Profª Drª Regina Maria Przybycien - ICHS/UFOP
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A condição de estrangeiro<br />
<strong>Regina</strong> <strong>Przybycien</strong> ∗<br />
Creio ser necessário, primeiramente, esclarecer os significados de estrangeiro<br />
que permeiam minhas reflexões.<br />
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa traz as seguintes definições para<br />
estrangeiro:1. que ou o que é de outro país, que ou o que é proveniente , característico<br />
de outra nação [...]. 2. Fig.p.us. que ou o que não pertence ou se considera como não<br />
pertencente a uma região, classe ou meio; forasteiro, ádvena. 3. Indivíduo de<br />
nacionalidade diversa daquela do país onde se encontra ou vive. 4. O conjunto dos<br />
países em geral, excetuando-se aquele em que se nasce. [...] 5. Infrm. Idioma diferente<br />
daquele que se está considerando, idioma não vernáculo, idioma de outra nação [...]<br />
Etm. fr. étranger (sXIV) ‘id’, de étrange (estrange sXII), do lat. extraněus, -a,-um “o que<br />
é de fora’ de extra ‘fora’; ver estrangeir.<br />
Estrangeir – el. comp.antepositivo, do fr.ant. estranger – atual étranger – ‘aquele que<br />
não é do país’; este de estrange – atual étrange – ‘estrangeiro, fora do comum,<br />
extraordinário’ (< lat. cl. extranĕus,-a,-um ‘de fora, que não pertence à família, ao país,<br />
etc. < adv.prep. extra ‘na parte de fora, externamente, além de, etc.’ 1<br />
Das diversas acepções de estrangeiro acima citadas, interessam-me sobretudo as<br />
duas primeiras: 1) o indivíduo procedente de outro país e 2) o que não pertence ou se<br />
considera como não pertencente a uma região, classe, ou meio. Desejo também resgatar<br />
o sentido latino de extranĕus: ‘de fora, que não pertence à família ou ao país’.<br />
A palavra extranĕus tinha o sentido tanto de ‘estrangeiro’ quanto de ‘estranho’. São<br />
esses dois sentidos que se encontram imbricados neste trabalho.<br />
Definir o estrangeiro como alguém “de fora” implica definir quem é de “dentro”,<br />
o que complica de saída toda tentativa de conceitualização. O sentido de estrangeiro<br />
como estranho, como alguém que não está em casa, por sua vez, talvez seja demasiado<br />
amplo porque podem haver inúmeras formas de não pertencimento. Correndo o risco de<br />
uma enorme imprecisão no emprego da palavra, vou falar de diversas situações de<br />
estrangeiridade.<br />
∗ Professora sênior do Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná e<br />
Professora visitante da Universidade Jagiellônica de Cracóvia, Polônia.<br />
1 Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p.1261.<br />
1
Os antropólogos costumavam começar seus livros com uma narrativa que<br />
contava sua chegada ao local da sua pesquisa e seu primeiro encontro com os nativos.<br />
As narrativas de chegada revelam o estranhamento do recém-chegado frente à cultura<br />
com a qual se depara, cultura para a qual ele é um outsider, um estrangeiro. Um<br />
exemplo clássico está na introdução à obra Os argonautas do Pacífico Ocidental de<br />
Bronislau Malinowski, na qual o autor confessa sua frustração, ao chegar à Nova Guiné,<br />
pela dificuldade de se comunicar com os nativos. 2<br />
Ao modo dos antropólogos, gostaria de começar estas reflexões com uma<br />
narrativa de chegada: a minha chegada a <strong>Maria</strong>na e ao <strong>ICHS</strong> lá se vão vinte e tantos<br />
anos. A marca mais visível da minha estrangeiridade está num sobrenome que, para os<br />
brasileiros, é impossível pronunciar. O seguinte diálogo se repete indefinidamente na<br />
minha vida:<br />
− Nome?<br />
− <strong>Regina</strong>.<br />
− <strong>Regina</strong> de quê?<br />
− Vou soletrar: P-R-Z-Y-B-Y-C-I-E-N<br />
− Como é que se pronuncia isso?<br />
− Pchebêchien.<br />
− Como???<br />
No sul do Brasil meu sobrenome pelo menos compete com outros tantos esquisitos<br />
(Przybylowski, Blaszczyk, Hrechorowicz, Heisenhoffen) que abundam na lista<br />
