas causas endógenas mais variadas,<br />
e chegam na atualidade às mãos invisíveis ou microscópicas da <strong>genética</strong>.<br />
Ora, se o <strong>crime</strong> é determina<strong>do</strong> pela presença de certos genes, o mal que ele<br />
representa deixa de ser “moral” para configurar um exemplo de “mal natural”. Um<br />
genocídio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espécie. Ao homem<br />
nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou solução a ser<br />
aventada deve ter um conteú<strong>do</strong> terapêutico e jamais punitivo. Até sob um ponto de<br />
vista teológico as discussões ficariam polarizadas <strong>entre</strong> argumentos como os de<br />
Bayle, apontan<strong>do</strong> Deus como “um gigantesco criminoso”, em contraposição a uma<br />
“teodicéia” de Leibniz, procuran<strong>do</strong> formular uma defesa <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r sob o argumento<br />
<strong>do</strong>s insondáveis mistérios <strong>do</strong>s desígnios divinos. 33<br />
No início <strong>do</strong> século XIX, o Marquês de Laplace, conheci<strong>do</strong> físico e matemático<br />
francês, afirmava que a natureza e o homem eram guia<strong>do</strong>s por um conjunto de leis<br />
físicas imutáveis, das quais não seria possível qualquer espécie de evasão. Essas<br />
leis guiariam os destinos das partículas mais ínfimas da matéria até a formação <strong>do</strong>s<br />
pensamentos humanos. Ele formulou a suposição de que uma vez configura<strong>do</strong><br />
inicialmente o universo, “to<strong>do</strong>s os eventos futuros, incluin<strong>do</strong> os que envolvem<br />
30<br />
PESSOA, Fernan<strong>do</strong>. Odes de Ricar<strong>do</strong> Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25.<br />
31<br />
Op. Cit., p. 68.<br />
32<br />
Op. Cit., p. 93.<br />
33<br />
NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel,<br />
2003, p. 31.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
experiências humanas de passa<strong>do</strong>, presente e futuro, foram especifica<strong>do</strong>s de<br />
maneira irreversível”. Tal suposição, como é bastante límpi<strong>do</strong>, não deixa espaço<br />
para o conceito de livre arbítrio e configura “uma forma extrema de determinismo<br />
científico”. Não obstante, não foi preciso mais que um século para que o conceito<br />
determinista de Laplace fosse derruba<strong>do</strong> por descobertas científicas como as bases<br />
da física quântica e o Princípio da Incerteza <strong>do</strong> físico Werner Heisenberg. 34<br />
É preciso questionar, como faz Casabona, se as investigações <strong>genética</strong>s podem<br />
constituir no campo criminológico um verdadeiro “retorno às teorias biológicas sobre<br />
a criminalidade”. 35<br />
Não parece restar dúvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizen<strong>do</strong>,<br />
retrocesso, às teorias biológicas deterministas sobre a criminalidade, a partir <strong>do</strong><br />
momento em que se cogita da descoberta de um ou vários genes responsáveis pelo<br />
agir criminoso ou pelos vícios comportamentais humanos. Quan<strong>do</strong> se verifica esse<br />
claro retrocesso à superada visão <strong>do</strong> <strong>crime</strong> como uma entidade natural pré –<br />
jurídica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e<br />
determinista, carrega<strong>do</strong> de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuñez,<br />
“el ser humano es plenamente humano cuan<strong>do</strong> es capaz de ir mas allá de onde es<br />
‘impulsa<strong>do</strong>’ y llegar al ámbito en que és ‘libre y responsable’, <strong>do</strong>nde decide. El ser<br />
humano se deshumaniza cuan<strong>do</strong> deja de ser responsable”. 36<br />
É bem verdade que por um la<strong>do</strong> a biologização <strong>do</strong> <strong>crime</strong> retira <strong>do</strong> homem criminoso<br />
o pesa<strong>do</strong> far<strong>do</strong> da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punição, que<br />
passa a configurar uma retribuição tão injusta quanto um castigo imposto a um<br />
animal que agiu movi<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com suas naturais predisposições. Em<br />
contrapartida, não mais existe a esperança de emenda <strong>do</strong> homem criminoso, razão<br />
pela qual se não se pode mais legitimamente falar em sua punição, pode-se<br />
conceber um legítimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o<br />
34 COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. Trad. Gi<strong>org</strong>io Cappelli. São Paulo: Gente, 2007, p. 85 –<br />
86. “Esse princípio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplaciano<br />
de um só golpe, já que demonstrou que qualquer configuração inicial <strong>do</strong> universo jamais poderia de<br />
fato ser determinada com a precisão que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace”.<br />
35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 – 114.<br />
36 NUÑEZ, Juan Martín. Sabiduria China. Disponíbel em: .<br />
Acesso em: 31 mar. 2007.<br />
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282
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
infrator não é passível de reforma, seja por sua vontade manifestada<br />
espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social<br />
podem perfeitamente atingir extremos inimagináveis em outro contexto.<br />
Consideran<strong>do</strong> o homem delinqüente como porta<strong>do</strong>r de uma anomalia que<br />
inevitavelmente o precipita à conduta desviada, somente três opções podem ser<br />
aventadas: sua cura, sua neutralização ou sua eliminação pura e simples.<br />
Se a cura não era em regra uma hipótese palpável para Lombroso, os novos<br />
biologistas criminais, sustenta<strong>do</strong>s na <strong>genética</strong>, sonham com terapias profiláticas<br />
mediante manipulações tornadas possíveis com o avanço científico. Descoberta a<br />
presença de um “gene criminógeno”, quem sabe sua extração ou sua manipulação<br />
pudesse significar a produção de um novo homem devidamente adapta<strong>do</strong> às regras<br />
<strong>do</strong> convívio social? Além disso, a atuação poderia não somente ser repressiva e<br />
preventiva pós – delitual, mas realmente preventiva (pré – delitual), atuan<strong>do</strong> sobre<br />
os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham<br />
a enveredar-se pela senda <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, numa concepção algo parecida com a ficção<br />
cinematográfica de “Minority Report”.<br />
Aparentemente a <strong>genética</strong> aplicada à Criminologia seria porta<strong>do</strong>ra de grandes<br />
esperanças de um mun<strong>do</strong> melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.<br />
Não obstante, os potenciais da <strong>genética</strong> nesse e em outros campos têm si<strong>do</strong><br />
alarga<strong>do</strong>s de maneira fantasiosa, como será exposto no seguimento deste trabalho.<br />
Ademais, a manipulação <strong>genética</strong> altera<strong>do</strong>ra da personalidade humana pode ser um<br />
instrumento extremamente arbitrário, incompatível com o respeito da dignidade<br />
humana e com as concepções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito.<br />
A esperança de “recuperação”, “ressocialização”, “reforma”, “readaptação” ou<br />
“reeducação” <strong>do</strong> delinqüente permeia os sistemas normativos, mas merece<br />
questionamento quan<strong>do</strong> se aventa a autoritária “intervenção estatal na esfera da<br />
consciência” <strong>do</strong> infrator. Ao Esta<strong>do</strong> não é da<strong>do</strong> “oprimir a liberdade interna <strong>do</strong><br />
condena<strong>do</strong>, impon<strong>do</strong>-lhe concepções de vida e estilos de comportamento”. É, pois,<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
incompatível com o Esta<strong>do</strong> Democrático a imposição ao condena<strong>do</strong> <strong>do</strong>s valores<br />
<strong>do</strong>minantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator,<br />
o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negan<strong>do</strong>-se a adaptar-se às<br />
regras de convívio coletivo. 37<br />
É por isso que o moderno pensamento criminológico e penitenciário optou desde<br />
muito tempo pelo afastamento da “pretensão de reduzir o cumprimento da pena a<br />
um processo de transformação científica <strong>do</strong> criminoso em não criminoso”. 38<br />
Entretanto, conforme já exposto, ao criminoso determina<strong>do</strong> inevitavelmente por<br />
fatores endógenos não é somente o caminho terapêutico imaginável. Resta também,<br />
aban<strong>do</strong>nada a vã esperança em sua mudança, o caminho da neutralização por meio<br />
da prisão perpétua ou da eliminação pela pena de morte.<br />
Sabe-se que tais opções são impraticáveis no ordenamento jurídico brasileiro por<br />
força de normas constitucionais impedientes (art. 5º, XLVIII, “a” e “b”, CF). Mas, a<br />
discussão neste trabalho supera o âmbito estritamente jurídico – normativo razão<br />
pela qual se impõe a análise de todas as hipóteses.<br />
No seio de um regime orienta<strong>do</strong> por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais<br />
ou genéticos), seria natural o surgimento da idéia da eliminação <strong>do</strong>s inconvenientes<br />
ou pelo menos sua neutralização.<br />
Arendt, tratan<strong>do</strong> da configuração <strong>do</strong>s regimes totalitários, bem destaca que o<br />
“<strong>crime</strong>”, enquanto ação ou omissão deliberada é passível de “castigo”; já o “vício”,<br />
como pecha indelével e determinante <strong>do</strong> agir “só pode ser extermina<strong>do</strong>”. 39<br />
Citan<strong>do</strong> Proust, a autora lembra que a consideração de uma “predestinação<br />
<strong>genética</strong>” como motiva<strong>do</strong>ra de condutas pode produzir, até certo ponto, uma relativa<br />
tolerância para com os transgressores. Entretanto, “num certo momento essa<br />
37<br />
MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 39.<br />
38<br />
Op. Cit., p. 40.<br />
39<br />
ARENDT, Hanna. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1989, p. 109.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os<br />
verdadeiros criminosos, mas to<strong>do</strong>s os que estão ‘racialmente’ 40 predestina<strong>do</strong>s a<br />
cometer certos <strong>crime</strong>s, o que pode ocorrer quan<strong>do</strong> a máquina legal ou política,<br />
refletin<strong>do</strong> a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a<br />
pregarem essa necessidade de libertação social <strong>do</strong> perigo em potencial. Se for<br />
permiti<strong>do</strong> estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que<br />
liberta o homem de responsabilidade pelo <strong>crime</strong> torna<strong>do</strong> igual ao vício, ele será mais<br />
cruel e desumano <strong>do</strong> que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas<br />
respeitam e reconhecem a responsabilidade <strong>do</strong> homem por sua conduta”. 41<br />
É preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebi<strong>do</strong> como um<br />
ramo científico autônomo de caráter normativo, é altamente influencia<strong>do</strong> em sua<br />
conformação pelas concepções formuladas pela ciência criminológica. Pode-se<br />
afirmar que “a ciência penal, em data de hoje, é totalmente permeável às propostas<br />
da Criminologia”. 42<br />
Como afirma Peláez: 43<br />
La criminología y el derecho penal son <strong>do</strong>s ciencias autónomas , pero ni<br />
opuestas, ni separadas, más bien asociadas. No se resuelve ningún<br />
problema penal sin tener en cuenta los resulta<strong>do</strong>s de la criminología,<br />
convertida en base indispensable de la teoria y la práctica del derecho penal<br />
moderno, así como del derecho penitenciario y del derecho procesal.<br />
Cabe agora a seguinte indagação: qual espécie de Direito Penal seria aquele<br />
conforma<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com uma criminologia <strong>genética</strong>?<br />
A resposta evidente a esta relevante questão é a de que seria um modelo de Direito<br />
Penal Autoritário, estrutura<strong>do</strong> como um “Direito Penal <strong>do</strong> Autor” e não como um<br />
“Direito Penal <strong>do</strong> Fato”. As pessoas passariam a sofrer uma repressão criminal não<br />
por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.<br />
40<br />
Acrescentaríamos ao texto também a palavra “geneticamente”.<br />
41<br />
Op. Cit., p. 103.<br />
42<br />
NASCIMENTO, José Flávio Braga. Curso de Criminologia. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p.<br />
229.<br />
43<br />
PELÁEZ, Michelangelo. Introducción al studio de la criminología. Buenos Aires: Depalma, 1966, p.<br />
190.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Ferrajoli 44 expõe com absoluta propriedade esse modelo autoritário de Direito Penal:<br />
Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais<br />
perversas no esquema penal <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> tipo de autor, onde a hipótese<br />
normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’. A<br />
lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura<br />
status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função regula<strong>do</strong>ra, mas<br />
constitutiva <strong>do</strong>s pressupostos da pena; não é observável ou violável pela<br />
omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente<br />
observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. Está<br />
claro que ao faltar, antes inclusive da própria ação ou <strong>do</strong> fato, a proibição,<br />
todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se,<br />
com efeito, de uma técnica punitiva que, por isso, tem um caráter<br />
explicitamente discriminatório, além de antiliberal.<br />
Com referência a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, pode-se ir<br />
ainda mais longe com apoio no próprio Ferrajoli, chegan<strong>do</strong>-se à possibilidade da<br />
construção de um “modelo punitivo irracional”. Isso ten<strong>do</strong> em conta a idéia de uma<br />
prevenção especial pré – delitual, mediante a atuação sobre a pessoa, manipulan<strong>do</strong><br />
seu código genético para evitar a potencial conduta criminosa, hipótese aventada<br />
por aqueles que fazem uma profissão de fé nos poderes milagrosos da ciência<br />
<strong>genética</strong>.<br />
É o que o autor sob comento denomina de “Sistema de mera prevenção”, no qual a<br />
punição assume “a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva,<br />
não – tenha-se em conta – a função de ‘prevenção geral’, exercida por sua ameaça<br />
legal preventiva como conseqüência <strong>do</strong> delito, mas uma função de ‘prevenção<br />
especial’, ligada à sua cominação preventiva, como um prius em vez de um<br />
posterius relativamente ao fato criminoso. É evidente o caráter não igualitário,<br />
ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De<br />
conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de<br />
retribuição, dirigi<strong>do</strong> a prevenir fatos delituosos por meio da comprovação e da<br />
punição <strong>do</strong>s já ocorri<strong>do</strong>s, em sistema de pura prevenção, dirigi<strong>do</strong> a afrontar a mera<br />
suspeita de delitos cometi<strong>do</strong>s, mas não prova<strong>do</strong>s, ou o mero perigo de delitos<br />
futuros”. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a<br />
legalidade e a jurisdicionariedade, passan<strong>do</strong> a ser “informa<strong>do</strong> por meros critérios de<br />
44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et. al.” São Paulo: RT, 2002, p. 80 –<br />
81.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
discricionariedade administrativa” e degeneran<strong>do</strong>-se ou perverten<strong>do</strong>-se em simples<br />
“procedimento policial de estigmatização moral, política e social”. 45<br />
É preciso refletir sobre essas conseqüências deletérias, capazes de deitar por terra<br />
conquistas seculares, antes de ceder às pressões de teorizações pseu<strong>do</strong> –<br />
científicas tenta<strong>do</strong>ras. Afinal, como adverte Carbonnier, “um manto de ilogicidade, de<br />
absur<strong>do</strong>, por intermédio <strong>do</strong> direito, tem invadi<strong>do</strong> a existência de cada ser humano.<br />
Nenhum cérebro resiste completamente a esta pressão da irracionalidade jurídica”.<br />
46<br />
2.3 O OTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENÉTICA<br />
O retrocesso que pode ocorrer com uma adesão acrítica a uma Criminologia<br />
Genética com pretensões de controle sobre a conduta humana mediante<br />
intervenções pré ou pós – delitivas, aparte estribar-se em concepções superadas <strong>do</strong><br />
<strong>crime</strong> e <strong>do</strong> criminoso como entes naturais marca<strong>do</strong>s por desvios patológicos,<br />
também apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma<br />
clara tendência para a conformação de uma estrutura totalitarista de poder.<br />
O fenômeno <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, amplia<strong>do</strong> muitas vezes de forma artificial pela mídia, com sua<br />
capacidade de comunicação nunca antes historicamente igualada ou sequer<br />
semelhante, mas também inegavelmente configura<strong>do</strong>r de uma justa preocupação<br />
social, ten<strong>do</strong> em vista a potencialização da violência real nas sociedades modernas,<br />
caracterizadas pela heterogeneidade multiplica<strong>do</strong>ra de desigualdades e conflitos,<br />
ocasiona uma constante demanda por soluções.<br />
Em meio a esse clima de terror, freqüentemente não se ponderam devidamente os<br />
custos e benefícios de certas vias apontadas como soluções para o problema da<br />
criminalidade, em especial a violenta.<br />
45 Op. Cit., p. 81 – 82.<br />
46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7ª. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: “Une nappe de<br />
déraison, d’absurdité, par l’intermédiaire du droit, a envahi l’existence de chaque homme. Aucun<br />
cerveau ne resiste complétement à cette pression de l’irrationnel juridique”.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais não é<br />
o <strong>crime</strong> em si mesmo, mas o perigo de que o encarniçamento na sua repressão<br />
termine por desembocar no totalitarismo. 47<br />
A Criminologia Genética nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de<br />
seus argumentos e demonstrações, o que induz à sua aparente neutralidade.<br />
É justamente essa característica de tal concepção acerca da questão criminal que<br />
pode conduzir a um terrível cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.<br />
O cientificismo é uma “ideologia daqueles que, por deterem o monopólio <strong>do</strong> saber<br />
objetivo e racional, julgam-se os detentores <strong>do</strong> verdadeiro conhecimento da<br />
realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa <strong>do</strong> saber”. 48<br />
Já foi destaca<strong>do</strong> neste trabalho como essa crença no saber científico como único<br />
detentor da verdade, sob a forma <strong>do</strong> pensamento positivista, influenciou a<br />
Criminologia, erigin<strong>do</strong> a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes<br />
etiológicas da Criminologia Clínica.<br />
É interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a<br />
possibilidade de qualquer contribuição da religião para o saber humano, também<br />
não deixa de erguer-se sobre pilares intocáveis que podem bem ser defini<strong>do</strong>s como<br />
verdadeiros “artigos de fé”: 49<br />
1) a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor <strong>do</strong>s sabe<strong>do</strong>res; 2) a<br />
ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver<br />
to<strong>do</strong>s os problemas práticos, desde que bem formula<strong>do</strong>s, quer dizer, positiva<br />
e racionalmente; 3) não somente é legítimo, mas sumamente desejável que<br />
seja confia<strong>do</strong> aos cientistas e aos técnicos o cuida<strong>do</strong> exclusivo de dirigirem<br />
to<strong>do</strong>s os negócios humanos e sociais; como somente eles sabem o que é<br />
verdadeiro, somente eles podem dizer o que é bom e justo nos planos ético,<br />
político, econômico, educacional etc.<br />
47<br />
CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Trad. Sara<br />
Costa. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24.<br />
48<br />
JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro:<br />
J<strong>org</strong>e Zahar, 1996, p. 44.<br />
49 Op. Cit., p. 44.<br />
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288
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Como adverte Étienne Gilson 50 , os <strong>do</strong>gmas <strong>do</strong> cientificismo podem ser tão arbitrários<br />
quanto os religiosos o seriam de acor<strong>do</strong> com o ponto de vista <strong>do</strong>s cientistas. Assim<br />
sen<strong>do</strong>, se há realmente o perigo e exemplos históricos passa<strong>do</strong>s e contemporâneos<br />
de regimes totalitaristas influencia<strong>do</strong>s por concepções religiosas, igualmente pode-<br />
se temer e constatar exemplos semelhantes orienta<strong>do</strong>s pela crença desmedida nos<br />
atributos <strong>do</strong> saber científico.<br />
Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky <strong>org</strong>anizam uma coletânea de textos sobre a<br />
questão <strong>do</strong> fanatismo, chaman<strong>do</strong> a atenção para o fato de que não se deve falar em<br />
“fanatismo” (no singular), mas em “fanatismos” (no plural). 51 Dessa forma, a obra<br />
aborda o problema sob várias faces de sua manifestação, dividin<strong>do</strong> os textos em<br />
blocos que têm por temática comum o problema proposto, mas sob suas<br />
diversificadas “faces” (religiosa, racista, política e esportiva). 52<br />
A revelação divina atribuída a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos<br />
pode perfeitamente ser substituída pela crença em um suposto saber científico que<br />
acaba sen<strong>do</strong> “diviniza<strong>do</strong>”, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, é a tão<br />
decantada racionalidade científica que, levada a extremos, abre caminho para o<br />
irracionalismo característico <strong>do</strong>s fanatismos que, invariavelmente, desembocam no<br />
totalitarismo. A irracionalidade é condição para o fanatismo e também para o<br />
totalitarismo a partir <strong>do</strong> momento em que a contestação não tem espaço. 53 Certas<br />
“verdades científicas” acabam desqualifican<strong>do</strong> de tal forma seus opositores que<br />
ganham foros de intangibilidade. Se uma raça é perversa por natureza, que valor<br />
têm seus argumentos e que espécie de pessoas se dá ao trabalho de defendê-la?<br />
Se os porta<strong>do</strong>res de certos genes são maus, criminosos, pode-se dar crédito ao que<br />
dizem ou àqueles que pretendem defender seus direitos?<br />
A precaução contra essa espécie de “discurso científico” não configura um desejo de<br />
opressão à livre pesquisa e à própria liberdade de expressão na sociedade. Na<br />
50 Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Mace<strong>do</strong>. Lisboa: Edições 70, 2002, “passim”.<br />
51 Faces <strong>do</strong> Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 9.<br />
52 Op. Cit., p. 15 – 282.<br />
53 Op. Cit., p. 10.<br />
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289
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
verdade, quan<strong>do</strong> um pensamento (científico ou não) tem a pretensão de naturalizar<br />
o mal moral, selecionan<strong>do</strong> determinadas categorias de pessoas como suas<br />
porta<strong>do</strong>ras, seja por que for (crentes de certa religião, pertencentes a uma raça,<br />
aderentes a um movimento político ou porta<strong>do</strong>res de certos genes); claro está que<br />
tais grupos é que terão seu direito de livre expressão absolutamente desrespeita<strong>do</strong>,<br />
de acor<strong>do</strong> com aquilo que Fiss denomina de “efeito silencia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> discurso”. Nessas<br />
circunstâncias o direito à livre expressão é limita<strong>do</strong> por si mesmo, pois, a partir <strong>do</strong><br />
momento em que seu exercício ilimita<strong>do</strong> implicaria no silenciar de contra –<br />
argumentos, nítida está a necessidade de impor-lhe limites. 54<br />
Embora não esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista não possa ainda<br />
cativar um número suficiente de incautos, ensejan<strong>do</strong> algo semelhante com o<br />
holocausto 55 , penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos<br />
genericamente considerada, tenha aprendi<strong>do</strong> alguma coisa com os erros <strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> e não mais se deixe levar por ideologias tão grosseiras.<br />
No entanto, é fato que, como diz Bauman, “nenhuma das condições que tornaram<br />
Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada<br />
para evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a<br />
Auschwitz”. 56 Talvez o próprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento<br />
da dignidade humana no século XXI, mas se ele não convencer como antes, quem<br />
sabe uma versão mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?<br />
O nazismo se baseava em “verdades reveladas” pela “ciência”. Essas “verdades”<br />
convenceram as pessoas um dia a acreditarem que “o mais imbecil <strong>do</strong>s ‘arianos<br />
puros’ pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista”. Isso não<br />
resultava de uma “apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada<br />
pela propaganda nazista”. Tratava-se de um “<strong>do</strong>gma de fé” legitima<strong>do</strong> por<br />
argumentos pseu<strong>do</strong>científicos. 57<br />
54<br />
FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva<br />
Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 – 60.<br />
55<br />
Basta ver o que tem ocorri<strong>do</strong> na atualidade na África e Europa devi<strong>do</strong> a conflitos étnicos e raciais.<br />
56<br />
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e<br />
Zahar, 1998, p. 30.<br />
57<br />
PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (<strong>org</strong>s.). Op. Cit., p. 10.<br />
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290
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Ainda antes disso, no século XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma<br />
sucessão de crânios que ia <strong>do</strong>s macacos, passan<strong>do</strong> pelos orangotangos até chegar<br />
aos negros e daí, seguin<strong>do</strong> num suposto processo evolutivo, até chegar à outra<br />
extremidade onde se achavam os asiáticos centrais e os europeus. Tratava-se<br />
também de uma explicação pseu<strong>do</strong>científica não só para a classificação das raças,<br />
mas também para justificar “as disparidades de poder, ordenan<strong>do</strong>-os em termos de<br />
superioridade e inferioridade”. 58<br />
Hoje a <strong>genética</strong>, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s rumos que venha a tomar, tem o potencial de<br />
engendrar uma versão mais sofisticada e sutil <strong>do</strong> racismo, com alto potencial<br />
genocida e viola<strong>do</strong>r da dignidade humana.<br />
Na extensa obra de Hannah Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato<br />
<strong>entre</strong> as características de um totalitarismo racista e segrega<strong>do</strong>r opera<strong>do</strong> no<br />
passa<strong>do</strong>, com o potencial modelo calca<strong>do</strong> no determinismo genético da atualidade.<br />
Uma primeira e importante aproximação encontra-se no fato de que o poder<br />
genético projeta<strong>do</strong> sobre o homem é muito mais profun<strong>do</strong> e opressivo <strong>do</strong> que<br />
qualquer outro exemplo de controle político antes existente e executável.<br />
É uma característica inerente aos regimes totalitários não se contentar com a<br />
simples “irradiação <strong>do</strong> poder”, controlan<strong>do</strong> os destinos exteriores das pessoas, mas<br />
pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, <strong>do</strong>nde o biopoder torna-se<br />
o sonho de qualquer burocracia totalitária com sua gana de controle absoluto,<br />
poden<strong>do</strong> interferir “com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior”. 59<br />
Não é sem razão que as utopias da biotecnologia têm evoca<strong>do</strong> a memória <strong>do</strong><br />
nazismo e de outros regimes totalitários, conforme expõe o jornalista e historia<strong>do</strong>r<br />
José Arbex Júnior em <strong>entre</strong>vista concedida a Cláudio Tognolli:<br />
58<br />
FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Trad. Rosaura Eichemberg.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81.<br />
59<br />
ARENDT, Hanna. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1989, p. 277.<br />
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291
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
“Toda utopia tem uma forte vocação totalitária (a perfeição de um não – lugar que<br />
projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como<br />
uma ‘nova utopia’, ela me produz uma sensação de desumanização <strong>do</strong> homem por<br />
um jogo, que tem como um <strong>do</strong>s componentes a total biologização <strong>do</strong> corpo<br />
(entendi<strong>do</strong> como máquina produtiva) e como outro componente a erradicação <strong>do</strong><br />
desejo, no senti<strong>do</strong> lacaniano, que só pode existir como resposta ao precário e ao<br />
frágil provisório que constitui a humanidade <strong>do</strong> homem; o desejo da máquina<br />
biotecnológica é substituí<strong>do</strong> por metas, por ‘vontade de potência’. Isso me cheira a<br />
nazismo”. 60<br />
Também Leão Serva 61 , em <strong>entre</strong>vista similar manifesta-se no mesmo senti<strong>do</strong>,<br />
afirman<strong>do</strong> ver a biotecnologia “como a manifestação contemporânea <strong>do</strong> modelo de<br />
medicina persegui<strong>do</strong> pelos nazistas”.<br />
Entretanto, o poder de sedução desta e de outras utopias tendencialmente<br />
totalitárias é muito grande e tem como sustentação <strong>do</strong>is pilares: o formato “científico”<br />
de apresentação das idéias e a propaganda que difunde a ideologia.<br />
A ciência funciona como um manto de segurança e neutralidade a legitimar o poder<br />
absoluto pretendi<strong>do</strong>. Nas palavras de Arendt: 62 “Tanto no caso da publicidade<br />
comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto <strong>do</strong><br />
poder. A obsessão <strong>do</strong>s movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’<br />
desaparece assim que eles assumem o poder”.<br />
As informações veiculadas pela imprensa, dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong>s supostos potenciais da<br />
<strong>genética</strong> para a solução de to<strong>do</strong>s os problemas humanos, colaboram para o reforço<br />
da crença em uma utopia que se projeta para o futuro.<br />
Além <strong>do</strong> fato de que tais informações nem mesmo retratam a realidade <strong>do</strong> estágio<br />
das pesquisas e o verdadeiro potencial das técnicas, também ensejam um clima de<br />
60 TOGNOLLI, Cláudio. A falácia da <strong>genética</strong>. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 233.<br />
61 Op. Cit., p. 238.<br />
62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.<br />
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292
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
aposta cega numa “salvação” que a ciência (agora a <strong>genética</strong>) teria o condão de<br />
propiciar à humanidade, de forma a tornar desinteressantes considerações de ordem<br />
ética sobre os procedimentos e conseqüências.<br />
Bauman 63 alerta para o fato de que a ciência costuma ser posta à parte das<br />
considerações morais, mediante a preponderância <strong>do</strong> foco nos fins, sen<strong>do</strong> os meios<br />
relega<strong>do</strong>s a segun<strong>do</strong> plano, pelo menos quanto ao aspecto ético:<br />
(...), mais <strong>do</strong> que qualquer outra autoridade, a ciência é autorizada pela<br />
opinião pública a praticar o princípio, de outra forma eticamente odioso, de<br />
que os fins justificam os meios. A ciência é o mais completo exemplo da<br />
dissociação <strong>entre</strong> meios e fins, que é o ideal da <strong>org</strong>anização racional da<br />
conduta humana: os fins é que são submeti<strong>do</strong>s a avaliação moral, não os<br />
meios.<br />
Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento científico tem si<strong>do</strong><br />
freqüentemente utilizada justamente para protelar as discussões, geran<strong>do</strong><br />
argumentos incontestáveis no presente, já que seus efeitos promissores são sempre<br />
projeta<strong>do</strong>s para o futuro, de mo<strong>do</strong> a justificarem a atuação presente sem maiores<br />
considerações éticas sobre os meios, ten<strong>do</strong> em vista os fins que se vislumbram à<br />
frente.<br />
Eis a lição de Arendt 64 :<br />
63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187.<br />
64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.<br />
A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de<br />
afirmações proféticas a um ponto antes ignora<strong>do</strong> de eficiência metódica e<br />
absur<strong>do</strong> de conteú<strong>do</strong> porque, <strong>do</strong> ponto de vista demagógico, a melhor<br />
maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de<br />
verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos.<br />
Contu<strong>do</strong>, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse méto<strong>do</strong> e<br />
não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de<br />
massa tem si<strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> tão universal na política moderna que<br />
chegou a ser identifica<strong>do</strong> como sintoma mais geral da obsessão com a<br />
ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e<br />
da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último<br />
estágio de um processo durante o qual “a ciência tornou-se um í<strong>do</strong>lo que,<br />
num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza<br />
<strong>do</strong> homem”.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Percebe-se, portanto, quão comum é que o totalitarismo se aproprie e aproveite <strong>do</strong><br />
cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultação de<br />
propósitos, inclusive sem grande preocupação com a real consistência das teorias<br />
“científicas” preconizadas.<br />
Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma “febre biocrática” 65 a<br />
ensejar um poder de caracteres absolutamente inéditos na história da humanidade.<br />
À “biocracia” corresponde a implantação de um “biopoder”, o qual apresenta um<br />
espectro de irradiação muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre<br />
os destinos de toda uma população, inclusive de gerações futuras. 66<br />
Esse biopoder, exercita<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> uma sociedade livre <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e da violência, seria<br />
<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s instrumentos necessários para atuar sobre os genes a fim de adequar o<br />
comportamento da população às regras sociais consideradas convenientes.<br />
Uma grave questão está em saber a quem seria da<strong>do</strong> o privilégio de decidir quais<br />
seriam os padrões deseja<strong>do</strong>s por tal sociedade.<br />
Talvez a suposta neutralidade científica indique que esse poder não deva<br />
concentrar-se nas mãos de uma pessoa determinada, mas ser exerci<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong><br />
com o conhecimento técnico – científico devidamente burocratiza<strong>do</strong>. Nesse contexto<br />
o exercício <strong>do</strong> poder não apresenta um centro de irradiação, tornan<strong>do</strong>-se impessoal,<br />
alicerça<strong>do</strong> em critérios técnicos praticamente incontestáveis.<br />
Essa diluição <strong>do</strong> poder, longe de enfraquecê-lo em sua atuação sobre o indivíduo,<br />
torna-o absoluto. A conversão <strong>do</strong>s governos em “burocracias” faz com que não<br />
pertençam mais ao império da lei ou <strong>do</strong>s homens, emanan<strong>do</strong> agora de “escritórios<br />
ou computa<strong>do</strong>res anônimos, cuja <strong>do</strong>minação inteiramente despersonalizada pode vir<br />
a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual<br />
65 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 94.<br />
66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvão. São Paulo: Martins Fontes,<br />
2000, p. 296.<br />
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nenhuma vida comunitária é concebível, <strong>do</strong> que jamais foi a mais abusiva<br />
arbitrariedade <strong>do</strong>s tiranos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”. 67<br />
Um <strong>do</strong>s traços que diferenciam as ditaduras <strong>do</strong>s governos totalitários está na<br />
burocratização <strong>do</strong> poder torna<strong>do</strong> impessoal e, por isso, ainda mais arbitrário,<br />
distante e atroz. A burocracia enquanto “man<strong>do</strong> de ninguém”, torna-se “a forma<br />
menos humana e mais cruel de governo”. 68<br />
Essa característica de um “governo de ninguém”, que não significa “ausência de<br />
governo”, como uma das mais “tirânicas e cruéis” versões <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder é<br />
