Profª Drª Regina Maria Przybycien - ICHS/UFOP
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Um outro tipo de estrangeiridade: o estrangeiro de si mesmo. Ele não precisa se<br />
deslocar no espaço. Vivencia um estranhamento existencial, no estado da alma, na<br />
percepção. As personagens de Kafka vivem esse estranhamento radical, esse<br />
descolamento de si. A narrativa de A metamorfose 10 se inicia com o protagonista<br />
Gregor Sansa acordando e descobrindo que se transformou num inseto gigante,<br />
metáfora de uma estrangeirização absoluta. Habitando essa matéria estranha que para os<br />
humanos é abjeta, Sansa experimenta a rejeição, o sentimento de asco da sua família, o<br />
abandono e finalmente a morte. Ele é o estrangeiro de si mesmo que precisa ser<br />
expelido.<br />
Em A paixão segundo GH, 11 Clarice Lispector também explora essa<br />
estrangeirização de si na personagem GH, que não se transforma num inseto, mas<br />
necessita comer a massa da barata esmagada na porta do armário para comungar com<br />
essa alteridade radical, que é parte dela, mas que GH não reconhece por estar protegida<br />
por camadas e mais camadas de convenções que a espécie humana construiu em torno<br />
do si para se distanciar da matéria bruta do mundo. Mas o humano é matéria: um<br />
conjunto de moléculas de carbono, assim como a barata. A ficção de Lispector<br />
mergulha nessa exploração do pré-humano no humano, na pulsão da matéria bruta<br />
primeva que move todos os seres vivos.<br />
Também a poeta polonesa Wislawa Szymborska explora, de vários modos, o<br />
tema do estrangeiro em si. Vários poemas seus refletem filosoficamente sobre a<br />
estrangeiridade do humano, as combinações do acaso que fizerem dele a espécie<br />
dominante no planeta. No poema “Entre muitos” o eu lírico se indaga e se espanta com<br />
o acaso que o fez o que ele é, quando, na infinita variedade de formas possíveis da<br />
matéria, poderia ser inteiramente outro.<br />
Reproduzo o poema inteiro para dar-lhes um pouco do sabor dessa poesia<br />
desconhecida entre nós:<br />
Sou quem sou.<br />
Inconcebível acaso<br />
como todos os acasos.<br />
Fossem outros<br />
os meus antepassados<br />
e de outro ninho<br />
eu voaria<br />
ou de sob outro tronco<br />
coberta de escamas eu rastejaria.<br />
10 KAFKA, Franz. A metamorfose. Um artista da fome. Carta a meu pai. São Paulo: Martin Claret, 2007.<br />
11 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.<br />
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