telefônica. Em <strong>Maria</strong>na, ele só competia com o de minha colega Ida Lewkowicz, que foi<br />
professora de história no <strong>ICHS</strong> durante um breve período de tempo.<br />
Minhas primeiras incursões por Ouro Preto me conscientizaram de minha<br />
estrangeiridade. Para os que atraem os turistas para as lojas, eu deveria ser abordada em<br />
inglês: “Precious stones? Want to buy precious stones?” Outros falavam comigo em<br />
português, mas num tom alto e pausado, pronunciando bem as palavras, porque as<br />
pessoas têm a estranha noção de que assim o estrangeiro os entende.<br />
Um dia, diante da insistência de um menino em me mostrar uma igreja, respondi<br />
impaciente que não precisava de guia, que eu era de <strong>Maria</strong>na.<br />
− É nada, dona!<br />
− Sou sim!<br />
2 MALINOWSKI, Bronislaw. The argonauts of Western Pacific. London: Routledge, 2002.<br />
2
− De que família?<br />
− Da família <strong>Przybycien</strong>.<br />
− Tá me gozando!<br />
No <strong>ICHS</strong> não faltaram estranhamentos. Percebi logo que meus alunos e eu<br />
tínhamos diferentes concepções de tempo a respeito do horário de início da aula. Além<br />
disso, eu era a professora inflexível, que insistia, por exemplo, em falar inglês na aula<br />
até o momento quando alguns olhares catatônicos me indicavam que era hora de parar e<br />
resumir o que havia sido dito em português.<br />
A familiaridade com que todos se tratavam era um choque: intimidade com<br />
estranhos? Apelidos carinhosos ou caricatos? O brasileiro cordial não funcionava da<br />
mesma maneira no lugar de onde eu vinha. Enfim, eu era uma estrangeira que precisava<br />
aprender a língua nativa. Tive alguns anos para fazê-lo.<br />
Não se passa incólume pelos lugares que habitamos. As pessoas que<br />
encontramos nos modificam e os sons, cores, cheiros, sabores do lugar permanecem na<br />
memória, colam na gente como uma segunda pele invisível. Minas, <strong>Maria</strong>na, o <strong>ICHS</strong><br />
não são apenas um episódio do meu passado, uma parte da minha história, mas vivem<br />
no meu presente. Grudaram em mim e fazem parte do que sou.<br />
Em <strong>Maria</strong>na começou meu interesse pelas diversas formas de alteridade, que<br />
tem norteado minhas pesquisas desde então. Nossos objetos de estudo, mesmo quando<br />
aparentemente distanciados, dizem muito sobre nós mesmos. Os temas que escolhemos,<br />
ainda que de forma inconsciente, têm a ver com nossa história.<br />
Ao iniciar meu doutorado na UFMG, escolhi como tema a poeta norte-<br />
americana Elizabeth Bishop, que vivera em Ouro Preto. Não foi a sua poesia que<br />
primeiro me atraiu e sim o fato dela ser estrangeira. A circunstância de ser uma poeta<br />
era uma vantagem, já que o artista possui um olhar diferente, uma sensibilidade especial<br />
para captar a alteridade e representá-la artisticamente. Interessou-me o que ela tinha a<br />
dizer sobre Minas, sobre o Brasil.<br />
O seu interesse por Minas começou logo após sua chegada ao Brasil, em 1951,<br />
quando Manuel Bandeira lhe recomendou a leitura do livro Minha vida de menina, de<br />
Helena Morley (pseudônimo de Alice Brant) para que ela pudesse praticar português.<br />
Bishop o leu e ficou tão fascinada que resolveu traduzi-lo para o inglês. A obra é o<br />
diário de uma adolescente em Diamantina, nos anos 1893 a 1895. As descrições da vida<br />
interiorana no diário são muito vívidas, cheias de episódios pitorescos. Como Bishop<br />
3
não acreditava em viagens puramente textuais, viajou até Diamantina para percorrer os<br />
caminhos trilhados por Helena Morley sessenta anos antes. A tradução conta com uma<br />
introdução de mais de quarenta páginas, na qual além das descrições intensamente<br />
poéticas de Diamantina, Bishop realiza um trabalho que podemos chamar de<br />
etnográfico, registrando hábitos e costumes, à maneira da literatura dos viajantes.<br />