insistentemente destacada nas obras de Arendt. 69<br />
A impessoalidade <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> poder sustenta-se também na crença em uma<br />
“ficção comunística”, ou seja, na suposição da existência de um interesse comum da<br />
sociedade, o qual poderia ser assegura<strong>do</strong> pela força de uma “mão invisível” que<br />
teria o condão de guiar o comportamento humano e produzir a harmonização de<br />
eventuais conflitos de interesses. 70<br />
Ora, o que mais convincente e adequa<strong>do</strong> a esse tipo de pensamento <strong>do</strong> que uma<br />
modalidade de poder exercitável sobre a humanidade, partin<strong>do</strong> de seu interior, de<br />
códigos genéticos sutilmente manipula<strong>do</strong>s para guiar de forma irresistível o<br />
comportamento e harmonizar a convivência social?<br />
É impossível não fazer a ligação de to<strong>do</strong> esse contexto com a obra de ficção, hoje<br />
nem tanto futurista, de Huxley, “Admirável Mun<strong>do</strong> Novo”, na qual um governo<br />
totalitário instrumentaliza homens e mulheres “padroniza<strong>do</strong>s em grupos uniformes”,<br />
objetivan<strong>do</strong> a consecução da “estabilidade social”. 71<br />
67<br />
ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2004, p. 66.<br />
68<br />
Op. Cit., p. 94 – 95.<br />
69<br />
IDEM. A Condição Humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária,<br />
2004, p. 50.<br />
70<br />
Op. Cit., p. 53 – 54.<br />
71<br />
HUXLEY, Al<strong>do</strong>us. Admirável Mun<strong>do</strong> Novo. 2ª. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo:<br />
Globo, 2003, p. 14.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
2.4 A DESCONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAÇÃO DA<br />
DIGNIDADE HUMANA<br />
Quan<strong>do</strong> se trata da possibilidade de manipulação <strong>genética</strong>, especialmente<br />
levantan<strong>do</strong>-se a hipótese de alteração <strong>do</strong> genoma humano, mediante a exclusão de<br />
características consideradas negativas a critério de quem quer que seja, impossível<br />
não vislumbrar uma flagrante violação da autenticidade <strong>do</strong> homem em sua natural<br />
diversidade.<br />
Certamente uma das piores violências a serem perpetradas contra a humanidade<br />
seria a exclusão arbitrária da riqueza da diversidade, característica esta, aliás, muito<br />
claramente constatável por meio da própria <strong>genética</strong>, a qual demonstra a<br />
singularidade de cada ser humano.<br />
Talvez as gerações que não tenham conheci<strong>do</strong> o que seria viver em um mun<strong>do</strong><br />
onde as diferenças se chocavam sim, mas também surpreendiam, se completavam<br />
e libertavam, não tenham noção daquilo que perderam. Entretanto, não é justo que<br />
nós, cientes <strong>do</strong> que significa essa perda, condenemos nossos pósteros a um mun<strong>do</strong><br />
de homogeneidade monótona e arbitrária.<br />
O que nos restaria em um mun<strong>do</strong> de seres humanos pré – molda<strong>do</strong>s ao sabor de<br />
uma burocracia qualquer, detentora <strong>do</strong> poder decisório <strong>do</strong> que seja bom ou mau em<br />
relação à capacidade de conduta e à personalidade?<br />
Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofunda<strong>do</strong>, retrata<strong>do</strong> por<br />
Saramago 72 ao ver os pés de oliveira <strong>do</strong>s campos de sua terra natal expulsos pelo<br />
milho híbri<strong>do</strong> por força de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:<br />
Por cada pé de oliveira arranca<strong>do</strong>, a Comunidade Européia pagou um prêmio<br />
aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em<br />
lugar <strong>do</strong>s misteriosos e vagamente inquietantes olivais <strong>do</strong> meu tempo de<br />
criança e a<strong>do</strong>lescente, em lugar <strong>do</strong>s troncos retorci<strong>do</strong>s, cobertos de musgo e<br />
líquenes, esburaca<strong>do</strong>s de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar<br />
72 SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sséis de ramos carrega<strong>do</strong>s de azeitonas negras e de pássaros, o que<br />
se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável<br />
campo de milho híbri<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> com a mesma altura, talvez com o mesmo<br />
número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e<br />
o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo<br />
número de bagos.<br />
Jonas fala em sua obra das utopias <strong>do</strong> “homem autêntico vin<strong>do</strong>uro”, d<strong>entre</strong> as quais<br />
menciona o “super – homem” <strong>do</strong> futuro de Nietzsche, e a superioridade <strong>do</strong>s homens<br />
cria<strong>do</strong>s numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias<br />
socialistas. O primeiro não disse jamais uma palavra sobre o que se poderia<br />
concretamente fazer para o advento de seu “super – homem”. Os segun<strong>do</strong>s<br />
alicerçavam suas crenças nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida<br />
sobre um modelo econômico revolucionário. 73 Mas, ambas as teorizações têm em<br />
comum um projeto de homogeneização <strong>do</strong> humano, extirpan<strong>do</strong> as diferenças, as<br />
variações, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da própria personalidade.<br />
Quem sabe na atualidade a manipulação <strong>genética</strong> pudesse tornar tais projetos bem<br />
mais palpáveis?<br />
A questão, porém, é saber se é possível falar em um homem autêntico construí<strong>do</strong> na<br />
homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboçar a autenticidade<br />
humana, a destrói, ao pretender eliminar a diferença, o inespera<strong>do</strong> e até o ambíguo<br />
que é inerente à humanidade.<br />
Nas palavras de Jonas: 74<br />
Tendremos también que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza<br />
unívoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( en<br />
si) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidad de ser bueno o ser malo,<br />
más aún, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Cierto<br />
es que de los grandes malva<strong>do</strong>s se dice que son inhumanos, pero solo los<br />
hombres pueden ser inhumanos; y los grandes malva<strong>do</strong>s ponen de manifesto<br />
la naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habrá de<br />
rechazarse también, por tanto, la idea de una riqueza de la naturaleza<br />
humana existente, pero <strong>do</strong>rmida, que solo aguarda a ser abierta (des –<br />
encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse.<br />
Solamente existe la <strong>do</strong>tación biológico – anímica de esta naturaleza para la<br />
riqueza y pobreza del poder – ser; riqueza y pobreza son igualmente<br />
73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona:<br />
Herder, 1995, p. 258 – 263.<br />
74 Op. Cit., p. 350 – 351.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
naturales, si bien se da un pre<strong>do</strong>mínio de la última, pues la pobreza en<br />
humanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas como<br />
elegida – incluso en las circunstancias más favorables – por la pereza y la<br />
sobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riqueza<br />
del yo, además del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de la<br />
lucha contra la pereza).<br />
A extinção dessa potência <strong>do</strong> “poder – ser” humano convertida em um ser pré –<br />
fabrica<strong>do</strong> é altamente limita<strong>do</strong>ra. Se por um la<strong>do</strong>, como já visto, a crença em um<br />
determinismo biológico ou genético exime o homem de responsabilidade, também<br />
lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim também, a construção de um<br />
homem geneticamente direciona<strong>do</strong> para o “bem” (ainda que sem entrar em<br />
pormenores sobre a legitimidade desse conceito formula<strong>do</strong> por alguém ou alguns),<br />
praticamente extermina a noção <strong>do</strong> mérito da ação moral, juntamente com a<br />
liberdade e a identidade de cada ser humano.<br />
É bem verdade que a grandeza da liberdade não é isenta de riscos, inclusive<br />
altamente negativos. Mas, é preferível viver em um mun<strong>do</strong> onde a escolha é<br />
possível <strong>do</strong> que em outro onde tu<strong>do</strong> é pré – determina<strong>do</strong>. É de Viktor Frankl 75 a<br />
afirmação de que é melhor um mun<strong>do</strong> no qual seja possível, por um la<strong>do</strong>, um<br />
fenômeno como o de A<strong>do</strong>lf Hitler e, por outro, o de tantos santos que já viveram.<br />
Necessário se faz recordar que a singularidade é uma nota característica de toda<br />
existência humana. 76<br />
Há um terrível perigo que corre to<strong>do</strong> aquele que tem a pretensão de aprimorar algo,<br />
qual seja, o risco de que suas mudanças acabem por desnaturar o original,<br />
transforman<strong>do</strong>-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que<br />
inicialmente era.<br />
Um breve conto de Brecht 77 muito bem ilustra esse dilema:<br />
75 Apud, PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em:<br />
www.latautonomy.<strong>org</strong> , acesso em 31.03.07, p. 44. É bom lembrar que Frankl sofreu na pele as<br />
agruras <strong>do</strong> nazismo.<br />
76 Op. Cit., p. 46.<br />
77 BRECHT, Bertolt. Histórias <strong>do</strong> Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34,<br />
2006, p. 33.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
O personagem Sr. Keuner narra, no episódio intitula<strong>do</strong> “Forma e Conteú<strong>do</strong>”,<br />
que certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe <strong>entre</strong>gou uma tesoura e<br />
man<strong>do</strong>u aparar um loureiro, orientan<strong>do</strong>-o a fazer o corte de mo<strong>do</strong> que a<br />
árvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu início imediato ao<br />
trabalho, cortan<strong>do</strong> os brotos selvagens, mas sentin<strong>do</strong> sérias dificuldades para<br />
atingir o formato de uma bola. Finalmente a árvore tomou em suas folhagens<br />
o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por isso, quan<strong>do</strong> o<br />
jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepciona<strong>do</strong>: “Certo, isto é<br />
uma bola, mas onde está o loureiro?”.<br />
O desejo de aprimoramento <strong>do</strong> homem por meios genéticos revela um anelo de fuga<br />
da “condição humana” que nos é dada para ingressar em um novo estágio no qual o<br />
próprio homem pretende moldar sua condição. Move a humanidade um desejo<br />
inconti<strong>do</strong> de afastamento da natureza, seja pela criação de ambientes artificiais,<br />
seja, agora, pela possibilidade da criação de um “homem artificial”. É esse<br />
desiderato que se manifesta quan<strong>do</strong> se pretende criar a vida em uma proveta ou unir<br />
sob um microscópio o sêmen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir<br />
“seres humanos superiores”, mudar-lhes as dimensões, as formas, as capacidades<br />
etc. Também certamente o mesmo desejo de escapar da “condição humana” anime<br />
a “esperança de prolongar a duração da vida humana para além <strong>do</strong>s cem anos”.<br />
Realmente o homem <strong>do</strong> futuro, projeta<strong>do</strong> pelos cientistas para menos de um século,<br />
“parece motiva<strong>do</strong> por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi<br />
dada – um <strong>do</strong>m gratuito vin<strong>do</strong> <strong>do</strong> nada (secularmente falan<strong>do</strong>), que ele deseja<br />
trocar, por assim dizer, por algo produzi<strong>do</strong> por ele mesmo. Não há razão para<br />
duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo<br />
para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida <strong>org</strong>ânica da Terra. A<br />
questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento<br />
científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é<br />
uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por<br />
cientistas profissionais nem por políticos profissionais”. 78<br />
O que Arendt propõe é que os potenciais e riscos advin<strong>do</strong>s com os novos<br />
conhecimentos científicos não sejam simplesmente “engoli<strong>do</strong>s” por to<strong>do</strong>s em silêncio<br />
respeitoso à figura <strong>do</strong> “cientista sábio”. A autora convida to<strong>do</strong>s a agirem,<br />
conceben<strong>do</strong> a ação como a efetiva participação política nas importantes decisões a<br />
78 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense<br />
Universitária, 2004, p. 10 – 11.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexão sobre os rumos a serem<br />
segui<strong>do</strong>s não são pertencentes a um grupo privilegia<strong>do</strong>, mas a toda humanidade. 79<br />
E neste ponto podemos retomar com Arendt a questão da singularidade humana<br />
como essencial para a preservação da autenticidade <strong>do</strong> homem.<br />
Lembran<strong>do</strong> Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como<br />
um <strong>do</strong>s fatores preponderantes na diferença <strong>entre</strong> o homem e o animal. Isso porque<br />
o primeiro foi cria<strong>do</strong> “unum ac singulum”, enquanto os animais foram ordena<strong>do</strong>s a<br />
existirem “vários de uma só vez” (“plura simul iussit existere”). Para Santo Agostinho,<br />
a criação demonstra que os animais vivem como “espécie”, ao passo que os<br />
homens têm uma existência singular. Resta claro que “a pluralidade é a condição da<br />
ação humana pelo fato de sermos to<strong>do</strong>s os mesmos, isto é, humanos, sem que<br />
ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existi<strong>do</strong> ou venha a<br />
existir”. 80<br />
Note-se que a ação <strong>do</strong> homem, isto é, sua participação ativa na sociedade, seus<br />
atos próprios, suas manifestações pessoais, só é viável, ten<strong>do</strong> em conta sua<br />
singularidade; o inespera<strong>do</strong> que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o<br />
homem pode ser o mesmo que o cão eterno viven<strong>do</strong> na espécie, com seus lati<strong>do</strong>s e<br />
o rabo a abanar <strong>do</strong> início ao fim <strong>do</strong>s séculos, como vislumbra Schopenhauer. 81<br />
Acontece que no homem está ínsita a novidade e “o novo sempre surge sob o<br />
disfarce <strong>do</strong> milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode<br />
esperar dele o inespera<strong>do</strong>, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E<br />
isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada<br />
nascimento, vem ao mun<strong>do</strong> algo singularmente novo”. 82 Pretender evitar essa<br />
originalidade é o mesmo que destruir um milagre.<br />
79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial ênfase à importância que Hanna Arendt dá à participação<br />
ativa <strong>do</strong> homem na sociedade (“Vita Activa”). Para a autora o que caracteriza o homem em sua<br />
condição humana é a ação, entendida como participação política, manifestação de sua personalidade<br />
e identidade no seio da sociedade. O labor e o trabalho também integram o ser <strong>do</strong> homem, sua<br />
condição, mas somente a ação é que o caracteriza realmente como humano.<br />
80 Op. Cit., p. 16.<br />
81 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte, Metafísica <strong>do</strong> Amor, Do sofrimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Trad. Pietro<br />
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46.<br />
82 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 191.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
A singularidade necessariamente se imbrica com a liberdade, pois somente sen<strong>do</strong><br />
livre poderá o homem ser o que desejar ser e não aquilo a que seja obriga<strong>do</strong> a ser<br />
por forças naturais ou por outros homens. Não é sem razão que Max Frisch define a<br />
identidade como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja”. 83<br />
A tentativa de levar adiante a metáfora da identidade humana como um quebra –<br />
cabeças a ser monta<strong>do</strong> com peças pré – determinadas é vã e inadequada. Esse<br />
quebra – cabeças somente seria aceitável se fosse assumi<strong>do</strong> como sempre<br />
incompleto e imprevisível, deixa<strong>do</strong> nas mãos de cada homem singular para criar sua<br />
identidade livre da opressão ou limites externos. 84<br />
O homem jamais pode ser concebi<strong>do</strong> como uma espécie de massa de moldar.<br />
Somente a crueldade profunda e a megalomania ou uma inocência pueril podem<br />
levar a crer ser possível direcionar vidas humanas como brinque<strong>do</strong>s de crianças.<br />
Arendt chama a atenção para o fato de que a expressão “material humano” não<br />
deve ser percebida simplesmente como uma metáfora inofensiva.<br />
Ao seu la<strong>do</strong> seguem “inúmeras experiências científicas modernas no campo da<br />
engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral etc., todas visan<strong>do</strong> a<br />
manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro<br />
material”. Essa é uma postura “mecanicista” característica da modernidade. Na<br />
antiguidade, visan<strong>do</strong> os mesmos objetivos, o homem era concebi<strong>do</strong> “como um<br />
animal selvagem que devia ser <strong>do</strong>ma<strong>do</strong> e <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>”. O que importa é que em<br />
qualquer caso, esse tratamento implica na “morte <strong>do</strong> homem”, talvez não como<br />
“<strong>org</strong>anismo vivo, mas enquanto homem”. 85<br />
Ratzinger também alerta para o perigo inerente à tentação <strong>do</strong> homem “criar o<br />
homem”. Nada mais que uma recente “forma de poder, que aparentemente pode até<br />
parecer benéfica e digna de aprovação, mas que na realidade poderia tornar-se uma<br />
nova ameaça para o homem”. É sabi<strong>do</strong> ser possível produzir homens em tubos de<br />
83 Apud, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar,<br />
2005, p. 45.<br />
84 Op. Cit., p. 54 – 55.<br />
85 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 201.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
ensaio, mas com isso o humano “torna-se um produto”, alteran<strong>do</strong> drasticamente seu<br />
relacionamento consigo mesmo. Perde a característica de um “<strong>do</strong>m da natureza ou<br />
<strong>do</strong> Deus cria<strong>do</strong>r” para tornar-se “produto de si mesmo”, numa descida até as<br />
profundezas “da fonte de poder, até as nascentes de sua própria existência”. Daí<br />
conclui-se que “a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer<br />
