Documento (.pdf) - Biblioteca Digital - Universidade do Porto
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Jorge A. Osório<br />
a que aludia o poeta francês <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>. Sem identificar o<br />
ponto de vista valériano de que um poeta visa também criar nos outros – leia-se,<br />
nos leitores – o esta<strong>do</strong> poético com uma observação de incidência estritamente<br />
sociológica, a asserção parece cair como uma luva em Camões, pese embora a<br />
fortíssima sensação em contrário, ou seja, pese a enorme pressão que o seu texto<br />
poético exerce sobre o leitor no senti<strong>do</strong> de o dever ler como confissão de um<br />
esta<strong>do</strong> poético.<br />
Uma das facetas mais intrigantes <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong> na obra camoniana,<br />
e com particular acuidade na parte lírica, tem a ver com a memória, porque por<br />
ela se atravessam as questões ligadas à sua pessoa histórica, à intencionalidade<br />
semântica <strong>do</strong>s seus escritos, em suma à sua figura 4 . Importa não perder de vista<br />
esta dimensão da ostentação que o enunciante poético faz de si mesmo, a par das<br />
estratégias que desenvolve para agarrar também o seu leitor, como bem evocam<br />
passos como os seguintes:<br />
«Chegai, desespera<strong>do</strong>s 5 , para ouvir-me<br />
e fujam, os que vivem de esperança<br />
ou aqueles que nela se imaginam,<br />
porque Amor e Fortuna determinam<br />
de lhe darem poder para entenderem,<br />
à medida <strong>do</strong>s males que tiverem» (Canção X)<br />
ou<br />
«A quem darei queixumes namora<strong>do</strong>s 6<br />
<strong>do</strong> meu pastor queixoso namora<strong>do</strong>,<br />
a branda voz, suspiros magoa<strong>do</strong>s,<br />
a causa porque na alma é magoa<strong>do</strong>?<br />
De quem serão seus males consola<strong>do</strong>s?<br />
Quem lhe fará devi<strong>do</strong> gasalha<strong>do</strong>?» (Écloga V)<br />
4 Um <strong>do</strong>s pontos mais obscuros na apreensão <strong>do</strong> autor Camões tem a ver com aquilo que possa ou deva ter<br />
si<strong>do</strong> a sua contribuição autoral para a institucionalização da sua figura, quer pela maneira como pode ter<br />
orienta<strong>do</strong> a leitura – a legenda – <strong>do</strong>s seus discursos, lírico e épico, quer pela imagem que, mesmo em sua vida,<br />
mas certamente na fase subsequente ao regresso <strong>do</strong> Oriente, os comenta<strong>do</strong>res e biógrafos começaram a erguer<br />
a seu respeito, pon<strong>do</strong> o acento tanto na infelicidade pessoal e na injustiça <strong>do</strong> tratamento de que terá si<strong>do</strong> alvo,<br />
como na superioridade moral, muito à luz de um senequismo difuso, <strong>do</strong> vate sobre a realidade da pátria. Essa<br />
lenda perduraria e permanece vigorosa.<br />
5 Os desespera<strong>do</strong>s de amor como destinatários eleitos, vistos nomeadamente como potenciais beneficiários<br />
da mensagem lírica, eram tema comum na poesia de cancioneiro, como o denuncia a abordagem da cantiga<br />
de Fernão da Silveira, «Para os desespera<strong>do</strong>s / gram conforto he saber / que ham certo de morrer», no<br />
Cancioneiro Geral de Resende (Ed. de Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, vol. I, Coimbra,<br />
1963, nº 219, 229).<br />
6 É retoma <strong>do</strong> primeiro verso <strong>do</strong>s tercetos da dedicatória de Boscán à Duquesa de Soma das suas Obras, o<br />
qual, por sua vez, retoma o «Cui <strong>do</strong>no lepidum novum libellum» de Catulo, I, 1.