A descoberta de Ouro Preto veio depois, no final dos anos cinquenta, quando ela<br />
morava em Petrópolis. Nos primeiros anos da década de sessenta voltou várias vezes,<br />
ficando hospedada na casa de Lilli Correia de Araújo e no Pouso do Chico Rey, até que<br />
em 1965 comprou uma casa em ruínas na Rua Conselheiro Quintiliano, encarregando<br />
Lilli de restaurá-la. Viveu pouco tempo na casa, de 1969 a 1971.<br />
Uma poeta americana em Ouro Preto nos anos sessenta! Que estranhamentos e<br />
desencontros aconteceram entre ela e os ouropretanos podemos verificar na sua<br />
correspondência: uma história de incompreensões e sofrimento, muita loucura, muito<br />
delírio, mas também esse inevitável fascínio pelo diferente, pelo outro.<br />
Para alguém à deriva, sem família, sem raízes, como Elizabeth Bishop, Minas<br />
significava solidez, capacidade de perdurar. Quando comprou a casa em Ouro Preto, em<br />
1965, Bishop escreveu para seu amigo, o também poeta Robert Lowell : “Gosto de Ouro<br />
Preto porque lá tudo foi feito ali mesmo, à mão, com pedra, ferro, cobre e madeira.<br />
Tiveram que inventar muita coisa − e tudo está em perfeito estado há quase trezentos<br />
anos.” 3<br />
Anos mais tarde, já morando em Ouro Preto, a poeta se expressou quase nos<br />
mesmos termos numa entrevista: “De Ouro Preto, gosto sobretudo das coisas que são feitas<br />
aqui. Os móveis, os utensílios do século XVIII são sólidos. O clássico não me atrai, o que<br />
importa é a durabilidade − aqui as coisas permanecem”. 4 Solidez e permanência: aquilo<br />
que o estrangeiro não tem e que busca encontrar em suas novas circunstâncias. Não<br />
obstantes seus desencontros com os mineiros, Elizabeth Bishop encontrou em Minas o que<br />
necessitava. Não na casa ouropretana, onde morou pouco tempo, mas na poesia de Carlos<br />
Drummond de Andrade. Inspirada nos poemas de Drummond sobre Itabira, alguns dos<br />
quais ela traduziu para o inglês, ela aprendeu a abrir os caminhos da memória e reconstruir<br />
a infância perdida num vilarejo remoto do Canadá em versos que representam uma nova<br />
fase de sua poesia, mais intensa, mais pessoal. Nesses versos da infância, a estrangeira<br />
Elizabeth Bishop finalmente voltava para casa.<br />
3 Carta a Robert Lowell, 18.11.1965. In: Uma arte – as cartas de Elizabeth Bishop<br />
4 COLÔNIA, <strong>Regina</strong>. A poesia como "way of life". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 jun. 1970, p.8.<br />
4
Mas será que o estrangeiro pode mesmo voltar para casa? E mais: existe uma casa<br />
para a qual voltar?<br />
O século XX testemunhou deslocamentos populacionais sem precedentes na<br />
história humana. As guerras, as revoluções, as perseguições políticas, a fome fizeram com<br />
que multidões deixassem seus locais de origem, estabelecendo-se em outros espaços<br />
geográficos. Em conseqüência, uma parte considerável da humanidade viveu, e vive ainda<br />
hoje, a condição de estrangeiro. Se verificarmos, por exemplo, quantos dos intelectuais e<br />
artistas que reformularam o pensamento e desenvolveram novas estéticas no século XX<br />
viveram exilados 5 , a lista é infindável. Só para citar alguns de passagem: Albert Einstein,<br />
Theodor Adorno, James Joyce, Thomas Mann, Albert Camus, Samuel Beckett, Vladimir<br />
Nabokov, Witold Gombrowicz, Hannah Arendt, Edward Said, Zygmunt Baumann. Há<br />
ainda aqueles que produziram obras fundamentais na prisão (que também é uma espécie de<br />
exílio), como é o caso de Gramsci.<br />
Edward Said é um dos intelectuais que teoriza a condição do intelectual no exílio a<br />
partir de sua própria experiência de exilado. Como palestino de nascimento, tendo vivido<br />
no Egito, na Europa e depois nos Estados Unidos, Said sempre aliou a sua atividade de<br />
pensador e crítico literário ao seu ativismo político. Ele ataca o conformismo dos<br />
intelectuais, sua acomodação ao convencional, seu trabalho burocrático de especialista,<br />