experiências com o homem, a tentação de considerar como lixo os homens e livrar-<br />
se deles já não são mais fantasias de moralistas hostis ao progresso”. 86<br />
É imperativo rechaçar qualquer visão reducionista <strong>do</strong> humano capaz de<br />
instrumentalizá-lo, violan<strong>do</strong> sua dignidade e produzin<strong>do</strong> sua reificação. Viktor Frankl<br />
advoga a urgência de superar qualquer espécie de reducionismo. E há reducionismo<br />
na visão biologista, no condutivismo, no psicologismo, no sociologismo e até no<br />
antropologismo. Todas essas visões reducionistas levam ao niilismo e constroem<br />
uma falsa imagem <strong>do</strong> homem, pois o concebem como um “homúnculo”, um artefato.<br />
Dessa forma não se pode compreender o homem, mas sim estabelecer-lhe uma<br />
imagem distorcida e mutilada, extremamente pobre, a que se pode denominar de<br />
“homunculismo”, na qual o ser humano é visto como um autômato de reflexos e<br />
instintos, como um mero produto de impulsos, herança e meio ambiente. 87<br />
Para trabalhar com o que é humano é preciso acostumar-se com o imprevisível e<br />
não pretender eliminá-lo das equações; é preciso tolerar e, mais que isso, valorizar a<br />
diversidade <strong>do</strong> gênero humano. Caso contrário, o que ocorre é uma tendência ao<br />
“genocídio”, entendi<strong>do</strong> como “um ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é,<br />
a uma característica <strong>do</strong> ‘status humano’ sem a qual a simples palavra ‘humanidade’<br />
perde o senti<strong>do</strong>”. 88 Não é porque a forma de eliminação da diversidade é praticada<br />
com maior sutileza, através de manipulações microscópicas, e não por meio de<br />
massacres de milhares de pessoas em câmaras de gás, a golpes de facão ou por<br />
fuzilamento, que o ato genocida é menos gravoso ou inexiste. Ao reverso, quanto<br />
mais sutil, mais imperceptível e insidiosa a ação, maior o seu potencial destrutivo.<br />
86 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Bento XVI questões de fé, ética e pensamento na<br />
obra de Joseph Ratzinger. Trad. Roberto Cattani. São Paulo: Claridade, 2005, p. 107 – 108.<br />
87 Apud, PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em<br />
www.latautonomy.<strong>org</strong> , acesso em 31.03.07, p. 38.<br />
88 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. 6ª.ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1999, p. 291.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
A tal ponto pode chegar a atuação da ciência por meio da <strong>genética</strong>, alteran<strong>do</strong><br />
arbitrariamente o genoma humano, que caracteres podem simplesmente deixar de<br />
existir de forma irrecuperável, atingin<strong>do</strong> irreversivelmente futuras gerações.<br />
Este é um <strong>do</strong>s novos desafios da ética contemporânea, o qual produz uma<br />
“densificação da noção de responsabilidade”. A responsabilidade requerida nos dias<br />
atuais se apresenta muito mais complexa e gera<strong>do</strong>ra de maior comprometimento.<br />
Na ética tradicional a responsabilidade <strong>do</strong> ator se adstringe ao que é previsível,<br />
àquilo que é controlável no espaço <strong>do</strong> cognoscível, <strong>do</strong> imediato ou, no máximo, <strong>do</strong><br />
próximo. Mas, esse paradigma se alterou muito drástica e rapidamente, de mo<strong>do</strong><br />
que hoje “somos também responsáveis por tu<strong>do</strong> aquilo que, muito embora não seja<br />
imediatamente previsível é já expectável”. Não é à toa que se firma atualmente uma<br />
chamada “Fernethik”, ou seja, uma ética de responsabilidade que “carrega em si o<br />
elemento novo da distância longínqua”. Dessa maneira, vivemos o futuro no<br />
presente, um futuro que se mostra “não como simples e encantatória evanescência,<br />
mas como uma realidade densa que condiciona toda e qualquer decisão de hoje”.<br />
Opera-se, em verdade, uma “contração temporal” a que não estavam familiarizadas<br />
as construções éticas tradicionais. 89<br />
Retoman<strong>do</strong> a especificidade <strong>do</strong> objeto deste trabalho, deve-se considerar que a<br />
diversidade humana não se manifesta somente nas diferenças <strong>entre</strong> os homens,<br />
mas também na impermanência <strong>do</strong> homem em relação a si mesmo; no fato de que<br />
to<strong>do</strong> ser humano jamais pode ser toma<strong>do</strong> como acaba<strong>do</strong>, pronto ou definitivo. O<br />
homem é sempre um projeto, um contínuo porvir, como bem retratam as palavras <strong>do</strong><br />
poeta: 90<br />
“Quem és não o serás, que o tempo e a sorte”.<br />
Te mudarão em outro”.<br />
Portanto, é absurda a pretensão de prever ou prognosticar quem será o homem que<br />
hoje se apresenta à nossa frente, seja com base em que espécie de conhecimento<br />
89 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de Filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p.<br />
200 – 201.<br />
90 PESSOA, Fernan<strong>do</strong>. Op. Cit., p. 141.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
for inclusive no genético. Não há como cortar fatores e simplificar arbitrariamente a<br />
complexa e caótica equação humana. Certamente aqui se pode falar com segurança<br />
de uma “complexidade irredutível”. Quan<strong>do</strong> essa simplificação é levada a efeito,<br />
reduz-se o homem a um ou alguns de seus aspectos isola<strong>do</strong>s, mutilan<strong>do</strong>-o e<br />
converten<strong>do</strong>-o no “homúnculo” caricato de que fala Viktor Frankl.<br />
No ano de 1959, Roberto Rosselini produziu um filme chama<strong>do</strong> “O General Della<br />
Rovere”. Segun<strong>do</strong> consta, a história é baseada em fatos reais. Conta o filme haver<br />
um homem mal caráter, um baixo vigarista, capaz de tirar dinheiro <strong>do</strong> luto alheio, da<br />
<strong>do</strong>r e da aflição das pessoas, sem pesar-lhe um momento sequer a consciência.<br />
Frente às suas vítimas, procura iludi-las a elas e a si mesmo, argumentan<strong>do</strong> haver<br />
agi<strong>do</strong> movi<strong>do</strong> pela piedade. Ora, desde que um tal sentimento possa render<br />
dinheiro, tu<strong>do</strong> bem. Seu nome é Bran<strong>do</strong>ne e segue obten<strong>do</strong> dinheiro em troca de<br />
vãs promessas de ajuda “a presos políticos, resistentes, guerrilheiros, em poder <strong>do</strong>s<br />
alemães”. É um homem sedutor, de fala macia “por natureza e necessidade <strong>do</strong><br />
ofício”, um engana<strong>do</strong>r medíocre que seguiria nessa toada até o fim de seus dias ou<br />
até um golpe de monta que o fizesse enriquecer e poder, finalmente, ingressar no<br />
grupo das pessoas que vivem honestamente. No entanto, está este homem<br />
destina<strong>do</strong> a outra conquista: “a da dignidade”.<br />
Quan<strong>do</strong> suas artimanhas são descobertas a Gestapo lhe oferece a chance de<br />
salvar-se e ainda locupletar-se com uma gorda recompensa em dinheiro. Ele aceita.<br />
Sua missão é ocupar na prisão o lugar <strong>do</strong> General Della Rovere (o qual morreu no<br />
desembarque clandestino na Itália, quan<strong>do</strong> deveria encontrar-se com Fabrizio, um<br />
líder da resistência). Bran<strong>do</strong>ne deveria agir para denunciar o líder Fabrizio, o qual<br />
também estava preso, mas cuja identidade era ignorada pela Gestapo. No<br />
seguimento natural das coisas Bran<strong>do</strong>ne iria fechar sua carreira de imoralidades<br />
como “o grande denunciante”, “o grande trai<strong>do</strong>r”. Ele que nunca passara de um<br />
estelionatário medíocre, poderia terminar na riqueza e, quem sabe, ainda usufruin<strong>do</strong><br />
alguma “honra”, como um comenda<strong>do</strong>r ou coisa semelhante ao final da guerra.<br />
Acontece que “as oportunidades e as situações é que fazem e desfazem os<br />
homens”. Disfarça<strong>do</strong> como o general, recolhi<strong>do</strong> a uma cela “cujas paredes<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
conservam ainda as palavras de despedida <strong>do</strong>s resistentes fuzila<strong>do</strong>s, força<strong>do</strong> pelos<br />
acontecimentos a mostrar-se firme e valente – acorda nele pouco a pouco um outro<br />
homem”. É confronta<strong>do</strong> com a tortura, a coragem real e um respeito que nunca<br />
merecera e nem recebera de ninguém. Tu<strong>do</strong> isso o converte profundamente no<br />
General Della Rovere, “toman<strong>do</strong> atitudes e dizen<strong>do</strong> palavras que <strong>do</strong> general se<br />
esperavam”. Ao final, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> se perde e ele é submeti<strong>do</strong> a torturas, mas ainda<br />
lhe acena a oportunidade de salvar a própria vida delatan<strong>do</strong> Fabrizio, ele opta<br />
livremente por caminhar com os outros detentos para o poste da execução. “São<br />
dele as palavras corajosas que honram a pátria e reclamam a derrota <strong>do</strong>s inimigos.<br />
Aos olhos de to<strong>do</strong>s é o General Della Rovere que morre”. No entanto, os<br />
especta<strong>do</strong>res sabem que “quem vai morrer é um pobre homem, fraco, burlão,<br />
joga<strong>do</strong>r sem sorte, chama<strong>do</strong> Bran<strong>do</strong>ne, que aprendeu a ser corajoso, honra<strong>do</strong> e<br />
digno. Esta morte é uma vitória”.<br />
Novamente é José Saramago quem nos brinda com sua sensibilidade ao captar e<br />
descrever a mensagem de um filme que chega à profundidade da alma humana<br />
mutável e surpreendente, acrescentan<strong>do</strong> ainda que “talvez a fraqueza de cada um<br />
de nós não seja irremediável. A vida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar<br />
a prova real <strong>do</strong> que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”. 91<br />
A eventual intervenção ou influência exercida sobre o homem, visan<strong>do</strong> seu<br />
aprimoramento moral não pode basear-se na alteração arbitrária de sua<br />
personalidade, acomodan<strong>do</strong>-a a padrões alheios. Isso seria uma forma de<br />
padronizar os seres humanos, instrumentalizan<strong>do</strong>-os e tratan<strong>do</strong>-os como coisas e<br />
não como pessoas. Também seria desconsiderar sua diversidade e impermanência,<br />
sua liberdade de expressão e pensamento, que merecem respeito sempre, somente<br />
comportan<strong>do</strong> limitações quan<strong>do</strong> por condutas exteriores venham a prejudicar os<br />
direitos correlatos <strong>do</strong>s outros.<br />
O homem vive em relação contínua com as coisas e com os outros homens no<br />
mun<strong>do</strong>. Esses “entes” são tu<strong>do</strong> aquilo que “existe concretamente”, “designan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong><br />
o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos<br />
91 A Bagagem <strong>do</strong> Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 133 – 135.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
preenche, nos exalta e nos decepciona”. 92 No entanto, a relação <strong>do</strong> homem para<br />
com os “entes – envolventes”, ou seja, “a presença simples e objetivada” das coisas<br />
e da natureza não é a mesma que mantém com o “ser – aí” (“Dasein”) <strong>do</strong>s outros<br />
(homens). “Estes entes não são jamais meros objetos ou entes – envolventes; ao<br />
contrário, são como é o verdadeiro ser – aí que os desvela, ‘são aí também’ e ‘aí<br />
com’”. 93<br />
O “eu” <strong>do</strong> homem em relação aos “outros” não deve ser compreendi<strong>do</strong><br />
isoladamente. Esses “outros” não são todas as demais pessoas com exceção de<br />
mim mesmo. Na verdade, “esses ‘outros’ são aqueles de quem, na maioria das<br />
vezes, alguém não pode se distinguir – aqueles no meio <strong>do</strong>s quais alguém também<br />
está”. Dessa forma, não se trata de mera presença objetivada junto com os outros.<br />
Trata-se de um “ser – lá – também – com eles dentro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, de tal maneira que<br />
“o mun<strong>do</strong> é sempre algo que eu partilho com os outros”. 94<br />
Observe-se que a nossa maneira de atuar perante os “entes – envolventes” pode ser<br />
definida como o “cuidar”. Não obstante, o “cuidar” não serve para descrever a<br />
relação <strong>entre</strong> o “Dasein” e o “ser – aí – com”, ou seja, <strong>entre</strong> as pessoas. Os outros<br />
“com os quais o ser – aí como ser – com se comporta não têm o mesmo mo<strong>do</strong> de<br />
ser que pertence à ‘totalidade <strong>do</strong>s entes – envolventes’”, pois eles próprios são ser –<br />
aí e não mera presença objetivada. Assim, a eles não está reserva<strong>do</strong> o “cuidar”, mas<br />
sim a “solicitude”. Os entes com que o “ser – aí é com, não são objetos de cuida<strong>do</strong>,<br />
mas de solicitude”. 95<br />
Entretanto, a própria solicitude pode desvirtuar-se no extremo <strong>do</strong> “tomar conta <strong>do</strong><br />
outro”, aproximan<strong>do</strong>-se de um mo<strong>do</strong> de “cuidar”, como se faz com as coisas.<br />
Assume-se o encargo <strong>do</strong> outro que é o de cuidar de si mesmo. Isso produz uma<br />
retirada <strong>do</strong> outro de seu lugar próprio, poden<strong>do</strong> torná-lo alguém <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> e<br />
dependente. Nesse contexto ocorre um “saltar sobre o outro” que, na realidade, é<br />
próprio de nossa relação de cuida<strong>do</strong> para com os entes – envolventes (coisas).<br />
92 HEIDEGGER, Martin, Apud, JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Op. Cit., p. 82.<br />
93 HEIDEGGER, Martin. To<strong>do</strong>s nós...ninguém. Trad. Dulce Maria Critelli. São Paulo: Moraes, 1981, p.<br />
34.<br />
94 Op. Cit., p. 34 – 35.<br />
95 Op. Cit., p. 40.<br />
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Resta claro que essa atuação sobre o outro o reifica e instrumentaliza. Portanto, a<br />
relação não deve ser esta, não se deve “saltar sobre o outro”, “mas antecipar-se a<br />
ele em sua existencial possibilidade – para – ser” de forma a salvá-lo para “torná-lo<br />
transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo livre para si”. 96<br />
A relação <strong>entre</strong> os homens não deve ser orientada pelo salto sobre o outro que o<br />
<strong>do</strong>mina, mas sim pelo salto “diante <strong>do</strong> outro, que o liberta”. 97<br />
Percebe-se que a <strong>genética</strong> tem o potencial de invalidar o existencialismo, que<br />
descreve a vida humana como “um projeto de realização pessoal, de<br />
‘transformação’” (grifo nosso), de maneira que quem somos vai mudan<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong><br />
com o desenrolar <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> projeto. 98 Segun<strong>do</strong> Sartre, “o homem é apenas uma<br />
situação” ou “nada mais <strong>do</strong> que aquilo que ele faz de si mesmo (...) o ser que se<br />
lança para o futuro e que tem consciência de se imaginar como ser no futuro”. Para<br />
ele “a modelagem de si mesmo” é um ato afirmativo da humanidade que não se<br />
sujeita a qualquer espécie de determinismo, “o homem é livre, o homem é<br />
liberdade”. 99<br />
É claro que essa liberdade não é isenta de <strong>perigos</strong> e responsabilidades. Em anexo à<br />
obra de seleção de textos de Heidegger antes examinada, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> tema da<br />
educação, Dulce Critelli bem destaca que o “saltar sobre o outro” o alivia e alija “da<br />
responsabilidade de seu próprio ser” na medida em que lhe tolhe a liberdade. De<br />
outra banda, o “liberta<strong>do</strong>r”, que “salta diante <strong>do</strong> outro” e lhe <strong>entre</strong>ga “à sua própria<br />
transparência e responsabilidade”, permite-lhe tomar as rédeas <strong>do</strong> próprio destino,<br />
com to<strong>do</strong>s os prazeres e <strong>do</strong>res daí advin<strong>do</strong>s. Parece muito claro que o “outro”,<br />
enquanto ser humano <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de dignidade, somente poderia ser trata<strong>do</strong> com essa<br />
autonomia. No entanto, é fato que uma das mais duras dificuldades que<br />
encontramos em nossa relação com os outros “é a de sermos capazes de confiar ao<br />
outro o seu destino, de confiar no destino que ele descobre, de confiarmos na<br />
96 Op. Cit., p. 41.<br />
97 Op. Cit., p. 42.<br />
98 FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 151.<br />
99 SARTRE, Jean – Paul, Apud, Op. Cit., p. 151 – 152.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
possibilidade <strong>do</strong> outro responsabilizar-se por ele mesmo, pela possibilidade desse<br />
destino escapar à nossa determinação”. 100<br />
Este é um <strong>do</strong>s fortes motivos que tornam tão tenta<strong>do</strong>ra a eventual possibilidade da<br />
programação <strong>genética</strong> de seres humanos, em especial no âmbito criminológico.<br />
Nossa tendência a pretender <strong>do</strong>minar os outros nos impele ao objetivo e à crença da<br />
determinação e controle absoluto das personalidades e condutas alheias.<br />
Quan<strong>do</strong> a ciência e a técnica nos acenam com a possibilidade prática desse projeto,<br />
o agir parece correr adiante <strong>do</strong> pensar, deixan<strong>do</strong> no caminho, despreza<strong>do</strong>s,<br />
aspectos sumamente relevantes para a preservação (ou conquista paulatina) da<br />
dignidade da pessoa humana.<br />
Infelizmente, a dinâmica veloz da sociedade contemporânea vem ocasionan<strong>do</strong> com<br />
freqüência essa perversão da ordem <strong>entre</strong> o pensar e o agir, na qual o segun<strong>do</strong> se<br />
antecipa ao primeiro que resta simplesmente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Afinal, “a uma civilização<br />
que se consuma e se consome ao nível exclusivo <strong>do</strong> ‘fazer’, o compreender torna-se<br />
obsoleto e sem senti<strong>do</strong>”. 101<br />
É preciso perceber o quanto essa perversão pode ser deletéria e recuperar o pensar<br />
como pressuposto <strong>do</strong> agir, especialmente quan<strong>do</strong> se trata de questões que<br />
envolvem o “status dignitatis” <strong>do</strong> humano. Aí se destaca a missão da bioética e da<br />
filosofia como veículos <strong>do</strong> pensar. O pensamento ético – filosófico não remete<br />
somente ao pragmatismo de um agir, mas também o abrange e supera. Conforme<br />
afirma Critelli, “o fazer e o pensar, enquanto possibilidades existenciais e<br />
eqüiprimordiais <strong>do</strong> homem, imbricam-se mutuamente. Muito embora fazer e pensar<br />
não sejam excludentes um <strong>do</strong> outro, a recuperação da ação de pensar implica que,<br />
num primeiro momento, possamos nos <strong>entre</strong>gar à ação de pensar o pensamento,<br />
independen<strong>do</strong> <strong>do</strong> vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos<br />
pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmático não catalise nossas<br />
atenções. Precisamos permitir que um novo fazer emerja de um novo horizonte. O<br />
100 CRITELLI, Dulce Mara. Para recuperar a educação. In: HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., p. 70 – 71.<br />
101 Op. Cit., p. 60.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
pensar abre o fazer, mas só se confiarmos no vigor <strong>do</strong> próprio pensamento. Se a<br />
única coisa que podemos querer é a prontidade das respostas, das fórmulas, das<br />
regras, nesse querer o pensar não pode se presentificar como sen<strong>do</strong> fundamental.<br />
A difícil tarefa <strong>do</strong>s que querem ir mais além de um fazer pragmático sem se sentirem<br />
sufoca<strong>do</strong>s pela ‘incerteza imediata’ de um ‘o que’ fazer e pela segurança <strong>do</strong> já<br />
convenciona<strong>do</strong>, é poder deixar o fazer no ‘vazio’, aban<strong>do</strong>nar sua prioridade e,<br />
concomitantemente, poder aban<strong>do</strong>nar-se à verdade de um fim ainda não da<strong>do</strong>”. 102<br />
Em suma, é preciso compreender que a ciência e a técnica podem nos dizer<br />
claramente tu<strong>do</strong> aquilo que “podemos” fazer, mas nada podem esclarecer quanto<br />
àquilo que “devemos ou não devemos” fazer.<br />
2.5 CRIMINOLOGA GENÉTICA: UMA PERIGOSA MISTURA DE<br />
FANTASIAS, INTOLERÂNCIA E EXCLUSÃO<br />
É comum deparar com a divulgação de “estu<strong>do</strong>s científicos” que afirmam poder<br />
detectar “genes da esquizofrenia, genes sensíveis aos poluentes industriais e a<br />
condições insalubres de trabalho, genes da criminalidade, genes da violência, genes<br />
<strong>do</strong> divórcio e genes <strong>do</strong>s marginais”. Para Daniel Kleves 103 , cita<strong>do</strong> por Cláudio<br />
Tognolli, “o racismo <strong>do</strong>s nazistas agora se converte em clínicas <strong>genética</strong>s”.<br />
O grande problema relaciona<strong>do</strong> a essas ilusões reducionistas é que elas podem<br />
fomentar toda uma mentalidade destrutiva, a qual, depois de posta em movimento,<br />
torna-se muito difícil de conter.<br />
Questões como alcoolismo, desagregação familiar, violência e criminalidade são<br />
extremamente complexas e esse reconhecimento (da complexidade) não é<br />
alenta<strong>do</strong>r. Ele nos joga muitas vezes em meio à indeterminação, a um universo de<br />
perguntas sem respostas ou com respostas sujeitas a inúmeras variáveis. A<br />
sensação é desagradável e então se tende a buscar alguma solução simplista ou<br />
102 Op. Cit., p. 60 – 61.<br />
103 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 84.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
simplificada, ainda que isso implique na mutilação da verdade com todas as suas<br />
terríveis conseqüências. 104<br />
A pretensão de descobrir algo que guia o agir humano, obliteran<strong>do</strong> a<br />
intencionalidade, não é novidade. O inconsciente em Freud, a “vontade de<br />
representação” como um “querer cego e irracional” em Schopenhauer, são exemplos<br />
desse intento leva<strong>do</strong> a efeito anteriormente. De acor<strong>do</strong> com essas concepções<br />
somente conhecemos o agir humano como uma “casca” de algo oculto que o<br />
determina e que não está no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> “querer” livre <strong>do</strong> homem. As teorias<br />
<strong>genética</strong>s, sem inovar muito no cerne <strong>do</strong> pensamento, apenas apresentam algo mais<br />
concreto como explicação. Ao invés da “vontade” ou <strong>do</strong> “inconsciente” como fatores<br />
extremamente imateriais e intangíveis, a ciência agora apresenta, sob as lentes<br />
microscópicas, a materialização daquilo que determina e conduz o homem, ou seja,<br />
os genes. 105<br />
Sem negar o fato de que a <strong>genética</strong> pode oferecer respostas e benefícios, é<br />
necessário perceber que ela, como qualquer outro ramo <strong>do</strong> saber, somente pode<br />
deter parte da verdade.<br />
Invariavelmente, quan<strong>do</strong> a verdade é atribuída exclusivamente a algum ramo <strong>do</strong><br />
saber, da atividade humana ou <strong>do</strong> pensamento, advém a intolerância, a arrogância e<br />
a exclusão.<br />
Os exemplos, inclusive liga<strong>do</strong>s ao tema discuti<strong>do</strong>, não são difíceis de encontrar.<br />
Sabe-se que em 1907, no Esta<strong>do</strong> de Indiana, nos EUA, promulgou-se a “primeira lei<br />
de esterilização compulsória”, que visava impedir a procriação de “criminosos,<br />
idiotas, estupra<strong>do</strong>res e imbecis”. O Esta<strong>do</strong> passava então, de forma arbitrária, a<br />
decidir quem podia ou não ter filhos, e pior, quem podia ou não nascer. Por esta<br />
razão a legislação chegou a ser contestada na Justiça. Mas, em 1927, a Suprema<br />
Corte confirmou lei similar <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Virgínia, dan<strong>do</strong> ênfase ao pragmatismo <strong>do</strong><br />
104<br />
BURTT, Edwin. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. José Viegas Filho e Orlan<strong>do</strong><br />
Araújo Henriques. Brasília: UNB, 1984, p. 195.<br />
105<br />
TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 85 – 86.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
procedimento seletivo – preventivo. Foram as seguintes as palavras <strong>do</strong> relator da<br />
decisão, Oliver Wendell Holmes: 106<br />
“Será melhor para o mun<strong>do</strong> inteiro que, em vez de esperar para executar<br />
uma prole degenerada pelos <strong>crime</strong>s que cometeu ou deixá-la morrer à<br />
míngua por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os manifestamente<br />
inaptos de perpetuarem a própria espécie (...). Três gerações de imbecis é o<br />
suficiente”.<br />
É impossível deixar de fazer o elo <strong>entre</strong> a realidade <strong>do</strong> fato histórico acima exposto e<br />
a obra de ficção satírica de Swift 107 , que toca a ferida da exclusão e da indiferença:<br />
“Algumas pessoas de espírito desalenta<strong>do</strong> estão bastante preocupadas com<br />
o grande número de pobres, i<strong>do</strong>sos, <strong>do</strong>entes e mutila<strong>do</strong>s e tenho si<strong>do</strong><br />
solicita<strong>do</strong> a empregar meu pensamento para encontrar alguma possível<br />
solução que alivie a nação de tão pesa<strong>do</strong> far<strong>do</strong>. Mas essa questão não me<br />
preocupa nem um pouco, pois é bem sabi<strong>do</strong> que eles estão a cada dia<br />
morren<strong>do</strong> e apodrecen<strong>do</strong>, de frio e de fome, e de sujeira e de vermes, tão<br />
rapidamente como se possa razoavelmente esperar. E, quanto aos<br />
trabalha<strong>do</strong>res mais jovens, eles estão agora em situação quase tão<br />
promissora: não conseguem trabalho e, conseqüentemente, estão<br />
desfalecen<strong>do</strong> por falta de alimento, a tal ponto que, se fossem, por acaso,<br />
contrata<strong>do</strong>s para algum serviço ordinário, não teriam forças para executá-lo,<br />
estan<strong>do</strong> assim o país e eles próprios, felizmente, livres <strong>do</strong>s males que estão<br />
por vir”.<br />
É dessa lógica exclusiva cruel que devemos nos precaver, e é ela que ameaça<br />
conduzir os rumos de uma Criminologia Genética desatenta (intencionalmente ou<br />
não) para com a complexidade <strong>do</strong> ser humano.<br />
Collins 108 bem destaca essa premente necessidade frente aos potenciais da<br />
<strong>genética</strong>, asseveran<strong>do</strong> que, “embora contenha uma promessa estimulante no<br />
aprimoramento de intervenções em <strong>do</strong>enças psiquiátricas, a pesquisa <strong>genética</strong><br />
sobre comportamentos humanos, de algum mo<strong>do</strong>, é perturba<strong>do</strong>ra, pois parece trilhar<br />
perto demais como uma ameaça ao nosso livre arbítrio, a nossa individualidade e<br />
talvez mesmo a nossa espiritualidade”.<br />
106 WATSON, James D., BERRY, Andrew. DNA o segre<strong>do</strong> da vida. Trad. Carlos Afonso Malferrari.<br />
São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40 – 41.<br />
107 SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. Trad. José Oscar de Almeida<br />
Marques e Dorothée de Bruchard. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29.<br />
108 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 262.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Mister se faz “confrontar a promessa e a ameaça da <strong>genética</strong>”. 109 É bem verdade<br />
que as potencialidades vislumbradas com o seu advento produziram um “efeito<br />
inebriante”, levan<strong>do</strong> os mais entusiasma<strong>do</strong>s a aventar a hipótese de que os genes<br />
poderiam fornecer explicações seguras para vários ou mesmo a totalidade <strong>do</strong><br />
comportamento humano e que este poderia ser controla<strong>do</strong> mediante intervenções e<br />
manipulações precisas <strong>do</strong> código genético. 110<br />
A tentação de aperfeiçoar a natureza é inerente ao espírito humano e não é<br />
apanágio da ciência. Na arte já se pretendeu superar o mero retrato <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, de<br />
mo<strong>do</strong> que “to<strong>do</strong> artista era um idealista” que pretendia superar a natureza. Na<br />
ciência e na técnica os esforços para o aperfeiçoamento da natureza, especialmente<br />
ten<strong>do</strong> em vista os fins humanos, têm pelo menos “dez mil anos de história atrás de<br />
si”. Esse esforço tem suas origens nas técnicas de acasalamento de animais de<br />
diferentes espécies, visan<strong>do</strong> obter espécimes mais dóceis no trato, de carne melhor<br />
e mais saborosa etc. Também a botânica pode ser apontada como uma das<br />
atividades pioneiras desse intento humano, logran<strong>do</strong> produzir vegetais comestíveis,<br />
ornamentais etc. 111<br />
Nenhum susto pode provocar que essa perspectiva se espraiasse e chegasse à<br />
intenção de aperfeiçoar os próprios seres humanos. Esse objetivo é antigo, poden<strong>do</strong><br />
ser constata<strong>do</strong> já no pensamento de Platão, e possivelmente tais idéias não eram<br />
originais dele, mas resulta<strong>do</strong> de observações comuns em sua época. Encontramos<br />
nele o ideal da busca de uma sociedade perfeita constituída de homens perfeitos,<br />
os quais deveriam ser incentiva<strong>do</strong>s a reproduzir, enquanto os imperfeitos deveriam<br />
ser extermina<strong>do</strong>s. Nota-se que muito antes <strong>do</strong>s conhecimentos genéticos<br />
sofistica<strong>do</strong>s estarem disponíveis a idéia da hereditariedade determinista já produzia<br />
seus frutos. 112<br />
Vejamos o que o filósofo fala pela boca de Sócrates 113 em “A República”:<br />
109<br />
FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 134.<br />
110<br />
Op. Cit., p. 135.<br />
111<br />
Op. Cit., p. 140.<br />
112<br />
Op. Cit., p. 141.<br />
113<br />
PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 162.<br />
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312
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
“De acor<strong>do</strong> com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito<br />
freqüentes <strong>entre</strong> os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante<br />
raras <strong>entre</strong> os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além <strong>do</strong> mais, é<br />
necessário educar os filhos <strong>do</strong>s primeiros, e não os <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s, se<br />
quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição; e todas estas<br />
medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistra<strong>do</strong>s, a fim de<br />
que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue <strong>entre</strong> os guerreiros”.<br />
O ideal de Platão estava na harmonia que impregnava suas concepções desde a<br />
cosmologia até a política. Ele pretendeu desconsiderar as irregularidades <strong>do</strong>s<br />
movimentos <strong>do</strong>s corpos celestes, idealizan<strong>do</strong> sua movimentação em círculos<br />
regulares. Intentou comprovar sua tese com um misto de matemática e teologia que<br />
poderia comprovar o caráter divino <strong>do</strong>s corpos celestes pela inalterável regularidade<br />
de seus movimentos circulares e perfeitos. Com isso pretendia banir as alterações e<br />
irregularidades <strong>do</strong>s céus. De forma análoga, idealizará em sua República uma utopia<br />
“totalitária, puritana e inquisitorial” da qual serão bani<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os desvia<strong>do</strong>s,<br />
irregulares ou dissonantes. 114<br />
Uma nova roupagem para as mesmas idéias surge no século XIX na Europa e na<br />
América <strong>do</strong> Norte sob o signo <strong>do</strong> racismo. Francis Galton, primo de Darwin, em<br />
1885, faz a proposta indecente da “eugenia”, segun<strong>do</strong> a qual “a espécie humana<br />
poderia ser aperfeiçoada pela eliminação de qualidades mentais e morais<br />
indesejáveis”, o que poderia ser leva<strong>do</strong> a efeito por meio de “uma fertilidade<br />
seletivamente controlada”. 115 É de Galton a seguinte manifestação entusiasmada,<br />
datada de 1865:<br />
“Se a vigésima parte <strong>do</strong>s custos e esforços que são despendi<strong>do</strong>s para o<br />
aperfeiçoamento da reprodução de cavalos e ga<strong>do</strong> fosse gasta em medidas<br />
para o aperfeiçoamento da raça humana, que galáxia de gênios não<br />
poderíamos criar!” 116<br />
Essa ideologia <strong>do</strong>minou o pensamento de uma época, reforçada pelo racismo. A<br />
Rússia Soviética, em seus primórdios, e certas regiões <strong>do</strong>s EUA a<strong>do</strong>tavam a<br />
proibição <strong>do</strong> casamento para pessoas “oficialmente classificadas como débeis<br />
mentais, criminosos e até (em alguns casos) alcoólatras”. No ano de 1926, em<br />
114 PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 16 – 17.<br />
115 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 141.<br />
116 Apud, Op. Cit., p. 141. Parece que Galton “apenas” esqueceu que homens não são ga<strong>do</strong> e que a<br />
humanidade não é um rebanho.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
algumas regiões <strong>do</strong>s EUA (quase metade) a<strong>do</strong>tou-se a “esterilização compulsória”<br />
dessas categorias de pessoas. 117 Nem é preciso dizer que a eugenia foi<br />
recepcionada com o mais vivo entusiasmo na Alemanha Nazista, onde atingiu o seu<br />
ápice de desumanidade. Ali não só o controle da procriação foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, mas<br />
também, e principalmente, o extermínio de to<strong>do</strong>s aqueles considera<strong>do</strong>s<br />
geneticamente inferiores (judeus, ciganos e até os homossexuais). Por outro la<strong>do</strong>,<br />
buscava-se o aprimoramento da “raça ariana pura”, através da reprodução seletiva<br />
<strong>entre</strong> pessoas supostamente porta<strong>do</strong>ras de caracteres considera<strong>do</strong>s excelentes. 118<br />
A crueldade <strong>do</strong> regime nazista acabou emprestan<strong>do</strong> à eugenia um estigma<br />
extremamente repulsivo. No entanto, deparamos hoje com o seu retorno sob vestes<br />
bem mais sutis. A engenharia <strong>genética</strong> pode tomar rumos muito similares aos das<br />
ideologias eugênicas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.<br />
Deparamos nos dias de hoje com manuais de Direito Penal publica<strong>do</strong>s anualmente e<br />
alegadamente “atualiza<strong>do</strong>s”, nos quais podemos encontrar verdadeiros resquícios<br />
de uma eugenia preconceituosa e cruel. Mirabete 119 , ao comentar os fundamentos<br />
<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “aborto sentimental, humanitário ou ético”, afirma que, além <strong>do</strong> respeito<br />
à dignidade humana da mulher, justificaria essa espécie de aborto a prevenção<br />
quanto à transmissão de certos traços criminosos pela hereditariedade.<br />
Textualmente: “Além disso, freqüentemente o autor <strong>do</strong> estupro é uma pessoa<br />
degenerada, anormal, poden<strong>do</strong> ocorrer problemas liga<strong>do</strong>s à hereditariedade”. 120<br />
Assim como já se falou em “raça pura” ou <strong>do</strong> “super – homem”, tem-se detecta<strong>do</strong><br />
aquilo que Francis Fukuyama 121 denominou de “um futuro pós–humano”. 122 E se<br />
falamos em algo “pós – humano”, falamos em algo “não – humano”, relegan<strong>do</strong> o<br />
“humano” ao passa<strong>do</strong>, como uma peça de museu ou um conceito obsoleto. Por isso<br />
117 Para maior aprofundamento sobre a eugenia norte – americana, ver: BLACK, Edwin. A guerra<br />
contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, “passim”.<br />
118 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 142.<br />
119 Trata-se, como sabi<strong>do</strong>, <strong>do</strong> aborto legal previsto na legislação brasileira quan<strong>do</strong> a gravidez é<br />
resultante de estupro (art. 128, II, CP).<br />
120 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p.<br />
69.<br />
121 Apud, FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 143.<br />
122 Nosso futuro pós – humano. Trad. Maria Luiza X. de A. B<strong>org</strong>es. Rio de Janeiro: Rocco, 2003,<br />
“passim”.<br />
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o autor em comento alega que “a biotecnologia vai fazer que de algum mo<strong>do</strong><br />
percamos a nossa humanidade (...). Ainda pior, poderíamos fazer essa mudança<br />
sem reconhecer que havíamos perdi<strong>do</strong> algo de grande valor. Poderíamos assim<br />
aparecer <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> de uma grande divisória <strong>entre</strong> a história humana e pós –<br />
humana, sem sequer perceber que o divisor de águas fora rompi<strong>do</strong>”.<br />
Portanto, é de extrema relevância tomar consciência <strong>do</strong>s problemas éticos e<br />
políticos relativos à manipulação <strong>genética</strong> e, principalmente, às concepções<br />
<strong>genética</strong>s reducionistas. Também é imprescindível firmar um núcleo duro de direitos<br />
e garantias referentes à contínua proteção e preservação da dignidade humana.<br />
Pressuposto disso é, certamente, a conceituação segura daquilo em que consiste a<br />
humanidade <strong>do</strong> homem, sob pena de realmente nem nos darmos conta de a<br />
havermos perdi<strong>do</strong>. 123<br />
Efetivamente, o insidioso desgaste <strong>do</strong> conceito de “humano” e de “humanidade” tem<br />
propicia<strong>do</strong> um correlato risco de seu desvanecimento, permitin<strong>do</strong> sua perda nas<br />
veredas <strong>do</strong> relativismo, com nefastas conseqüências no presente e, especialmente,<br />
para o futuro.<br />
