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Palestra de Abertura: A Função Social da Propriedade Nuno Pires de Carvalho Recebi este inesperado convite com muita surpresa e alegria, mas o recebi também como uma provocação. Eu não sou filósofo, sou advogado formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado em direito econômico também pela UFMG. Portanto, minha visão é, sobretudo, de advogado e há sete anos em Genebra, primeiro na OMC e depois na OMPI, minha visão também é a de um burocrata internacional. Já que estou em fase de provocações, minha primeira mensagem seria de que em matéria de propriedade intelectual ou de direitos de propriedade em geral, há duas atitudes possíveis: o jogador senta na arquibancada e chora, porque não gosta das regras do jogo, ou se programa e joga com as regras do jogo. O Brasil, na área da siderurgia – trabalhei 20 anos na USIMINAS como responsável pela área de propriedade industrial – jogou as regras do jogo, e hoje a siderurgia brasileira, onde nunca houve limites à patenteabilidade, à proteção de marcas e de segredos, é um dos setores mais competitivos do País e compete com todo o mundo. O que me proponho a fazer é explorar algumas reflexões sobre como as duas organizações multilaterais que cuidam da propriedade intelectual, a OMPI e a OMC, vêem o tema da propriedade intelectual e depois falar um pouco sobre o que um país em desenvolvimento, respeitando as regras do jogo, pode fazer para melhor utilizar a propriedade intelectual em seu benefício. No âmbito da OMC há uma questão que surpreende muitas pessoas que refletem sobre a propriedade intelectual, que é a sua associação com o comércio. A sociedade tem a tendência a examinar a propriedade intelectual como se fosse um compartimento estanque do direito e das instituições sociais e esquece precisamente deste vínculo ou, então, não conseguem entender bem este vínculo entre ambos, o que desde logo cria uma certa barreira ao entendimento da propriedade intelectual no âmbito da OMC. Do ponto de vista histórico, não é de hoje que a propriedade intelectual tem um vínculo próximo ao comércio. Um exemplo disso no Brasil foi o Alvará de 1809. Este alvará adotou quatro medidas principais. A primeira permitiu as importações sem tarifas de indústrias e equipamentos. Como se sabe, naquela época as importações eram exclusivas do Reino de Portugal. A segunda permitiu as exportações sem quaisquer limites de destino e naquela época o Brasil estava proibido de exportar para não fazer concorrência com Portugal. A terceira medida foi a criação de incentivos creditícios à instalação de manufaturas no Brasil. A última medida foi a criação de um sistema de patentes. Ao olhar o preâmbulo do Alvará de 1809, o rei da monarquia brasileira, que também era o rei de Portugal, dizia reconhecer os problemas que a adoção daquele alvará iriam trazer à indústria portuguesa, mas o rei achava que com os benefícios advindos da liberdade do comércio do Brasil e o crescimento da indústria manufatureira no País, viriam também benefícios para a indústria portuguesa que, mais tarde, poderia aumentar as suas exportações para o Brasil. Este é um argumento que poderia estar perfeitamente enquadrado no preâmbulo dos TRIPS. Um segundo exemplo histórico dessa relação íntima histórica entre o comércio e a propriedade intelectual foi o das negociações de 1907 entre a Alemanha e a Suíça. A Suíça naquela época ainda não tinha um sistema de patentes na 9 6 6º Encontro de Propriedade Intelectual e Comercialização de Tecnologia

área química, mas era uma grande fabricante e exportadora de produtos químicos. Ora, havia um problema com a Alemanha, porque este país tinha altas tarifas à importação e somente negociou a redução de tais tarifas para os produtos suíços em troca da adoção de um sistema de patentes na Suíça. O terceiro caso na história, já mencionado aqui, é o da própria Rodada do Uruguai, em que houve um vínculo estreito entre o comércio e a propriedade intelectual. As negociações da Rodada do Uruguai ocorreram entre 1986 e 1994. Mas o Acordo TRIPS foi negociado em apenas três anos, de 1989 a 1991, porque nos dois primeiros anos (1986-1988) os países em desenvolvimento passaram o tempo contestando o tema, porque a propriedade intelectual não teria relação com o comércio, que a OMPI permitia as flexibilidades e as assimetrias em função do tratamento nacional e que, portanto, era o foro ideal para se negociar novos parâmetros de proteção da propriedade intelectual. Ironicamente foram os países em desenvolvimento que se recusaram a negociar um tratado complementar à Convenção de Paris em matéria de patentes, em 1991, em Haia, e que, portanto, obrigaram os países desenvolvidos a utilizarem o GATT como instrumento de inserção de novos padrões de propriedade intelectual. Em 1988, houve uma rodada intermediária em Montreal para se verificar os progressos das negociações na Rodada Uruguai. Quando os países desenvolvidos disseram de maneira muito clara: “Sem TRIPS não há rodada, e sem rodada continuarão as sanções unilaterais por falta de respeito à propriedade intelectual”, os países em desenvolvimento entenderam que estava na hora de começar a negociar. As negociações começaram, portanto, em 1989. Em 1990, os cinco projetos do tratado foram postos na mesa e, em 21 de dezembro de 1991, o antigo secretário geral do GATT publicou o Dunkel Draft, a minuta dos TRIPS, que praticamente foi o texto final adotado em 1994. Ora, durante a Rodada Uruguai, houve dois itens que hoje fazem parte dos TRIPS que estão indissoluvelmente ligados ao comércio. As indicações geográficas foram incluídas nos TRIPS pela Europa, por esta não ter aceitado reduzir algumas tarifas para o acesso dos produtos norte-americanos ao mercado agrícola europeu – este caso foi praticamente uma negociação bilateral, como hoje ainda está sendo entre a União Européia e os países do Grupo de Cairns. Os desenhos industriais foram levados aos TRIPS pela indústria têxtil italiana que pressionou para que houvesse uma melhor proteção a esta matéria. Não foi propriamente uma amplitude de proteção, mas uma proteção mais facilitada aos desenhos industriais, sobretudo na área dos produtos têxteis. A propriedade intelectual na OMC tem dois objetivos. Em primeiro lugar, com referência ao § 1.º do preâmbulo do Acordo TRIPS, é a eliminação de barreiras ao comércio, ou melhor, a eliminação de barreiras não tarifárias. Uma proteção desnivelada de propriedade intelectual no âmbito multilateral pode representar uma dificuldade para que o país ou inventor que investiu no desenvolvimento de uma tecnologia consiga vender esse produto no mercado externo e pelo menos recuperar alguma parte dos custos de desenvolvimento. O segundo aspecto é o da proteção da propriedade privada, que infelizmente é muito esquecido quando se analisa o Acordo TRIPS. O § 4.º do preâmbulo dos TRIPS diz que os membros da OMC reconhecem que os direitos de propriedade intelectual são direitos de propriedade privada. O que isso quer dizer? A intenção inicial era dizer que um país na OMC não pode ser sancionado se seus cidadãos titulares de direitos de propriedade intelectual não exercem os seus direitos em juízo. Por exemplo, se os titulares de direitos de autor não recorrem aos tribunais contra a pirataria, o governo não pode ser acusado de estar descumprindo as suas obriga- 6º Encontro de Propriedade Intelectual e Comercialização de Tecnologia 9 7