realizado com um olho nas benesses de bolsas, subvenções e prêmios. Para além das<br />
condições reais do exílio, Said está interessado na ação do intelectual no mundo, portanto<br />
ele desenvolve a idéia de exílio metafórico, uma condição metafísica que faz do intelectual<br />
um inconformado, um inquieto, alguém que nunca se sente em casa e que não submete.<br />
Ele define as condições desse tipo de intelectual:<br />
Penso que, para ser tão marginal e indomado como alguém que se encontra de fato no<br />
exílio, o intelectual deve ser receptivo ao viajante e não ao potentado, ao provisório e<br />
arriscado e não ao habitual, à inovação e à experiência e não ao status quo autoritariamente<br />
estabelecido. O intelectual que encarna a condição de exilado não responde à lógica do<br />
convencional, e sim ao risco da ousadia, à representação da mudança, ao movimento sem<br />
interrupção. 6<br />
Os detratores de Said dizem que é irônico se colocar como alguém que fala de uma<br />
posição marginal quando se é, como ele foi, professor da Universidade Columbia, em<br />
Nova Iorque, uma posição de prestígio que ele não teria se tivesse, por exemplo,<br />
5 O exílio é uma forma particular de viver a estrangeiridade porque o sentimento de não pertença é maior.<br />
Mesmo quando o exílio é voluntário, há uma implicação de que, fossem outras as circunstâncias, o<br />
indivíduo teria permanecido no seu lugar de origem.<br />
6 SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo, Cia. das Letras, 2005, p.70.<br />
5
permanecido no Egito. Entretanto, essa argumentação é falaciosa, porque as posições de<br />
margem e centro não são assim tão facilmente demarcáveis. Além do mais, Said poderia,<br />
se quisesse, ter se limitado à sua especialidade de professor e crítico de literatura<br />
comparada na Universidade Columbia, sem se comprometer com as causas políticas que<br />
abraçou, e que lhe granjearam inúmeras inimizades. Essa posição teria sido certamente<br />
mais cômoda para ele.<br />
Como meu tema é a condição de estrangeiro, não me deterei nas discussões do<br />
papel do intelectual defendido por Said. Interessa-me mais a sua explicação do lugar do<br />
exilado. Para ele o exilado se situa num “estado intermediário, nem de todo integrado ao<br />
novo lugar, nem totalmente liberto do antigo, cercado de envolvimentos e distanciamentos<br />
pela metade”. 7 O lugar do estrangeiro, portanto, é sempre um entre-lugar entre o aqui e o<br />
acolá, entre o passado e o presente. Ou seja: ele nunca se sente em casa. Não é uma<br />
posição confortável, mas apresenta algumas vantagens, como, por exemplo, uma espécie<br />
de dupla visão que permite certo distanciamento de ambos os mundos. O sentimento de<br />
pertencimento, relativizado, pode causar dor, mas o olhar ganha em amplitude.<br />
Os deslocamentos da nossa contemporaneidade têm menos o caráter de exílio<br />
político e mais de busca por melhores condições materiais. Com esse fim, centenas de<br />
milhares de pessoas deixam seus locais de origem e se dirigem principalmente para as<br />
metrópoles da Europa e da América do Norte. O estrangeiro aos poucos se naturaliza,<br />
absorvendo, muitas vezes inconscientemente, os modos nativos, mas a metrópole também<br />
se estrangeiriza e adquire novas feições. As comunidades de estrangeiros vão constituindo<br />
diásporas que ultrapassam as fronteiras nacionais, fenômeno cada vez mais comum nas<br />
cidades européias e norte-americanas. O escritor diaspórico é aquele que circula entre o<br />
centro metropolitano e os espaços periféricos de onde provém. 8 Ele escreve sobre a<br />
periferia, mas para um público na metrópole ou para um público internacional, para quem<br />
“traduz” a sua cultura de origem. Hoje há um grande contingente de escritores procedentes<br />
de países do Caribe, da Ásia e da África que moram nos Estados Unidos, Inglaterra, França<br />