Armesto Fernández 124 bem destaca a para<strong>do</strong>xal situação <strong>do</strong> atual estágio da<br />
humanidade, que tanto esforço despendeu e despende para preservar o humano,<br />
mas vai, aos poucos, perden<strong>do</strong> a noção daquilo por que tem luta<strong>do</strong> ao longo de<br />
tanto tempo:<br />
123 Op. Cit., p. 143.<br />
124 Op. Cit., p. 9.<br />
Aqui está um para<strong>do</strong>xo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos<br />
investi<strong>do</strong> muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que<br />
chamamos de valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade<br />
humana e da vida humana. Ao longo <strong>do</strong> mesmo perío<strong>do</strong>, silenciosa, mas<br />
devasta<strong>do</strong>ramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o<br />
nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência<br />
<strong>do</strong> nosso entendimento <strong>do</strong> que significa ser humano está agora em<br />
discussão. E se o termo ‘humano’ é incoerente, o que acontecerá com os<br />
valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar<br />
da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça<br />
conceitual.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Debaten<strong>do</strong>-nos em densas trevas e trilhan<strong>do</strong> caminhos tortuosos, podemos ao<br />
menos <strong>entre</strong>ver um norte a indicar o traço comum que revela um início ou<br />
pressuposto para a construção de uma atuação ética perante a humanidade. Esse<br />
traço é o fato de que somos to<strong>do</strong>s “humanos”, independentemente das variadas<br />
diversidades. Somos desiguais sim, mas temos sempre de nos lembrar <strong>do</strong> laço<br />
comum a unir-nos. É a nossa “humanidade” que, em primeiro plano, consiste em<br />
que somos to<strong>do</strong>s (brancos, negros, católicos, judeus, pobres, ricos, deficientes,<br />
criminosos ou santos) “humanos”, que configura o primeiro fundamento para que as<br />
pessoas não possam ser categorizadas, selecionadas e excluídas. O atributo da<br />
humanidade, inerente a to<strong>do</strong> homem ou mulher, independente de sua condição, não<br />
permite gradações. Em suma, jamais uns podem ser mais humanos que outros.<br />
Pode parecer que esse pressuposto seja algo por demais óbvio, mas é preciso<br />
atentar que por boa parte da história da humanidade e ainda hoje, as pessoas<br />
sentem certa dificuldade para admitir esse traço comum de humanidade em to<strong>do</strong>s os<br />
seres humanos indistintamente. 125 E mesmo quan<strong>do</strong> em dada sociedade isso é<br />
admiti<strong>do</strong>, em teoria, sem muita contestação, a aplicação prática <strong>do</strong> conceito não se<br />
perfaz sem grandes obstáculos. 126<br />
A verdade é que existe sempre uma tendência a selecionar certas categorias, por<br />
meio de critérios diversos (v.g. origem, religião, posição social e, quem sabe, código<br />
genético), as quais acabam integran<strong>do</strong> a categoria <strong>do</strong>s humanos ou “mais<br />
humanos”, enquanto outras parcelas são simplesmente excluídas, tratadas como<br />
“outsiders”, marginais, pertencentes a alguma outra classe que acaba reduzida a<br />
“status” semelhantes aos de coisas ou animais, sofren<strong>do</strong> ainda um verdadeiro<br />
processo de demonização 127<br />
A partir da identificação de certas pessoas como pertencentes a determinadas<br />
categorias, opera-se uma poderosa “estratificação” a atribuir diferentes tratamentos<br />
a camadas consideráveis da população. No cerne desse mecanismo diferencia<strong>do</strong>r<br />
125 Op. Cit., p. 14.<br />
126 Por que outra razão seria necessário que nossa Constituição Federal mande, por exemplo,<br />
reprimir com rigor a prática <strong>do</strong> racismo e a lei ordinária regule essa repressão?<br />
127 Op. Cit., p. 14.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
encontra-se o fato de que alguns podem livremente escolher sua própria identidade<br />
individual e social, enquanto outros são simplesmente compeli<strong>do</strong>s a assumir uma<br />
certa identidade imposta de fora para dentro. Normalmente essas espécies de<br />
identidades impostas são daquelas que “estereotipam, humilham, desumanizam,<br />
estigmatizam...” 128 Mas, ainda não é o fato mais grave essa falta de direito de<br />
escolha, essa imposição. Há ainda quem possa ser impeli<strong>do</strong> para um degrau ainda<br />
mais baixo. Tratan<strong>do</strong>-se de pessoas que, uma vez estigmatizadas, perdem total e<br />
definitivamente o direito de “reivindicar” uma nova identidade. “Pessoas cuja súplica<br />
não será aceita e cujos protestos não serão ouvi<strong>do</strong>s, ainda que pleiteiem a anulação<br />
<strong>do</strong> veredicto”. Estas estão destinadas a formar aquilo que Bauman 129 denomina de<br />
“subclasses”, ou seja, o conjunto de todas aquelas pessoas “exiladas nas<br />
profundezas além <strong>do</strong>s limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior <strong>do</strong><br />
qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade)<br />
podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas”.<br />
A partir <strong>do</strong> momento em que alguém é destina<strong>do</strong> à composição de uma subclasse<br />
(devi<strong>do</strong> à baixa escolaridade, à pobreza, vício de drogas, falta de moradia,<br />
mendicância ou outras categorias inadequadas, agora, talvez, aqueles porta<strong>do</strong>res de<br />
um código genético indesejável), ocorre uma negação apriorística de qualquer<br />
identidade aceitável, em suma, fecham-se as portas. “O significa<strong>do</strong> da ‘identidade da<br />
subclasse’ é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, <strong>do</strong><br />
‘rosto’ – esse objeto <strong>do</strong> dever ético e da preocupação moral”. Opera-se uma<br />
exclusão “<strong>do</strong> espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas,<br />
construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”. 130<br />
Gi<strong>org</strong>io Agamben, cita<strong>do</strong> por Bauman, chama a atenção para que a subclasse é um<br />
“grupo heterogêneo de pessoas” que sofreram a redução de seu “bios” (vida como<br />
“sujeito socialmente reconheci<strong>do</strong>”) a mero “zoë" (vida somente animal, “com todas<br />
as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas”). 131<br />
128 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar, 2005,<br />
p. 44.<br />
129 Op. Cit., p. 45.<br />
130 Op. Cit., p. 46.<br />
131 Op. Cit., p. 46.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Note-se que quase nada pode ser mais conveniente para exacerbar um quadro<br />
como este ora apresenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que uma ciência <strong>genética</strong> seletiva e determinista,<br />
inclusive e muito especialmente, no que tange às suas irradiações para o campo<br />
criminológico.<br />
Esse conjunto de fatores que alimentam a exclusão e a estratificação social, conflui<br />
para a tendência <strong>do</strong> processo neoliberal de globalização econômica, com sua<br />
interminável “produção de lixo humano” ou, melhor dizen<strong>do</strong>, de “pessoas rejeitadas”,<br />
que se tornam desnecessárias e até disfuncionais para o bom andamento <strong>do</strong> “ciclo<br />
econômico”. O Capitalismo Contemporâneo troca o modelo de “exploração” pelo da<br />
“exclusão”, e esse modelo é bem mais cruel <strong>do</strong> que o anterior, constituin<strong>do</strong><br />
atualmente a “base <strong>do</strong>s casos mais evidentes de polarização social, de<br />
aprofundamento da desigualdade e de aumento <strong>do</strong> volume de pobreza, miséria e<br />
humilhação”. 132<br />
Não há dúvida de que o modelo econômico tem enorme influência na conformação<br />
<strong>do</strong> paradigma de Direito Penal e, principalmente, na construção <strong>do</strong> discurso<br />
referente à finalidade da pena. Em um contexto no qual a mão de obra humana é um<br />
valor na dinâmica <strong>do</strong> processo econômico, é fácil reconhecer a pertinência <strong>do</strong><br />
discurso “ressocializa<strong>do</strong>r”. A coisa muda de figura quan<strong>do</strong> essa mesma mão de obra<br />
passa a ser muito abundante frente à mecanização proporcionada pela tecnologia, a<br />
substituir com vantagens a força de trabalho humana. Nessas circunstâncias um<br />
indivíduo desgarra<strong>do</strong> não é mais considera<strong>do</strong> uma peça relevante na sociedade.<br />
Seu descarte passa a ser uma solução e até um objetivo a ser persegui<strong>do</strong> em prol<br />
da funcionalidade <strong>do</strong> sistema. Este é certamente um efeito daquela substituição das<br />
relações explora<strong>do</strong>res/explora<strong>do</strong>s pelas relações incluí<strong>do</strong>s/excluí<strong>do</strong>s. Agora, já não<br />
há valor algum, nem mesmo comercial ou econômico, atribuí<strong>do</strong> pelos ocupantes <strong>do</strong><br />
topo da escala social aos que estão em sua base. Se a relação vertical<br />
anteriormente se processava como uma opressão que visava o <strong>do</strong>mínio das massas<br />
exploradas, hoje tal <strong>do</strong>mínio não é tão atraente e a relação vertical tende a ser<br />
transmudada para uma pressão no senti<strong>do</strong> de “esmagar” e descartar os excluí<strong>do</strong>s, já<br />
132 Op. Cit., p. 47.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
que eles não interessam ao sistema e até constituem entraves que precisam ser<br />
expurga<strong>do</strong>s por vias diretas e indiretas. 133<br />
Tu<strong>do</strong> isso é um caldeirão onde pode muito bem ser prepara<strong>do</strong> o prato amargo de um<br />
novo holocausto, com bem adverte Arendt: 134<br />
Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração<br />
de <strong>crime</strong>s. Ao contrário, a despeito <strong>do</strong> castigo, uma vez que um <strong>crime</strong><br />
específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável <strong>do</strong><br />
que poderia ter si<strong>do</strong> a sua emergência inicial. As razões particulares que<br />
falam pela possibilidade de repetição <strong>do</strong>s <strong>crime</strong>s cometi<strong>do</strong>s pelos nazistas<br />
são ainda mais plausíveis. A assusta<strong>do</strong>ra coincidência da explosão<br />
populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graças à<br />
automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos setores da população até mesmo em<br />
termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com<br />
essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s quais as<br />
instalações de gás de Hitler pareciam brinque<strong>do</strong>s de uma criança mal<strong>do</strong>sa –<br />
tu<strong>do</strong> isso deve bastar para nos fazer tremer”. 135 [E mais adiante, na mesma<br />
obra, a autora acrescenta:] É bem concebível que na economia automatizada<br />
de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar to<strong>do</strong>s<br />
aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determina<strong>do</strong> nível.<br />
Para que isso ocorra, ao contrário <strong>do</strong> que comumente se imagina, não seria<br />
necessário o surgimento de um novo Hitler ou algo pareci<strong>do</strong>. Basta que cada um de<br />
nós permita esvaecer o conceito de humanidade, “pois é perfeitamente concebível e<br />
mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma<br />
humanidade altamente <strong>org</strong>anizada e mecanizada chegue, de maneira democrática –<br />
isto é, por decisão da maioria - à conclusão de que, para a humanidade como um<br />
to<strong>do</strong>, convém liquidar certas partes de si mesma”. 136<br />
Também Zaffaroni 137 faz essa constatação, dissertan<strong>do</strong> especificamente sobre os<br />
efeitos da globalização econômica na América Latina:<br />
133 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999,<br />
p. 4.<br />
134 Op. Cit., p. 312. E que instrumento seletivo não seria a <strong>genética</strong> (mal direcionada) para tal<br />
desiderato.<br />
135 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jersualém. 6ª. Ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1999, p. 296.<br />
136 IDEM. Origens <strong>do</strong> Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1989, p. 332. E para aqueles que pensam que esse dia esteja muito longe, basta meditarem um<br />
pouco sobre o rumo que têm toma<strong>do</strong> as discussões sobre as questões previdenciárias no mun<strong>do</strong><br />
moderno.<br />
137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y Sistema Penal en América Latina: de la seguridad<br />
nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez, 1997, p. 22.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
El fenômeno tiene a crear en los paises latinoamericanos una massa<br />
excluída que no responde a la dialética explota<strong>do</strong>r/explota<strong>do</strong>, sino a una no<br />
relation <strong>entre</strong> excluí<strong>do</strong>/incluí<strong>do</strong>. El explota<strong>do</strong> contaba, era teni<strong>do</strong> en cuenta y<br />
estaba dentro del sistema, como explota<strong>do</strong> pero dentro, el excluí<strong>do</strong> no<br />
cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica<br />
de este esquema, si no se le interrumpe, es el genocídio.<br />
Neste contexto o Direito Penal pode surgir como um instrumento direto de seleção e<br />
destruição <strong>do</strong>s excluí<strong>do</strong>s, servin<strong>do</strong> a contento aos desígnios inconfessáveis <strong>do</strong> novo<br />
modelo. É notável que o discurso da recuperação vai ceden<strong>do</strong> espaço para as<br />
soluções extremas, como a pena de morte e a redução da menoridade penal. 138<br />
Bem pode encaixar-se aqui a concepção de uma Criminologia Genética seletiva e<br />
determinista, tendente a eliminar arbitrariamente caracteres presentes na<br />
constituição <strong>genética</strong> das pessoas, seja em sua geração ou posteriormente<br />
mediante intervenções forçadas a desconfigurarem suas personalidades. Isso sem<br />
falar no reforço que teses deterministas concedem às hipóteses anteriormente<br />
mencionadas da pena de morte e da redução da menoridade penal. Quem sabe até<br />
mesmo se cogite um dia a completa eliminação da questão da imputabilidade, já que<br />
mesmo em um feto poder-se-ia encontrar e abrir a caixa – preta onde se ocultam os<br />
segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> futuro criminoso.<br />
Mas, não é só no Sistema Penal que se pode constatar a insidiosa e <strong>perigos</strong>a<br />
influência <strong>do</strong> Capitalismo Globaliza<strong>do</strong>. Ela se faz sentir, por exemplo, no crescente<br />
aban<strong>do</strong>no das questões previdenciárias, de saúde e educação públicas. Tu<strong>do</strong> isso<br />
empurra a massa excluída para as garras <strong>do</strong> Sistema Penal ou diretamente para a<br />
morte devi<strong>do</strong> ao mais absoluto aban<strong>do</strong>no e falência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como entidade<br />
assistencial e promotora da igualdade. 139<br />
Retoman<strong>do</strong> a perspectiva criminal, percebe-se que na sociedade a infração penal é<br />
concebida como um mal, a criminalidade como uma <strong>do</strong>ença infecciosa e o infrator<br />
como um ser daninho. Isso fomenta uma tomada de posição belicosa em relação ao<br />
138 CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos. Op. Cit., p. 4.<br />
139 Op. Cit., p. 4. Relembremos neste ponto o texto satírico de Jonathan Swift, exposto linhas<br />
volvidas, “Modesta Proposta”.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
<strong>crime</strong>, a qual influi na construção de toda a política referente ao “combate” à<br />
criminalidade. 140<br />
Este é um campo fértil para as divisões e polarizações, a tal ponto que já se cogita a<br />
formulação <strong>do</strong> que se convencionou chamar de um “Direito Penal <strong>do</strong> Inimigo”, em<br />
oposição ou contraste com um “Direito Penal <strong>do</strong> Cidadão”, conforme teoriza<strong>do</strong> por<br />
Jakobs. 141<br />
Hoje pode-se constatar um processo razoavelmente generaliza<strong>do</strong> daquilo que se<br />
poderia chamar de “paradigma <strong>do</strong> inimigo”, pelo qual a pessoa é julgada em virtude<br />
<strong>do</strong> que é ou <strong>do</strong> que acredita ser; com base em sua periculosidade supostamente<br />
inerente à sua personalidade, muito mais <strong>do</strong> que por aquilo que efetivamente tenha<br />
cometi<strong>do</strong>. 142<br />
No seio desse paradigma a tendência é que se consolide um modelo de Direito<br />
Penal que empreste gradativamente mais e mais destaque à prevenção,<br />
configuran<strong>do</strong> um inova<strong>do</strong>r e mais sofistica<strong>do</strong> “panoptismo social” marca<strong>do</strong> pela<br />
descoberta seletiva da figura <strong>do</strong> “inimigo”. 143<br />
Acontece que agora a idéia original de Bentham 144 não precisa mais da parafernália<br />
arquitetônica por ele concebida e nem fica restrita aos ambientes prisionais. A<br />
tecnologia permite uma vigilância muito mais ampla e invasiva, cogitan<strong>do</strong>-se não só<br />
o controle absoluto da conduta humana exteriorizada, mas, quem sabe, de suas<br />
tendências ou potencialidades internas por meio <strong>do</strong>s conhecimentos genéticos.<br />
140<br />
MUÑOZ CONDE, Francisco, HASSEMER, Winfried. Introducción al derecho penal. Barcelona:<br />
Bosch, 1995, p. 37.<br />
141<br />
JAKOBS, Günther. Fundamentos <strong>do</strong> Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: RT,<br />
2003, p. 142 – 143.<br />
142<br />
APONTE, Alejandro. Derecho penal de enemigo versus derecho penal del ciudadano. Günther<br />
Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Ciências Criminais.<br />
n. 51, nov./dez, 2004, p. 16.<br />
143<br />
Op. Cit., p. 17.<br />
144<br />
BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Trad. Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu da<br />
Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, “passim”.<br />
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Para Tognolli 145 , “a nova ideologia <strong>do</strong> DNA lastrearia, em longo prazo, a idéia <strong>do</strong>s<br />
‘novos inimigos’ da saúde perfeita: os porta<strong>do</strong>res de genes ‘deficientes’. (...). O<br />
mesmo processo que movimenta a sociedade em torno <strong>do</strong>s ‘novos inimigos’<br />
geopolíticos é o que agrega, (...), a to<strong>do</strong>s na busca e encontro <strong>do</strong>s ‘genes<br />
culpa<strong>do</strong>s’”.<br />
Acontece que, para além de que essa seleção <strong>do</strong>s “inimigos” através da <strong>genética</strong><br />
configure um arbitrário, totalitário e desumanizante “Direito Penal <strong>do</strong> Autor”, lastreia-<br />