Palestra de Abertura: A Função Social da Propriedade<br />

Nuno Pires de Carvalho<br />

Recebi este inesperado convite com muita surpresa e alegria, mas o recebi<br />

também como uma provocação. Eu não sou filósofo, sou advogado formado<br />

pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com doutorado em direito<br />

econômico também pela UFMG. Portanto, minha visão é, sobretudo, de advogado<br />

e há sete anos em Genebra, primeiro na OMC e depois na OMPI, minha visão<br />

também é a de um burocrata internacional.<br />

Já que estou em fase de provocações, minha primeira mensagem seria de<br />

que em matéria de propriedade intelectual ou de direitos de propriedade em<br />

geral, há duas atitudes possíveis: o jogador senta na arquibancada e chora, porque<br />

não gosta das regras do jogo, ou se programa e joga com as regras do jogo.<br />

O Brasil, na área da siderurgia – trabalhei 20 anos na USIMINAS como responsável<br />

pela área de propriedade industrial – jogou as regras do jogo, e hoje a siderurgia<br />

brasileira, onde nunca houve limites à patenteabilidade, à proteção de marcas<br />

e de segredos, é um dos setores mais competitivos do País e compete com<br />

todo o mundo.<br />

O que me proponho a fazer é explorar algumas reflexões sobre como as<br />

duas organizações multilaterais que cuidam da propriedade intelectual, a OMPI e<br />

a OMC, vêem o tema da propriedade intelectual e depois falar um pouco sobre o<br />

que um país em desenvolvimento, respeitando as regras do jogo, pode fazer para<br />

melhor utilizar a propriedade intelectual em seu benefício.<br />

No âmbito da OMC há uma questão que surpreende muitas pessoas que<br />

refletem sobre a propriedade intelectual, que é a sua associação com o comércio.<br />

A sociedade tem a tendência a examinar a propriedade intelectual como se fosse<br />

um compartimento estanque do direito e das instituições sociais e esquece precisamente<br />

deste vínculo ou, então, não conseguem entender bem este vínculo<br />

entre ambos, o que desde logo cria uma certa barreira ao entendimento da propriedade<br />

intelectual no âmbito da OMC.<br />

Do ponto de vista histórico, não é de hoje que a propriedade intelectual<br />

tem um vínculo próximo ao comércio. Um exemplo disso no Brasil foi o Alvará de<br />

1809. Este alvará adotou quatro medidas principais. A primeira permitiu as importações<br />

sem tarifas de indústrias e equipamentos. Como se sabe, naquela época<br />

as importações eram exclusivas do Reino de Portugal. A segunda permitiu as<br />

exportações sem quaisquer limites de destino e naquela época o Brasil estava<br />

proibido de exportar para não fazer concorrência com Portugal. A terceira medida<br />

foi a criação de incentivos creditícios à instalação de manufaturas no Brasil. A<br />

última medida foi a criação de um sistema de patentes. Ao olhar o preâmbulo do<br />

Alvará de 1809, o rei da monarquia brasileira, que também era o rei de Portugal,<br />

dizia reconhecer os problemas que a adoção daquele alvará iriam trazer à indústria<br />

portuguesa, mas o rei achava que com os benefícios advindos da liberdade<br />

do comércio do Brasil e o crescimento da indústria manufatureira no País, viriam<br />

também benefícios para a indústria portuguesa que, mais tarde, poderia aumentar<br />

as suas exportações para o Brasil. Este é um argumento que poderia estar<br />

perfeitamente enquadrado no preâmbulo dos TRIPS.<br />

Um segundo exemplo histórico dessa relação íntima histórica entre o comércio<br />

e a propriedade intelectual foi o das negociações de 1907 entre a Alemanha<br />

e a Suíça. A Suíça naquela época ainda não tinha um sistema de patentes na<br />

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