e Portugal e escrevem em inglês, francês e português. Seu público não está “em casa” nas<br />
comunidades de origem, para as quais os temas abordados podem parecer ou distantes ou<br />
corriqueiros (já que descrevem costumes que para os nativos são absolutamente comuns).<br />
Muitas dessas comunidades falam, inclusive, outras línguas. Esses escritores funcionam,<br />
7 ibid, p.57.<br />
8 Muitos desses escritores são chamados de “pós-coloniais” porque provêm das ex-colônias européias e<br />
escrevem sobre as (difíceis) relações entre a ex-colônia e metrópole ou sobre os efeitos da colonização<br />
nos locais dos quais procedem.<br />
6
portanto, como intérpretes de uma estrangeiridade que está em outro lugar. Um exemplo<br />
de escritor diaspórico no espaço lusófono é José Eduardo Agualusa. Angolano, ele vive<br />
entre Lisboa, o Rio e Luanda, escrevendo predominantemente sobre Angola, mas<br />
incorporando elementos dos outros espaços que habita.<br />
Suspeito que parte do sucesso desses escritores reside no fato de que seu público<br />
leitor aprecia o exotismo do espaço ficcional que eles criam. O estrangeiro não apenas<br />
amedronta. Ele também seduz.<br />
A condição de estrangeiro não resulta apenas dos exílios forçados ou voluntários<br />
para outros lugares. Ela é uma consequência da própria modernidade, que, a partir do<br />
século XVIII, deslocou as pessoas de seus espaços de origem para os grandes centros<br />
urbanos. A literatura do século XIX dramatiza essas mudanças do contexto sócio-cultural,<br />
representando a paisagem urbana, as multidões, o burburinho das ruas e das fábricas, a<br />
dissociação progressiva entre o homem e o seu trabalho. Não mais o artesão que domina<br />
seu ofício do começo ao fim, mas uma peça dispensável na engrenagem da grande<br />
máquina que produz o capital. No anonimato das grandes urbes do mundo o indivíduo,<br />
tendo perdido todo o sentido de comunidade, é um solitário, incapaz de se conectar com as<br />
multidões que o cercam.<br />
Essa estrangeiridade do indivíduo nos grandes espaços urbanos pode tomar a feição<br />
do artista flâneur baudelairiano que vaga pelas ruas da cidade, observando com olhar<br />
atento, mas distanciado, o burburinho à sua volta. Ele é uma figura que está, ao mesmo<br />
tempo, dentro e fora da multidão, participando, não-participando da vida pulsante da<br />
cidade. Baudelaire, o poeta da modernidade, perambula pela cidade e sente o seu ritmo, o<br />
pulsar elétrico da multidão anônima que o fascina e repele ao mesmo tempo. O poeta<br />
assim descreve o flâneur:<br />
Para o perfeito Flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar<br />
residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar<br />
fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar<br />
no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres<br />
desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode<br />
definir senão toscamente. 9<br />
“Estar fora de casa e contudo sentir-se em casa”. O contrário também é possível e<br />
verdadeiro: estar em casa, mas sentir-se fora de casa porque dentro e fora são<br />
posicionalidades intercambiáveis da condição de estrangeiro.<br />
9 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.21.<br />
7
Um outro tipo de estrangeiridade: o estrangeiro de si mesmo. Ele não precisa se<br />
deslocar no espaço. Vivencia um estranhamento existencial, no estado da alma, na<br />
percepção. As personagens de Kafka vivem esse estranhamento radical, esse<br />
descolamento de si. A narrativa de A metamorfose 10 se inicia com o protagonista<br />
Gregor Sansa acordando e descobrindo que se transformou num inseto gigante,<br />
metáfora de uma estrangeirização absoluta. Habitando essa matéria estranha que para os<br />
humanos é abjeta, Sansa experimenta a rejeição, o sentimento de asco da sua família, o<br />
abandono e finalmente a morte. Ele é o estrangeiro de si mesmo que precisa ser<br />