se em um referencial teórico há muito tempo supera<strong>do</strong>. Nada mais, nada menos <strong>do</strong><br />
que aquilo que com razão se poderia denominar, como o fez José Nêumanne 146 , de<br />
um “neolombrosianismo”.<br />
Seguiria dizen<strong>do</strong> que se ressuscita a tese <strong>do</strong> “determinismo biológico”, mas parece<br />
mais adequa<strong>do</strong> constatar que ela jamais feneceu realmente, sen<strong>do</strong> mais correto<br />
admitir que <strong>do</strong>rmitasse sempre latente nos meandros <strong>do</strong> imaginário popular e até<br />
<strong>do</strong>s cientistas.<br />
Conforme alerta Lewontin 147 , “tu<strong>do</strong> isso é um grande nonsense”, que se baseia<br />
numa terrível confusão <strong>entre</strong> fantasias e realidade, ocasionada por uma mistura<br />
<strong>entre</strong> aquilo que é representa<strong>do</strong> em uma simples metáfora com o objeto ou fato real.<br />
Em suas palavras:<br />
A ideologia <strong>do</strong> determinismo biológico usa muitas metáforas retiradas <strong>do</strong><br />
modelo de máquina de Descartes e agora <strong>do</strong>s modelos computacionais.<br />
Essas metáforas permitem então ‘jogos de linguagem’ porque elas são<br />
levadas a sério e assim as conseqüências lógicas de se levar metáforas a<br />
sério são levadas à última instância. To<strong>do</strong>s os cientistas empregam<br />
metáforas, mas as metáforas podem ser os maiores inimigos de se<br />
compreender adequadamente o mun<strong>do</strong> material. As pessoas confundem as<br />
metáforas com os objetos reais. Norbert Wiener e Arturo Rosenblith<br />
escreveram que ‘ o preço da metáfora é a eterna vigilância. 148<br />
Realmente, o fato de que alguém se utilize da imagem de um “chip” de computa<strong>do</strong>r<br />
em comparação com os genes, falan<strong>do</strong> no código genético como uma espécie de<br />
145 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 215.<br />
146 Apud, Op. Cit., p. 265.<br />
147 Op. Cit., p. 265.<br />
148 LEWONTIN, Richard. Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. cit., p. 267.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
“programação”, não pode ser acata<strong>do</strong> além <strong>do</strong> mero senti<strong>do</strong> metafórico para levar à<br />
conclusão de que o homem pode, na realidade, ser equipara<strong>do</strong> a uma máquina pré<br />
– programada. Da mesma forma a metáfora não pode extravasar para reabilitar a<br />
absurda e superada crença de que o <strong>crime</strong> possa ser considera<strong>do</strong> como um ente<br />
natural e não como um conceito normativo cria<strong>do</strong> pela sociedade humana, produto<br />
de seus artifícios.<br />
Com bem observa Karam 149 , é comum o equívoco de falar “genericamente em <strong>crime</strong><br />
como se tal expressão pudesse traduzir um conceito natural, que partisse de um<br />
denomina<strong>do</strong>r comum, presente em to<strong>do</strong> tempo ou em to<strong>do</strong> lugar. Mas, na realidade,<br />
<strong>crime</strong>s são meras criações da lei penal, não existin<strong>do</strong> um conceito natural que os<br />
possa genericamente definir. O que é <strong>crime</strong> em um determina<strong>do</strong> lugar, pode não ser<br />
em outro; o que hoje é <strong>crime</strong>, amanhã poderá não ser”.<br />
A Criminologia Genética reducionista e determinista parte, portanto, de duas<br />
premissas equivocadas: nem o homem é um sistema fecha<strong>do</strong> (é, na verdade,<br />
caracteriza<strong>do</strong> pela constante abertura); nem o <strong>crime</strong> é um conceito natural,<br />
independente da normatização da conduta humana operada pelas leis penais.<br />
Mesmo consideran<strong>do</strong> isoladamente o conhecimento genético, não se pode afirmar a<br />
existência de consenso quanto a serem os genes em si “estruturas fechadas”. Para<br />
Richard Lewontin 150 , os genes são passíveis de alterações pelas “condições de<br />
trabalho, psicológicas, sociais, antropológicas” etc., e defini-los como sistemas<br />
fecha<strong>do</strong>s não passaria de mera ideologia. Lembra o autor que a ciência não é tão<br />
objetiva como se costuma apregoar, ela, “como outras atividades produtivas, como o<br />
Esta<strong>do</strong>, a família, o esporte, é uma instituição social completamente integrada e<br />
influenciada pela estrutura de todas as nossas outras instituições sociais. O<br />
problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses<br />
problemas, até mesmo os resulta<strong>do</strong>s científicos, tão alardea<strong>do</strong>s, decorrentes da<br />
investigação científica, são to<strong>do</strong>s profundamente influencia<strong>do</strong>s por predisposições<br />
que derivam da sociedade na qual vivemos. Os cientistas não começam as suas<br />
149<br />
KARAM, Maria Lúcia. Sistema Penal e publicidade enganosa. Revista Brasileira de Ciências<br />
Criminais. n. 52, jan./fev., 2005, p. 159 – 160.<br />
150<br />
Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 137 – 138.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
vidas como cientistas e sim como seres sociais imersos na família, no Esta<strong>do</strong>, na<br />
estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que<br />
foram moldadas por suas experiências sociais. Acima <strong>do</strong> nível pessoal da<br />
percepção, a ciência é moldada pela sociedade porque ela é uma atividade<br />
produtiva humana que demanda tempo e dinheiro. A ciência usa dinheiro e<br />
‘comodities’. Muitas pessoas ganham dinheiro e sobrevivem da ciência, e como<br />
conseqüência as forças sociais econômica e socialmente <strong>do</strong>minantes determinam<br />
em larga medida o que a ciência faz e como ela faz. Mais que isso, tais forças têm a<br />
força de se apropriar das idéias científicas que são particularmente úteis para a<br />
manutenção e continuidade da prosperidade das estruturas sociais das quais elas<br />
são parte. Então outras instituições sociais têm um ‘imput’ sobre a ciência, tanto<br />
sobre o que é feito como sobre o que é pensa<strong>do</strong>, eles tiram da ciência conceitos e<br />
idéias que suportem as suas instituições e façam-nas parecer legitimamente<br />
naturais. É um processo duplo – por um la<strong>do</strong>, da influência social e controle <strong>do</strong> que<br />
os cientistas fazem e dizem para mais à frente apoiarem as instituições da<br />
sociedade – o que é explica<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> falamos da ciência como ideologia”.<br />
Não é sustentável a tese de que “a seqüência <strong>do</strong> Genoma Humano seja o ‘Graal’<br />
que irá revelar tu<strong>do</strong> o que é o ser humano”. Mas, é fácil de compreender como essa<br />
tese reducionista encontra tanto eco na sociedade capitalista globalizada. Ela<br />
permite ocultar as reais causas <strong>do</strong>s problemas sociais (alcoolismo, drogas,<br />
criminalidade, violência, desequilíbrio nervoso, desagregação familiar etc.),<br />
satanizan<strong>do</strong> os genes e os seus porta<strong>do</strong>res, como é interessante para perpetuar o<br />
“status quo”. Lewontin compara a atual condenação <strong>do</strong>s genes anti-sociais com a<br />
satanização ocorrida no século XIX contra o “Bacilo de Koch”, levada a efeito,<br />
evitan<strong>do</strong> a discussão sobre as condições sociais (moradia, higiene, condições<br />
insalubres de trabalho) que realmente levavam à proliferação da tuberculose. 151<br />
Trata-se verdadeiramente de um “marca<strong>do</strong>r substituto”, ou seja, uma variável<br />
relacionada com outra que é a causa real.<br />
Fato é que tal concepção, se levada a sério, inobstante partin<strong>do</strong> de premissas<br />
insustentáveis, vai nos conduzir à intolerância ou ao preconceito para com pessoas<br />
151 Op. Cit., p. 140.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
porta<strong>do</strong>ras de códigos genéticos que apontem para certas “tendências” negativas.<br />
Mais uma vez veremos a segregação, o preconceito e a exclusão sen<strong>do</strong><br />
chancela<strong>do</strong>s pela i<strong>do</strong>neidade e neutralidade (altamente contestáveis) da ciência. 152<br />
Afinal, o próprio Diretor <strong>do</strong> Projeto Genoma Humano, Francis S. Collins 153 , não<br />
corrobora qualquer concepção determinista ou premonitória da <strong>genética</strong>, no que<br />
tange ao comportamento humano. Segun<strong>do</strong> suas palavras:<br />
Para muitas características comportamentais humanas, existe um<br />
componente da hereditariedade <strong>do</strong> qual não se pode escapar. Em<br />
praticamente nenhuma delas a hereditariedade chega perto <strong>do</strong> profético. O<br />
ambiente, em especial as experiências da infância, e o papel de destaque<br />
das chances <strong>do</strong> livre – arbítrio individual têm sobre nós um efeito profun<strong>do</strong>.<br />
Os cientistas descobrirão um nível crescente de detalhes moleculares sobre<br />
os fatores herda<strong>do</strong>s que se encontram subjacentes à nossa personalidade.<br />
Isso, porém, não deve nos levar a superestimar sua contribuição quantitativa.<br />
Sim, a to<strong>do</strong>s nós foi da<strong>do</strong> um conjunto de cartas com as quais lidar, e essas<br />
cartas serão, enfim, reveladas. Contu<strong>do</strong>, a forma como jogamos com elas<br />
depende de nós.<br />
E mais adiante o autor afasta qualquer possibilidade real de uma programação<br />
infalível da <strong>genética</strong> acerca da personalidade e agir humanos: 154<br />
A importância crucial da criação, da instrução e da disciplina na infância não<br />
seria evitada por um lance de da<strong>do</strong>s levemente aprimora<strong>do</strong>. O casal<br />
narcisista que insistiu no uso dessa tecnologia <strong>genética</strong> para produzir um<br />
filho que poderia ser zagueiro de um time de futebol, tocar violino na<br />
orquestra da escola e tirar A+ em matemática poderia muito bem encontra-lo,<br />
em vez disso, em seu quarto, jogan<strong>do</strong> videogame, queiman<strong>do</strong> uma erva e<br />
escutan<strong>do</strong> heavy metal.<br />
Outro fator que não pode passar despercebi<strong>do</strong> é o papel representa<strong>do</strong> pela mídia,<br />
em especial a imprensa na divulgação das notícias sobre as descobertas e<br />
potencialidades da <strong>genética</strong>.<br />
Como salienta Cláudio Tognolli 155 , em sua grande maioria as notícias sobre <strong>genética</strong><br />
veiculadas pela imprensa são contaminadas por ideologia e carentes de um maior<br />
embasamento científico.<br />
152 Op. Cit., p. 302.<br />
153 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 266.<br />
154 Op. Cit., p. 273.<br />
155 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 174.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Pesquisan<strong>do</strong> as notícias veiculadas sobre o tema, num perío<strong>do</strong> de sete anos (de<br />
1994 a 2000), constatou o autor que menos de 3% delas trazia algum conteú<strong>do</strong><br />
crítico quanto às descobertas biotecnológicas. 156 A tendência da imprensa tem si<strong>do</strong>,<br />
infelizmente, reforçar o caráter estigmatizante das descobertas <strong>genética</strong>s, bem como<br />
acoroçoar o paradigma reducionista, determinista e simplista de encarar o ser<br />
humano, mediante o abuso de expressões características como: “isolamento de<br />
genes” (juntamente com a metáfora cibernética); além da suposta descoberta de<br />
“qualidades”, “disfunções”, “defeitos” e “tendências” individuais e indeléveis “que<br />
cada um traz dentro de si”. 157<br />
Leão Serva 158 , em <strong>entre</strong>vista a Cláudio Tognolli, chama a atenção para o fato de que<br />
a sociedade passa a depositar sua fé em um mun<strong>do</strong> melhor pela intervenção de um<br />
novo “deus moderno que é a biotecnologia”. E arremata, afirman<strong>do</strong> que a imprensa<br />
reflete esse ideário de forma acrítica, sen<strong>do</strong> que “o material jornalístico nunca nos<br />
leva a supor que alguém esteja pensan<strong>do</strong> diferentemente dessas novidades<br />
biotecnológicas. Isso é vendi<strong>do</strong> como se fosse pura técnica despida de uma<br />
ideologia na sua condução. É uma carga muito grande de informações sobre<br />
biotecnologia, mas em nenhum momento isso vem para permitir uma visão mais<br />
completa ou mais complexa <strong>do</strong> que está acontecen<strong>do</strong>”. Enfim, o biologismo, seja por<br />
razões ideológicas ou por pura desinformação ou pressa no fechamento de edições,<br />
acabou ganhan<strong>do</strong> campo na imprensa em detrimento de uma visão crítica e realista<br />
<strong>do</strong>s fatos. 159 Isso certamente empobrece ou até inviabiliza o cumprimento daquilo<br />
que Fiss refere como “a missão democrática da imprensa” 160 , enquanto legítimo<br />
veículo possibilita<strong>do</strong>r de que as pessoas formem informada e livremente as suas<br />
opiniões, e não sejam simplesmente conduzidas ou influenciadas tendenciosamente<br />
por determinada corrente ideológica.<br />
Não se pretende apregoar uma satanização da <strong>genética</strong>, mas apenas uma visão<br />
equilibrada que também não a divinize ou lhe atribua poderes milagrosos, passan<strong>do</strong><br />
156 Op. Cit., p. 183.<br />
157 Op. Cit., p. 186.<br />
158 Op. Cit., p. 239.<br />
159 Op. Cit., p. 290.<br />
160 FISS, Owen M. Op. Cit., p. 99.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
326
CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
por cima de valores inalienáveis <strong>do</strong> ser humano e construin<strong>do</strong> teorias mirabolantes<br />
sustentadas em falsas premissas.<br />
A <strong>genética</strong> pode muito bem ser veículo para grandes conquistas, inclusive quanto à<br />
solidariedade humana, a tolerância e a convivência pacífica <strong>entre</strong> as pessoas.<br />
Poucos aspectos <strong>do</strong> saber e da atividade humana podem contribuir e já contribuíram<br />
de forma tão valiosa para tornar o racismo algo visivelmente indefensável. A biologia<br />
comprovou que não só não existem “raças inferiores” como sequer há “raças”, pois<br />
que “não há praticamente nenhuma diferenciação racial <strong>entre</strong> os humanos”. As<br />
diferenças físicas constatáveis não se refletem em diferenças <strong>genética</strong>s, já que<br />
“<strong>entre</strong> os humanos mais amplamente separa<strong>do</strong>s é minúscula” a variação <strong>genética</strong><br />
em cotejo com outras espécies. 161<br />
No campo penal certamente a <strong>genética</strong> pode dar sua contribuição, a qual não é<br />
desprezível. É claro que, em parte, certas condutas criminosas admitem uma<br />
explicação etiológica, que bem pode ser explorada no campo genético. Deve-se,<br />
porém, ter o cuida<strong>do</strong> de não assentar conclusões sobre fantasias e de não procurar<br />
simplificar o complexo a qualquer custo, apenas para tranqüilizar nossa perturbação<br />
diante <strong>do</strong>s mistérios da humanidade.<br />
Proceden<strong>do</strong> a uma breve digressão em relação ao tema central deste trabalho,<br />
considera-se oportuno lembrar que a ciência <strong>genética</strong> pode colaborar imensamente<br />
e já o faz, na apuração da autoria de <strong>crime</strong>s. Trata-se de sua aplicação em outro<br />
campo das ciências criminais, qual seja, o da “criminalística”.<br />
Zarzuela 162 conceitua a criminalística como:<br />
o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos, artísticos etc., destina<strong>do</strong>s<br />
à apreciação, interpretação e descrição escrita <strong>do</strong>s elementos de ordem<br />
material encontra<strong>do</strong>s no local <strong>do</strong> fato, no instrumento <strong>do</strong> <strong>crime</strong> e na peça de<br />
exame, de mo<strong>do</strong> a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um<br />
evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de<br />
presumível ou de evidente interesse judiciário.<br />
161 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 88.<br />
162 ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto,<br />
1996, p. 15.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
Os exames de DNA em vestígios deixa<strong>do</strong>s em locais e instrumentos de <strong>crime</strong>,<br />
vestes e corpos de vítimas e suspeitos, colaboram muitas vezes decisivamente para<br />
o esclarecimento de eventos criminosos, especialmente no que tange à sua autoria.<br />
Watson cogita a possibilidade da criação de um banco de da<strong>do</strong>s genéticos, a<br />
exemplo <strong>do</strong> que já existe com relação às digitais, a fim de facilitar a atuação da<br />
investigação criminal. É claro que a amplitude informativa <strong>do</strong>s códigos genéticos<br />
pode gerar questionamentos quanto a essa invasão estatal da privacidade. Isso<br />
porque, diversamente das digitais, o código genético contém muito mais informações<br />
sobre uma pessoa <strong>do</strong> que sua simples identificação (v.g. <strong>do</strong>enças congênitas). 163 No<br />
entanto, pensamos que algumas precauções legais e práticas, impon<strong>do</strong> um controle<br />
rígi<strong>do</strong> <strong>do</strong> uso das informações genômicas restrito aos fins de investigação criminal,<br />
poderiam promover um saudável equilíbrio <strong>entre</strong> as garantias individuais e o<br />
interesse social na apuração <strong>do</strong>s <strong>crime</strong>s e punição <strong>do</strong>s criminosos. 164 Oportuno,<br />
portanto, transcrever a observação de Watson: 165<br />
Conclusão<br />
Embora a legislação não deva atrapalhar nossa ambição de explorar o pleno<br />
potencial <strong>do</strong> DNA em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem somos e<br />
de onde viemos, ou em identificar quais d<strong>entre</strong> nós são culpa<strong>do</strong>s de algum<br />
<strong>crime</strong>, ela deve no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja priva<strong>do</strong> de<br />
seus direitos civis ou humanos com base no que porventura estiver inscrito<br />
em seus genes.<br />
No decorrer deste trabalho foi discutida a questão da viabilidade da construção de<br />
um saber criminológico calca<strong>do</strong> nas modernas pesquisas <strong>genética</strong>s.<br />
Por intermédio de um esboço da evolução histórica da Criminologia, logrou-se<br />
demonstrar como esta passou de um estágio em que se buscava uma explicação<br />
etiológica <strong>do</strong> fenômeno criminoso, entenden<strong>do</strong> este como um ente natural e o<br />
infrator como porta<strong>do</strong>r de uma anomalia, até chegar às questiona<strong>do</strong>ras concepções<br />
da Criminologia Crítica, e o ponto de equilíbrio que vem a ensejar a compreensão da<br />
163 WATSON, James D. Op. Cit., p. 296.<br />
164 Neste senti<strong>do</strong>: Op. Cit., p. 314.<br />
165 Op. Cit., p. 383.<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
