Documento (.pdf) - Biblioteca Digital - Universidade do Porto
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202<br />
Jorge A. Osório<br />
de tercetos que instituem um tempo argumentativo no interior da Elegia e que,<br />
apesar das aparências, é relativamente complexo. É que Camões tem de proceder<br />
à transferência <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> general Temístocles, famoso vence<strong>do</strong>r da<br />
batalha das Termópilas 43 , que não envolvia razões de ordem amorosa na sua<br />
recusa da arte singular que Simónides lhe propunha, para o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> amor<br />
entendi<strong>do</strong> como sofrimento inserto na biografia terrena <strong>do</strong> homem.<br />
Comecemos por reter o seguinte: um raciocínio persuasivo é tanto mais<br />
credível quanto mais são as contradições que ele consegue superar 44 , porque vai<br />
ser útil observar por este ângulo os sete tercetos seguintes.<br />
O primeiro <strong>do</strong> conjunto abre com esse que, que dá início a uma série anafórica<br />
de se, conduzin<strong>do</strong> o leitor a conclusões formuladas mediante enuncia<strong>do</strong>s<br />
interrogativos. Trata-se de uma estrutura frásica que Camões utiliza com alguma<br />
frequência, sobretu<strong>do</strong> nas poesias sábias à maneira italiana. Do ponto de vista<br />
da sua afirmação sonora, as partículas citadas são ténues: monossílabos átonos,<br />
realça<strong>do</strong>s no entanto pelo lugar de arranque <strong>do</strong> verso a que pertencem.<br />
O que estabelece uma coordenação explicativa, asseguran<strong>do</strong> a continuidade<br />
expositiva com valor também de nexo causal, um pouco à semelhança <strong>do</strong> nam ou<br />
<strong>do</strong> enim latinos, para, desse mo<strong>do</strong>, reforçar a ligação com o segmento contíguo,<br />
coisa que não deixava de ter interesse numa exposição bastante estruturada<br />
em volta de um objectivo persuasivo. É como se esse que pretendesse forçar a<br />
sugestão da resposta a uma virtual pergunta ‘então porquê?’, mediante o nexo<br />
‘de facto’, ‘na verdade’, ‘com efeito’. Seguem-se sete tercetos, dividi<strong>do</strong>s em duas<br />
sequências, em jeito de andamentos, concentra<strong>do</strong>s na necessidade de dar solidez<br />
a uma argumentação retórica. Com ela o poeta pretende garantir uma segurança<br />
expositiva de que emane a pertinência da ane<strong>do</strong>ta narrada no começo da Elegia.<br />
Essa estratégia evidencia-se nas frases condicionais iniciadas pelos se à cabeça<br />
<strong>do</strong>s versos:<br />
«Que, se é força<strong>do</strong> andar por várias partes<br />
buscan<strong>do</strong> à vida algum descanso honesto,<br />
que tu, Fortuna injusta! mal repartes;<br />
e se o duro trabalho é manifesto<br />
quer por grave que seja, há-de passar-se<br />
com animoso esprito e le<strong>do</strong> gesto;<br />
[então]<br />
43 O celebra<strong>do</strong> epitáfio destina<strong>do</strong> a evocar a memória <strong>do</strong>s gregos mortos nessa batalha (Frg. 92 DIEHL) foi<br />
escrito de certeza por Simónides, conforme a crítica mais segura aceita.<br />
44 Bice Mortara GARAVELLI, Manuale di Retorica, Milão, 1988, 30.