expelido.<br />
Em A paixão segundo GH, 11 Clarice Lispector também explora essa<br />
estrangeirização de si na personagem GH, que não se transforma num inseto, mas<br />
necessita comer a massa da barata esmagada na porta do armário para comungar com<br />
essa alteridade radical, que é parte dela, mas que GH não reconhece por estar protegida<br />
por camadas e mais camadas de convenções que a espécie humana construiu em torno<br />
do si para se distanciar da matéria bruta do mundo. Mas o humano é matéria: um<br />
conjunto de moléculas de carbono, assim como a barata. A ficção de Lispector<br />
mergulha nessa exploração do pré-humano no humano, na pulsão da matéria bruta<br />
primeva que move todos os seres vivos.<br />
Também a poeta polonesa Wislawa Szymborska explora, de vários modos, o<br />
tema do estrangeiro em si. Vários poemas seus refletem filosoficamente sobre a<br />
estrangeiridade do humano, as combinações do acaso que fizerem dele a espécie<br />
dominante no planeta. No poema “Entre muitos” o eu lírico se indaga e se espanta com<br />
o acaso que o fez o que ele é, quando, na infinita variedade de formas possíveis da<br />
matéria, poderia ser inteiramente outro.<br />
Reproduzo o poema inteiro para dar-lhes um pouco do sabor dessa poesia<br />
desconhecida entre nós:<br />
Sou quem sou.<br />
Inconcebível acaso<br />
como todos os acasos.<br />
Fossem outros<br />
os meus antepassados<br />
e de outro ninho<br />
eu voaria<br />
ou de sob outro tronco<br />
coberta de escamas eu rastejaria.<br />
10 KAFKA, Franz. A metamorfose. Um artista da fome. Carta a meu pai. São Paulo: Martin Claret, 2007.<br />
11 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.<br />
8
No guarda-roupa da natureza<br />
há trajes de sobra<br />
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.<br />
Cada um cai como uma luva<br />
e é usado<br />
até se gastar.<br />
Eu também não tive escolha<br />
mas não me queixo.<br />
Poderia ter sido alguém<br />
muito menos individual.<br />
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,<br />
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.<br />
Alguém muito menos feliz,<br />
criado para uso da pele,<br />
para a mesa da festa,<br />
algo que nada debaixo da lente.<br />
Uma árvore presa à terra<br />
da qual se aproxima o fogo.<br />
Uma palha esmagada<br />
pela marcha de inconcebíveis eventos.<br />
Um sujeito com uma negra sina<br />
Que para os outros se ilumina.<br />
E se eu despertasse nas pessoas só medo,<br />
ou só aversão,<br />
ou só pena?<br />
Se eu não tivesse nascido<br />
na tribo adequada<br />
e diante de mim se fechassem as estradas?<br />
A sorte até agora<br />
me tem sido favorável.<br />
Poderia não me ser dada<br />
a lembrança dos bons momentos.<br />
Poderia me ser tirada<br />
a propensão para comparações.<br />
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,<br />
e isso significaria<br />
alguém totalmente diferente. 12<br />
12 SZYMBORSKA, Wislawa. W zatrzęsieniu. In: Widok z ziarnkiem piasku. Poznan: Wydawnictwo a5,<br />
1996, p.176-177. A tradução é de minha autoria.<br />
9
Coloco ainda, apenas como hipótese, mais uma possível forma de<br />
estrangeirização que tem a ver com as relações de gênero. A história humana é<br />
androcêntrica. Em Um teto todo seu 13 Virginia Woolf relata que, convidada a fazer uma<br />
palestra sobre “As mulheres e a literatura”, ela percorre os edifícios de Oxbridge<br />
(junção irônica da autora das duas vetustas universidades britânicas Oxford e<br />
Cambridge) e descobre que aqueles templos do saber eram território proibido para as<br />
mulheres. Em seguida, vai ao Museu Britânico pesquisar a presença das mulheres na<br />
literatura. Consultando os catálogos, verifica que as mulheres estão onipresentes não<br />
apenas na literatura, mas também nas outras artes e nas ciências, mas como tema, não<br />
como autoras. Woolf conclui que todas as obras do espírito humano (as ciências, as<br />