complexidade <strong>do</strong> tema pesquisa<strong>do</strong>, propon<strong>do</strong>-se o paradigma da Criminologia<br />
Integrada.<br />
Finalmente, abor<strong>do</strong>u-se o ponto sensível deste estu<strong>do</strong>, ou seja, o papel da <strong>genética</strong><br />
na Criminologia contemporânea. Principiou-se pela defesa da importância da<br />
reflexão como pressuposto para a tomada de qualquer decisão, especialmente<br />
daquelas que se referem à intervenção no “status” <strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong> e na<br />
sociedade. A seguir, foram expostas as discussões acerca da legitimação da<br />
culpabilidade como pressuposto da punição, fazen<strong>do</strong>-se notar que a<br />
responsabilidade está atrelada de forma inseparável à liberdade. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
afastada a responsabilidade por influência de teses deterministas, não se pode mais<br />
legitimamente falar em punição. Não obstante, resta viável a tese da defesa social,<br />
que pode tornar defensáveis os usos de medidas extremas de contenção ou mesmo<br />
de eliminação daqueles aos quais é atribuída, por algum critério, a pecha da<br />
periculosidade.<br />
Analisou-se também a questão <strong>do</strong> totalitarismo oculto na conformação de uma<br />
criminologia <strong>genética</strong> reducionista e determinista. Em seu contexto parece inevitável<br />
uma constante intervenção sobre o indivíduo, controlan<strong>do</strong> profundamente não só as<br />
suas condutas, mas também aquilo que ele seja ou pretenda ser. Isso certamente<br />
conflui para uma desconstrução da autenticidade, extremamente viola<strong>do</strong>ra da<br />
dignidade humana. Há numa Criminologia ou em qualquer teoria ou ideologia que<br />
apregoe a intervenção profunda no “ser” <strong>do</strong> homem um intento de recriar<br />
(destruin<strong>do</strong>) o humano, que é essencialmente “abertura”, para transforma-lo em um<br />
sistema fecha<strong>do</strong>, molda<strong>do</strong> ao bel prazer de alguma elite ilegitimamente detentora <strong>do</strong><br />
poder de decidir como deve ser o “ser” <strong>do</strong> homem.<br />
Por derradeiro, foram apreciadas as fantasias e falsas bases que dão sustento a<br />
uma Criminologia Genética reducionista e determinista, bem como suas naturais<br />
confluências com a conformação intolerante, excludente e cruel de um Capitalismo<br />
Globaliza<strong>do</strong>. Verifica-se muito claramente que aquilo que hoje se apresenta como<br />
uma novidade capaz de revolucionar os estu<strong>do</strong>s criminológicos, não passa de uma<br />
repristinação, acrescida de certa sofisticação e sutileza, de antigas teorias<br />
Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 262-341<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
etiológicas <strong>do</strong> <strong>crime</strong>, configuran<strong>do</strong> nada mais <strong>do</strong> que um “neolombrosianismo” tosco,<br />
mal disfarça<strong>do</strong> na pele sedutora da suposta vanguarda científica.<br />
É fato incontestável que a ciência pode ou poderá em breve alterar o patrimônio<br />
genético da humanidade. Mas, o fato de ser detentor de um poder ou conhecimento,<br />
nada diz a respeito da conveniência de seu uso. Em primeiro lugar deve-se saber<br />
“quem, de que mo<strong>do</strong> e com que finalidade pode levar a cabo tais alterações”. Depois<br />
é preciso ir ainda mais fun<strong>do</strong> e decidir se essas mudanças devem sequer ser<br />
levadas a efeito. 166<br />
A história nos ensina que sempre que alguma mudança pode operar-se, ainda que<br />
seja <strong>perigos</strong>a e sofra resistências, acaba acontecen<strong>do</strong>. Neste caso, consideran<strong>do</strong><br />
que a decisão seja pela intervenção modifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> genoma humano, ainda nos<br />
resta discutir a legitimidade das alterações porventura pretendidas. Mister se faz<br />
“encontrar a vontade consensual que possa dar um rumo límpi<strong>do</strong>, claro e<br />
transparente à via ou caminho que se quer prosseguir”. É aqui que reside a missão<br />
<strong>do</strong> Direito. A ele não é da<strong>do</strong> <strong>do</strong>minar e oprimir a pesquisa científica, pretenden<strong>do</strong><br />
impor uma verdade normativa em oposição à verdade aferível pela dialética própria<br />
da atividade da ciência. Afinal, como consta da célebre frase ora atribuída a Francis<br />
Bacon, ora a Galileu Galilei, “a verdade é filha <strong>do</strong> tempo, não da autoridade”.<br />
Portanto, o Direito, alia<strong>do</strong> à ética, deve regular com bom senso os limites da<br />
aplicação <strong>do</strong>s conhecimentos científicos, sem contu<strong>do</strong> constituir uma barreira<br />
autoritária à livre pesquisa. Caberá, portanto, ao Direito (Biodireito) a árdua missão<br />
de encontrar um consenso, orienta<strong>do</strong> por valores éticos, legitiman<strong>do</strong> os<br />
comportamentos altamente relevantes da aplicação da <strong>genética</strong> sob os prismas<br />
comunitário e individual. 167<br />
Note-se, porém, que o caminho a ser trilha<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> pela discussão ética para<br />
chegar à normatização jurídica, não pode ser produto de uma ou outra categoria de<br />
pessoas (juristas, cientistas, religiosos etc.). Muitas vezes os cientistas se arrogam o<br />
direito de apropriação <strong>do</strong> discurso acerca da <strong>genética</strong>, isso com base no fato de<br />
166 COSTA, José de Faria. Op. Cit., p. 103.<br />
167 Op. Cit., p. 103 – 104.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
serem detentores <strong>do</strong> conhecimento técnico. Não obstante, como já se disse, o<br />
<strong>do</strong>mínio de um conhecimento ou poder nada significa a respeito <strong>do</strong> bom ou mau uso<br />
que se fará dele. Para a discussão de questões de alta indagação que suplantam<br />
em muito o mero saber técnico – científico, exigin<strong>do</strong> decisões informadas não<br />
somente pelo conhecimento, mas, principalmente, pela sabe<strong>do</strong>ria, torna-se<br />
imprescindível a confluência democrática e pluralista. Cabe ao cientista a<br />
manifestação e até o esclarecimento sobre as questões técnicas, mas devem ser<br />
chama<strong>do</strong>s à baila o sociólogo, o criminólogo, o jurista, o filósofo, o teólogo, em<br />
suma, a sociedade representada da forma mais ampla e esclarecida possível. Afinal,<br />
como aduz Gilson, a ciência pode fornecer muitas respostas no que diz respeito ao<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fenômenos, mas, afora isso, nem sequer sabe fazer as perguntas. 168<br />
Diverso não é o entendimento de um cientista esclareci<strong>do</strong> e equilibra<strong>do</strong> como<br />
Collins 169 , que afirma:<br />
Sobre esses assuntos que representam desafios éticos verdadeiros, que não<br />
são situações artificiais e irreais, como nossa sociedade poderá tirar<br />
conclusões?<br />
Primeiramente, seria erra<strong>do</strong> simplesmente deixar os cientistas tomarem<br />
essas decisões. Eles têm uma função crucial nesses debates, já que sua<br />
especialidade pode permitir uma distinção clara <strong>do</strong> que é e <strong>do</strong> que não é<br />
possível. No entanto, os cientistas não podem ser os únicos nesse debate.<br />
Por sua própria natureza, eles têm fome de explorar o desconheci<strong>do</strong>. Seu<br />
senso moral, geralmente, não é nem mais nem menos desenvolvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o<br />
de outros grupos, e eles não conseguem evitar sua aflição diante de um<br />
conflito de interesses que pode fazer com que fiquem indigna<strong>do</strong>s com os<br />
limites estabeleci<strong>do</strong>s por quem não é da comunidade científica. Portanto,<br />
uma ampla variedade de outras perspectivas deve ser representada nesse<br />
debate.<br />
Eis onde emerge a importante função da bioética. O termo foi cunha<strong>do</strong> em 1970 pelo<br />
cancerologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitula<strong>do</strong> “Bioethics, the<br />
Science of Survival” e corrobora<strong>do</strong> em um livro de título “Bioethics, Bridge to the<br />
future”. 170 A “Encyclopedia of Bioethics” a define como o “estu<strong>do</strong> sistemático da<br />
168 GILSON, Etienne. Op. Cit., p. 98.<br />
169 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 273 – 274.<br />
170 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 275.<br />
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CABETTE, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos<br />
conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de<br />
valores e princípios morais”. 171<br />
A Bioética não é uma ideologia reacionária que pretende atravancar os avanços<br />
científicos, mediante sutilezas morais e/ou teológicas. Na verdade, ela é porta<strong>do</strong>ra<br />
de uma clara mensagem de que a ciência e a técnica não prescindem de uma<br />
“razão regula<strong>do</strong>ra” que deve pautar-se por princípios éticos. 172<br />
Afirma Ratzinger que “a ciência pode servir à humanidade, mas pode também se<br />
tornar instrumento <strong>do</strong> mal, dan<strong>do</strong>-lhe os meios para desenvolver plenamente sua<br />
terribilidade; ela pode realizar sua verdadeira essência somente se for sustentada<br />
pela responsabilidade moral”. No entanto, “a força moral não cresceu junto com o<br />
desenvolvimento da ciência; pelo contrário, até diminuiu, porque a mentalidade<br />
técnica relega a moral ao âmbito subjetivo, enquanto seria justamente necessária<br />
uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pairam sobre a<br />
existência de to<strong>do</strong>s nós”. Efetivamente, “a questão moral é hoje, mais <strong>do</strong> que nunca,<br />
manifestamente uma questão de sobrevivência para a humanidade. Na civilização<br />
tecnicista, que já se estendeu ao mun<strong>do</strong> contemporâneo to<strong>do</strong>, as antigas certezas<br />
morais, que sustentavam as várias grandes culturas, foram amplamente destruídas.<br />
A visão tecnicista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dispensa os valores, e se questiona sobre a<br />
possibilidade prática, não sobre o que é lícito. Para muitos, a questão <strong>do</strong> que é lícito<br />
parece até ultrapassada, não mais compatível com a emancipação <strong>do</strong> homem de<br />
to<strong>do</strong>s os vínculos. O que é possível fazer é também lícito fazer: é assim que se<br />
pensa hoje, cada vez mais.<br />
Mas o verdadeiro problema coloca-se em um nível mais profun<strong>do</strong> ainda.<br />
Defrontadas com a certeza indiscutível que caracteriza as matérias técnicas, todas<br />
as certezas morais parecem algo frágeis e discutíveis. Muitos acham que só é<br />
razoável o que posso verificar de forma tão incontrovertível quanto às fórmulas<br />
matemáticas ou técnicas. Mas onde encontrar essa verificabilidade nas realidades<br />
tipicamente humanas, nas questões da moral e <strong>do</strong> reto viver humano? O fato de as<br />
171 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Volume I. 2ª. ed. Trad. Orlan<strong>do</strong> Soares Moreira. São<br />
Paulo: Loyola, 2002, p. 43.<br />
172 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 274.<br />
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grandes culturas, apesar <strong>do</strong>s importantes elementos comuns, darem nesse contexto<br />
resposta diferentes faz com que o relativismo se torne cada vez mais a opinião<br />
<strong>do</strong>minante. No âmbito da moral e da religião, não há nenhuma certeza partilhável;<br />
cada um deve achar por si mesmo como solucionar o problema. Cada um deve<br />
seguir suas próprias convicções”. Esse relativismo tem até certa coerência no cotejo<br />
com a realidade plural, mas destrói a segurança de qualquer critério ético e deixa o<br />
homem sem limites ao seu arbítrio. Nesse quadro, “a ciência se torna patológica e<br />
<strong>perigos</strong>a para a vida, quan<strong>do</strong> se desobriga <strong>do</strong> contexto da ordem moral própria <strong>do</strong><br />
ser – homens, e permite-se admitir unicamente suas próprias possibilidades como<br />
único critério admissível”. A pergunta crucial, porém, não é aquela que se refere ao<br />
que se “pode fazer”, mas aquela que se volta para o que se “deve fazer”, abrin<strong>do</strong>-se<br />
para a “voz da verdade e a seu chama<strong>do</strong>”. 173<br />
Um <strong>do</strong>s aspectos que a Bioética deve preservar no que tange à dignidade humana<br />
perante as descobertas científicas é a vedação absoluta à instrumentalização, sob<br />
quaisquer pretextos.<br />
É neste ponto que uma <strong>genética</strong> determinista, seja em sua aplicação criminológica<br />
ou em geral, é problemática. Isso porque ela reduz o homem a uma espécie de<br />
marionete guiada por mãos invisíveis, que seriam agora os genes. 174<br />
Quan<strong>do</strong> se perde de vista a noção básica de que somos sistemas abertos e não<br />
fecha<strong>do</strong>s abre-se campo para uma reificação <strong>do</strong> humano, que passa a confundir-se<br />
com as coisas e animais incapazes de autoconsciência e de contínua abertura para<br />
um “ser” que se constrói em processo sempre inconcluso.<br />
A liberdade e a responsabilidade são traços fundamentais da existência humana. O<br />
homem escolhe sua existência e toma posição frente aos valores. Por isso é o<br />
responsável pela escrita de sua própria história, a qual não é o mero resulta<strong>do</strong> da<br />
preponderância <strong>do</strong>s instintos sobre o agir consciente, já que o homem tem a<br />
173 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Op. cit., p. 101 – 102.<br />
174 Ver neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. Cit., p. 408. “Não somos meros<br />
marionetes cujos cordões são manipula<strong>do</strong>s por nossos genes”.<br />
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capacidade de superar os impulsos mais poderosos, a não ser que esteja sofren<strong>do</strong><br />
de alguma patologia psíquica. 175<br />
Desse mo<strong>do</strong>, desde que não se perca de vista essa noção básica da liberdade,<br />
responsabilidade e dignidade humanas, as pesquisas sobre <strong>genética</strong> para aplicação<br />
médica ou criminológica não devem ser descartadas ou impedidas.<br />
Trata-se de uma tecnologia de altíssimo potencial para o mal e para o bem, de mo<strong>do</strong><br />
que os povos que virarem as costas para o seu estu<strong>do</strong> criteriosamente pauta<strong>do</strong> pela<br />
ética, correm o risco de serem surpreendi<strong>do</strong>s pelo seu uso descontrola<strong>do</strong> por parte<br />
de pessoas mal intencionadas e pouco ou nada preocupadas com princípios<br />
éticos. 176<br />
O aprimoramento <strong>do</strong>s conhecimentos liga<strong>do</strong>s à <strong>genética</strong> traz em si terríveis riscos,<br />
sempre que não for pauta<strong>do</strong> por princípios éticos e uma visão antropológica que<br />
preserve a dignidade humana. No entanto, não se deve satanizar a <strong>genética</strong> e<br />
somente antever em seu desenvolvimento conseqüências catastróficas para a<br />
humanidade. A precaução é sempre uma virtude, mas o me<strong>do</strong> irracional nunca foi<br />
um bom conselheiro.<br />
É preciso regular os potenciais da <strong>genética</strong>, mas não se pode crer que um<br />
instrumento como esse somente possa ser utiliza<strong>do</strong> com fins egoístas e destrutivos.<br />
Mister se faz dar algum crédito à capacidade humana para o altruísmo e o<br />
sentimento comunitário, que podem tornar os potenciais dessa ciência altamente<br />
produtivos para o bem da humanidade. 177<br />
A mesma ambivalência pode ser constatada num <strong>do</strong>s fatores capazes de fomentar<br />
uma aplicação até mesmo genocida e excludente <strong>do</strong> conhecimento genético, qual<br />
seja, a globalização.<br />
175 PASCUAL, Fernan<strong>do</strong>. Op. Cit., p. 42.<br />
176 Neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 429.<br />
177 Neste senti<strong>do</strong>: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 426.<br />
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Embora pululem por to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> os chama<strong>do</strong>s “movimentos antiglobalização”,<br />
sabe-se o quanto quixotesco é ser “contra a globalização”. Essa postura assemelha-<br />
se a ser contra, por exemplo, uma tempestade. A globalização é um fenômeno<br />
inevitável no atual estágio da humanidade, de mo<strong>do</strong> que a questão não está em<br />
impedi-la, mas em controlar seus processos “selvagens” e converte-los “de ameaça<br />
em oportunidade para a humanidade”. 178<br />
Assim como a <strong>genética</strong> pode ser usada com vistas ao sentimento de solidariedade e<br />
solicitude para com o outro, também a globalização pode ser um elemento de<br />
aproximação e de união da humanidade em torno de um projeto solidário. Ela<br />
permite uma visão <strong>do</strong> “outro” que jamais existiu. Desde que esse “outro” em face <strong>do</strong><br />
qual nos colocamos seja toma<strong>do</strong> como sujeito de nossas obrigações éticas e não<br />
como inimigo ou obstáculo, a globalização pode produzir bons frutos.<br />
Nas palavras de Bauman 179 :<br />
Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela<br />
primeira vez na história da humanidade o auto – interesse e os princípios<br />
éticos de respeito e atenção mútuos de to<strong>do</strong>s os seres humanos apontam na<br />
mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização<br />
pode até transformar-se em benção: a ‘humanidade’ nunca teve uma<br />
oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance será aproveitada<br />
antes que se perca, é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende<br />
de nós.<br />
Enfim, uma lição deve ser aprendida por to<strong>do</strong>s, em especial com a questão <strong>do</strong>s<br />
errôneos fundamentos de uma Criminologia Genética determinista, a reviver um<br />
lombrosianismo, cujo valor é atualmente somente histórico:<br />
Um <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s que devemos sempre tomar, cientes de que errar é inevitável em<br />
nossa condição humana, é, pelo menos, evitar repetir os erros passa<strong>do</strong>s, ainda que<br />
sob novas roupagens.<br />
178 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: J<strong>org</strong>e Zahar, 2005,<br />
p. 94.<br />
179 Op. Cit., p. 95.<br />
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Afinal, como bem lembrava Paulo César da Silva em sua fala final na Reunião <strong>do</strong><br />
Grupo de Pesquisas de Bioética e Biodireito da Unisal 180 : “o erro sempre é velho, só<br />
a verdade é nova”.<br />
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