artes, as leis) foram feitas pelos homens. E isso porque os homens gozavam da<br />
liberdade de ir e vir, dominavam a rua, o púlpito, a tribuna e manejavam o cinzel, o<br />
pincel e a pena.<br />
As mulheres, entretanto, ocupavam o espaço estreito da casa e sua função era<br />
gerar e nutrir. Paradoxalmente neste caso, é a casa o lugar de exílio, o espaço<br />
estrangeiro, porque circunscritas a esse espaço, as mulheres ficavam fora da vida<br />
pública, fora das ruas. A linguagem revela a delimitação desses espaços: o homem<br />
público é o político, ao passo que a mulher pública é a prostituta. (Se bem que hoje os<br />
dois sentidos se aproximam. A segunda vende o corpo; o primeiro vende a alma.)<br />
No século XIX, embora as mulheres da classe burguesa tivessem mais acesso à<br />
educação, era-lhes difícil se tornar escritoras, publicar suas obras. Esquecemo-nos que o<br />
verbo ‘publicar’ significa ‘tornar público’. As mulheres podiam escrever, se quisessem,<br />
mas seus escritos deveriam permanecer no espaço privado, isto é, não deveriam ser<br />
publicados. Ilustrativa da atitude da sociedade para com a mulher escritora é este trecho<br />
da carta que o poeta Olavo Bilac escreve para sua noiva:<br />
Minha Amélia<br />
(...)<br />
Antes de tudo, quero dizer-te que te amo, agora mais do que nunca, que não me sais um minuto<br />
do pensamento, que és a minha preocupação eterna, que vivo louco de saudade, (...) Não me<br />
agradou ver um soneto teu (...) desagradou-me a sua publicação.<br />
(...)<br />
Há uma frase de Ramalho Ortigão, que é uma das maiores verdades que tenho lido: - “O<br />
primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida”. – Não é uma grande<br />
verdade? (...) há em Portugal e Brasil cem ou mais mulheres que escrevem. Não há<br />
nenhuma delas de quem não se fale mal, com ou sem razão. (...) Não quer isto dizer que<br />
13 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />
10
não faças versos, pelo contrário. Quero que o faças, muitos, para os teus irmãos, para as<br />
tuas amigas, e principalmente para mim, - mas nunca para o público.(...).<br />
São Paulo, 7 de fevereiro de 1888.<br />
Teu noivo,<br />
Olavo Bilac 14<br />
Os papéis de gênero mudaram bastante ao longo do século vinte. As mulheres,<br />
menos estrangeiras no espaço público, hoje se dividem entre a casa e a rua. (Resta ainda<br />
aos homens serem menos estrangeiros no espaço da casa.)<br />
Finalmente, de uma perspectiva metafísica, podemos dizer que todos somos<br />
estrangeiros porque, viajantes num tempo cada vez mais veloz, estamos na vida só de<br />
passagem, vivendo em acomodações provisórias. Um clique e já não somos mais. Por<br />
isso a importância dos momentos de encontro − como este que celebramos hoje.<br />
BIBLIOGRAFIA<br />
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1997.<br />
BISHOP, Elizabeth. Uma arte – As cartas de Elizabeth Bishop. São Paulo: Cia. das<br />
Letras, 1995.<br />
_____, (trad.) The diary of Helena Morley. New York: Farrar, Straus & Cudahy, 1957.<br />
COLÔNIA, <strong>Regina</strong>. A poesia como "way of life". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 jun.<br />
1970.<br />
FANINI, Michele Asmar. Fazer da pena um ofício: a profissionalização literária<br />
feminina no Brasil da virada do século XIX para o XX. Disponível em:<br />
http://www.slmb.ueg.br/iconeletras/artigos/volume3/michele.pdf. Acesso em:<br />
23.11.2009.<br />
KAFKA, Franz. A metamorfose. Um artista da fome. Carta a meu pai. São Paulo:<br />
Martin Claret, 2007.<br />
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.<br />
MORLEY, Helena [Alice Brant]. Minha vida de menina. Rio de Janeiro: José Olympio,<br />
1966.<br />
SAID, Edward. Representações do intelectual. São Paulo, Cia. das Letras, 2005.<br />
14 BILAC, Olavo, apud FANINI, Michele Asmar. Fazer da pena um ofício: a profissionalização<br />
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